3 minute read
OBJETO MATERIAL INEXISTENTE E AUSÊNCIA DE DESCRIÇÃO DE ATO PESSOAL PRATICADO PELO CONDENADO
OBJETO MATERIAL INEXISTENTE E AUSÊNCIA DE DESCRIÇÃO DE ATO PESSOAL PRATICADO PELO CONDENADO
Márcio Augusto Paixão*
Advertisement
Lula foi condenado porque, na visão do juiz, teria recebido uma vantagem indevida em razão do cargo presidencial, consumando o delito de corrupção passiva (art. 317 do Código Penal). Tal infração penal estaria perfectibilizada, para o magistrado, no momento em que Lula teria se tornado, em outubro de 2009, “proprietário de fato” de um tríplex no Condomínio Solaris em Guarujá/SP, com o que teria ele “recebido” (“receber” é o verbo nuclear do tipo penal de corrupção passiva) uma vantagem indevida representada pela diferença de valor de mercado entre o tríplex e o apartamento tipo a que o casal Lula da Silva regularmente faria jus (por ter adquirido uma cota do empreendimento imobiliário, que era erguido por uma cooperativa). A meu ver dois grandes problemas surgem na largada: primeiro, em outubro de 2009 (mês em que, para a sentença, Lula teria se transformado no “proprietário de fato”), o tríplex não existia – o prédio todo estava com sua edificação em fase inicial, com somente 21,9% da obra acabada (dados referidos na sentença). Leo Pinheiro, em seu interrogatório judicial, revelou que em 2009 “o andar (do tríplex) ainda não estava construído”. Emerge o caráter tresloucado da tese, dotada da mais evidente irracionalidade: para o juiz do processo, alguém é capaz de se transformar em “proprietário de fato” de coisa que só existirá no futuro, isto é, proprietário de fato de algo que nem sequer existe –que será criado, está por ser construído. Lula seria então proprietário de fato sem um fato, dono de um nada. Conjecturam-se os cenários mais esdrúxulos diante dessa possibilidade – por exemplo: um pintor reconhecido, cujas obras de arte são valiosas, objetiva adquirir um veículo automotor e oferece ao vendedor, em troca, a propriedade ou posse de um quadro que ainda não pintou, e que diz que pintará. O pintor recebe o carro, porém se aposenta e nunca chega a pintar a obra. Na nobríssima visão do juiz do processo, pouco interessa se o quadro chegou ou não a ser pintado, se ele existe ou não: o alienante do veículo já é o proprietário de fato do quadro. Sabe-se da possibilidade, mormente na área de direito imobiliário, de que alguém possa ser proprietário de coisa ainda não construída; no entanto, essa espécie de propriedade sobre coisa futura somente pode ser de direito; nunca, jamais, de fato – porque o fato (ainda) não existe. Sobeja, ainda, o segundo problema inicial: a ausência de qualquer demonstração, seja pelo juiz em sua sentença, seja pela acusação em sua denúncia, da realização de algum ato comissivo de Lula da Silva para o cometimento do delito de corrupção passiva. Conforme a sentença, ele teria se transformado em “proprietário de fato” de uma coisa (em época na qual ainda não existia) sem ter executado um único ato pessoal. Em geral, as denúncias criminais descrevem que o acusado realizou ao menos algum ato empírico:
* Advogado Criminalista, Bacharel em Direito pela UFRGS.
no homicídio, ele disparou o gatilho; no roubo, ele apontou a arma e recebeu os objetos repassados pelas vítimas etc. Contudo, isso não ocorre no caso de Lula: para denúncia e para sentença, ele se transformou em proprietário de fato de coisa (ainda inexistente) sem ter executado um único ato pessoal. Nem mesmo uma ordem repassada a subalterno teria sido por ele feita. Intermediários e terceiros teriam promovido atuação suficiente para fazer de Lula proprietário de algo que não existe. Ora, se for suficiente para caracterização do crime de corrupção passiva a integração de bens em patrimônio do servidor público sem qualquer ato efetivamente praticado por este, então basta que qualquer pessoa descubra os dados da conta bancária de um funcionário estatal desafeto e, sem conhecimento deste, lá deposite valores, para dar-se como ultimada a infração penal. Parece óbvio, diante desse exemplo, que devem ser considerados imprescindíveis consciência e voluntariedade do suspeito (agir doloso – o elemento subjetivo do tipo penal) para se falar em corrupção passiva – e, embora isso tudo soe bastante evidente, a sentença peca ao não expor o cometimento de algum ato consciente e voluntário pessoal de Lula quanto à aquisição, em 2009, do tríplex.