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QUANDO A HISTÓRIA SE REPETE COMO FARSA LEGITIMADA
indício, mesmo que certo e grave, pode acarretar na exclusão de um juízo de certeza quanto aquilo que se pretende provar.”6
Nessa mesma linha de pensamento, a obra de Danilo Knijnik, mencionada acima, preleciona que a condenação fundada somente em indícios reclama um standard probatório ainda mais exigente do que o da “prova além de qualquer dúvida razoável”: o modelo a ser adotado consistiria no da “prova incompatível com qualquer hipótese que não a da acusação”7 .
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É justamente ante o standard probatório rotineiramente afirmado pela 8ª Turma do TRF4, para o caso Lava Jato, que a absolvição de Lula deveria ter sido a conclusão, o que deveria ocorrer porque os elementos indiciários colhidos nos autos (i) não são incompatíveis com qualquer hipótese que não a da acusação, da mesma forma que (ii) não excluem a possibilidade de que os fatos tenham ocorrido de modo diverso do que alegado pela acusação.
Muito pelo contrário: em meu olhar, interpretados todos os indícios amealhados, firmo três conclusões: (i) o conjunto indiciário é somente parcialmente consistente com a versão da acusação, segundo a qual Lula seria proprietário do tríplex desde 2009; (ii) o conjunto indiciário é plenamente consistente com a versão da defesa, segundo a qual houve interesse pelo tríplex, mas o casal não o adquiriu e Lula nunca o recebeu; (iii) o conjunto composto pela totalidade dos elementos de convicção (indícios e provas) é integralmente coerente com a hipótese apresentada pela defesa e apenas parcialmente coerente com a hipótese apresentada pela acusação.
6 Excerto extraído do acórdão da apelação criminal nº. 5022179-78.2016.4.04.7000, OITAVA
TURMA, Relator JOÃO PEDRO GEBRAN NETO, juntado aos autos em 14/11/2017. 7 KNIJNIK, Danilo. A prova nos juízos cível, penal e tributário. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2007, p. 45.
Maria Luiza Quaresma Tonelli1
No dia 24 de janeiro de 2018, por unanimidade, os desembargadores João Pedro Gebran Neto, Leandro Paulsen e Victor dos Santos Laus da 8ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4) votaram em favor de manter a condenação do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva por corrupção passiva e lavagem de dinheiro no chamado “caso triplex do Guarujá”. Um julgamento que simplesmente corroborou a sentença condenatória do ex-presidente Lula pelo juiz Sérgio Moro na 13ª Vara Criminal de Curitiba a 9 anos e meio de prisão pelos crimes de corrupção passiva e lavagem de dinheiro. Além de manter a condenação, os desembargadores do TRF-4 aumentaram a pena para 12 anos e 1 mês de prisão, a ter início em regime fechado. Em se tratando de uma decisão unânime, coube à defesa apenas o recurso dos embargos de declaração, destinados apenas a esclarecer pontos obscuros, omissões ou ambiguidades no acórdão. Ou seja, um recurso que não permite reverter a condenação do réu.
O que causou espanto em grande parte da comunidade jurídica em razão da manutenção da condenação por unanimidade e na ampliação da pena pelos desembargadores do TRF-4 decorre da não comprovação, no âmbito da primeira instância, de que o imóvel pertença ou tenha pertencido a Lula. A sentença condenatória já era esperada pela forma como o processo foi conduzido pelo juiz Sérgio Moro e pelos procuradores, numa clara violação de seus direitos fundamentais, bem como a violação das normas do Direito Processual Penal, amplamente denunciadas pelos mais renomados juristas brasileiros na obra Comentários a
1 Maria Luiza Quaresma Tonello é advogada, Mestre e Doutora em Filosofia pela Universidade de São Paulo.
uma sentença anunciada: o processo Lula.2 Tais violações aviltam, igualmente, a democracia e o estado de direito democrático. Alguns críticos da sentença do juiz Sérgio Moro chegam a afirmar que os arbítrios e os abusos de autoridade contra o ex-presidente e cidadão Luiz Inácio Lula da Silva configuram um julgamento típico de estados de exceção. Apenas a título de ilustração, cito apenas alguns aspectos cruciais da sentença de Sérgio Moro: o desrespeito ao princípio do devido processo legal, fundamental no estado democrático de direito, o desrespeito à garantia da presunção de inocência, ou de não culpabilidade, o direito de ampla defesa muitas vezes cerceado, a ausência das provas para a condenação do réu e a parcialidade do juiz Sérgio Moro.
É óbvio que a corrupção, fenômeno político, econômico e social, precisa ser combatida, pois afeta de forma injusta e cruel a sociedade como um todo, principalmente as camadas mais pobres da população, as que mais dependem do Estado. A corrupção corrompe a própria política. Lula não está acima da lei e, como tal, foi investigado e processado em razão das denúncias que recaíram sobre ele. O que se questiona, entretanto, é o tratamento que lhe foi dado durante todo o processo, caracterizado como uma evidente perseguição política a fim de impedir sua participação no pleito eleitoral em 2018 e, quiçá, retirá-lo definitivamente da vida pública, atingindo diretamente o Partido dos Trabalhadores. Não é por acaso que muitos definem a operação Lava Jato como uma operação levada a cabo por motivações políticas.
A condução do processo que resultou na condenação do ex-presidente Lula em primeira instância, bem como a manutenção da condenação no TRF-4 contou com a ampla e diária cobertura da mídia hegemônica, concentrada nas mãos de meia dúzia de famílias que há anos vem tentando convencer os leitores, ouvintes e telespectadores de que o Partido dos Trabalhadores é uma organização criminosa formada por corruptos. Uma campanha moralista e criminalizadora, contra o PT e contra a política em geral, promovendo a cultura do punitivismo em uma sociedade estruturalmente dividida, com desigualdades profundas, não obstante os avanços sociais e econômicos promovidos pelos governos Lula e Dilma, este interrompido em 2016 por um golpe travestido de impeachment, tendo em vista que Dilma Rousseff foi condenada sem ter cometido crime de responsabilidade. Um golpe, vale salientar, ainda em curso, uma vez que a inelegibilidade de Lula no TSE significará a consolidação do golpe de 2016.
2 PRONER, Carol et al. (orgs.). Comentários a uma sentença anunciada: o Processo Lula.
Bauru: Canal 6, 2017.
Ao manterem a condenação de Lula, os desembargadores do TRF-4 consideraram que Lula recebeu propina da empreiteira OAS na forma de um apartamento triplex no Guarujá, mesmo que não restasse provado por Sérgio Moro a propriedade do imóvel em nome do réu ou de sua falecida esposa, Marisa Letícia. Consideraram que houve propina oriunda de um esquema de corrupção na Petrobras e que o dinheiro saiu de uma conta da OAS que abastecia o PT em troca de favorecimento da empresa em contratos na Petrobras, quando na sentença de primeiro grau o juiz Sérgio Moro afirma que o triplex não tem relação com a Petrobras. É isso que, literalmente, consta na sentença: “Este Juízo jamais afirmou na sentença ou em lugar algum, que os valores obtidos peça Construtora OAS nos contratos com a Petrobras foram utilizados para pagamento da vantagem indevida para o ex-Presidente. Aliás, já no curso do processo, este Juízo, ao indeferir desnecessárias perícias requeridas pela Defesa para rastrear a origem dos recursos, já havia deixado claro que não havia essa correlação (itens 198-199). Nem a corrupção, nem a lavagem, tendo por crime antecedente a corrupção, exigem ou exigiria, que os valores pagos ou ocultados fossem originários especificamente dos contratos da Petrobras.” A defesa, no recurso, diz que não há prova alguma de que os recursos obtidos pela empresa OAS em contratos com a Petrobras foram destinados ao imóvel tríplex e que, não tendo relação com a Petrobras, Moro nem poderia ter julgado o caso (violação do princípio do juiz natural).
Os três desembargadores consideraram que, embora não tenha havido transferência formal, o imóvel foi reservado para Lula, o que configura tentativa de ocultar o patrimônio caracterizando o crime de lavagem de dinheiro. Ora, o simples fato de um imóvel ser reservado para alguém, sem transferência, portanto, de título de propriedade, não pode configurar crime de lavagem de dinheiro. Tampouco ficou provado, sequer, que o tríplex tenha sido reservado para Lula. Os três desembargadores consideraram que embora possa não ter havido “ato de ofício”, na forma de contrapartida à empresa, somente a aceitação da promessa de receber vantagem indevida mediante o poder de conceder o benefício à empreiteira já configura corrupção. Pelo que consta, não há prova alguma de que Lula tenha aceitado qualquer “promessa de receber vantagem indevida mediante o poder de conceder o benefício à empreiteira”. Consideraram que os fatos investigados na Operação Lava Jato revelam práticas de compra de apoio político de partidos idênticas às do escândalo do mensalão. Tal analogia é um escândalo, em se tratando de um processo penal, principalmente recursal e para fins de manutenção de uma condenação. Por fim, contrariando a tese da defesa, consideraram que o juiz Sérgio era apto para julgar o caso. Ao negar todas as acusações, a defesa afirma que Lula é alvo de perseguição política.
Quando a defesa de Lula fala em perseguição política não se trata de mera alegação. Trata-se da comprovação de que Lula é vítima do que se conhece hoje como lawfare, palavra inglesa que pode ser traduzida como guerra jurídica, uma tática ou estratégia jurídica que se caracteriza pelo uso, pelo abuso e pelo mau uso do Direito como instrumento de perseguição do inimigo.
O jurista Lenio Streck, no verbete lawfare do livro Enciclopédia do golpe volume 1, afirma que a lawfare parte justamente da construção fraudulenta de raciocínio jurídico para fins politicamente orientados. Em sua sentença, o juiz Sérgio Moro utilizou-se de uma construção que pode facilmente ser caracterizada como lawfare: presunções, inversão do ônus da prova, parcialidade e juízos morais. Para Lenio Streck, a lawfare é um instrumento de perseguição ilegítimo e antidemocrático, pois transforma o Direito em um jogo de caras marcadas. É o Direito utilizado como arma política.3
Não há dúvida alguma de que a lawfare é a forma mais violenta da politização da Justiça, uma das marcas registradas do que Rubens Casara define como Estado Pós-Democrático, o Estado compatível com o neoliberalismo, no qual tudo é transformado em mercadoria. “Um Estado que, para atender ao ultraliberalismo econômico, necessita assumir a feição de um Estado Penal, de um Estado cada vez mais forte no campo do controle social e voltado à consecução dos fins desejados pelos detentores do poder econômico.” 4
O neoliberalismo surgiu imediatamente após a II Guerra Mundial, na Europa e na América do Norte, onde imperava o capitalismo, como uma forte reação teórica e política contra o Estado intervencionista e de bem-estar, ou Wellfare State. O texto de origem do neoliberalismo é O Caminho da Servidão, de Friedrich Hayeck, escrito em 1944. Nesse texto, Hayeck ataca de modo veemente toda e qualquer limitação dos mecanismos de mercado por parte do Estado, denunciadas como uma ameaça letal à liberdade econômica e política. Em 1947, quando se construíam as bases do Estado de Bem-estar na Europa do pós-guerra na Inglaterra e em outros países, Hayeck convocou para uma reunião na estação de Mont Pèlerin, na Suíça, todos os que compartilhavam sua orientação ideológica. Entre os participantes estavam tanto os adversários do Estado de Bem-estar, como os inimigos do New Deal norte-americano. Um dos mais célebres participantes era Milton Friedman. Ali foi fundada a Sociedade de Mont Pèlerin. O objetivo era combater o keyne-
3 STRECK, Lenio Luiz. lawfare, in:ALVES, Giovanni et al. (coord.) Enciclopédia do golpe.
Bauru: Canal 6, 2017. 4 CASARA, Rubens. R.R. Estado pós-democrático: neo-obscurantismo e gestão dos indesejáveis. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2017, p. 25.
sianismo e o socialismo, preparando as bases de outro tipo de capitalismo, duro e livre de regras para o futuro. Hayeck e seus companheiros argumentavam que o novo igualitarismo daquele período, promovido pelo estado de Bem-estar, destruía a liberdade dos cidadãos e a vitalidade da concorrência, da qual dependia a prosperidade de todos. Para eles, a desigualdade era um valor positivo e imprescindível. Milton Friedman veio a tornar-se o guru do capitalismo sem peias, a vertente do capitalismo radical, que se tornou uma ortodoxia governamental em todas as sociedades capitalistas que adotaram a ideologia neoliberal.
O modelo econômico de Friedman foi desenvolvido na Escola de Chicago. O Chile foi o laboratório de seu experimento mais radical, com Pinochet, pois em sua versão genuína o neoliberalismo exigia certas condições autoritárias, incompatível, portanto, com a democracia. Não precisamos relembrar aqui o que significou para o Chile as condições autoritárias impostas por Pinochet durante os longos anos de ditadura. O que importa é ressaltar que a mais sanguinária das ditaduras da América Latina, que foi o Chile, tem início com um golpe de estado contra Allende, em 11 de setembro de 1973, sendo adotado ali um modelo econômico de livre mercado, formulado por jovens economistas chilenos oriundos da Escola de Chicago, os chamados Chicago boys. A adoção de tais medidas econômicas ocorreu quase uma década depois por Margareth Thatcher.
Em defesa do mercado, golpeia-se a democracia e a América Latina tem em seu curriculum uma série de golpes no passado e golpes que se repetiram recentemente, como em Honduras em 2009 e no Paraguai em 2012. No Brasil tivemos um golpe militar e civil em 1964 retirando da presidência da república o presidente Jango Goulart. Militar e civil porque foi um golpe parlamentar, tendo em vista que contou com o apoio irrestrito da base oposicionista a Jango Goulart. O que caracterizou o golpe contra Jango foi o recurso à força militar na sua deposição e à violência durante a ditadura, com prisões, torturas, mortes e desaparecimentos. Naquele período a tortura era uma política de estado financiada por setores do empresariado a fim de manter a repressão, necessária ao estado de exceção.
Com o fim da ditadura, em 1985, abre-se um período de preparação para a instauração da democracia no país e em 1988 é promulgada a Constituição, chamada por Ulysses Guimarães de Constituição Cidadã. O Brasil passa a fazer parte do rol das democracias constitucionais, com um estado de direito democrático, no qual o poder político é limitado, como garantia de afastar qualquer ameaça autoritária por parte do estado sobre os cidadãos. O trauma dos longos anos de ditadura levou nossos constituintes a elaborar uma constituição rica em direitos e garantias individuais e em direitos sociais. As funções das instituições do estado
foram claramente definidas e a criação do Ministério Público com o papel de Fiscal da Lei deixa de ser um órgão meramente acusador. Ao poder Judiciário a constituição confere, dentre outras, a função de controle da constitucionalidade das leis. Nossa constituição de 1988 fortalece formalmente o sistema de justiça como um todo, mas foi a partir do governo Lula que o sistema de justiça realmente passou a desempenhar plenamente suas funções, com o respeito absoluto à independência do poder judiciário, a não ingerência do poder executivo nos trabalhos do Ministério Público e o aparelhamento da Polícia Federal, que estava sucateada até o governo Fernando Henrique Cardoso. Podemos dizer que a partir do governo Lula o sistema de justiça foi empoderado em todos os aspectos.
Com Lula o Brasil passa a ter uma nova configuração. Transformações significativas no âmbito econômico e social ocorreram no país. Não precisamos elencar aqui exemplos da adoção de programas que nunca haviam sido sequer pensados, voltados à população mais pobre deste país. Considero que o programa mais criticado pelos partidos de oposição e pela parcela conservadora, autoritária, preconceituosa e egoísta da classe média, o programa Bolsa Família, foi o mais importante de todos. Um programa de transferência de renda que pode ser definido como uma revolução silenciosa que modificou a vida de muita gente, principalmente das mulheres, com uma quantia que pode ser considerada irrisória para as classes abastadas, mas que significava muito para uma mãe de família que não tinha o que dar de comer a seus filhos. O ataque ao Bolsa Família reflete o desprezo pelos pobres e uma profunda incapacidade de solidariedade social, típica de sociedades hierarquizadas e profundamente desiguais.5
Pela primeira vez na história deste país tivemos um presidente oriundo da classe trabalhadora, um ex-metalúrgico sem diploma universitário que fez mais pelo país do que qualquer outro e em tão pouco tempo. Lula fez um governo de inclusão social, com uma clara opção pelos mais pobres. Retirar quase 40 milhões de pessoas da extrema pobreza em oito anos de mandato é fato inédito. Não é por acaso que Lula é conhecido e respeitado no mundo inteiro, tendo recebido mais de uma centena de títulos de doutor honoris causa nas mais conceituadas universidades do mundo e mesmo no Brasil. Mas Lula incomodou. As elites não se conformaram em ter que dividir espaços públicos, como universidades e espaços privados, como shoppings e aeroportos, com uma classe trabalhadora que mudou de patamar social, na medida em que passou a ter acesso a bens de consumo e bens culturais que antes nem podia
5 Ver REGO, W. L.; PINZANI, A. Vozes do Bolsa Família: autonomia, dinheiro e cidadania.
São Paulo: Unesp, 2013.