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A SENTENÇA CONDENATÓRIA DO PRESIDENTE LULA COMO UMA AFRONTA AO DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS

A SENTENÇA CONDENATÓRIA DO PRESIDENTE LULA COMO UMA AFRONTA AO DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS Tatyana Scheila Friedrich * Larissa Ramina **

“A justiça, cega para um dos dois lados, já não é justiça. Cumpre que enxergue por igual à direita e à esquerda.” Rui Barbosa

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O Direito Internacional dos Direitos Humanos se consolidou em função da necessidade de se estabelecer um mínimo de direitos e garantias aos indivíduos independentemente de sua origem, nacionalidade ou vínculo a algum país específico. As atrocidades cometidas pelos regimes nazifascistas demonstraram que os direitos previstos internamente não seriam suficientes pois a qualquer momento poderia aparecer uma autoridade estatal arbitrária e simplesmente retirar todos os direitos da população, de parte dela ou de pessoas individualizadas, por uma forma pessoal de pensamento e justificativa. Assim, após a 2ª. Guerra Mundial esse ramo jurídico foi se afirmando, a partir da luta envolvendo pessoas, organizações e Estados engajados em sua promoção. Entende-se que ele é composto por três vertentes bastante amplas que incluem o Direito Internacional Humanitário, que trata da proteção das pessoas em situações de conflitos armados, o Direito Internacional dos Refugiados, que procura proteger os seres humanos que sofrem perseguições e se enquadram no conceito de “refugiado” e o Direito Internacional dos Direitos Humanos propriamente dito, que engloba um amplo rol de direitos individuais e coletivos, tanto no campo dos direitos civis e políticos quanto no campo dos direitos econômicos, sociais e culturais, além daqueles ligados a bioética. Na terceira vertente encontram-se os direitos ligados ao tema da justiça, incluindo-se aí as garantias processuais que devem ser respeitadas em relação às pessoas que estão submetidas a processos administrativos e judiciais, que interessa ao presente estudo. Na questão envolvendo processos judiciais, o princípio central e que dá origem a todas as garantias do jurisdicionado e que, portanto, deve ser respeitado por todos os envolvidos, inclusive a autoridade julgadora, é o princípio do devido processo legal. Ele incorpora os valores essenciais a qualquer julgamento: ampla defesa, contraditório, duplo grau de jurisdição, fundamentação, juiz natural, paridade de recursos, presunção de inocência, vedação de provas ilícitas e verdade real. A sentença proferida pelo juiz Sérgio Moro, da quarta vara da Justiça Federal de Curitiba, em julho de 2017, no processo em que figurou como réu o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e condenou-o a nove anos e meio por corrupção passiva e lavagem de dinheiro, apresenta várias inconsistências e graves violações a esse princípio basilar e suas

* Professora de Direito Internacional Privado na UFPR, com Pós-Doutorado em Migração e Trabalho na Fordham University (EUA). ** Professora de Direito Internacional Público na UFPR, com Pós-Doutorado em Direito Internacional pela Université de Paris Ouest Nanterre La Défense (França).

dimensões, previstos tanto nos textos internacionais vigentes no âmbito regional quanto aqueles de caráter universal. O tema dos direitos humanos sempre foi uma preocupação nas Américas, local onde surgiu o primeiro documento internacional de direitos humanos: a Declaração Americana de Direitos e Deveres do Homem, cuja promulgação ocorreu em abril de 1948, na mesma ocasião da criação da própria OEA. A Declaração Universal dos Direitos Humanos foi aprovada pela Assembleia Geral da ONU alguns meses depois, em dezembro do mesmo ano. De acordo com Lindgren Alves, A Declaração Americana difere da Declaração Universal em termos de conteúdo porque não é apenas uma declaração de direitos. Ela estabelece não somente os direitos inerentes a todos os seres humanos, dotados de atributos inatos de dignidade, liberdade e igualdade. Em função dos atributos igualmente congênitos de razão e consciência da pessoa humana, ela estabelece também deveres correlatos a esses direitos. De acordo com o segundo parágrafo de seu Preâmbulo: “Se os direitos exaltam a liberdade individual, os deveres exprimem a dignidade dessa liberdade”. Procura-se assim a adequação do documento à doutrina jurídica tradicional de que a cada direito corresponde um dever.473 Sobre o acesso à justiça, a Declaração Americana enuncia em seu artigo 18, que “Toda pessoa pode recorrer aos tribunais para fazer respeitar os seus direitos. Deve poder contar, outrossim, com processo simples e breve, mediante o qual a justiça a proteja contra atos de autoridade que violem, em seu prejuízo, qualquer dos direitos fundamentais consagrados constitucionalmente”. Na sequência, o artigo 26 trata da presunção de inocência do acusado e dos princípios que devem reger o depoimento, o julgamento e a determinação da pena. Artigo XXVI. Parte-se do princípio de que todo acusado é inocente, até provar-se-lhe a culpabilidade. Toda pessoa acusada de um delito tem direito de ser ouvida em uma forma imparcial e pública, de ser julgada por tribunais já estabelecidos de acordo com leis preexistentes, e de que se lhe não inflijam penas cruéis, infamantes ou inusitadas. Nesse ponto inicial já pode se verificar as irregularidades em todo o processo, desde o depoimento do Lula, quando vídeos mostraram atitudes do juiz com forte parcialidade, má vontade em relação aos seus defensores e interrupções das intervenções. A pena imposta, de nove anos e seis meses, pode ser considerada infamante, pois é de conhecimento geral a ironia do juiz de chamar, no âmbito privado, o réu pela denominação de “nine”, em referência ao fato de Lula ter apenas nove dedos, em função de acidente de trabalho que sofreu. Uma verdadeira agressão à honra do ser humano. A Declaração Universal dos Direitos Humanos foi adotada na Assembleia Geral da ONU em 10 de dezembro de 1948 e tratou da temática de direitos humanos de forma aprofundada e abrangente, com o mérito de aglutinar os direitos civis e políticos e também os direitos econômicos e sociais, numa concepção universalista e indivisível.

473 ALVES, José Augusto Lindgren. A arquitetura internacional dos direitos humanos. Coleção Juristas da Atualidade – coord. Hélio Bicudo. São Paulo: FTD, 1997, p.272

Na mesma linha da Declaração anterior o artigo 10º da Declaração Universal trata de direito ligado a processo judicial. “Toda pessoa tem direito, em plena igualdade, a uma audiência justa e pública por parte de um Tribunal independente e imparcial, para decidir de seus direitos e deveres ou do fundamento de qualquer acusação criminal contra ela.”. O artigo seguinte trata do princípio do in dubio pro reo. Artigo 11º. 1. Toda pessoa acusada de um ato delituoso tem o direito de ser presumida inocente, até que a sua culpabilidade tenha sido provada de acordo com a lei, em julgamento público no qual lhe tenham sido asseguradas todas as garantias necessárias à sua defesa. As atitudes do juiz na mídia, anteriormente à sentença, suas declarações, a presença e manifestação em diversos eventos para falar do processo, a proximidade com os membros do Ministério Público envolvidos no caso, as fotos retratando relação pessoal com adversários políticos do Presidente Lula e o fato de ter familiares diretos ligados a partido político que sempre fez oposição eleitoral e governamental ao Presidente, foram demonstrações que facilmente levam à percepção de existência de intenção de condenar o réu, por motivação pessoal, independente dos autos. Isso rompe com a exigência da independência e imparcialidade do juiz e com a presunção de inocência, previstos nos artigos em referência. No plano das Convenções de Direitos Humanos, enquanto tratados internacionais ratificados pelos Estados, portanto com caráter vinculante, os princípios processuais também estão previstos. A Declaração Universal sempre foi uma referência mundial em termos de direitos humanos mas, para suprir a sua falta de juridicidade, foram celebrados em 1960 dois Tratados sob os auspícios da ONU: O Pacto de Direitos Civis e Políticos, direcionados aos indivíduos, detentores dos direitos no texto descritos, e o Pacto de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, direcionados aos Estados-partes, que se comprometem a fazer prestações positivas a fim de implementá-los. O Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (Pacto de Nova Iorque) estabelece em seu art. 14, §1º, que "Todas as pessoas são iguais perante os tribunais e as cortes de justiça". Sobre essa igualdade, importante demonstrar o vício na sentença ao não tratar o Presidente Lula de forma igualitária e, ao contrário, aumentar a pena por ter sido Presidente da República. Já na Organização dos Estados Americanos, a Resolução III da Quinta Reunião de Consulta de Ministros de Relações Exteriores dos países americanos, realizada em 1959, recomendou ao Conselho Interamericano de Jurisconsultos a elaboração de projetos de criação de uma Convenção de Direitos Humanos e de um sistema institucional de Proteção dos Direitos Humanos. Assim, o sistema interamericano deixou de ser meramente declaratório e tornou-se mais efetivo com o surgimento, em 1969, da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, conhecida como Pacto de São José, que entrou em vigor em 1978. Dentre os vários direitos ali previstos, destaca-se o 8º.: Artigo 8. Garantias judiciais. 1. Toda pessoa tem direito a ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido anteriormente por lei, na apuração de qualquer acusação penal formulada contra ela, ou para que se determinem seus direitos ou obrigações de natureza civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer outra

natureza.2. Toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência enquanto não se comprove legalmente sua culpa (...). Sobre a parte 1 do artigo, a garantia de um “juiz ou tribunal competente” não foi observada no caso ora analisado. A competência do juiz Sérgio Moro foi questionada pela defesa tendo em vista que ele avoca para si inúmeras ações que não seriam de sua competência, que deve ficar adstrita ao caso da Petrobrás. Então se verifica um esforço do referido juiz para ligar os fatos a Petrobras e assim julgar pessoalmente o caso envolvendo o ex-Presidente Lula. A exigência de se comprovar legalmente a culpa é outra parte crítica da sentença do juiz Sérgio Moro, tendo em vista que o Presidente Lula nunca teve a propriedade, a posse e nem mesmo a chave do triplex. Do mesmo modo, não restou comprovado benefício econômico decorrente deste bem e, sem isso, não é possível se configurar ato de corrupção nem lavagem de dinheiro. Ora, o princípio do juiz natural existe justamente para evitar a parcialidade das decisões, afastando a possibilidade das partes e seus advogados escolherem pessoalmente os juízes e dos juízes de iniciarem as causas que lhes interessem, sem a iniciativa das partes. O “Estatuto de Roma”, tratado internacional que criou o Tribunal Penal Internacional (TPI), foi assinado em 1988 em Roma e entrou em vigor no dia 1o. de julho de 2002, após do sexagésimo depósito de instrumento de ratificação. Foi um marco na história do direito internacional pois pela primeira vez se estabeleceu uma corte judicial internacional para julgar criminosos de guerra e perpetradores de genocídio e crimes contra a humanidade, quando não forem julgados por seus tribunais nacionais. Finalmente o mundo se mostrou pronto para criar um tribunal de caráter permanente e se livrar dos tribunais de exceção, criados pelos vencedores nos períodos posteriores às guerras ou pelo Conselho de Segurança da ONU para julgar situações localizadas.O Brasil ratificou o Tratado de Roma, realizando o depósito do instrumento de ratificação em 2002. No texto do Estatuto há diversos princípios relativos a processo, referindo-se, por exemplo, a garantias de um processo equitativo reconhecidas pelo direito internacional, tal como descrito no artigo 17, 2. O artigo 66 traz a presunção de inocência e no seu item 3, é taxativo: 3. Para proferir sentença condenatória, o Tribunal deve estar convencido de que o acusado é culpado, além de qualquer dúvida razoável.A dúvida, o debate, a existência de posições diferenciadas entre os juízes, portanto, devem levar à inocência do réu e não a sua condenação. Eis um dos muitos exemplos da sentença que mostra dúvida, tendo em vista que o Presidente não realizou ato de ofício: 866. Na jurisprudência brasileira, a questão é ainda objeto de debates, mas os julgados mais recentes inclinam-se no sentido de que a configuração do crime de corrupção não depende da prática do ato de ofício e que não há necessidade de uma determinação precisa dele. Diante de todo o exposto, fica demonstrado como a sentença do juiz Sérgio Moro viola vários dispositivos internacionais de direitos humanos. Como servidor do Estado Brasileiro, como profissional do Poder Judiciário e como cidadão, o juiz teria obrigação de respeitá-los, garantindo a dignidade humana. Como isso não aconteceu, sua sentença deve ser revista.

Nas palavras de Antonio Augusto Cançado Trindade, ex-Presidente da Corte Interamericana de Direitos Humanos e atual juiz na Corte Internacional de Justiça, Cabe, pois, naturalmente aos tribunais internos interpretar e aplicar as leis dos países respectivos, exercendo os órgãos internacionais especificamente a função de supervisão, nos termos e parâmetros dos mandatos que lhes foram atribuídos pelos tratados e instrumentos de direitos humanos respectivos. Mas cabe, ademais, aos tribunais internos, e outros órgãos dos Estados, assegurar a implementação a nível nacional das normas internacionais de proteção, o que realça a importância de seu papel em um sistema integrado como o da proteção dos direitos humanos, no qual as obrigações convencionais abrigam um interesse comum superior de todos os Estados Partes, o da proteção do ser humano.474 Caberá, então, ao Tribunal revisor da decisão, garantir essa proteção do ser humano, revendo decisão tão descabida e que afronta os princípios processuais previstos pelo Direito Internacional dos Direitos Humanos.

474 TRINDADE, Antonio Augusto Cançado. (Ed) A Incorporação das Normas Internacionais de Proteção dos Direitos Humanos no Direito Brasileiro. San Jose, Costa Rica: Co-edição: IIDH, ACNUR, CICV, CUE, 1996. 216-217.

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