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BREVES APONTAMENTOS SOBRE A CONDENAÇÃO, EM PRIMEIRA INSTÂNCIA, DO EX-PRESIDENTE LULA, OU SOBRE A LUTA PARA QUE A JUSTIÇA PREVALEÇA ANTE AO ARBÍTRIO
BREVES APONTAMENTOS SOBRE A CONDENAÇÃO, EM PRIMEIRA INSTÂNCIA, DO EX-PRESIDENTE LULA, OU SOBRE A LUTA PARA QUE A JUSTIÇA PREVALEÇA ANTE AO ARBÍTRIO
Ellen Rodrigues * Eduardo Khoury **
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Diante do cenário brasileiro atual, remontar ao arcabouço principiológico limitador do poder punitivo que - sob a égide da legalidade, da presunção de inocência, da individualização e determinação das penas e de outros princípios que compõem o chamado núcleo duro do Direito Penal e do Processo Penal nos Estados democráticos de Direito – estabelece limites para a produção da verdade, para a atribuição de culpa e imposição de condenações e, consequentemente, para a aplicação das penas, parece ser, para muitos, um impropério, uma espécie de subversão ou mesmo um elogio à impunidade. Em meio a manipulações políticas e ideológicas - que contam com o auxílio luxuoso da mídia108 e de políticos e personalidades importantes, sobretudo no campo jurídico, a sociedade brasileira, assolada por uma série de adversidades, vivencia uma espécie de “adesão subjetiva à barbárie”109, que, somada à descrença na política, na justiça e nas instituições, contribui para que muitos segmentos da população corroborem arbitrariedades e abusos de poder que representam verdadeiros ataques à nossa democracia. Nessa ambiência, boa parte da população brasileira comemorou a condenação110, em primeira instância, do ex-presidente, Luiz Inácio Lula da Silva, pelos crimes de corrupção passiva e lavagem de dinheiro, em concurso material, no âmbito da denominada Operação Lava Jato. Discorrer, pormenorizadamente, sobre os diferentes aspectos da sentença, que conta com 218 páginas, fugiria aos limites deste ensaio. Não obstante, é imperioso destacar as críticas que vêm sendo feitas à mesma, desde a sua publicação, por parte de diversos juristas brasileiros111, sobretudo quanto ao aspecto probatório. Feitas essas observações, passa-se à análise da questão central, qual seja, “ter ou não o ex-presidente Lula praticado os crimes, que, de forma imprecisa, lhes são imputados na complexa
* Doutora em Direito Penal pela UERJ, com estágio doutoral na Universität Greifswald (Alemanha); Mestre em Ciências Sociais pela UFJF; Professora Adjunta de Direito Penal e Criminologia da Faculdade de Direito da UFJF; Coordenadora do NEPCrim (Núcleo de Extensão e Pesquisa em Ciências Criminais da Faculdade de Direito da UFJF). E-mail: ellen.rodriguesjf@gmail.com ** Acadêmico da Faculdade de Direito da UFJF; estagiário do NEPCrim (Núcleo de Extensão e Pesquisa em Ciências Criminais da Faculdade de Direito da UFJF). E-mail: eduardo.khoury@direito.ufjf.br 108 BATISTA, Nilo. Mídia e sistema penal no capitalismo tardio. In: Discursos Sediciosos: Crime, Direito e Sociedade, Rio de Janeiro: Revan, Instituto Carioca de Criminologia, ano 7, n.12, p. 271-288, 2º semestre de 2002; COIMBRA, Cecília. & SCHEINVAR, Estela. Subjetividades punitivo-penais. In: BATISTA, Vera Malaguti. (Org.). Loïc Wacquant e a questão penal no capitalismo neoliberal. Rio de Janeiro: Revan, 2012, v. 1, p. 59-68; BOURDIEU, Pierre. Sobre a Televisão. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997. 109 BATISTA, Vera Malaguti. Adesão subjetiva à barbárie. In: BATISTA, Vera Malaguti. (Org.). Loïc Wacquant e a questão penal no capitalismo neoliberal. Rio de Janeiro: Revan, 2012, v. 1, p. 313-318. 110 Disponível em: https://abrilveja.files.wordpress.com/2017/07/sentenc3a7a-lula.pdf. Acesso em: 18 jul. 2017. 111 Mais informações em: http://www.ocafezinho.com/2017/07/17/coletivo-nacional-de-juristasprogressistas-denuncia-duramente-sentenca-sem-provas-de-sergio-moro/. Acesso em: 18 jul. 2017.
denúncia”112 apresentada pelo Ministério Público Federal. Segundo a acusação, Lula estaria incurso na conduta típica de corrupção passiva porque, enquanto presidente da República e, portanto, funcionário público, teria feito acordos com representantes da construtora OAS que asseguram a esta a assinatura de três contratos junto à Petrobras, nos quais a primeira foi beneficiada indevidamente. Para a efetivação desses contratos, a OAS teria pago um montante de R$ 2,25 milhões, definido como “propina”, que, “teria sido dividida entre os agentes da Petrobras e agentes políticos ou partidos políticos que os sustentavam. Parte dela veio a integrar a conta corrente geral de propinas mantida entre o Grupo OAS e o Partido dos Trabalhadores, da qual foi abatido o preço do apartamento 164-A, triplex, e o custo das reformas, corporificando vantagem indevida paga ao ex-Presidente Luiz Inácio Lula da Silva”. Finalmente, alega o MPF que, ao não realizar qualquer negócio jurídico hábil a transferir o referido “tríplex” para o seu patrimônio, Lula teria incorrido, também, na conduta típica do crime de lavagem de dinheiro. De acordo com o magistrado, restou provado que o ex-presidente Lula praticou as condutas de corrupção passiva, prevista no art. 317 do Código Penal pátrio, e lavagem de dinheiro, prevista no art. 1º da Lei 9613/1998, em concurso material. O juiz afirma, ainda, que a peça “foi instruída com prova documental e com os depoimentos extrajudiciais de colaboradores e testemunhas”. Todavia, em que pesem esses argumentos, na análise da sentença depreende-se que estão ausentes provas capazes de satisfazer os requisitos de tipicidade dos crimes em comento. Mesmo se valendo do uso exacerbado de colaborações premiadas e, até mesmo, de peças jornalísticas, cuja utilização como prova é amplamente desautorizada, o magistrado não logrou êxito em demonstrar, inequivocamente, que Lula, visando, dolosamente, a obtenção de “vantagem indevida”, teria participado, descumprindo seu dever funcional, como autor, co-autor ou partícipe dos ditos acordos entre os representantes da OAS e os diretores da Petrobrás. No Brasil, para que se possa falar em crime de corrupção passiva, cujo bem jurídico tutelado é a Administração Pública, é essencial que se comprove que o funcionário público, visando “vantagem indevida”, praticou, dolosamente, atos em desacordo com seu dever funcional. Conforme Jardim113, “o fato de o ex-presidente da República ter recomendado a nomeação de algum diretor ou gerente da Petrobrás não o torna partícipe dos crimes que estes, porventura, vierem a praticar em detrimento da empresa”. Como assevera Bitencourt114, no crime de corrupção passiva, a “vantagem indevida” é elemento normativo especial do tipo de injusto, “sendo considerada “indevida” justamente pelo fato de ser ilícita, ilegal, injusta ou contra lege, isto é, não amparada pelo ordenamento jurídico”. Nesse sentido, ainda que tivesse havido, por parte de Lula, o recebimento de qualquer quantia advinda da OAS – o que se admite a título argumentativo – tal fato, por si só, desacompanhado da prova da existência de atos
112 JARDIM, Afrânio Silva. Breve análise da sentença que condenou o ex-presidente Lula e outros. Disponível em: http://emporiododireito.com.br/breve-analise-da-sentenca-que-condenou-o-expresidente-lula-e-outros-por-afranio-silva-jardim/. Acesso em: 18 jul. 2017. 113 JARDIM. Op. Cit. 114 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal, 5: parte especial: dos crimes contra a administração pública e dos crimes praticados por prefeitos. 6 ed. rev. e. ampl. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 114-115.
determinados, praticados mediante o descumprimento do dever funcional, por parte do ex-presidente, não seria suficiente para caracterizar a natureza indevida da vantagem, o que conduziria ao reconhecimento da atipicidade da conduta de corrupção passiva. Novamente apenas a título argumentativo, ainda que vencida a questão acima, não fica claro se o ex-presidente teria, supostamente, “solicitado” ou “aceito de promessa” de tal vantagem e, mais ainda, não há provas concretas de que essa eventual “vantagem” teria sido “recebida” por ele na forma do denominado “tríplex”. Se esta última hipótese é a tese sustentada pelo magistrado, que, conforme demonstrado no item 884 da sentença, afirma, categoricamente, que Lula responde por corrupção passiva “pelo recebimento de vantagem indevida decorrente em parte dos contratos” em questão, tal “recebimento” teria que restar demonstrado, sob pena de inarredável atipicidade da conduta. Senão, vejamos. O crime de corrupção passiva é um tipo misto ou de conteúdo variado, isso significa que praticando um dos verbos nucleares do tipo ou todos eles, responderá o agente por um único crime. Nas modalidades “solicitar” e “aceitar promessa”, as condutas representam crimes formais ou de consumação antecipada, ou seja, ainda que descrevam um resultado, o legislador se satisfaz com a conduta, sendo o resultado tido como exaurimento. Já na modalidade “receber”, o crime é material115 , sendo imprescindível a demonstração do recebimento da vantagem por parte do agente, o que, se não ocorre, conduz ao reconhecimento da atipicidade da conduta. Apresentadas tais considerações acerca do delito de corrupção passiva, cumpre agora destacar alguns aspectos relevantes do crime de lavagem de dinheiro, que também foi imputado a Lula, em concurso material com aquele. Novamente aqui, a questão do “recebimento” da “vantagem indevida” se faz relevante. Pois, em não havendo o “recebimento” de tal “vantagem” - satisfazendo-se o julgador, como afirmado no item 307 da sentença, com a mera “solicitação” ou “aceitação da promessa” da quantia representativa dessa “vantagem” -, como poderia haver “ocultação” ou “dissimulação” dos bens, direitos ou valores provenientes dessa “vantagem”? Como “ocultar” ou “dissimular” de algo que não foi “recebido”, mas somente “solicitado” ou “aceito” como promessa? De acordo com os itens 893, 894 e 895 da sentença, a conduta de lavagem de dinheiro ora atribuída a Lula está totalmente vinculada à suposta corrupção passiva anterior. Logo, o reconhecimento da atipicidade da primeira implicará, necessariamente, a impossibilidade de condenação pela prática do crime de lavagem. De acordo com o art. 2º, II da Lei 9613/1998, o processo e julgamento do crime de lavagem independe do processo e julgamento da infração penal antecedente. Da inteligência desse dispositivo, depreende-se que os processos do crime de lavagem de dinheiro e do crime antecedente são independentes. Porém, de acordo com o princípio da acessoriedade limitada116, como o crime de lavagem é acessório ao crime antecedente, ainda que os processos sejam independentes, o crime anterior representa uma elementar do crime de lavagem. Assim, para que se afirme a configuração do crime de lavagem de capitais,
115 BITENCOURT. Op. Cit. p. 122-125; PRADO, Luiz Regis; CARVALHO, Érika Mendes de & CARVALHO, Gisele Mendes de. 14 ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015. p. 1348-1351. 116 CALLEGARI, André Luís. Problemas pontuais da Lei de Lavagem de Dinheiro. Revista Brasileira de Ciências Criminais, nº 31, v.8, p,183-200, São Paulo, jul.-set.2000.
nos termos da legislação brasileira, é necessário que a infração penal antecedente seja, ao menos, típica e ilícita. Assumindo a hipótese, novamente apenas a título de argumentação, de superação dessa questão, convém destacar outro ponto importante acerca do crime de lavagem de dinheiro. No âmbito doutrinário, muito se discute sobre como deve ser aferida a responsabilidade penal do agente em casos de autolavagem (selflaundering), que ocorrem quando o autor da lavagem é o mesmo da infração penal antecedente. Em muitos países, especialmente na Europa continental, prevalece o entendimento de que o autor do crime antecedente não deve responder pelo crime de lavagem, atendendo, assim, à reserva contida no art. 6º, item 2, “e”, da Convenção de Palermo117. Em países como Itália, Alemanha, Portugal, Espanha, França, entre outros, se a lavagem é praticada pelo mesmo autor do crime anterior, responderá o agente apenas por este último, sendo a lavagem considerada post factum impunível ou exaurimento da primeira infração, nos termos do princípio da consunção. Dessa forma, um mesmo autor não será punido pelos dois crimes. Nesses países, o crime de lavagem recebe tratamento análogo aos delitos de receptação e favorecimento real, nos quais não se admite que o autor da infração antecedente seja também o autor do crime acessório, o que implicaria bis in idem. No Brasil, de acordo com estudiosos do tema118, tal entendimento, embora não esteja positivado, está em consonância com a nossa tradição jurídica, com destaque para os argumentos de Fragoso119, para quem “eventual omissão legislativa a respeito, antes de significar a plena possibilidade de dupla responsabilização, acena para uma posição tradicionalmente adotada na história da legislação penal brasileira, em que a observância do princípio do ne bis in idem é deixado ao prudente critério do juiz”. Contra o reconhecimento do princípio da consunção nos casos de autolavagem, há quem argumente sua aplicação não seria possível quando as condutas afetarem bens jurídicos diferentes. Não obstante, a regra da consunção não exige que a relação consuntiva se dê apenas entre condutas que afetem o mesmo bem jurídico120 , o que encontra guarida, até mesmo, na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, que, em sua Súmula 17, afirma que admite a aplicação do princípio entre os crimes de falso e estelionato que afetam bens jurídicos diferentes, respectivamente, a fé pública e o patrimônio. Em verdade, o aspecto fundamental da aplicação do princípio da consunção é o fato de que ele “está vinculado, como reiteradamente proclamado, à interdição do bis in idem”121. O limite imposto pelo princípio da consunção à dupla incriminação é de ordem valorativa, na medida em que um tipo absorve o desvalor do outro. Assim, embora muitas vezes se queira reduzir sua função a uma relação de meio e fim, “a
117 LIMA, Renato Brasileiro de. Legislação criminal especial comentada. 2 ed. Salvador: Juspodivm, 2014. p. 295. 118 DELMANTO, Roberto. Lei Penais Especiais Comentadas. Rio de Janeiro: Renovar, 2006; DE CARLI, Carla Veríssimo. Lavagem de dinheiro: prevenção e controle penal. Porto Alegre: Ed. Verbo Jurídico, 2011; CASTELLAR, João Carlos. Lavagem de dinheiro: a questão do bem jurídico. Rio de Janeiro: Revan, 2004; CALLAGARI, op. Cit. 119 FRAGOSO, Fernando. Considerações sobre o crime de lavagem de dinheiro. Parecer (Ação Penal 470). Disponível em: http://www.fragoso.com.br/ptbr/arq_pdf/artigos/CONSIDERACOES__SOBRE_O_CRIME_DE_LAVAGEM_ DE_DINHEIRO-PARECER.pdf. Acesso em: 18 jul. 2017 120 BITENCOURT. Op. Cit. p. 250. 121 BATISTA, Nilo. Crítica do mensalão. Rio de Janeiro: Revan, 2015. p. 78.
consunção se amplia para abranger também, com critérios valorativos, pluralidade de fatos”122. Dessa forma, os fatos posteriores que significam um aproveitamento e, por isso, ocorrem regularmente depois de fato anterior, são por este consumidos, critério que é amplamente utilizado pela doutrina e jurisprudência pátrias. Diante das questões levantadas e do progressivo desprestígio em relação à política e à justiça brasileiras, o que, infelizmente, contribui para o embotamento do pensamento crítico, é importante que, como uma contra mola que resiste, os princípios reitores do Direito Penal e do Processo Penal nos Estados democráticos de Direito sejam corajosamente defendidos. A defesa intransigente desses princípios e das garantias fundamentais de um cidadão significa a defesa de todos, pois quando é aberta uma janela para o avanço do arbítrio não é possível prever o que virá a reboque.
122 FRAGOSO, Heleno Claudio. Lições de direito penal. Rio de Janeiro: Forense, 2004. p. 453-455.