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O “CASO LULA” E AS TENDÊNCIAS AUTORITÁRIAS DA JUSTIÇA BRASILEIRA: DIREITO, POLÍTICA E ADVOCACIA CRIMINAL

O “CASO LULA” E AS TENDÊNCIAS AUTORITÁRIAS DA JUSTIÇA BRASILEIRA: DIREITO, POLÍTICA E ADVOCACIA CRIMINAL Felipe da Silva Freitas *

É antiga a denúncia por parte de ativistas e militantes políticos quanto ao caráter deletério do punitivismo policialesco que, no Brasil, tem se ocupado de prender arbitrariamente milhares de pessoas129. Este fenômeno, já largamente denunciado por inúmeras organizações sociais comprometidas com a luta contra a violência e a discriminação, tem sido o principal responsável pelo encarceramento em massa, por sucessivas violações de direitos fundamentais no âmbito do processo penal e pelo sistemático descarte das previsões constitucionais relativas ao direito de defesa130. O direito penal tem sido o campo de legitimação de absurdos praticados em nome da lei e da ordem. Estas violações, que na maioria das vezes tem ocorrido contra grupos sociais historicamente excluídos, alcançaram – ainda que em episódios pontuais – outros setores da sociedade. O discurso do combate à corrupção tem sido capaz de nos mostrar, por outro enfoque, os riscos de desvalorizarmos a liberdade e a gravidade de um sistema de justiça criminal comprometido com o arbítrio e não com a efetiva garantia e proteção dos direitos. A Liberdade transformou-se em mercadoria barata na equação de experiências políticas autoritárias. Os embates políticos recentes – em especial a deposição da Presidenta Dilma Rousseff por meio de um golpe parlamentar-midiático-judicial131 – expuseram como funciona esta capacidade corrosiva da tradição autoritária brasileira, em especial no âmbito do direito penal. A democracia foi – novamente – posta em xeque e parece que de modo intenso e duradouro. A virulência com quem atuam Polícia Federal, Ministério Público e Judiciário no âmbito da famigerada operação Lava Jato mostra que o itinerário é longo e o repertório de ilegalidades bastante extenso. O desafio contemporâneo é pensar sobre como o Brasil se comportará diante desta sucessão ataques às conquistas democráticas e como a sociedade civil se portará diante destas formas de perdas de direitos e de garantias fundamentais.

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* Felipe da Silva Freitas é doutorando e mestre em direito pela Universidade de Brasília (UnB) e membro do Grupo de Pesquisa em Criminologia da Universidade Estadual de Feira de Santana (GPCRIM UEFS). 129 Segundo o Relatório de 2014 do Departamento Penitenciário Nacional, a população prisional brasileira é de 607.731 pessoas, e de 1990 até 2014, houve um crescimento total de 575%. Dessas pessoas, 41% são presos sem condenação, a maioria são jovens entre 18 e 29 anos (56%), com até o ensino fundamental completo (53%) e é autodeclarada negra (67%). Além disso, a maioria dessas pessoas em privação de liberdade responde por crimes de tráfico de entorpecentes (27%), roubo (21%), homicídio (14%) e furto (11%). BRASIL. Ministério da Justiça. Levantamento nacional de informações penitenciárias - Infopen Junho 2014 . Brasília: DEPEN , 2014. 130 BINDER, Alberto; CAPE, Ed; NAMORADZE, Zaza. Defesa criminal efetiva na América Latina. São Paulo: IDDD, 2016. JUSTIÇA GLOBAL. Quando a liberdade é exceção: a situação das pessoas presas sem condenação no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: JG, 2016. 131 Sobre o impeachment da presidenta Dilma Rousseff ver: PRONER, Carol; CITTADINO, Gisele; TENENBAUM, Marcio; RAMOS FILHO, Wilson. (Org.). A resistência ao golpe de 2016. 1ed.Bauru: Canal 6, 2016.

O rol das violações praticadas no âmbito da Operação Lava Jato é imenso e Lula, infelizmente, é apenas um dos muitos perseguidos pelo Juiz Sérgio Moro e pelo Ministério Público Federal. Desde o sequestro do ex-presidente numa suposta operação de condução coercitiva132 até o recentíssimo bloqueio de bens para execução de uma sentença manifestamente abusiva133 são muitas as formas pelas quais o judiciário –representado pelo juiz da 13ª Vara Federal de Curitiba – tem se alinhado com o vilipêndio de direitos constitucionais, em especial com ataques ao direito de defesa, ao direito a um julgamento proferido com base nas provas e não nas meras opiniões e preferências do julgador (imparcialidade do Juiz), o direito à igualdade de condições para o exercício da acusação e da defesa (paridade de armas), o direito de conhecer integralmente o teor da peça acusatória, de poder utilizar todos os meios legalmente admitidos para o exercício da própria defesa, bem como a possibilidade de larga manifestação sobre tudo o que for produzido pela parte contrária (contraditório). Os princípios do processo penal estão flagrantemente postos em xeque. Em sociedades democráticas Juízes são servidores públicos com evidentes garantias e relevantes funções associadas à defesa do interesse público, preservação dos direitos e garantias individuais e defesa da ordem democrática. Em sociedades de tradição republicana juízes devem ser atores discretos na forma, mas, ativos na ação, comprometidos com preservação dos direitos do cidadão e independentes para julgar, inclusive em desfavor de entendimento majoritários. Bons juízes não são repetidores dos discursos hegemônicos, mas, na maioria das vezes, bons juízes são garantidores dos direitos (e discursos) contra-hegemônicos, minoritários, marginais. Neste sentido, são valiosos os apontamentos de Marcelo Semmer ao frisar que os juízes não podem ignorar garantias fundamentais e nem se afastarem de normas por motivos políticos em função do aplauso ou da eficiência.134 É “obrigação do juiz devolver à sociedade, em troca da remuneração e da respeitabilidade que aufere com o cargo, um julgamento com independência” mesmo que tal processo possa ser custoso, dolorido ou constrangedor. Ainda segundo Semer a independência para o Juiz “não é um direito, uma prerrogativa ou privilégio. É simplesmente uma obrigação.”135 Nesta perspectiva, Sérgio Moro é o anti-juiz! Parcial, midiático, espetacularizado, glamoroso e seguidor das narrativas fáceis das maiorias de ocasião o Juiz Sérgio Moro não só se alimenta das narrativas produzidas pelo Oligopólios midiáticos, como também as constrói por meio de inserções midiáticas cuidadosamente articuladas, inclusive por

132 FREITAS, Felipe da Silva. Nem lula nem ninguém... Justificando. 07 de março de 2016. Disponível em: http://justificando.cartacapital.com.br/2016/03/07/nem-lula-e-nem-ninguem/ 133 Lula tem bens bloqueados por ordem de Sergio Moro. Justificando. 19 de julho de 2017. Disponível em: http://justificando.cartacapital.com.br/2017/07/19/lula-tem-bens-bloqueados-por-ordem-desergio-moro/ 134 SEMMER, Marcelo. Judiciário na era do protagonismo submisso. Justificando. 10 de dezembro de 2016. Disponível em: http://justificando.cartacapital.com.br/2016/12/10/judiciario-na-era-doprotagonismo-submisso/ 135 Idem

meio de postagens em páginas de redes sociais fomentando manifestações políticas que interferem nos rumos e no furor punitivo da operação Lava Jato.136 No caso da sentença de condenação proferida contra o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva a parcialidade e o desapego para com as prerrogativas do processo penal ficam evidentes. Por meio de reiteradas violações ao princípio da imparcialidade o juiz Moro é virulento ao se dirigir aos defensores de Lula nas audiências, nos autos e na sentença, pois, abriu mão do mandamento constitucional dirigido aos juízes e optou por um tipo muito peculiar de aparição midiática dirigida às grandes plateias: Grande parte da sociedade cultiva uma cultura autoritária. Há esse desejo, que é perigoso, de encontrar a grande figura carismática que represente a sociedade, que seja o nosso Dom Sebastião. Hoje, quem assumiu esse papel é o Sergio Moro. Mas é perigoso para a democracia ufanearmos, idolatrarmos um juiz. E um juiz que, muito claramente, já há algum tempo, tem se afastado de pautas essenciais ao exercício da jurisdição em um Estado Democrático de Direito. Uma delas é o respeito absoluto à regra da imparcialidade objetiva. Não basta que o juiz internamente se considere imparcial, ele também tem que aparentar ser imparcial. Para poder estabelecer essa aliança, essa relação direta com a população, Sergio Moro abandona essa pauta e adota a pauta da população, de ser o justiceiro, a pessoa que vai resgatar a moralidade pública. E isso gera um segundo problema: ao assumir esse papel, ele passa a ser incapaz de assumir o outro, que é o de garantidor dos direitos de quem está sendo processado. Ele não tem como fazer as duas coisas ao mesmo tempo.137 As gravações das audiências divulgadas amplamente nas redes sociais não deixam dúvida quanto ao desconforto gerado pelas questões dos advogados de Lula. Nem foi Ministério Público (titular da ação penal) que se revelara o mais incomodado com as questões e controvérsias apresentadas pela Defesa. Foi o próprio Juiz, que no processo penal deveria ser o equidistante entre as partes, que se incumbiu de contraditar a defesa, limitar e indeferir questões, e, portanto, cercear o regular e legítimo exercício do direito de defesa no caso concreto. Ao invés de garantir a paridade de armas e assegurar o contraditório Sérgio Moro optou por avaliar a estratégia de defesa138 e passou a repreender os advogados sempre que a manifestação era assertiva e cobrava a postura do julgador. Para Moro era inadmissível

136 “Sergio Moro grava vídeo para agradecer curtidas na página que sua esposa criou para homenageá-lo no Facebook. Tom político da fala do juiz foi criticado por muitos internautas. Chefe da Lava Jato chegou a dizer que suas ações têm apoio da totalidade da população brasileira”Sérgio Moro faz política nas redes sociais e descobre que não é unanimidade. Disponível em: https://www.pragmatismopolitico.com.br/2017/03/sergio-moro-faz-politica-nas-redes-sociais-e-recebecriticas.html 137 PRADO, Geraldo. "Quem deveria controlar a atividade do MP não é o Judiciário, mas a sociedade". Entrevista concedida a Sérgio Rodas em 02 de julho de 2017. Conjur. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2017-jul-02/entrevista-geraldo-prado-desembargador-aposentadoprofessor. 138 Frise-se que Moro inclusive conhecia previamente as estratégias e alegações da defesa pois gravou –de modo ilegal – conversa entre os advogados e seus clientes. Ver: VASCONCELLOS, Marcos de; RODAS, Sérgio. Todos os 25 advogados de escritório que defendem Lula foram grampeados. Consultor Jurídico. 17 de março de 2016. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2016-mar-17/25-advogados-escritoriodefende-lula-foram-grampeados

que advogados fossem duros ou deselegantes no curso do processo, os apelos do Juiz para que houvesse bons modos nas audiências foi reiterado inúmeras vezes. Ora, numa democracia a defesa pode (e deve quando necessário) ser deselegante, dura, firme e assertiva, o que a defesa não pode ser é desleal e nem antiética. A democracia não um jogo artificial de polidez e bons modos, mas, uma arena viva na qual grupos, ideias e posições diversas conflitam na luta pela construção do direito, da justiça e da liberdade. Lógico que os advogados de Lula não deixaram de ser corteses e polidos, mas, foram firmes e isso é, na prática, o poder/dever do advogado criminal. Para Moro o exercício pleno do direito de defesa não passa de “comportamento processual inadequado”, “táticas bastante questionáveis” ou “tentativa de intimidação do julgador”. Vejamos como ele se manifesta sobre os advogados no próprio texto da sentença: 145. Nesse contexto de comportamento processual inadequado por parte da Defesa de Luiz Inácio Lula da Silva, é bastante peculiar a reclamação dela de que este julgador teria agido com animosidade contra os defensores em questão. 958. Como defesa na presente ação penal, tem ele, orientado por seus advogados, adotado táticas bastante questionáveis, como de intimidação do ora julgador, com a propositura de queixa-crime improcedente, e de intimidação de outros agentes da lei, Procurador da República e Delegado, com a propositura de ações de indenização por crimes contra a honra.139 (grifos nossos) Para o Juiz o fato de os advogados irem aos Tribunais requererem o que lhes parecia justo é uma tentativa de intimidação e não o exercício regular do próprio direito. Para Moro, o pedido de informações da defesa quanto ao processamento de delações premiadas por parte dos demais acusados é tática equivocada e não uma legítima tentativa de garantia da paridade de armas no processo penal. Para o famigerado julgador o fato de os advogados de Lula não se acovardarem diante da truculência do Magistrado é frustação de quem supostamente queria ser juiz e não o entendimento de que advogados, promotores, juízes são igualmente essenciais à administração da justiça sem hierarquias ou subalternidades entre si. Moro constrói uma sentença teratológica. Na falta de provas argumenta, realiza ilações, condena as práticas dos advogados, mas, não se manifesta sobre os fatos, não arrola provas, não explica praticas delituosas como: grampear ligações entre advogados e seus clientes, desconsiderar narrativas de testemunhas e constranger defensores em mesa de audiência indeferindo perguntas e contraditas que caracterizam – por óbvio – o sagrado exercício do contraditório e da ampla defesa. Os fatos relativos à condenação ilegal do presidente Lula precisam nos alertar para o punitivismo que ganha força, à direita e à esquerda, em nossa sociedade; para o descaso com o qual vimos assistindo a uma escalada autoritária e para uma irreversível trajetória de atentados aos direitos e garantias fundamentais. Os episódios que assistimos nesta

139 Sentença da 13.ª Vara Federal Criminal de Curitiba da lavra do Juiz de Federal Sérgio Fernando Moro em 12 de julho de 2017 que condenou o ex-Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, como incurso nos crimes de corrupção passiva; lavagem de dinheiro, fixando pena de nove anos e seis meses de reclusão.

ocasião não revelam novidades, mas, evidenciam problemas antigos que persistem sem que sejam tomadas as providências cabíveis. O punitivismo barato não terá capacidade de resolver nenhum dos nossos problemas, muito menos, a perversa e inaceitável corrupção ou a concessão de superpoderes à Polícia, à Justiça ou ao Ministério Público. Ou denunciamos todas as formas de abuso de poder ou perderemos mais uma chance histórica de começar a mudar e debater, de fato, o papel das instituições no controle das várias formas de criminalidade.

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