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A CONDENAÇÃO DE LULA E A AFRONTA AO PRINCÍPIO DO DEVIDO PROCESSO LEGAL
Após seu partido vencer quatro eleições presidenciais consecutivas e dominando largamente todas as pesquisas eleitorais de intenções de voto, mesmo contando com uma injusta condenação criminal em primeira instância na espetacularizada operação Lava Jato, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva transformou-se no maior óbice ao projeto de poder das correlações de forças neoliberais que, assim como não conseguiram vencer as eleições em 2014, vilipendiando a vontade popular através do impeachment em 2016, não conseguiriam vencer democraticamente o pleito eleitoral de 2018 em um cenário que contasse com a candidatura do ex-presidente Lula.
Assim é que a politização do Poder Judiciário18 vem sendo utilizada, em sua relação promíscua com o “quarto poder” que se tornou a mídia de massa, como um eficaz instrumento para usurpação democrática de direitos que pertencem não somente às pessoas que se submetem ao seu julgamento, mas a toda a população.
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Afinal, quando se derroga a garantia constitucional da presunção de inocência, quando se viola prerrogativas dos advogados, quando se nega à população sua liberdade de escolher em quem votar, quando se fatia leis aprovadas pelo Legislativo, ou pior, se legisla sem seu lugar, quem sai perdendo? São as partes do processo ou o povo que está ali, distraído, no seu prazer de odiar e punir?
Se na Alemanha nazista o inimigo era o povo judeu, se na ditadura militar brasileira de 1964 o inimigo eram os comunistas, no Brasil de 2018 o inimigo é mais do que Lula ou o Partido dos Trabalhadores (PT), mas já são todos os partidos de esquerda e, em um futuro muito próximo, poderá vir a ser toda a classe política brasileira, sem distinção, pelo óbice que representam à liberdade do Poder Judiciário de permanecer instrumentalizando esse Estado de Exceção permanente em que vivemos.
O agente de exceção agora já não é o Poder Executivo, não há mais a possibilidade de um golpe de Estado tradicional, como aconteceu no passado: a ditadura da
18 Se de início se pensava que apenas um juiz federal de primeira instância poderia estar agindo com abuso de autoridade e desviando de suas funções pelo canto punitivista da opinião pública (da), hoje percebe-se que esse fenômeno já contamina os tribunais, a exemplo da decisão politicamente contaminada do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, que não tinha qualquer elemento probatório para confirmar a condenação do ex-presidente Luiz Inácio
Lula da Silva, que não as convicções íntimas do juiz Sérgio Moro.
Esses julgamentos de exceção, que punem pelo sabor da opinião pública, têm como espelho o próprio Supremo Tribunal Federal, cada vez mais ativista e usurpador das funções legislativas, inclusive na supressão de liberdades individuais, respaldado em motivações populistas, ou discursos moralistas e de anticorrupção, que em muito se distanciam da legalidade democrática ou do conteúdo probatório disponível nos autos do processo – ou, ainda, de suas próprias funções.
toga se viabiliza através do esvaziamento e do acovardamento dos demais poderes legitimamente eleitos e mandatários da vontade popular.
E, sob esse aspecto, há sinais de que o Poder Judiciário vai encampar a inviabilização da candidatura do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva para as Eleições Gerais de 2018, a despeito das pesquisas de intenções de voto que o colocam como favorito em todos os cenários, mesmo depois de preso, e apesar da traumática e recente violação da vontade popular no episódio do impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff, o que poderá agravar ainda mais a instabilidade democrática no país.
Caso isso aconteça, a reação popular, para não se falar ainda em revolução, poderá começar: (i) pela eleição de representantes comprometidos com a democracia e que não se acovardem na tarefa de elaborar e votar as reformas estruturais necessárias ao reequilíbrio entre os poderes estatais, como a democratização da mídia, a reforma política, a reforma tributária e a reforma do Judiciário; e (ii) pelo exercício legítimo do direito de resistência ou desobediência diante de medidas supressoras às liberdades individuais e aos direitos fundamentais tão arduamente conquistados pelo Constituinte de 1988.
Enquanto as mudanças não acontecem, resta sempre a certeza de que, tal como havia juízes em Berlin, há juízes por todo o Brasil que ainda honram o compromisso da magistratura de agir com imparcialidade, impessoalidade e discrição na defesa da legalidade democrática, em uma verdadeira resistência contramajoritária às pressões internas e externas que sofrem diariamente. Fugindo do populismo judicial, são esses “heróis” anônimos que o povo brasileiro deve começar a respeitar – e não reverenciar, ressalte-se.
Larissa Ramina1 Tatyana Scheila Friedrich2
O princípio do devido processo legal nasceu na Inglaterra, em 15 de junho de 1215, com a Magna Carta das Liberdades. O documento surgiu quando o então Rei João Sem Terra, pressionado pela nobreza acabou aceitando aquela declaração de direitos, que tinha a intenção de enfraquecer o autoritarismo monárquico que prevalecia na Inglaterra do século XIII.
A Magna Carta das Liberdades estabeleceu direitos individuais que o Estado não poderia violar, como forma de restringir o autoritarismo do governo inglês. João Sem Terra seguramente assinou o documento por pressão e não por intenção de garantir direitos aos indivíduos, e os maiores beneficiados foram a nobreza e o clero. Entretanto, a partir deste fato histórico, o princípio repercutiu como parâmetro para as Constituições modernas, e significou a suprema garantia das liberdades fundamentais do indivíduo e da coletividade em face do Poder Público, que serviu como embrião dos princípios da “conformidade com as leis”, do “juiz natural”, da “legalidade tributária” e o próprio instituto do “Habeas Corpus”.
Inicialmente, o princípio foi conhecido comon law of land, – Lei da terra – tendo uma inspiração jusnaturalista que influenciava as instituições jurídicas inglesas. Significava que os direitos naturais elencados na Magna Carta somente poderiam sofrer a intervenção estatal por procedimentos aceitos pela sociedade conforme a lei da terra, ou seja, conforme o que se entendia por direito na commom law, que tinha sua força nos precedentes judiciais. Muito embora a Magna Carta não tivesse utilizado a expressão due process of law, sabe-se que esta logo sucedeu, como sinônima, a expressão law of the land.
1 Professora Doutora de Direito Internacional Público da UFPR. 2 Professora Doutora de Direito Internacional Público da UFPR.
Como na Inglaterra o direito não tem sua base em legislações, mas sim na commom law, desta forma o devido processo legal era analisado no caso concreto que tinha sua própria solução razoável conforme as circunstâncias apresentadas.
O direito inglês influenciou o direito estadunidense do norte, primeiro as Colônias e depois a Federação por meio da Constituição norte-americana e sua Carta de Direitos – Bill of Rights. O princípio do devido processo legal teve um desenvolvimento diferente nos Estados Unidos, especialmente por causa do papel da Suprema Corte norte-americana.
O devido processo legal também está no coração do Direito brasileiro desde o seu início. A Constituição do Império, de 1824, embora não o previsse de forma expressa, trazia um embrião do princípio em seu art. 179, inciso II: “Art. 179. A inviolabilidade dos direitos civis e políticos dos cidadãos brasileiros, que tem por base liberdade, segurança individual, e propriedade, é garantida pela Constituição do Império, pela maneira seguinte: Nenhum Cidadão pode ser obrigado a fazer, ou deixar de fazer alguma coisa, senão em virtude da Lei; Nenhuma Lei será estabelecida sem utilidade pública”.
Embora o princípio do devido processo legal se encontre no sistema processual brasileiro há muito tempo, a Constituição brasileira de 1988 foi a primeira que o trouxe de maneira expressa no inciso LIV do art. 5º: “Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: LIV – ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”.
Há quem diga que o princípio do devido processo legal é a própria essência do processo legítimo, justo, equilibrado, legal, conduzido por julgador imparcial. Por conseguinte, quaisquer irregularidades que ameaçam a condução do processo violam o princípio do devido processo. Trata-se de uma garantia processual que tem como escopo assegurar a regularidade do processo. É justo pensar que essas irregularidades podem ser muito mais graves quando atingem o processo penal.
Além de estar prevista expressamente no artigo 5º, LIV, a idéia de devido processo legal encontra-se em vários outros artigos, como aqueles que prevêem a ampla defesa, o contraditório, a proibição de prisão ilegal e o próprio princípio da legalidade. Mais que isso, pode-se dizer que a garantia ao devido processo legal fundamenta outros princípios constitucionais e em razão de sua extensão e magnitude quase que se confunde, em sua essência, com o próprio Estado Democrático de Direito. E este deve ter como fundamento maior a dignidade da pessoa humana.
O fundamento da dignidade da pessoa humana, porém, e o amplo rol de direitos fundamentais não se limitam à previsão constitucional. Direito Internacional e Direito Constitucional, em sintonia, atuam como instrumentos para a exteriorização do elenco de direitos, garantias e deveres que devem ser respeitados para se realizar a concreta efetivação do princípio da dignidade da pessoa humana.
Tanto o Direito Constitucional quanto o Direito Internacional sempre se preocuparam com o respeito aos Direitos Humanos. Todo o corpo jurídico que forma hoje o Direito Internacional dos Direitos Humanos teve inspiração em modelos constitucionais que lhes eram anteriores, tal como ocorre com o Pacto dos Direitos Civis e Políticos e Pacto dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, para exemplificar. Com o desenvolvimento da proteção internacional e regional de tais direitos, atualmente verifica-se a influência do Direito Internacional sobre as Constituições locais que surgem em conformidade, ou vão se adaptando, às novas regulamentações e exigências internacionais. Uma relação dialética em prol dos direitos mais essenciais do ser humano.
No caso do devido processo legal, ele está previsto em inúmeros textos internacionais, tais como a Declaração Universal dos Direitos Humanos (artigos 9, 10 e 11), a Convenção Americana Sobre os Direitos Humanos (art. 8), o Pacto dos Direitos Civis e Políticos (art. 14), e as quatro Convenções de Genebra sobre Direito Internacional Humanitário (art. 3 comum às quatro Convenções), dentre outros.
O procedimento policial e o posterior processo judicial que culminou com a prisão do ex-presidente Lula desrespeitou, nas suas diversas etapas, o devido processo legal em todas as suas dimensões.
A velocidade da condenação final é a primeira constatação dessa violação. O que poderia ser considerado como a representação da razoável duração do processo é imediatamente desconstruído quando comparado com os demais processos penais em espécie na justiça penal federal do Brasil. As decisões envolvendo esse caso foram comprovadamente muito mais rápidas que outras proferidas pelos mesmos envolvidos no processo de investigação e de decisão. Levantamento feito pela GauchaZH3 demonstra detalhadamente essa diferenciação, sobretudo na decisão dos desembargadores que julgaram a apelação no Tribunal Regional Federal da 4ª Região, em Porto Alegre, mostrando como houve aceleração do processo com vistas a condenar o ex-Presidente Lula.
3 https://gauchazh.clicrbs.com.br/politica/eleicoes/noticia/2017/12/tempo-medio-de-apelacoes-no-trf4-indica-julgamento-de-lula-em-marco-cjastq0wy078401mky3mteww8.html
A imparcialidade dos desembargadores do TRF também não foi garantida, como demonstra a seguinte declaração: “Desde minhas primeiras aulas no curso de mestrado encontrei no colega Sérgio Moro, também juiz federal, um amigo. Homem culto e perspicaz, emprestou sua inteligência aos mais importantes debates travados em sala de aula. Nossa afinidade e amizade só fizeram crescer nesse período” (...). Trata-se de elogio feito expressamente na página de agradecimentos do livro “A aplicação imediata dos direitos e garantias individuais”, lançado em 2008 e escrito por Gebran Neto, um dos desembargadores que julgou a apelação de Lula. A amizade do desembargador com o juiz de primeiro grau que julgou originariamente o caso deveria gerar a suspeição do desembargador, nos termos do artigo 254 do Código de Processo Penal, gerando a nulidade do processo, conforme o artigo 564 do mesmo código4 .
No tocante à capacidade subjetiva do julgador, em concreto, também denominada especial (em paralelo à capacidade em abstrato, que é funcional e diz respeito ao preenchimento dos requisitos objetivos previstos em lei para a ocupação do cargo), ela significa justamente a necessidade da imparcialidade, que se apresenta pela ausência de impedimento ou suspeição do juiz. Assim, o estabelecimento no Código de Processo Penal das causas de suspeição e impedimento do julgador se destina justamente para garantir essa imparcialidade, que não existe quando há amizade íntima. E esse fator é ainda mais relevante no caso concreto, em que o juiz Sérgio Moro, ainda em primeiro grau, manifestou-se várias vezes particularmente contra o réu Lula, o que se verificou tanto nas gravações das audiências e nas suas decisões quanto em suas aparições públicas com inimigos políticos de Lula, além das manifestações ocorridas em suas frequentes incursões midiáticas, no Brasil e no exterior. A manutenção de Gebran Neto no processo, mesmo com toda essa relação com o juiz da primeira instância, demonstra uma grave violação da imparcialidade do juiz, causando, em consequência, prejuízo para a ampla defesa, que são princípios intrínsecos ao devido processo legal.
Não bastassem essas irregularidades, há ainda o fato de que se violou o princípio do devido processo legal ao condenar Lula sem a presença de provas fáticas, mas com base na “convicção” do juiz. O juiz Sérgio Moro entendeu que o apartamento foi entregue ao ex-Presidente como pagamento de favores à construtora OAS, dona do empreendimento. Entretanto, o apartamento não está nem nunca esteve no nome de Lula, tampouco ele usufruiu o bem. Ademais, não houve comprovação
4 Art. 254. O juiz dar-se-á por suspeito, e, se não o fizer, poderá ser recusado por qualquer das partes: I – se for amigo íntimo ou inimigo capital de qualquer deles; Art. 564. A nulidade ocorrerá nos seguintes casos: I – por incompetência, suspeição ou suborno do juiz.