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SOBRE A DOSIMETRIA DA PENA PRIVATIVA DE LIBERDADE
In the fell clutch of circumstance I have not winced nor cried aloud. Under the bludgeonings of chance My head is bloody, but unbowed. (William Ernest Henley)
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No dia 12 de julho de 2017, o juiz federal Sérgio Moro publicou a sentença penal condenatória do Ex-Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, por um crime de corrupção passiva majorada (art. 317, par. 1º, do Código Penal - CP) e por um crime de lavagem de dinheiro (art. 1º, inciso V, da Lei 9613/98), em concurso material. Fixou uma pena definitiva de nove anos e seis meses de reclusão em regime inicial fechado. A sentença também aplicou penas de multa cumulativas e determinou a interdição do réu para o exercício de cargo ou função pública pelo período de dezenove anos. Após a leitura integral da sentença, conclui-se com facilidade que a tese acusatória não foi comprovada e que a solução justa e tecnicamente correta só poderia ser a absolvição do Ex-Presidente. Neste capítulo, entretanto, não se pretende discutir o mérito da condenação no tocante à ausência de provas de materialidade e autoria ou a contradição nas próprias convicções do magistrado, expostas no decorrer da fundamentação da sentença. Interessa aqui problematizar, especificamente, a dosimetria da pena privativa de liberdade realizada e os seus fundamentos a partir do dispositivo da sentença penal condenatória recorrível, tomando como referência as técnicas de aplicação de pena mais adequadas ao ordenamento jurídico-constitucional brasileiro475 . O legislador brasileiro adotou o sistema trifásico de dosimetria, em vigor desde 1984. Tal sistema determina que, na primeira fase do cálculo, fixa-se a pena-base entre o limite mínimo legal e o termo médio (metade da soma da pena mínima com a pena máxima prevista para o delito), com fundamento na avaliação das oito circunstâncias judiciais previstas no art. 59 do CP. Na segunda fase, são analisadas as circunstâncias agravantes (arts. 61 e 62 do CP) e atenuantes (arts. 65 e 66 do CP), que não podem ser valoradas, individualmente, para além do limite de 1/6 da pena-base. Por fim, a pena poderá ser
* Professora Adjunta de Direito Penal e Criminologia do Departamento de Ciências Penais e do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e advogada em Porto Alegre. 475 As regras que informam a dosimetria da pena dos condenados foram conquistas do processo civilizacional, por meio do surgimento do direito penal moderno, de matriz iluminista. O Código Criminal do Império, de 1830, já previa circunstâncias atenuantes e agravantes da pena, redução de pena para o crime tentado e regra específica de dosagem da pena entre os limites mínimo e máximo (art. 63). Desde então, as legislações penais brasileiras foram paulatinamente aperfeiçoando as técnicas de dosimetria da pena e adotando metodologias mais precisas, a fim de limitar o discricionariedade dos julgadores. A doutrina e a jurisprudência também contribuíram significativamente para esse aprimoramento.
aumentada ou reduzida em frações de acordo com a presença de causas de aumento ou de diminuição de pena. No item 948 da sentença analisada o magistrado realiza a fundamentação da pena privativa de liberdade de Luiz Inácio Lula da Silva por crime de corrupção passiva, manifestando-se no seguinte sentido: “Para o crime de corrupção ativa: Luiz Inácio Lula da Silva responde a outras ações penais, inclusive perante este Juízo, mas sem ainda julgamento, motivo pelo qual deve ser considerado como sem antecedentes negativos. Conduta social, motivos, comportamento da vítima são elementos neutros. Circunstâncias devem ser valoradas negativamente. A prática do crime corrupção envolveu a destinação de dezesseis milhões de reais a agentes políticos do Partido dos Trabalhadores, um valor muito expressivo. Além disso, o crime foi praticado em um esquema criminoso mais amplo no qual o pagamento de propinas havia se tornado rotina. Consequências também devem ser valoradas negativamente, pois o custo da propina foi repassado à Petrobrás, através da cobrança de preço superior à estimativa, aliás propiciado pela corrupção, com o que a estatal ainda arcou com o prejuízo no valor equivalente. A culpabilidade é elevada. O condenado recebeu vantagem indevida em decorrência do cargo de Presidente da República, ou seja, de mandatário maior. A responsabilidade de um Presidente da República é enorme e, por conseguinte, também a sua culpabilidade quando pratica crimes. Isso sem olvidar que o crime se insere em um contexto mais amplo, de um esquema de corrupção sistêmica na Petrobras e de uma relação espúria entre ele o Grupo OAS. Agiu, portanto, com culpabilidade extremada, o que também deve ser valorado negativamente. Tal vetorial também poderia ser enquadrada como negativa a título de personalidade. Considerando três vetoriais negativas, de especial reprovação, fixo, para o crime de corrupção passiva, pena de cinco anos de reclusão”. Observa-se, inicialmente, que houve equívoco do magistrado, na menção ao crime de corrupção ativa, uma vez que a condenação foi por corrupção passiva. No tocante à fixação da pena-base, Luiz Inácio Lula da Silva é primário porque não possui qualquer condenação penal definitiva. Por essa razão, a circunstância judicial "antecedentes" só poderia lhe ser favorável. Investigações e processos em andamento não podem gerar maus antecedentes, em virtude do princípio da não-culpabilidade ou da inocência. A própria súmula 444 do STJ corrobora essa proibição: "É vedada a utilização de inquéritos policiais e ações penais em curso para agravar a pena-base". Nesse aspecto, acertou o magistrado ao considerar essa circunstância como favorável. A conduta social, os motivos determinantes do crime e o comportamento da vítima foram considerados neutros pelo magistrado, sem uma fundamentação específica, razão pela qual não podem ser utilizados como fatores de aumento da pena-base para além do limite mínimo legal. Apenas para problematizar esses aspectos, entende-se que a conduta social é um elemento que já deveria ter sido afastado do art. 59 do CP por dizer respeito a um direito penal do autor e não a um direito penal do fato. Não importa o que as pessoas da convivência social do acusado (testemunhas abonatórias ou desabonatórias) e, muito menos, a sociedade em geral pensam sobre ele. Já os motivos determinantes do crime só autorizam o aumento da pena-base quando são estranhos à motivação básica contida no tipo penal. Caso contrário, implicariam bis in idem. A colaboração da vítima tem sido bastante questionada pela doutrina nacional e pelos Tribunais Superiores, uma vez que, mesmo nos delitos em que existem vítimas
determinadas, a ausência de colaboração delas para o delito, não deveria elevar a pena do acusado para além do limite mínimo legal. Nesse sentido, embora tenha omitido a fundamentação específica, acertou o magistrado em não avaliar tais vetores. As circunstâncias em que o delito foi supostamente praticado foram consideradas desfavoráveis ao acusado. O primeiro fundamento utilizado pelo magistrado foi a destinação de dezesseis milhões de reais ao Partidos dos Trabalhadores, o que seria um valor expressivo. Ensina BOSCHI que as circunstâncias são as particularidades do fato, avaliadas mediante condições morais desfavoráveis ou meios sofisticados que dificultariam a defesa da vítima. (2004, p. 216). Ocorre que a imputação referente à obtenção de vantagem ilícita pelo acusado diz respeito, especificamente, às benfeitorias realizadas no apartamento Triplex, do Guarujá, pela OAS Empreendimentos e não às eventuais doações, contabilizadas ou não, ao Partido dos Trabalhadores ou a outros indivíduos, que não podem ser atribuídas ao réu. O segundo argumento do magistrado diz respeito ao fato do suposto crime ter sido praticado em um esquema criminoso mais amplo no qual o pagamento de propinas havia-se tornado rotina. Esse argumento seria apto a integrar a avaliação de circunstância do crime. As dificuldades aqui residem na prova do nexo de causalidade entre o suposto esquema de pagamento de propina e o objeto das investigação da Operação Lava a Jato, uma vez que o próprio magistrado deixa claro, no item 890 da fundamentação da sentença, que o acusado apenas realizava a indicação de Diretores para a Petrobras. Mais adiante, na fundamentação da dosimetria da pena do crime de lavagem de dinheiro (2º parágrafo, da página 235, da sentença), afirma: "Quanto à prática da lavagem por intermédio de organização criminosa, os atos de lavagem ocorreram no âmbito da OAS Empreendimentos e não no âmbito do grupo criminoso organizado para lesar a Petrobrás". Há no mínimo uma incoerência nessa argumentação. De qualquer maneira, partindo-se da linha de raciocínio do magistrado, no curso da fundamentação da sentença, apenas o segundo argumento poderia ser utilizado como base para a avaliação das circunstâncias do crime como desfavoráveis, caso houvesse prova do nexo de causalidade. Entendeu o julgador que as consequências do suposto delito também deveriam ser valoradas negativamente, "pois o custo da propina foi repassado à Petrobrás, através da cobrança de preço superior à estimativa, aliás propiciado pela corrupção, com o que a estatal ainda arcou com o prejuízo no valor equivalente". BOSCHI afirma que "as consequências do crime a que se refere o artigo 59 são evidentemente aquelas que se projetam para além do fato típico porque, se assim não fosse, poderiam acarretar a quebra da regra do ne bis in idem, nomeadamente naqueles casos em que aparecem compondo a figura penal" (2004, p. 216). Desse modo, os efeitos óbvios do suposto delito não podem ser valorados negativamente a título de consequências. A culpabilidade foi considerada desfavorável pelo magistrado, o que parece coerente apenas com a linha de raciocínio adotada por ele no decorrer da fundamentação da sentença. O magistrado considera, ainda, que tal vetorial, ou seja, a culpabilidade desfavorável "também poderia ser enquadrada como negativa a título de personalidade", embora não o faça na sentença. Na verdade, as vetoriais culpabilidade e personalidade não devem ser confundidas. A culpabilidade diz respeito ao grau de intensidade da reprovabilidade social da conduta do agente. Já a personalidade é elemento próprio de um direito penal do autor e não do fato, por isso deveria ter sido abolida do texto do art. 59 do CP. De qualquer forma, o magistrado não possui formação
técnica para realizar avaliação de personalidade, elemento que só poderia ser considerado quando houvesse laudo de profissional habilitado da área de saúde mental e, ainda assim, poderia ser questionado (BOSCHI, 2004, p. 210-211). Interessante observar, também, que nos itens 793 e 796 da fundamentação da sentença, o julgador admite que o acusado, na condição de Ex-Presidente da República, adotou diversas medidas que reforçaram os meios de controle da corrupção no País. Desse modo, o julgador considerou a existência de três circunstâncias judiciais desfavoráveis: circunstâncias, consequências e culpabilidade, fixando a pena-base em cinco anos de reclusão. Já se mencionou que as consequências não deveriam ter sido consideradas negativamente. Além disso, sabe-se que a pena-base deve ser dosada entre o limite mínimo legal, no caso, dois anos, e o termo médio. Assim, o termo médio do crime de corrupção passiva corresponde a sete anos. Segundo o juízo do magistrado, como se afirmou anteriormente, há três circunstâncias negativas a serem consideradas na fixação da pena-base. Observa-se que ele atribuiu o valor de um ano para cada circunstância desfavorável. Ocorre que, adotando-se o critério eminentemente matemático e havendo oito circunstâncias previstas no artigo 59, do CP, cada circunstância negativa poderia ser avaliada em, no máximo, sete meses e quinze dias (o que corresponde a 1/8 da diferença entre o limite mínimo e o termo médio), de modo que a pena-base não poderia ultrapassar três anos, dez meses e quinze dias de reclusão. Caso fosse afastada a consequência como circunstância desfavorável, a pena-base não poderia ultrapassar três anos e três meses de reclusão. Concorda-se com a crítica que CARVALHO realiza dessa "lógica calculadora" ou dosimetria tarifada por entender que cabe ao juiz, no caso concreto, "avaliar as peculiaridades das circunstâncias judiciais e estabelecer critérios de quantificação da pena, inclusive de preponderância e de valoração diferenciada entre os vetores", desde que fundamente as suas opções. (2015, p. 386). Isso porque, se assim não fosse, o julgador ficaria engessado no momento de dosar a pena-base e impedido de fixá-la num patamar mais favorável ao réu. Entende-se, no entanto, que o critério matemático deve funcionar como teto no momento de se atribuir o valor de uma circunstância desfavorável ao acusado, podendo ser flexibilizado apenas quando for para beneficiar o réu, mas jamais para prejudicá-lo. Esse raciocínio representa uma síntese de toda a principiologia que orienta a interpretação das normas penais e processuais penais brasileiras. No tocante à segunda fase, o magistrado acertou ao reduzir a pena-base em seis meses, aplicando a atenuante do art. 65, I, 2ª parte do CP e obedecendo à regra jurisprudencial que estabelece um teto de 1/6 do valor da pena-base para a valoração de cada circunstância legal. Já a majorante do par. 1º, do art. 317, do CP, é bastante questionável, diante da ausência de demonstração do nexo de causalidade entre as benfeitorias realizadas no Triplex oferecido ao réu para compra, e os contratos firmados pela Petrobras com a OAS, uma vez que o acusado não participava das licitações. Apenas para efeito de argumento, ainda que fosse possível fazer incidir na pena a referida majorante, para além das consequências desfavoráveis na pena-base, a pena definitiva não poderia ultrapassar quatro anos e seis meses de reclusão. Resultado bem abaixo da penalidade definitiva fixada na sentença (seis anos de reclusão).
O mesmo raciocínio se aplica ao crime de lavagem de dinheiro, cuja pena-base foi fixada em quatro anos de reclusão, diante da existência de apenas uma circunstância judicial desfavorável, no juízo do magistrado, que seria a culpabilidade. Adotando-se o critério matemático como teto, a pena-base não poderia ultrapassar três anos, cinco meses e sete dias, considerando que 1/8 do intervalo entre a pena mínima (três anos) e o termo médio (seis anos e seis meses) seria cinco meses e sete dias. A redução de seis meses referente à atenuante do art. 65, I, 2ª parte, do CP, está adequada, como também o afastamento de causas de aumento de pena, pleiteadas pela acusação. Assim, a análise realizada aponta para que, caso fosse viável a condenação do réu pelos delitos de corrupção passiva majorada e de lavagem de dinheiro, em concurso material, da forma como concluiu o magistrado, a pena definitiva não poderia ultrapassar o teto de sete anos e seis meses de reclusão a serem cumpridos em regime inicial semiaberto. Reafirma-se, entretanto, que a solução deveria ter sido absolutória por ausência de provas. Há equívoco, portanto, na condenação do réu e há evidente excesso na fixação da pena privativa de liberdade.476
476 Referências Bibliográficas. BOSCHI, José Paganella. Das Penas e seus Critérios de Aplicação. 3. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004. CARVALHO, Salo. Penas e Medidas de Segurança no Direito Penal Brasileiro. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2015.