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ENTRE A LEGITIMIDADE E A VIOLÊNCIA: A PROPÓSITO DA PRIMEIRA CONDENAÇÃO CRIMINAL DE LULA
ENTRE A LEGITIMIDADE E A VIOLÊNCIA: A PROPÓSITO DA PRIMEIRA CONDENAÇÃO CRIMINAL DE LULA Marco Alexandre de Souza Serra *
A primeira e mais persistente impressão que se tem, ao se aproximar de qualquer evento transcorrido no contexto da Operação Lavajato, é de que o magistrado que preside os processos criminais que das investigações têm derivado, na verdade tem funcionado como presidente é da própria operação. A leitura da sentença que culminou na primeira condenação contra o ex-presidente Lula é capaz de converter tal impressão numa sólida convicção. Pode ser que uma afirmação como esta não traduza qualquer novidade. Mas ela talvez ainda se afigure necessária, por mais incrível que pareça, porque, à distância que o grosso da população acompanha as intermináveis fases da Operação Lavajato, um papel tão ou mais proeminente deveria estar reservado ao Ministério Público, ao menos no campo da iniciativa probatória. Na leitura da extensa e repetitiva sentença, uma expectativa como essa não demora a desfazer-se. Embora afirme fiar-se sobretudo na prova documental acumulada nos autos processuais, a sentença devota muito mais energia em explicitar a prova oral, para tanto recorrendo ao expediente de transcrever os depoimentos gravados por sistema de áudio e vídeo. Sem embargo da utilidade que tal expediente pode encerrar, é a partir dele, justamente, que se descortina, sem rebuço, o protagonismo judicial, já que a grande maioria das perguntas transcritas são de autoria do incensado magistrado e apenas uma pequena porção das mesmas fica a cargo do órgão acusatório, que é o Ministério Público Federal. É possível que o magistrado tenha preferido valer-se das suas perguntas em detrimento das efetuadas pelos outros sujeitos – estes sim necessária e legitimamente parciais – da relação processual, porque elas seriam, segundo sua própria percepção, mais pertinentes. Embora não possa ser descartada, esta possibilidade não é capaz, por si só, de explicar a desproporção assinalada. No curso de um outro processo criminal da operação Lavajato, o advogado e professor Jacinto Coutinho teve a paciência de efetuar a contagem de perguntas efetuadas pelo juiz e pelos membros do Ministério Público aos inúmeros depoentes da causa. Enquanto os últimos – que integram uma força-tarefa, e que, portanto, são vários – fizeram cerca de 900 perguntas, o verdadeiro protagonista dos incontáveis feitos realizou mais de 2.100 perguntas.324 A garantia de imparcialidade integra um conjunto de franquias democráticas que, se por um lado, assistem e fortalecem o sujeito hipossuficiente de toda e qualquer relação processual-penal – que é o réu -, por outro confunde-se, necessariamente, com aquela que deveria ser compreendida, sobretudo por aqueles que a desempenham, como a mais irrenunciável das características da função judicial: a independência, quer em sua dimensão objetiva ou funcional, quer em seu aspecto subjetivo, em reverência, em
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* Doutor em direito penal pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ (2017) e professor da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR). 324 Esta informação pode ser retirada das notas taquigráficas transcritas do julgamento da apelação criminal n 5083376-05.204.4.04.7000 perante a 8ª turma do Tribunal Regional Federal da Quarta Região, em 08/06/2016.
ambos os casos, ao órgão de soberania que juízes e tribunais encarnam, no exercício, que lhes compete com exclusividade, de um poder de Estado. Por sua vez, o atributo da independência desdobra-se em várias significações, nas quais se exteriorizam e patenteiam implicações que extravasam o plano estritamente jurídico, produzindo implicações políticas, econômicas e sociais.325 Nesta perspectiva é que a qualidade da independência deve revelar-se diante dos restantes poderes de Estado, da generalidade dos tribunais, da organização hierárquica da burocracia judicial a que o próprio magistrado está vinculado, e, finalmente, perante quaisquer grupos da vida pública. Dentre estes grupos colocam-se, com destaque, a mídia mais ou menos corporativa e partidos políticos, ostentem que orientação for. Acresce dizer, ainda nesta mesma direção, que este mesmo predicado, compreensível como garantia ou característica, está em conformidade com o modelo processual que nossa ordem jurídica, caudatária daquelas de feição liberal mais avançadas, se não adota em plenitude, promete almejar. Tal modelo é aquele reconhecido como acusatório, de remota tradição, e que contemporaneamente continua a significar que o papel reservado ao juiz deve ser marcado pela placidez, notadamente no plano probatório. Para ser mais rigoroso, segundo o arquétipo acusatório, a iniciativa probatória está interditada ao magistrado. Ela deve estar reservada àqueles sujeitos processuais necessariamente parciais, de sorte que a estes que compete, para mais uma vez lembrar Jacinto Coutinho326, a “gestão da prova”. No modelo antagônico (inquisitivo), no qual pureza nenhuma também é possível, a gestão da prova é atribuição do juiz, com o correlato efeito de converter o arguido ou réu em mero objeto de investigação. Essas considerações, sem qualquer pretensão de originalidade, precisam ser recuperadas a fim de informar ao público em geral, não iniciado em assuntos jurídicos, tanto mais nesses mais abstratos porque principiológicos, em que termos se desenvolve a teoria jurídica e que projeções ela implica sobre este caso tão rumoroso quanto decisivo paro o futuro e o presente, a partir das tradições e traduções que lhe conformam a existência e lhe reclamam certo compromisso histórico, inclusive com o passado. Embora não seja muito, a tradição liberal, se seriamente considerada no horizonte de projeção do direito processual penal, é capaz de produzir um sistema de garantias bastante ambicioso327, habilitado a conjurar grande parte dos abusos derivados do exercício em ato do poder punitivo estatal, que se realiza por meio do direito processual penal. A consequência que tal violação a um princípio como é o da imparcialidade, correlato à independência judicial, enseja, é a invalidade de todo o processo em que ela se revela. Os processos que tramitam em torno da operação Lava Jato ostentam, ainda nesse nível de generalidades, outras tantas fontes de contaminação de sua higidez jurídica. Entre elas também desfruta de destaque uma violação a outro princípio de índole equivalente que é o do juiz natural. Em princípio, a competência para processar e julgar uma causa
325 Nesse sentido, DIAS, Jorge Figueiredo. Direito processual penal. Coimbra: Coimbra editora, 1974, p. 304. 326 COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Introdução aos princípios gerais do processo penal brasileiro. Revista da Faculdade de Direito da UFPR, n. 30, Curitiba, PR, Brasil, dez. 1998, p. 163-198. 327 A referência necessária, a este respeito é, por todos: FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.
criminal cabe ao juízo com jurisdição no lugar em que o crime se consuma. Para ficar na decisão que se está confrontando, os crimes de corrupção passiva e lavagem de dinheiro pelos quais o ex-presidente Lula foi condenado versam sobre o recebimento de um apartamento para o qual ele teria contribuído apenas com uma parte do preço. Tal apartamento importaria vantagem indevida porque seu oferecimento estaria vinculado ao fato de o acusado ter sido ex-presidente da República. A isto se tem agregado, ainda segundo a perspectiva da sentença condenatória, a ocultação da real titularidade do apartamento, uma vez que, formalmente, mesmo com a aquisição pelo ex-presidente Lula e sua finada esposa, o imóvel continuou formalmente registrado em nome de uma das empresas do Grupo OAS. Uma razão complementar seria a responsável pela fixação da competência na 13ª Vara Federal de Curitiba: a existência de conexão e de continência, sob as suas diversas formas, convergindo para o mencionado juízo em função da prevenção como critério residual (artigo 78, caput, c do Código de Processo Penal) para tal determinação. Referida prevenção teria se estabelecido em função de um crime de lavagem de dinheiro recebido em propina por, entre outros, o ex-deputado federal José Janene, propina esta com origem na ação penal n 470 que tramitou no Supremo Tribunal Federal, vulgarizada como “mensalão”, mas que também alcançava o esquema criminoso cuja principal vítima foi a Petrobras. Descer aos demais detalhes que têm sido acionados, inclusive por tribunais superiores, a fim de manter ou enviar investigações e processos perante a 13ª Vara Federal de Curitiba não é uma possibilidade para estas despretensiosas notas. Mais impossível, contudo, é acreditar que a prevenção seja razão suficiente para atrair a competência para julgar crimes praticados em lugares diferentes com penas igualmente distintas em termos de gravidade (artigo 78, II, a do CPP) ou em número maior em caso de infrações de mesma gravidade (artigo 78, II, b do CPP). Basicamente porque, mesmo diante de causas de prorrogação de competência, as regras de determinação em razão da matéria ou do local prevalecem sobre a prevenção, que deve continuar, para este efeito, a ser compreendida como critério subsidiário.328
328 Nesta mesma linha decidiu, a propósito de fato também vinculado à operação Lavajato, o Supremo Tribunal Federal na questão de ordem julgada no contexto do inquérito 4.130, de cuja ementa transcrevese o seguinte fragmento: “(...) 6. A prevenção, essencialmente, não é um critério primário de determinação da competência, mas sim de sua concentração, razão por que, inicialmente, devem ser observadas as regras ordinárias de determinação da competência, tanto ratione loci (art. 70, CPP) quanto ratione materiae. 7. Nos casos de infrações conexas, praticadas em locais diversos, hão de ser observadas as regras de determinação do foro prevalente previstas no art. 78 do Código de Processo Penal, uma vez que a conexão e a continência importam em unidade de processo e julgamento. 8. A prevenção, nos termos do art. 78, II, c, do Código de Processo Penal, constitui critério residual de aferição da competência. 9. Não haverá prorrogação da competência do juiz processante - alargando-a para que conheça de uma causa para a qual, isoladamente, não seria competente -, se não estiverem presentes i) uma das hipóteses de conexão ou de continência (arts. 76 e 77, CPP) e ii) uma das hipóteses do art. 78, II, do Código de Processo Penal. 10. Como já decidido pelo Supremo Tribunal Federal, “a conexão intersubjetiva ou instrumental decorrente do simples encontro fortuito de prova que nada tem a ver com o objeto da investigação principal não tem o condão de impor o unum et idem judex”. Do mesmo modo, “o simples encontro fortuito de prova de infração que não possui relação com o objeto da investigação em andamento não enseja o simultaneus processus” (RHC nº 120.379/RO, Primeira Turma, Relator o Ministro Luiz Fux, DJe de 24/10/14). 11. Ainda que o juízo de origem, com base nos depoimentos do imputado colaborador e nas provas por ele apresentadas, tenha decretado prisões cautelares e ordenado a quebra de sigilos bancário ou fiscal e a realização de busca e apreensão ou de interceptação telefônica, essas medidas, por si sós, não geram sua prevenção, com base no art. 83 do Código de Processo Penal, caso
Muitas são as outras questões instigantes constantes da condenação de Lula, sobretudo as que avançam sobre o mérito da causa. Não faltam estímulos para enfrentá-las. O espaço disponível recomenda encerrar detendo-se sobre apenas mais um aspecto final. Para isso será necessário evitar qualquer juízo sobre uma possível verdade que o impressionante acervo probatório reunido no processo permite divisar. Num nível simultaneamente mais alto e profundo de compreensão, enfim, parece induvidoso de que neste, como de resto sucede à generalidade dos processos criminais, a seletividade, intrínseca ao funcionamento do sistema penal, se exteriorizou em toda sua plenitude. A ela tradicionalmente se pode antepor os antídotos reunidos sob a ideia de devido processo legal. Pois sob a carapaça da legalidade que experimentamos, a legitimidade de um exercício de poder tão grave é obtida pela reverência aos procedimentos antecipadamente consagrados a tanto. Sem ela não haverá legitimidade, nem legalidade. Apenas exercício de violência, sem qualquer mediação jurídica.
devam ser primariamente aplicadas as regras de competência do art. 70 do Código de Processo Penal (local da consumação) ou do art. 78, II, a ou b, do Código de Processo Penal (determinação do foro prevalente, no caso de conexão ou continência). 12. Os ilícitos em apuração nos procedimentos encaminhados pelo juízo da 13ª Vara da Seção Judiciária do Paraná se referem, dentre outros fatos, a repasses de valores por empresa prestadora de serviços de informática na gestão de empréstimos consignados de servidores federais, no âmbito do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão, com a utilização, em tese, de notas fiscais falsas e de empresas de fachada. 13. Não há relação de dependência entre a apuração desses fatos e a investigação de fraudes e desvios de recursos no âmbito da Petrobras, a afastar a existência de conexão (art. 76, CPP) e de continência (art. 77, CPP) que pudessem ensejar o simultaneus processus, ainda que os esquemas fraudulentos possam eventualmente ter um operador comum e destinação semelhante (repasse de recursos a partido político ou candidato a cargo eletivo). 14. O fato de a polícia judiciária ou o Ministério Público Federal denominarem de “fases da operação Lavajato” uma sequência de investigações sobre crimes diversos - ainda que sua gênese seja a obtenção de recursos escusos para a obtenção de vantagens pessoais e financiamento de partidos políticos ou candidaturas - não se sobrepõe às normas disciplinadoras da competência. 15. Nenhum órgão jurisdicional pode-se arvorar de juízo universal de todo e qualquer crime relacionado a desvio de verbas para fins político-partidários, à revelia das regras de competência. 16. A mesma razão (inexistência de conexão) que motivou o não reconhecimento da prevenção de Ministro da Suprema Corte que supervisiona a investigação de crimes relacionados à Petrobras estende-se ao juízo de primeiro grau. (...)” (Inq 4130 QO, Relator(a): Min. DIAS TOFFOLI, Tribunal Pleno, julgado em 23/09/2015, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-020 DIVULG 02-02-2016 PUBLIC 03-02-2016).