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AS FUNÇÕES DA PENA PRIVATIVA DE LIBERDADE E DA CULPABILIDADE NO DIREITO BRASILEIRO E A SENTENÇA CONDENATÓRIA CONTRA O PRESIDENTE LUIZ INÁCIO LULA DA SILVA
AS FUNÇÕES DA PENA PRIVATIVA DE LIBERDADE E DA CULPABILIDADE NO DIREITO BRASILEIRO E A SENTENÇA CONDENATÓRIA CONTRA O PRESIDENTE LUIZ INÁCIO LULA DA SILVA
Fábio da Silva Bozza *
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No dia 12 de julho de 2017 foi proferida sentença condenatória contra o Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, pela prática dos crimes de corrupção ativa e lavagem de dinheiro. Depois de realizar a dosimetria da pena, o juiz federal decidiu pela aplicação de uma pena privativa de liberdade de nove anos e seis meses de reclusão, a ser cumprida em regime inicial fechado, restando a progressão de regime condicionada à reparação do dano, nos termos do art. 33, parágrafo 4º, do Código Penal. O objetivo do presente texto é analisar, desde um ponto de vista constitucional, a forma como foi realizada a dosimetria da pena e, principalmente, a sua (ausência de) fundamentação. O princípio do duplo grau de jurisdição apresenta caráter materialmente constitucional, tendo em vista que o art. 8°, 2, h, da Convenção Americana sobre Direitos Humanos foi incorporado à Constituição por força do contido no art. 5º, parágrafo 2º, da CR. De maneira bastante simples, e sem fazer referência às limitações interpretativas impostas pelo Supremo Tribunal Federal, é possível afirmar que referido princípio reconhece aos cidadãos o direito de recurso a tribunal de superior instância, para revisão de decisão judicial. No entanto, o exercício do direito fundamental acima mencionado pressupõe o cumprimento do disposto no art. 93, inc. IX da Constituição da República. Sem fundamentação adequada das decisões judiciais fica impossível o exercício do direito de recorrer. Isso porque, embora o objeto do recurso (aquilo que se quer que seja reformado) seja a parte dispositiva da decisão judicial, para que o sentenciado possa decidir se se conforma ou não com a decisão, é necessário que conheça as razões pelas quais o julgador chegou a determinada decisão. Dessa forma, em um Estado Democrático de Direito o exercício da jurisdição está condicionado à observância de referidos dispositivos constitucionais. E qual a relação entre o acima afirmado e a decisão condenatória contra o presidente Luiz Inácio Lula da Silva? Toda. Tomando como referência apenas a parte da sentença que se refere à dosimetria da pena, percebe-se que restou inviabilizado à defesa o direito de recorrer, tendo em vista que a argumentação que gira em torno da dosimetria da pena, em grande parte, não faz referência a elementos empíricos, passíveis de refutação por parte do condenado. Ademais, em momento algum faz referência à função da pena privativa de liberdade utilizada como parâmetro para a quantificação da pena.
* Doutor em Direito do Estado (UFPR). Professor de Direito Penal no Instituto de Criminologia e Política Criminal (ICPC).
Antes de fazer referência aos fundamentos utilizados na sentença, na parte que se refere à dosimetria da pena, devemos fazer breves apontamentos sobre o sistema jurídico brasileiro de aplicação da pena. Como se sabe, com a Constituição de 1988 o centro da ordem jurídica se desloca da proteção do Estado (e da lei, como forma jurídica de seus compromissos políticos) para a proteção do ser humano. Nesse contexto, quando o art. 1º, inc. III, da CR, coloca a proteção da dignidade da pessoa humana como fundamento da ordem jurídica, está dizendo que o ser humano é o destinatário das políticas estatais (inclusive a política dirigida ao combate à corrupção), e não o instrumento pelo qual o Estado realizará sua política. Assim, como o ordenamento jurídico deve proteger as necessidades humanas por meio de suas leis, devemos entender que os direitos fundamentais (necessidades humanas tuteladas pela ordem jurídica) deverão ser tutelados por todo modelo de norma jurídica, regras e princípios. Se isso é correto, quando pensamos a pena criminal, como instituição política e jurídica, e a finalidade a ela atribuída pelo ordenamento jurídico, é possível concluir que a pena privativa de liberdade, como o próprio nome já diz, é um instrumento político estatal que limita o exercício do direito fundamental à liberdade, assegurado no art. 5º, caput, da Constituição da República. E até aqui não há qualquer problema. O Estado, por meio da política, pode e deve, em alguns casos, limitar direitos fundamentais. No entanto, em um Estado Democrático de Direito, no qual, pela sua própria finalidade, a política estatal está limitada pela ordem jurídica, os direitos fundamentais dos cidadãos apenas podem ser limitados se a limitação for dirigida à proteção de outro direito fundamental. Por isso é que, em um Estado Democrático de Direito, a pena privativa de liberdade, como manifestação de instrumento político limitador do direito fundamental à liberdade, somente pode possuir como objetivo a proteção de outro direito fundamental, ou seja, a pena criminal somente pode ser orientada preventivamente, e nunca como retribuição ao mal causado pela prática do injusto. É apenas nesse contexto que as reflexões sobre as funções da pena podem ser realizadas nos estados constitucionais contemporâneos. Portanto, a tradicional afirmação da teoria penal brasileira de que o ordenamento jurídico nacional acolheu a teoria mista da pena está totalmente equivocada. O disposto no art. 59 do Código Penal Brasileiro deve ser interpretado desde o ponto de vista da tutela de direitos fundamentais. Dessa forma, o texto contido no art. 59 do Código Penal, que afirma que a pena deve ser a necessária e suficiente para a repressão e prevenção do crime, deve ser submetido a uma interpretação constitucional orientada pelo vetor da tutela de direitos fundamentais. Assim, deve-se entender que a pena criminal deve cumprir função unicamente preventiva. No entanto, como a aplicação e execução de uma pena de caráter meramente preventivo, quando superior ao nível de culpabilidade pelo fato, pode levar a uma instrumentalização do ser humano para o atendimento dos fins políticos estatais, o que consistiria uma violação ao art. 1º, inc. III, da CR, a função preventiva da pena tem que ser limitada pela ideia de retribuição da culpabilidade pelo fato praticado. É nesse contexto que se deve compreender a relação culpabilidade/fins preventivos da pena.
Com essa compreensão do chamado princípio de culpabilidade, a culpabilidade deixa de ser o fundamento da pena (pois, pelos argumentos acima desenvolvidos, a pena tem preventivo) para ser o seu limite intransponível. Não é à toa que Roxin substitui a noção de culpabilidade pela de responsabilidade. A culpabilidade, fundamentada na dirigibilidade normativa, é apenas um requisito para a responsabilidade penal do autor do fato punível. Essa responsabilidade somente poderá ser afirmada se a pena puder cumprir sua função preventiva123 . Isso quer dizer que, quando o artigo 59 do Código Penal afirma que a pena deve ser o necessário e suficiente para a reprovação e prevenção do crime, a expressão reprovação deve ser interpretada como limite à função preventiva da pena, e não como uma das funções da pena (retribuição), como costuma, equivocadamente, afirmar a doutrina brasileira. Além disso, a culpabilidade não pode ser confundida com reprovação moral124 , e tampouco pode ser medida pela função que o autor do fato punível ocupa na sociedade, mas apenas pela análise do binômio gravidade do fato/capacidade concreta de autodeterminação do autor do fato punível. Essa necessária separação entre juízo moral e juízo jurídico determina que a avaliação da culpabilidade do agente tenha como referência o desvalor de ação e o desvalor de resultado da ação em face do direito fundamental (ou bem jurídico) a ser tutelado pela ordem jurídica. Em outras palavras, em um Estado Constitucional, a culpabilidade é culpabilidade de fato, e não culpabilidade de autor. Somente com esse raciocínio se faz adequadamente a devida distinção entre juízo jurídico e juízo moral. Embora não se verifique expressamente no texto constitucional brasileiro, desde uma concepção materialmente constitucional, é possível reconhecer uma função constitucional para a pena em nosso ordenamento jurídico. Como o art. 5º, parágrafo 2º, da CR, reconhece os tratados e convenções sobre direitos humanos como parte integrante do ordenamento jurídico pátrio como norma jurídica de hierarquia de emenda constitucional, e que o art. 5º, 6, da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, ratificada pelo Brasil, prevê que “as penas privativas da liberdade devem ter por finalidade essencial a reforma e a readaptação social dos condenados”, é possível afirmar com firmeza que o ordenamento jurídico brasileiro define como função da pena a finalidade de prevenção especial positiva. Ademais, deve-se analisar referido dispositivo em cotejo com o art. 1º, inc. III, da CR, de forma a reconhecer que o Estado apenas pode executar seu projeto ressocializador sobre o condenado se ele concordar em se submeter a referido projeto. Do contrário haverá instrumentalização do ser humano para que sejam alcançados os fins políticos do Estado, com evidente violação ao princípio da dignidade da pessoa humana. Do exposto, pode-se concluir que a dosimetria da pena deve passar por duas fases necessárias. A primeira deve consistir na determinação do limite máximo da pena a ser
123 ROXIN, Claus. Culpabilidad y responsabilidad como categorías sistemáticas jurídico-penales. In Culpabilidad y prevención en derecho penal. Madri: Editorial Reus, 1981. 124 Nesse sentido, CIRINO DOS SANTOS, Juarez. Direito Penal. Parte Geral. 7. ed., Florianópolis: Empório do Direito, 2017. p. 524
fixada, que deve ser orientada pelo nível de culpabilidade do autor pelo fato praticado.125 Assim, a proporcionalidade entre pena e culpabilidade apenas deve funcionar como limite intransponível da pena a ser aplicada, e não como fundamento da própria pena. Na segunda fase, cabe ao julgador determinar a quantidade de pena necessária à prevenção do crime por meio da ressocialização do autor. Ainda que a norma que define a função da pena como a de ressocialização do autor do fato punível deva ser reconhecida como uma norma programática (assim como é a função de proteção de bens jurídicos), ela deve ser respeitada, e outras funções da pena, como a de retribuição e a chamada prevenção geral positiva, que apresenta função unicamente comunicativa para a pena, devem ser rechaçadas. Também é necessário restar claro que a pena deve ser fixada abaixo do limite conferido pelo juízo jurídico de culpabilidade do fato praticado pelo autor do fato punível quando não for possível comprovar que aquela pena a que se chegou por este critério seja necessária e suficiente para a ressocialização do condenado126, ou ainda, quando restar evidente que a execução da pena terá um caráter dessocializador. Agora, em uma sentença judicial, para que seja possível constatar que a aplicação da pena foi orientada pelos vetores constitucionais acima apresentados, cabe ao julgador demonstrar, com argumentos referidos a elementos empíricos, de que forma a aplicação da pena, naquele caso concreto, atingirá o fim de proteção de direitos fundamentais por meio da ressocialização do autor do fato punível. Tendo em vista que a limitação de direitos fundamentais somente pode ocorrer se for justificada pela proteção de outros direitos fundamentais, tal justificação deve estar submetida a elementos da realidade passíveis de verificação e, por consequência, de refutação. A sentença proferida pelo juiz federal Sérgio Moro apresenta sérios defeitos. Primeiro, ao fixar o patamar máximo da pena, na análise da culpabilidade, utilizou como fundamento elemento estranho ao fato. Veja-se, ao reconhecer que as circunstâncias do fato devem ser valoradas negativamente, afirmou que “o crime foi praticado em um esquema criminoso mais amplo no qual o pagamento de propinas havia se tornado rotina” (p. 234 e ss da sentença). Aqui resta evidente que o aumento de pena se deve a fatos praticados por terceiros que integram o “esquema criminoso mais amplo”, e não apenas pelo tipo de injusto realizado pelo autor. Segundo, para definir a pena definitiva deveria demonstrar as razões preventivas que determinaram a fixação da pena privativa de liberdade em 9 (nove) anos e 6 (seis) meses de reclusão, em regime fechado. Em momento algum, na sentença, o magistrado demonstrou as razões de prevenção que fizeram com que a pena fixada fosse a mesma determinada pelo limite máximo da culpabilidade do autor pelo fato por ele realizado.
125 Nesse sentido, TAVARES, Juarez. Culpabilidade e individualização da pena. In BATISTA, Nilo; NASCIMENTO, André. Cem anos de reprovação. Uma contribuição transdisciplinar para a crise da culpabilidade. Rio de Janeiro: Revan, 2011. 126 Roxin menciona que o Projeto Alternativo de Código Penal alemão afirmava que “la ley, en consecuencia, no exigiera imponer en toda su extensión la pena correspondiente al grado de culpabilidad, cuando ello no fuera necesario ni para la protección de bienes jurídicos ni para la resocialización”. ROXIN, Claus. La determinación de la pena a la luz de la teoria de los fines de la pena. In Culpabilidad y prevención en derecho penal. Madri: Editorial Reus, 1981. p. 94
E, por óbvio, a omissão em relação aos fundamentos pelos quais a pena foi fixada nesta quantidade inviabiliza o direito de defesa, pela impossibilidade de recorrer de uma decisão que não apresenta seus motivos. Terceiro, incorre em bis in idem ao analisar e avaliar negativamente, em separado, a culpabilidade e as consequências do crime. Ora, se as consequências do crime integram a sua gravidade, não podem ser analisadas em momento separado, e consideradas isoladamente para determinar a quantidade da pena. Quarto, ao avaliar a culpabilidade, o magistrado se referiu à posição social que ocupa o autor do fato (a qualidade de Presidente da República) sem demonstrar de que forma isso afeta o desvalor da ação do tipo de injusto127 . Em síntese, no que se refere à dosimetria da pena, o conteúdo da decisão não atende aos ditames constitucionais.128
127 A culpabilidade é elevada. O condenado recebeu vantagem indevida em decorrência do cargo de Presidente da República, ou seja, de mandatário maior. A responsabilidade de um Presidente da República é enorme e, por conseguinte, também a sua culpabilidade quando pratica crimes (p. 234 da sentença). 128 Referências CIRINO DOS SANTOS, Juarez. Direito Penal. Parte Geral. 7. ed., Florianópolis: Empório do Direito, 2017. ROXIN, Claus. Culpabilidad y responsabilidad como categorías sistemáticas jurídico-penales. In Culpabilidad y prevención en derecho penal. Madri: Editorial Reus, 1981. ROXIN, Claus. La determinación de la pena a la luz de la teoria de los fines de la pena. In Culpabilidad y prevención en derecho penal. Madri: Editorial Reus, 1981. TAVARES, Juarez. Culpabilidade e individualização da pena. In BATISTA, Nilo; NASCIMENTO, André. Cem anos de reprovação. Uma contribuição transdisciplinar para a crise da culpabilidade. Rio de Janeiro: Revan, 2011.