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CONDENAÇÃO POR IMÓVEL: SEM POSSE E SEM DOMÍNIO
CONDENAÇÃO POR IMÓVEL: SEM POSSE E SEM DOMÍNIO Weida Zancaner * Celso Antônio Bandeira de Mello **
1. Causa estranheza a todos os que se dispõem a ler a sentença exarada pelo Juiz Sérgio Moro, como o magistrado ataca e tenta desvalorizar os advogados de Lula, com o claro intuito de se defender, como se depreende, notadamente, dos itens 105 a 148 da referida sentença. Ao pessoalizar a sentença o juiz coloca-se na posição de parte ao litigar com os advogados e rompe com o princípio da imparcialidade, afronta o princípio da legalidade e tisne a competência que lhe foi outorgada. A garantia de que um processo será julgado de acordo com as leis e a Constituição depende da neutralidade do juiz. A ausência de imparcialidade está prevenida nos artigos 144 e 145 do CPC sob as formas de impedimento e suspeição e o rito para o afastamento do juiz encontra-se regulado no artigo 146 do mesmo diploma legal. Não apenas a leitura da sentença, mas todo o desenrolar do processo exibiram uma parcialidade manifesta. Enganam-se os que acham que o princípio da imparcialidade tem sede infraconstitucional pois, embora não conste expressamente da Constituição, ele nela se alicerça sob duas vertentes: a) enquanto princípio geral do direito, nos termos do artigo 5º, § 2º da Constituição; b) como um dos aspectos da isonomia, princípio fundante do Estado de Direito e tratado nos artigos 5º caput; 5º, I; 37, caput; 37, II; 37, XXI e 175. Os princípios gerais do Direito constituem o substrato da cultura da humanidade, o que implica dizer que sua inobservância representa afronta ao próprio sistema jurídico, pois como leciona Eduardo Garcia de Enterría: "Conviene recordar a este proposito que los principios generales del Derecho son una condensación de los grandes valores jurídicos materiales que constituyen el substractum del Ordenamiento y de la experiencia reiterada de la vida jurídica. No consisten, pues, en una abstracta e indeterminada invocación de la justicia o de la consciencia moral o de la discreción del juez, sino, más bien, en la expresión de una justicia material especificada técnicamente en función de los problemas jurídicos concretos y objetivada en la lógica misma de las instituciones.)”477 Ademais, o artigo 5º, § 2º, dispõe que “os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”. Ora, o Brasil é signatário de inúmeros tratados, como a Declaração Universal de Direitos dos Homens, Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos e o Pacto de San José da
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* Especialista e Mestre em Direito Administrativo pela PUC/SP. ** Professor Emérito da Pontifícia Universidade de São Paulo. 477 GARCIA de ENTERRÍA, Eduardo e FERNÁNDEZ, Tomás Ramón. Curso de Derecho Administrativo. Vol. I, reimpressão 3ª ed. Madrid: Ed. Civitas, 1981, p. 400.
Costa Rica, em que a imparcialidade da jurisdição é colocada como direito fundamental do acusado. A afronta ao direito fundamental do acusado de ser julgado com imparcialidade pode se evidenciar de várias formas: desde a utilização pelo juiz de uma linguagem verbal ou corporal pouco respeitosa, intimidante ou agressiva com a parte, com as testemunhas ou advogados, como, também, quando faz injustificadas reprimendas a advogados, insultos e comentários impróprios sobre litigantes e testemunha, declarações evidenciando prejulgamentos478 etc. A outra vertente em que se assenta o princípio da imparcialidade é no princípio da isonomia, constituindo-se em um de seus aspectos. Assim, assiste razão a José Afonso da Silva quando diz que a igualdade jurisdicional decorre da igualdade perante a lei, como garantia constitucional indissoluvelmente ligada à democracia479 . Sem imparcialidade imperam o juízo ou tribunais de exceção e o princípio da legalidade jaz obscurecido pela desobediência do Poder que deveria aplicá-lo. O princípio da legalidade não visou simplesmente a mera estruturação formal do aparelho estatal, sua composição orgânica e seus esquemas de atuação. O que se pretendeu e se pretende, à toda evidência, foi e é sobretudo estabelecer em prol de todos os membros do corpo social uma proteção e uma garantia. Quis-se outorgar-lhes, em rigor, uma dupla certeza, a saber: (a) de um lado, que ato estatal algum poderia impor limitação, prejuízo ou ônus aos cidadãos, sem que tais cerceios ou gravames estivessem previamente autorizados em lei, nem subtrair ou minimizar vantagens e benefícios que da lei resultariam para os cidadãos se esta fosse observada; (b) de outro lado, que todos os cidadãos tivessem a garantia de um tratamento isonômico, pois se desrespeitada a lei, ou sendo ela inconstitucional, ficaria assegurado aos cidadãos a possibilidade de recorrer a um juízo independente e imparcial que dirimiria o conflito. 2. Com efeito, embora se trate de algo óbvio, é bom relembrar que a legalidade impôsse como característica do Estado de Direito sobretudo como meio especificamente apto para preservar outro valor; justamente aquele que se pretendia, acima de tudo, consagrar: o da igualdade. Não por acaso o lema da Revolução Francesa foi "Liberté, Egalité, Fraternité", ao invés de "Liberté, Legalité, Fraternité". É que o Estado de Direito abomina os casuísmos, as ofensas à isonomia, pois estas atacam fundo um objetivo básico que se visou preservar através do princípio da legalidade. Deveras, por via dele, almejou-se que houvesse uma regra só, a mesma para todos os colhidos por sua abrangência e efeitos, embargando-se então as perseguições
478 Comentários aos Princípios de Bangalore de Conduta Judicial. Tradução de Marlon S. Maia e Ariane E. Kloth. Brasília: Conselho da Justiça Federal, 2008. P. 69, Apud ROCHA, Sílvio Luís Ferreira da. A Imparcialidade do Juiz, in O Caso Lula. Obra coletiva, coordenadores Cristiano Zanin Martins, Valeska Teixeira Zanin Martins e Rafael Valim. Editora Contracorrente, p. 178. 479 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 6 ed. revista e ampl. 2ª tiragem. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1990, p. 194.
e favoritismos por qualquer dos poderes do Estado, vale dizer, o arbítrio, cuja
eliminação é precisamente o objetivo máximo do Estado de Direito.
Em suma: quem ofende o princípio da igualdade e ofende, "ipso facto", a razão de ser do princípio da legalidade pois, como disse BLACK, em seu monumental "Handbook on the Construction and Interpretation of Laws": "tanto é parte da lei o que nela está explícito, quanto o que nela está implícito" ("It is a rule of construction that which is implied in a statute is as much a part of it as what is expressed")480 . Assim, também, o que está implícito em um princípio integra-o com a mesma força com que o integra o que nele está explícito. 3. Aliás, este valor --- a isonomia --- que a ordem normativa pretende colocar a bom recato, está estampado no Texto Constitucional do País, não apenas na implicitude que advém do princípio da legalidade, mas por consagração expressa tanto na própria abertura do título relativo aos "Direitos e Garantias Fundamentais" (art. 5º), como especificamente na qualidade de cânone básico do Estado. Constitui-se, pois, em causa autônoma de proteção aos administrados e, portanto, base de per si suficiente para legitimar subjetivamente quem quer que, tendo sofrido agravos decorrentes de sua violação por parte de algum ato governamental, pretenda insurgir-se contra o sobredito gravame. Ora bem, a sentença que condenou o ex-Presidente LULA escandaliza, desde logo, porque não só se fez sem suporte em prova, mas até mesmo, efetuou-se frontalmente contra lei. Pretendeu-se, justifica-la atribuindo-lhe imaginosamente, a propriedade de um dado imóvel, conquanto desde logo inexistisse qualquer documento que atestasse propriedade ou ao menos posse. Acresce que a atribuição dela ao ex-Presidente fez tabula rasa da norma segundo a qual a propriedade imóvel se prova pelo registro imobiliário, diante do que, à toda evidência, sem violar tal lei, não se pode irrogá-la a outrem simplesmente por um desejo do acusador, no caso, o magistrado. Nem se diga que não apenas ele, mas um delator também afirmou ser do ex-presidente o referido imóvel. Nunca se ouviu dizer que o fato de alguém afirmar que um dado imóvel pertence a fulano ou beltrano é suficiente para torna-lo titular dele. Menos ainda quando a assertiva é feita na qualidade de delação premiada ou seja, sem o compromisso da verdade e impulsionado pelo desejo de amenizar a própria posição de infrator do Direito, cuja palavra, pois, já não vem aureolada por uma suposição de desinteresse e de um sincero e leal desejo de colaborar com o prestígio da ordem jurídica, mas é, quando menos, suspeita de uma intenção subalterna. Também não se provou e nem ao menos se afadigou em comprovar que dita propriedade seria fruto de uma propina por facilitar um negócio com a Petrobras. Em tais circunstâncias a que se acaba de aludir é de evidência solar que não se pode em sã consciência, menos ainda em um processo judicial, maiormente em um juízo penal, assumir como verdadeiros e suficientes ditos fundamentos como bastantes para condenar quem quer que seja, menos ainda quem tenha, como no caso em tela, um currículo, um histórico, no qual se contam inúmeros títulos de doutor “honoris causa”
480 BLACK, Henry Campbell. Handbook on the Construction and Interpretation of Laws. West Publishing Co., Saint Paul, Minn., 1896, pág. 67).
(27 ao todo), que, como é notório, só são conferidos depois de aturada análise da personalidade e conduta do homenageado. Para mencionar apenas alguns dos mais prestigiosos, citem-se os conferidos pela Universidade de Harvard, pela Universidade de Salamanca. e pela Universidade de Coimbra. É algo intuitivo que se alguém tivesse que se fiar na palavra de um criminoso confesso, ademais interessado em dizer o que agradasse a seu julgador ou na palavra de um homem repleto de honrarias, nacionais e internacionais, muitas delas conferidas quando já não mais ocupava qualquer cargo público, haveria de fiar-se naquela proferida por este último. Não foi esta, entretanto, a intelecção do magistrado que condenou o expresidente, no que fez praça, então, ou de um senso muito peculiar ou de uma completa falta de imparcialidade, que foi justamente o que ocorreu. Aparentemente um preconcebido desejo de agravar quem estava dependendo de uma presumida equidade de seu julgador.