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LAWFARE INTERNACIONAL E A JUDICIALIZAÇÃO DA POLÍTICA NO BRASIL
Sobre a contrapartida, afirmou-se haver “prova acima do razoável de que o ex-presidente foi um dos articuladores, senão o principal, do esquema de corrupção”. Ainda, “não se exige a demonstração de participação ativa de Luiz Inácio Lula em cada um dos contratos. O réu, em verdade, era o garantidor de um esquema maior que tinha por finalidade de modo sub-reptício o financiamento de partidos. Pelo que agia nos bastidores pela nomeação e manutenção de agentes em cargos-chave para organização criminosa.”
É uma inovação sem precedentes nesse processo. Inicialmente, o Ministério Público Federal afirmou na denúncia que a contrapartida estaria relacionada a três contratos com a Petrobras. Na sentença, o juiz de primeira instância disse que na verdade eram atos indeterminados que não tinham qualquer relação com a Petrobras. Ao final, o desembargador nos diz que Lula seria o garantidor de um esquema executado por organização criminosa relacionado ao financiamento de partidos.
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Destaque-se que não é indispensável que a contrapartida seja efetivamente concedida. Por isso, se diz na linguagem técnica que se trata de um crime formal (e não material). Em todo caso, é indispensável que, no momento do “acordo”, as partes tenham consciência do objeto negociado: vantagem em troca de contrapartida.
Claros esses dois pontos, se não há identificação de vantagem e contrapartida “negociadas”, é impossível falar em crime corrupção. Portanto, não é apenas caso de não haver provas. A verdade é que tanto a sentença quanto a fala do relator demonstram que não havia sequer crime a ser apurado.
Trata-se de uma insanidade processual, pois em nenhum momento a conduta atribuída ao réu pelo Tribunal foi mencionada pela acusação, o que obviamente anula a possibilidade de haver direitos de defesa em relação a tais insinuações. Não é apenas a falta de correlação entre acusação e condenação, mas a criação de novos fatos que sequer foram submetidos ao contraditório.
O ex-presidente Lula jamais poderia ter sido condenado pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região por articular um esquema de corrupção com a finalidade de financiamento de partidos políticos, agindo “nos bastidores” mediante a indicação de cargos-chave na estrutura de uma organização criminosa, por basicamente sete razões: (1) essa não foi a acusação, (2) nunca houve pedido do Ministério Público Federal relacionado a esses fatos, nem durante o processo nem no recurso de apelação, (3) como essa conduta nunca foi tratada no curso do processo, Lula nunca pode se defender de tais imputações, (4) não existe nenhuma prova sequer relacionada a esses fatos no processo, (5) todas as indicações políticas são condutas oficiais do presidente da república, não há como classificá-las como ação “de bastidores”, (6) em nenhum momento a acusação denunciou Lula por integrar e, muito menos,
chefiar uma organização criminosa e (7) não é possível condenar alguém por ser o “garantidor” de uma organização criminosa sem que sequer se tenha apontado quem são os membros e os crimes praticados por essa organização.
Essa perseguição é o símbolo do autoritarismo contemporâneo. As engrenagens de um sistema de justiça (polícias, ministério público e judiciário), desvirtuado por uma suposta legitimação conferida pelo poder midiático e corrompido pelos interesses econômicos soberanos, reproduzem medidas de exceção que esvaziam de sentido a Constituição Federal (tese de Pedro Serrano).
A tirania judicial é a forma da ditadura no séc. XXI. Ninguém precisa de censura na era da pós-verdade: tempos em que a farda é substituída pela toga, o fuzil dá lugar ao martelo e a mordaça vira fake news. O processo penal se transforma em campo de guerra que busca eliminar os inimigos da soberania neoliberal: sejam os pobres inúteis ou os políticos inconvenientes.
Nesse contexto, o combate à esperança de um novo governo popular é o desfecho do golpe. A figura do inimigo personifica em Lula o símbolo maior da (ainda que remota) ascensão social, econômica e cultural do povo. “Eu não sou mais um ser humano, sou uma ideia”. É por isso que, como cidadão, Lula tem o direito de resistir diante de um processo inteiramente ilegal e arbitrário, por todas as medidas de exceção a que foi submetido. Mas, acima de tudo, é justamente por transcender a figura individual na forma de uma ideia a ser eliminada que Lula tem o dever de resistir à caçada deflagrada por um sistema de justiça manipulado pelo poder midiático e corrompido pelos interesses do poder econômico. Que não lhe falte coragem, que não nos falte disposição. Porque nesse caso resistir não é uma opção, mas uma missão!
Gisele Ricobom1 Paulo Petri2
A Organização das Nações Unidas, ao longo dos setenta anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, construiu um sistema institucional robusto de proteção dos Direitos Humanos. Conta com uma diversidade importante de órgãos, mecanismos, tratados e procedimentos que tem por objetivo fiscalizar, impulsionar e especialmente incentivar os Estados-membros a respeitarem os valores ditos universais.
As denúncias e as diversas pressões que podem surgir do uso desses mecanismos jurídicos-institucionais passaram a ser consideradas uma estratégia geopolítica que visa a consecução de outros fins, sem que o Estado faça necessariamente uso do recurso armado. Nesse sentido, a utilização do direito internacional dos direitos humanos para a obtenção de fins políticos e militares na ordem internacional passou a ser compreendida, especialmente a partir dos anos 2000, como lawfare.
A nova dinâmica mundial deve ser compreendida à luz da globalização econômica e do sistema financeiro mundial. As potências globais que controlam os centros financeiros, ainda que não declinem do uso da força, utilizam de todos os meios e instrumentos para proteção dos interesses nacionais.
Trata-se de uma nova forma de guerra, readequada aos tempos neoliberais, de uma guerra irrestrita, como denominam Qiao Liang e Wang no livro “A guerra além dos limites: conjecturas sobre a Guerra Tática, na era da Globalização”. Segundo os autores, a reconformação da guerra pressupõe a utilização de “todos os meios, militares e não-militares, letais e não-letais, para compelir um inimigo a
1 É Doutora em Direito pela Universidad Pablo de Olavide, Professora da UNILA. Atualmente em cooperação técnica com a Faculdade Nacional de Direito – UFRJ. 2 Advogado e Mestre em Ciência Política pelo IUPERJ.
submeter-se aos nossos interesses”.3 Dentre as múltiplas táticas de guerra, podem ser incluídas a guerra psicológica, de contrabando, de mídia, de drogas, de redes interativas, tecnológica, de maquinação, de ajuda econômica e também a guerra de legislação internacional “aproveitando as ocasiões mais oportunas para interpor novas regras e normas de interesse particular”.4
Portanto, não há como se compreender o lawfare sem o contexto internacional e neoliberal das relações internacionais contemporâneas. É fenômeno originado no sistema internacional que ganhou contornos próprios nos sistemas jurídicos nacionais, sendo a judicialização da política uma das suas formas de expressão.
O general da USAF, Charles L. Dunlap, é apontado como idealizador do conceito lawfare e o define como “as the strategy of using – or misusing – law as a substitute for traditional military means to achieve an operational objective.”5
Para Dunlap, o lawfare pode operar um sistema positivo quando reduz os efeitos destrutivos da guerra, mas pode ter efeitos nefastos quanto, por exemplo, instrumentaliza-se o direito para obter uma vantagem militar, como é o caso de combatentes de guerra que se protegem junto da população civil ou de patrimônio protegido pelo Direito Internacional Humanitário.
É importante compreender também que o lawfare no âmbito internacional foi concebido por teóricos das principais potências militares contra as regras de direitos humanos. Não é por acaso que tais autores são militares. Trata-se, portanto, de uma tentativa de relativizar as garantias de direitos humanos, exatamente como ocorre no âmbito nacional.
É o caso do The legal lawfare: the legal off the Pro-Israel Community que se define como uma fronteira de batalha legal, com objetivo de proteger os direitos civis dos Judeus, combatendo o lawfare promovido pelos palestinos. De acordo com a página, “lawfare proponents manipulate international and national human rights laws to accomplish purposes other than, or contrary to, those for which they were originally enacted. For example, the stifling of free speech”.6
Nesse caso, a Comunidade Pró-Israel acusa aos palestinos que utilizam dos mecanismos de proteção dos direitos humanos de praticarem lawfare, objetivando, assim, relativizar a importância desses mecanismos.
3 Disponível em<https://www.egn.mar.mil.br/arquivos/cepe/GUERRAALEMLIMITES.pdf>. 4 Idem. 5 DUNLAP, Charles L. Lawfare today: a perspective. Disponível em:<https://scholarship.law. duke.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=5892&context=faculty_scholarship> 6 Disponível em:<https://thelawfareproject.org/lawfare/what-is-lawfare-1/>
A teoria crítica dos direitos humanos denomina processo semelhante como inversão dos direitos humanos e identifica a raiz do fenômeno na conquista da América, quando os Estados soberanos e europeus utilizaram o critério civilizatório da guerra justa para justificar o genocídio exploratório da colonização. Assim, o direito da conquista, em nome da civilização e de altos valores humanos, paradoxalmente justificou o processo colonizatório.
A inversão dos direitos humanos, segundo Franz J. Hinkelammert ocorre quando “Los derechos humanos se transformaran en uma agresividad humanitaria: violar los derechos humanos de aquellos que los violan.”7 Nesse sentido, a guerra passa a ser transformada em intervenção humanitária, numa guerra em nome dos direitos humanos, com resultados tão ou mais danosos do que os eventos que supostamente pretende proteger.
Portanto, tanto o lawfare, quanto a inversão dos direitos humanos, são estratégias liberais que tem por objetivo flexibilizar a proteção internacional e as garantias de direitos fundamentais, declinado assim dos valores essenciais das regras protetivas nacionais e internacionais.
Da mesma forma, a judicialização da política não é recente, assim como não se trata de um fenômeno exclusivamente brasileiro. Internacionalmente tem origem no pós-guerra, com aumento substancial a partir da dissolução da União Soviética e dos regimes do Leste Europeu.
A consolidação do capitalismo e suas instituições, principalmente nos EUA onde a judicialização surge como elemento de regulação da vida social e política, faz emergir a judicialização da chamada megapolítica que entrega aos mecanismos judiciais, notadamente às supremas cortes, poder decisório sobre questões que podem alterar os rumos da nação. O papel da jurisprudência e da ciência política norte-americana passou a ser fundamental para a expansão do fenômeno, notadamente nos países “em desenvolvimento”.
Ran Hirschl8 destaca a “profunda transferência de poder das instituições representativas para os judiciários, sejam estes nacionais ou supranacionais” nas últimas décadas, cujo conceito de supremacia constitucional – pilar da democracia norte-americana – agora é compartilhado por pelo menos uma centena de países pelo mundo. Ainda, segundo Neal Tate e Torbjorn Vallinder a judicialização refere-
7 HINKELAMMERT, Franz J. La inversión de los derechos humanos: el caso de John Locke.
In: FLORES, Joaquín Herrera. (Ed.) El vuelo de Anteo: derechos humanos y crítica de la razón liberal. Bilbao: Desclée de Brouwer, 2000, p.80. 8 HIRSCHL, Ran. O novo constitucionalismo e a judicialização da política. In: MOREIRA,
Luiz. Judicialização da Política. São Paulo: 22 Editorial, 2012, p. 131-167.
-se ao “processo pelo qual a negociação não judicial e os fóruns formuladores de decisões tornam-se dominados por regras e processos quase-judiciais (legalísticos)”9 Trata-se de tendência à adesão das intervenções judiciárias como vetores principais da resolução de conflitos no campo político.
A transferência da regulação política para o Poder Judiciário adquiriu alcance global nas últimas duas décadas e no Brasil, naturalmente, ganhou contornos peculiares. Luiz Moreira analisa que a judicialização da política alcançou níveis alarmantes no país. Para ele, a partir da consideração de que vivemos sob uma democracia de direitos, o sistema de justiça passou a tutelar todas as áreas, avocando temas que tradicionalmente se conformavam a partir de uma organização horizontal dos poderes políticos.
Segundo o autor, “No modelo que ora se apresenta, a legitimidade da democracia no Ocidente decorre dos tribunais constitucionais. Conforme esse modelo, não apenas ocorre a judicialização da política, mas sua consequente criminalização, chegando-se à conclusão segundo a qual a democracia emana do direito.”10 Desse modo, conclui o autor que as instituições judiciais, especialmente o Poder Judiciário, tem exercido protagonismo sobre os demais poderes, promovendo o superdimensionamento do domínio da lei, o que tende a ser antidemocrático. Assinala que há tendência à despolitização, à neutralização da legitimidade democrática e, sobretudo, à negação da soberania popular.11
Nas últimas seis eleições presidenciais brasileiras a disputa política esteve polarizada entre PT e PSDB. Para as duas siglas, a judicialização funcionou como elemento estratégico da disputa eleitoral, já que temas que naturalmente deveriam ser dirimidos por agentes da própria política passaram para o crivo do judiciário, artificialmente empoderado como um suposto mediador.
Dessa forma, os partidos atribuíram ao judiciário o protagonismo do processo político eleitoral, o que provocou o fenômeno do ativismo judicial, cuja principal característica é a liberalidade interpretativa das leis e da Constituição por magistrados absolutamente alienados do processo político, mas que utilizam da pretensa imparcialidade para interferir de forma indiretamente partidarizada nas decisões conjunturais da democracia.
9 TATE, Neal; VALLINDER, Torbjorn. The Global Expansion of Judicial Power. New York/
London: New York University Press, 1995, p. 28. 10 MOREIRA, Luiz. A judicialização da política no Brasil: negação à urnas? In: MOREIRA,
Luiz. Judicialização da Política. São Paulo: 22 Editorial, 2012, p. 05-10. 11 Idem.