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A SENTENÇA CONDENATÓRIA DE LUIZ INÁCIO DA SILVA E A ARGUMENTAÇÃO NEGATIVA DO ESTADO CONSTITUCIONAL

A SENTENÇA CONDENATÓRIA DE LUIZ INÁCIO DA SILVA E A ARGUMENTAÇÃO NEGATIVA DO ESTADO CONSTITUCIONAL Margarida Lacombe Camargo e José Ribas Vieira *

A sentença condenatória do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva apela, marcadamente, para um contexto narrativo que extrapola os limites do caso concreto. Em artigo publicado no Jota, em março de 2016, com o título “A estratégia institucional do juiz Sergio Fernando Moro descrita por ele mesmo”329, mostramos que o juiz autor da sentença condenatória do ex-presidente Lula, em seus trabalhos acadêmicos, sempre sustentou a prevalência do Poder Judiciário frente aos demais poderes da república, sob a equação de que “quanto maior a deslegitimação do sistema político, maior a legitimação da magistratura”. E, no bom estilo do estado de exceção schmittiano, em que vigora o decisionismo,330 ele apela diretamente para a opinião púbica de forma a legitimar suas ações. É o que se percebe também agora, na sentença condenatória do ex-presidente Lula, quando encontramos um discurso voltado primordialmente para o público e cuja força persuasiva recai sobre a construção de uma narrativa criminosa que ultrapassa os limites do processo. Por isso, a decisão em pauta só pode ser compreendida no contexto do golpe parlamentar de 7 de abril de 2016, quando a base do governo no Congresso Nacional se voltou contra a presidente eleita Dilma Rousseff, aceitando o pedido do seu afastamento a final consumado no dia 31 de agosto do mesmo ano. 331

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Elio Gaspari em poucas palavras descreve o golpe: “A primeira ideia foi a de se eleger Aécio Neves. Faltaram três milhões de votos (3%). Então veio a segunda chance, a de se derrubar Dilma Rousseff. Deu certo, e Michel Temer foi para o Planalto com uma plataforma oposta à da campanha de Dilma, mas com uma base de apoio parlamentar quase idêntica.”332 O golpe parlamentar, que assim se confunde com o Impeachment, só foi possível porque contou com forte campanha contra o governo, por parte da mídia manipuladora. A grande mídia se serviu dos resultados das investigações produzidas no âmbito da Operação Lava Jato para fomentar na opinião pública uma guerra contra a corrupção e fragilizar as instituições vigentes. Em momentos como esse, a credibilidade dos poderes que se apoiam na soberania popular é a mais atingida, e com mais força ainda isso se dá sob a chancela do Judiciário. Portanto, é a democracia que sofre. Ocorre que, quando o combate à corrupção, que se encontra na seara do crime, se dá para fins políticos, as esferas do político e do jurídico se confundem. Foi o que se viu recentemente no Brasil, com o Impeachment da presidente Dilma, que contou com a complacência do Poder Judiciário. O Supremo Tribunal Federal brasileiro não apenas se

* Professores de Direito da UFRJ. 329 https://jota.info/artigos/estrategia-institucional-juiz-sergio-moro-descrita-por-ele-mesmo-28032016 330 Sobre o decisionismo no Estado de Exceção ver Ronaldo Porto Macedo Carl Schmitt e a Fundamentação do Direito. São Paulo: Saraiva, 2. ed., 2011, especialmente item 4.1 331 Sobre o golpe parlamente vide o livro de Wanderley Guilherme dos Santos, A democracia impedida: o Brasil do século XXI (Rio de Janeiro: FGV, 2017), especialmente páginas 25 a 31. 332 Jornal O Globo de 9 de julho de 2017.

omitiu em relação ao Impeachment como também passou a sancionar todas as iniciativas heterodoxas tomadas pelo juiz responsável pela Operação Lava Jato, que ajudou a montar o “conjunto da obra” necessário à deflagração de todo esse processo. Uma típica atitude corporativista do Judiciário, que contou também com a atuação expressiva do Tribunal Regional Federal da 4ª região, mas que, ao adentrar no campo da política, serviu para conferir legitimidade ao que não era legítimo. Isso tudo para garantir a substituição da presidente da república e afastar do cenário político o Partido dos Trabalhadores e seu principal líder, o também ex-presidente Lula. Foi um processo traumático para o povo brasileiro. Não apenas porque a economia e a credibilidade do país ficaram extremamente afetadas, mas também porque as medidas de austeridade que daí se seguiram levaram ao retrocesso da conquista dos direitos sociais, no melhor estilo neoliberal. Mas os efeitos negativos não se limitaram a isso. O sucesso do golpe dependeu da imagem depreciativa das nossas instituições ad nauseum veiculada pela grande mídia. Dia e noite, noite e dia, partidos políticos, parlamentares e quadros integrantes do Governo passaram a ser alvejados e a política desacreditada. Ainda que em um processo seletivo, para atingir uns e poupar outros, a política partidária acabou sendo ferida de morte, passando-se a buscar quadros alternativos na iniciativa privada, onde se acredita poderem estar os arautos da moralidade empreendedora. Além disso, o sectarismo tomou conta da sociedade atingindo relações pessoais e familiares. O ódio inibido pelas regras de convivência social encontrou terreno fértil para ser destilado nas redes sociais, uma vez que no isolamento do ambiente virtual as pessoas se sentem encorajadas a manifestar posições radicais, não raramente ofensivas e discriminatórias, que a presença física reprime. São desdobramentos pérfidos que talvez os defensores do golpe não imaginaram, pois tudo parecia poder ser resolvido pacificamente pela via do Impeachment. Ocorre que o golpe não se mostrou eficaz com relação aos resultados pretendidos dado que as reformas neoliberais que pretendia implementar não alcançaram o sucesso vislumbrado. O governo Temer não conseguiu formar quadros para a sua administração. Foi alvo de escândalos de corrupção e perdeu popularidade. O “mercado” abandonou Temer, segundo o mesmo Elio Gaspari aponta; e agora se aproximam as eleições gerais de 2018, com o PT mostrando-se forte candidato à Presidência da República. Na senda do golpe, que no todo não se consumou, muito possivelmente a sentença condenatória de Luiz Inácio Lula da Silva apareça em momento providencial a impedir que a esquerda volte ao poder. Da mesma maneira que Dilma foi afastada da presidência da república pelo “conjunto da obra”, Lula foi condenado pelo “contexto de corrupção endêmica” que nos cerca. Dilma teve as pedaladas fiscais e os decretos orçamentários como pretextos para o seu afastamento da presidência da república e Lula a “propriedade” fantasma de um apartamento triplex no Guarujá (SP) como justificativa para sua condenação pelos crimes de corrupção e lavagem de dinheiro. Como típico de um contexto de Estado de Exceção, em que as instituições encontramse rompidas e os governantes falam diretamente ao povo em busca de apoio, o juiz Sergio Moro, em sua decisão, dirige-se especialmente à sociedade. Constrói uma narrativa que vai ao encontro de tudo aquilo que a sociedade quer ouvir, e que é discurso fácil: o combate à corrupção. Boa parte das 238 páginas é ocupada com justificativas sobre as medidas de exceção tomadas durante todo o processo de

incriminação do ex-presidente Lula, sob a lógica de que os fins justificam os meios, e sempre com o respaldo do poder judiciário. O que podemos chamar de “Lawfare”, isto é, a politização da lei para uso sem limites do poder e o direito serve de arma contra o próprio direito; ou o direito luta contra o próprio direito.333 Para isso o juiz se vale largamente da retórica. Mas no mal sentido, porque não se atém aos limites do processo. Constrói uma linha argumentativa que transborda o caso concreto, em busca do apoio do público. Vai além da comprovação do crime de corrupção passiva e lavagem de dinheiro, relacionados à suposta propriedade do apartamento que entende ter sido recebido como propina. Apoia-se, assim, em um contexto que constrói como criminoso. Coloco na conta do mau uso da retórica334 toda a estratégia de argumentação e convencimento que ultrapassa os limites da comprovação objetiva da autoria e da materialidade do crime objeto da denúncia, numa estratégia de puro convencimento ao público em geral. Diferente de autores de matriz pós-positivista que apostam na argumentação respeitados os limites institucionais do Estado Constitucional, como Alexy, MacCormick, Dworkin e Atienza,335 o que se vê na sentença do juiz Moro é uma argumentação que, na linha do Estado de Exceção, rompe com os limites institucionalmente impostos, no caso notadamente pelas regras do processo penal. Dirige-se diretamente à sociedade, apelando para uma argumentação meramente persuasiva em busca de apoio para o seus feitos. Vale-se de fragmentos de outros processos e inquéritos em curso, como é o caso da reforma do sítio de Atibaia. Como as provas da propriedade do apartamento do Guarujá são frágeis, o juiz Sergio Moro se socorre dessas outras fontes para construir uma explanação robusta o suficiente a suprir tal fragilidade. Até artigo de jornal é considerado em apoio à sua narrativa probatória. Após concluir pela propriedade do imóvel com fulcro principal no testemunho de um réu confesso, o presidente da empreiteira OAS que, na qualidade de colaborador se beneficiaria diretamente dos resultados das informações apresentadas (itens 643 a 647), o juiz adensa a justificativa de sua decisão com o que explica serem as causas do crime: a participação da OAS no esquema de corrupção da Petrobras e as suas relações com o Partido dos Trabalhadores, o que passa a descrever em detalhes. Mas o juiz foi mais longe e apontou uma série de outras pessoas envolvidas ainda que fora do escopo da ação, transcrevendo trechos de depoimentos que, por força de ilações, acabam por levá-lo a incriminar o ex-presidente Lula (itens 648 a 806 da sentença): 801. Parece, aliás, pouco estranho que, diante da magnitude do esquema criminoso, ilustrado pelo fato da Petrobras ter reconhecidos cerca de seis bilhões de reais em perdas contábeis com corrupção no balanço de 2015, não tivesse o ex-Presidente

333 Vide entrevista concedida por John Comaroff, Professor de Harvard e especialista na delimitação da categoria “lawfare". http://www.downloadyoutubeonline.com/video/skCRotOT1Lg 334 Utilizo aqui o termo “retórica” no sentido da “nova retórica” de Chaim Perelman, que, em sua teoria, chama a atenção para os elementos persuasivos das sentenças judiciais. 335 O pós-positivismo assume a argumentação jurídica numa perspectiva valorativa, respeitados os limites institucionalmente impostos. Alexy defende a teoria do caso especial, trabalhando a razão prática nos limites da dogmática jurídica e dos precedentes judiciais; Dworkin, com a analogia do romance em cadeia, circunscreve a interpretação e aplicação dos direitos nos precedentes e nos princípios que caracterizam o Direito como integridade; MacCormick respeita os limites do raciocínio lógico-dedutivo próprio do Direito; e Atienza encerra a argumentação nos limites do Estado Constitucional.

qualquer conhecimento, máximo porque ele, o esquema criminoso, também teria envolvido utilização de propinas em acertos de corrupção na Petrobras para financiamento de campanhas eleitorais, inclusive do Partido dos Trabalhadores e pelo qual o ex-Presidente foi eleitos e elegeu sua sucessora. 802. Além disso, chama a atenção a ausência de qualquer juízo de reprovação da parte do ex-Presidente em relação a agentes púbicos que, durante o seu Governo, teriam participado do esquema criminoso que vitimou a Petrobrás. Vimos então que o juiz precisou ir longe para condenar Lula. Mas um longe que se sustenta mais pela força retórica de uma narrativa que constrói do que por um conjunto probatório necessário a condenar alguém, muito menos se considerarmos os crimes apontados na denúncia que deu origem à Ação Penal n. 5046512-94.2016.4.04.7000/PR, de que agora se cuida. A sentença se sustenta muito mais em uma argumentação de natureza puramente retórica, porque vai além dos limites do processo e busca conquistar o público pela força exclusiva da persuasão e não da legalidade. Uma argumentação abusiva que não condiz com os limites impostos pelo Estado Constitucional,336 quando as instituições vigoram, servindo mais à dinâmica de um Estado de Exceção, quando impera o decisionismo.

336 Manoel Atienza, em sua última obra Filosofía del Derecho y Transformación Social (Madrid: Trotta, 2017) faz um balanço da Filosofia do Direito articulando a perspectiva argumentativa com o constitucionalismo e as teorias de transformação social.

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