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VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO DA CONGRUÊNCIA: ALTERAÇÃO DA IMPUTAÇÃO E NULIDADE DA SENTENÇA CONDENATÓRIA DE LULA

VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO DA CONGRUÊNCIA: ALTERAÇÃO DA IMPUTAÇÃO E NULIDADE DA SENTENÇA CONDENATÓRIA DE LULA Liana Cirne Lins *

Introdução

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O princípio da congruência ou princípio da correlação entre a imputação e a sentença é um dos mais relevantes elementos asseguradores da imparcialidade ínsita à garantia do juiz natural. Sob a cláusula geral do devido processo legal, cláusula essa que foi historicamente construída como resposta à formação do monopólio da jurisdição pelo estado297 , com consequente retirada do direito imanente a cada pessoa de defender-se contra ataques injustos por meio da autotutela, vedada e criminalizada para assegurar o monopólio da jurisdição estatal. Com a vedação da autotutela, o Estado teve que assegurar, em contrapartida, um processo justo, com direito à defesa e participação das partes por meio de produção de provas e argumentos que devem ser levados em consideração na decisão, necessariamente examinados por um juiz imparcial298 . A imparcialidade não é o um status inerente à profissão de juiz: é um exercício de distanciamento crítico diante do objeto do seu julgamento. Tampouco é a imparcialidade é um mero topos retórico, mas efetivamente um pressuposto processual de validade que condiciona a atividade jurisdicional. Na era do declínio da imparcialidade em nome de um ativismo judicial midiático, não é demais lembrar uma das mais importantes noções de teoria geral do processo: o proprium da jurisdição é a imparcialidade, conforme clássica lição de Chiovenda299 . O que justifica o poder do estado de dizer, em última instância e mediante uso da força, como devem as pessoas comportarem-se é o fato de que o estado o faz impondo o direito ao caso concreto de modo isento. Se ao estado fosse permitido impor comportamento sem observância do devido processo legal e sem garantia de um juiz natural e imparcial, estaríamos diante de um

* Liana Cirne Lins é professora adjunta da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Pernambuco. Doutora em Direito Público (UFPE) e Mestra em Instituições Jurídico-Políticas (UFSC). Advogada. Colunista da Mídia Ninja. 297 A segurança jurídica que se consolidou paulatinamente não se deu à revelia de um processo que coincidiu com a progressiva concentração das atividades inerentes à jurisdição pelo príncipe. Ao contrário, a formação histórica do monopólio da jurisdição correspondeu desde sempre à necessidade de ampliação dos poderes do príncipe. A associação entre a segurança jurídica e o primado da lei atendeu a interesses historicamente demarcados à superação do pluralismo jurídico de cunho feudal aos quais atendia uma escola da exegese que acreditava que o sentido da lei era um dado acabado e anterior à interpretação. Cf. WEBER, Max. Economía y Sociedad. Mexico: Fondo de Cultura Económica, 1997, p. 621 e ss. 298 MARTEL, Letícia dos Campos Velho. Devido Processo Legal Substantivo: Razão abstrata, função e características de aplicabilidade. Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2005, p. 16 e ss. 299 CHIOVENDA, Giuseppe. Principii di Diritto Processuale Civile. Napoles: Jovene, 1965, p. 296.

modelo de organização estatal de cunho autoritário, marcado pela resolução de conflitos mediante uso de força bruta. A teoria do processo cria então subprincípios capazes de conferir materialidade aos seus princípios mais gerais. É o caso da proibição de inovação em relação ao pedido de prestação jurisdicional, vedadas decisões extra, ultra e citra petita: A razão fundamental que legitima o princípio dispositivo é a preservação da imparcialidade do juiz, pressuposto lógico do próprio conceito de jurisdição. Dificilmente teria o julgador condições de manter-se isento e imparcial, se a lei lhe conferisse plenos poderes de iniciativa probatória, pois, à medida em que o magistrado abandonasse a condição de imparcialidade que a função jurisdicional pressupõe, para envolver-se na busca e determinação dos fatos da causa, de cuja prova a parte se haja desinteressado, certamente ele poderia correr o risco de comprometer a própria imparcialidade300 . Em sentido idêntico, clássica lição da teoria do processo: É verdade que o juiz pode dar definição jurídica diversa ao fato delituoso em que se funda a acusação, ainda que daí derive a aplicação de pena mais grave. Mas nesses casos, observado o contraditório, não se caracteriza julgamento ultra petita e sim a livre dicção do direito objetivo pelo juiz, em virtude do conceito jura novit curia. O que

efetivamente vincula o juiz, delimitando o campo de seu poder de decisão, não é o requerimento de condenação por uma determinada infração penal, mas a

determinação do fato submetido à sua indagação301. [grifou-se]

A acusação: Petrobras como epicentro da peça acusatória

A acusação se funda em dois pressupostos fáticos distintos, sendo um antecedente lógico e cronológico do fato posterior. O primeiro fato reputado criminoso, nos termos da acusação do MPF, seria a participação consciente e voluntária do ex-Presidente Luiz Inácio Lula da Silva em esquema criminoso de corrupção envolvendo a PETROBRAS, em que o mesmo teria solicitado, aceitado promessa e recebido, direta e indiretamente, para si e para outrem, vantagens indevidas, as quais teriam sido, de outro lado e de modo convergente, oferecidas e prometidas por Léo Pinheiro e Agenor Medeiros, executivos do Grupo OAS,

para que estes obtivessem benefícios para o CONSÓRCIO CONPAR, contratado pela PETROBRAS para a execução de TRÊS obras: Refinaria Getúlio Vargas – REPAR (FATO 01); implantação das UHDT´s e UGH´s da Refinaria Abreu e Lima – RNEST (FATO 02), e

para a implantação das UDA´s da Refinaria Abreu e Lima – RNEST (FATO 03)302 . Esses três fatos compõem o núcleo essencial que serve de suporte à denúncia do MPF. Por mais vagos que se mostrem, sobretudo quanto à descrição de como tais fatos se passaram, cingindo-se a participação supostamente criminosa do ex-Presidente Lula à presença do mesmo em jantares e reuniões - algo que é da absoluta ordinariedade das

300 SILVA, Ovídio Baptista da. Curso de Processo Civil. Vol. 1. T. 1. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 47. 301 CINTRA, Carlos Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido. Teoria Geral do Processo. São Paulo: Malheiros, 2008. 302 Cf. Denúncia do MPF, fls. 50. Disponível em: http://www.mpf.mp.br/pr/sala-deimprensa/docs/DENUNCIALULA.pdf. Acesso em 01/07/2017.

atribuições de um chefe do executivo federal e não autorizaria, nem mesmo com os dotes imaginativos dignos de um roteiro de David Lynch, a conclusão de que Lula haveria comandado o esquema de corrupção em questão -, ainda assim a denúncia, quanto ao

crime de corrupção, foi claramente delimitada àqueles três eventos diretamente

ligados a Petrobras. Como fato criminoso posterior, decorrente do primeiro, haveria o crime de lavagem de dinheiro. Às fls. 94 da peça acusatória, o Ministério Público Federal (MPF) apresenta no item 3.2., sob o título “Da corrupção e da lavagem de dinheiro por intermédio da aquisição, personalização e decoração de triplex no Condomínio Solaris no Guarujá/SP”, como suporte fático que serve de fundamento à sua pretensão condenatória quanto aos réus Lula e Marisa Letícia, os fatos de que esses teriam recebido vantagem indevida, dissimulado e ocultado a origem, a movimentação, a disposição e a propriedade de R$ 2.424.990,83369 provenientes dos crimes de cartel, fraude a licitação e corrupção praticados pelos executivos da Construtora OAS em detrimento da PETROBRAS, por meio (i) da ocultação da propriedade do apartamento 164-A do Condomínio Solaris; (ii) da transferência de R$ 926.228,82371, para fazer frente às reformas estruturais e de acabamento realizadas no imóvel; (iii) da transferência de R$ 350.991,05372, para custear a aquisição de móveis de decoração e de eletrodomésticos para o referido apartamento303 . O fato posterior - lavagem de dinheiro - seria um consequente lógico do primeiro fato reputado criminoso, qual seja, a corrupção junto à Petrobras.

A sentença: condenação de Lula sem reconhecimento de que vantagens indevidas teriam provindo da Petrobras

A despeito da delimitação fática que fundamenta a denúncia ser precisa quanto aos fatos criminosos dizerem respeito diretamente à Petrobras, especificamente em relação a três contratos acima referidos, o juiz Sérgio Moro entendeu que tais fatos não deveriam ser objeto de dilação probatória, pois interpretou que tais fatos, embora não apenas componham expressamente a denúncia, mas sejam seu eixo central, não seriam relevantes.199. Na decisão de 28/10/2016 (evento 114), as perícias foram indeferidas pois "não há afirmação, em princípio, na denúncia de que exatamente o dinheiro

recebido pelo Grupo OAS nos contratos com a Petrobrás foi destinado

especificamente em favor do ex-Presidente"304 . Ora, a citação textual da denúncia, nos termos em que formulada pelo MPF, é o oposto do que afirma o juiz. Como visto, há afirmação de que Lula teria participado de modo consciente e voluntário “dos crimes de cartel, fraude a licitação e corrupção praticados pelos executivos da Construtora OAS em detrimento da PETROBRAS”. Entretanto, em sede de decisão de embargos de declaração opostos à sentença, o juiz Sérgio Moro tornou mais reluzente seu entendimento:

303 Cf. Denúncia do MPF, fls. 94. Disponível em: http://www.mpf.mp.br/pr/sala-de-imprensa/docs/DENUNCIALULA.pdf. Acesso em 01/07/2017. 304 Cf. Sentença, fls. 38. Disponível em: http://conteudo.imguol.com.br/c/noticias/pdf/sentenca_lula.pdf. Acesso em 12/07/2017.

Este Juízo jamais afirmou, na sentença ou em lugar algum, que os valores obtidos pela

Construtora OAS nos contratos com a Petrobrás foram utilizados para pagamento da

vantagem indevida para o ex-Presidente. Aliás, já no curso do processo, este Juízo, ao indeferir desnecessárias perícias requeridas pela Defesa para rastrear a origem dos recursos, já havia deixado claro que não havia essa correlação (itens 198-199).

Nem a corrupção, nem a lavagem, tendo por crime antecedente a corrupção, exigem ou exigiriam que os valores pagos ou ocultados fossem originários especificamente

dos contratos da Petrobrás305 . Verdade seja dita. Agora faz um mínimo de sentido o cerceamento do direito de produzir provas requeridas pela defesa: o juiz não havia compreendido a delimitação fática sobre a qual deveria pairar a atividade instrutória.

Conclusão: nulidade absoluta da sentença pela violação do princípio da congruência

Como visto, a atividade judicial cognitiva e declaratória fica estritamente delimitada pelos pedidos da parte e seus fundamentos, delimitando o campo decisório, não cabendo ao juízo modificar os fatos submetidos à sua indagação, sob pena de afronta ao princípio da congruência. Diante da ausência de provas do envolvimento de Lula na prática e beneficiamento das atividades ilícitas de corrupção ligadas à Petrobras e mesmo com o reconhecimento expresso de que tal prova não seria possível, ao invés de julgar improcedente a denúncia, consequência lógica do que afirmou às fls. 38 da sentença e na decisão dos embargos de declaração, alterou e inovou a denúncia, alterando-lhe os fundamentos fáticos, ao invés de proferir sentença absolutória. A significativa alteração no plano fático importa em obrigatória abertura de vistas ao Ministério Público para que adite a denúncia e adeque a previsão típica apresentada, sob pena de violação da adstrição entre objeto da sentença e o pedido da ação penal. Poderia o juiz ter intimado o MPF para que este se manifestasse acerca da oportunidade ou não de promover a mutatio libelli prevista no art. 384 do CPP ou mesmo nova ação criminal, ajustada aos fatos que o juiz reconhecera, cabendo ao órgão ministerial exercitar sua opinio actio. Mas jamais poderia ter suprimido a iniciativa ministerial, agindo, a um só tempo, como acusador e julgador, como o fez, alterando por iniciativa própria os termos da imputação. Ao assim fazer, violou o princípio inafastável da congruência, garante da imparcialidade, e colocou-se duplamente no lugar de acusador e julgador, sendo írrita a sentença assim proferida, posto que absolutamente nula a decisão.

305 Item 3.g da decisão em embargos de declaração opostos contra a sentença. Disponível em: http://estaticog1.globo.com/2017/07/18/Evento981-DESPADEC1.pdf. Acesso em: 19/07/2017.

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