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QUEM ESTÁ ACIMA DA LEI?

QUEM ESTÁ ACIMA DA LEI?

Maria Goretti Nagime

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Saio de minha casa de manhã e encontro com uma amiga. Ela me diz que o ex-presidente Lula foi preso, e foi pego no aeroporto, tentando fugir do país. Disse que a televisão só falava disso, como eu não sabia? “Bandido, mas agora já era!” Chegando em casa vi que havia sido a condução coercitiva de Lula, filmada em tempo real. Helicópteros seguindo o carro, justamente para dar um ar de prisão. Eu havia aprendido que condução coercitiva tinha utilidade quando o investigado se negava a depor voluntariamente. Sequer foi o caso. Era uma condução coercitiva sem a prévia notificação prevista no artigo 260 do Código de Processo Penal. E foi interrogado em um aeroporto, ou seja, um local estranho às dependências policiais. Lula foi pego de surpresa, mas não a Rede Globo. Os helicópteros filmando o trajeto dos carros de polícia até o aeroporto ao vivo, ocupando toda a programação, era um desenho do Processo Penal do Espetáculo. O juiz da ação, Sérgio Moro, sempre dá entrevistas a esta emissora de televisão e, através dela, chegou ao ponto de pedir apoio à população em horário nobre e em rede nacional. Um juiz pedir o apoio da população? Nesta emissora também o juiz Moro divulgou em primeira mão interceptações telefônicas do réu Lula. Interceptações ilegais, sigilosas e sem que contivessem sequer crime. Inclui-se a divulgação em rede nacional de Marisa Letícia, sua então esposa, conversando com seu filho. Algo como um “Furo” para uma revista de fofoca, mas um “furo” conseguido utilizando o poder jurisdicional. O argumento utilizado como justificativa foi – pasme-se - a própria confissão do fim do Estado de Direito. Disse que a operação que preside não deveria seguir as regras, pois trataria de uma situação especial. Segundo ele as questões da operação Lava Jato "trazem problemas inéditos e exigem soluções inéditas". E a rede de televisão – titular de uma das maiores, se não a maior fortuna do país - tratao como seu representante, o herói. Produz um discurso nesse sentido e nele investe fortemente, como em uma hipnose diária aos telespectadores. O público alvo, quem compraria o discurso, são os despolitizados. Assim como na época pré-nazista, sob a falsa justificativa de combate à corrupção, expressões e movimentos fascistas vão saindo do esgoto, sendo incentivados e naturalizados. E órgãos estatais envolvidos na persecução penal claramente vêm sendo influenciados por esta onda de fascismo. O juiz Sérgio Moro não foi tratado como herói por ser juiz, ou seja, por ser imparcial, mas justamente por ser parcial, por significar oposição política ao réu. Por evidenciar sua parcialidade e confessar ignorar a lei.

* Advogada, mestranda em Sociologia Política na Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro (UENF) e pós-graduanda em Direitos Humanos e Estudos Críticos de Direito no Conselho Latinoamericano de Ciências Sociais (CLACSO).

Duas revistas do mesmo grupo de mídia da emissora o colocaram nas capas em uma metáfora de luta de boxe, lutando contra Lula, como opositor a Lula. No uniforme de lutador de boxe, as cores do partido de oposição ao partido de Lula. Atônita com a naturalidade com que a situação era tratada nas capas de revista, a população perguntava-se: se Moro está naquela luta, então quem é o juiz? Assim como as revistas, toda a população sabia que Moro iria condenar Lula, com ou sem crime. Institutos de pesquisa, como o Datafolha, incluíram o juiz Moro nos questionários de intenção de voto como opção eleitoral, como um político candidato de oposição a Lula. A evidente suspeição, no entanto, não era reconhecida como um vício, mas como motivo de orgulho, representação da classe dominante, um verdadeiro símbolo da onda de fascismo. “ Passar por cima da lei” é motivo de orgulho para a classe que vive da exploração ou dos que reproduzem as lições ensinadas por esta classe através da hipnose da mídia de massa. Como consequência, é comum ouvir “Quero que ele seja preso, não importa como nem por quê”. Ao final de seus dois mandatos como presidente da República, Lula tinha mais de 90% de aprovação da população, segundo os institutos de pesquisa IBOPE e DATAFOLHA. Se condenado em segunda instância, não poderá concorrer novamente à presidência da República. Lula deixou de ser tratado como titular de direitos. O grupo político e os institutos que protagonizaram o Golpe de Estado que depôs uma presidente legitimamente eleita são os mesmos que querem impedir a candidatura de Lula via Lawfare. Ficaram mais nítidas suas intenções pelos escandalosos cortes do governo golpista nas pastas sociais. E Lula é justamente símbolo de um projeto de inclusão social. Citemos como exemplo de sua gestão a eliminação do trabalho escravo infantil na região do Nordeste, o que provocou a ira da classe que era beneficiada com a escravidão. Sua sentença ocorreu no dia seguinte à reforma trabalhista. Não se pode ignorar a correlação dos fatos e o teor revanchista que une os dois acontecimentos. Todos sabiam que Moro iria condenar Lula. Muitas arbitrariedades foram cometidas em prejuízo a Lula e de forma a criar notícias para aquela rede de televisão durante mais de um ano. Quando veio a sentença, a fragilidade da acusação conseguiu ficar ainda mais nítida. A sentença diz que um apartamento é de Lula e de sua falecida esposa. No Brasil existe uma grande burocracia até o reconhecimento de uma propriedade. É necessário pagar altas taxas em cartórios e aguardar trâmites para, enfim, ter uma escritura registrada, com a necessária matrícula do imóvel no Registro Geral de Imóveis. Muito menos do que proprietário, Lula sequer teve posse direta ou indireta do imóvel. O imóvel sempre esteve em nome da OAS. Todos os itens afirmados na sentença como sendo “prova de propriedade” – visitas no imóvel, vontade de adquiri-lo, reserva do bem para futura aquisição – mesmo se provados, nunca serviriam como prova de propriedade caso qualquer cidadão quisesse provar judicialmente ser dele um imóvel. Por isso a sentença tornou-se motivo de piada jurídica em todo o país. Sobre transferência da propriedade de um imóvel apenas de forma verbal, adquirir um imóvel

bastando a visita ou a intenção de compra futura, lavagem de dinheiro sem dinheiro, etc. Na faculdade de Direito costumávamos ouvir piadas sobre juízes vaidosos, juízes "estrelas", juízes que primeiro decidem e depois pensam em como justificar sua decisão. Mas tudo me parecia distante ou, no mínimo, clandestino. Nunca conheci nenhum operador do Direito que, julgando um caso, pensaria em dar entrevista agradecendo à população pelo apoio, vazaria para programa de televisão grampo judicial sigiloso – e sem diálogo revelando crime - de esposa de investigado conversando com o filho. Ilegalidade dentro de processo eu já havia visto acontecer, claro, mas chegado o ponto de o juiz não se preocupar em ao menos parecer imparcial, pelo contrário, orgulhar-se de ser símbolo de oposição a uma pessoa que ele julga, de suas medidas fugirem às regras previstas, e tudo isso estando sob holofotes: trata-se da completa desmoralização do judiciário. No dia de hoje o PSDB, partido de oposição à Lula e protagonista do Golpe de Estado de 2016, disponibilizou em seu sítio eletrônico uma pesquisa de opinião. A questão posta era: “A condenação do ex-presidente Lula pelo juiz Sérgio Moro, na sua opinião, mostra:”. Existiam três respostas possíveis de serem respondidas na enquete: “1- Que não existe ninguém acima da lei no Brasil”, “2 – Que a justiça foi feita” e “3- Que foi uma decisão política.” Em uma hora de enquete no ar, mais de 94% dos votantes haviam respondido que “foi uma decisão política”. Em duas horas de enquete no ar, o sítio eletrônico retirou a pesquisa e em seu lugar exibiu um comunicado: ”desculpe, mas a enquete não está mais disponível”. Um líder historicamente reconhecido por projetos implementados de inclusão social e combate à fome ser condenado penalmente sem provas com o objetivo de ceifá-lo das eleições presidenciais traz três consequências visíveis: o aumento de descrédito atribuído ao Poder Judiciário, o afastamento entre o Direito, a justiça e a sociedade no Brasil e a demonstração da fragilidade do Estado Democrático de Direito.

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