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SOCORRA-NOS, MONTESQUIEU

SOCORRA-NOS, MONTESQUIEU!

Nelio Machado *

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Inevitável a polêmica diante do conteúdo da sentença condenatória datada de 12 de julho de 2017, na qual o Juízo da 13ª Vara Federal de Curitiba entendeu de condenar o ex-Presidente Luiz Inácio Lula da Silva a uma pena de mais de 9 anos de reclusão, em regime fechado. Já tivemos ocasião de verberar, tão logo tomamos conhecimento do decisório, contra os exageros do Juiz monocrático, gizando o rigor inaudito da sanção penal. Dogmas essenciais que dimanam do princípio da reserva legal e que se desdobram na formulação de Beling, na formatação da tipicidade, garantia elementar do cidadão em face do poder punitivo do estado, não raro avassalador, foram reduzidos a quase nada, pouco se importando o emitente da sentença com os contornos mais elementares que informam os delitos de corrupção passiva e lavagem de dinheiro. Muitos dirão com maior proficiência e melhor do que nós sobre os desvios de rumo, os contorcionismos de que se socorreu o Julgador com o fito de enxergar, com sua lupa de viés condenatório, o crime contemplado no artigo 317 do Código Penal, a partir de concepção cerebrina divorciada por inteiro da prova coligida. Elegeu-se tese, a saber, a da configuração dos delitos, e a partir dela, como se fosse impossível repudiá-la, mesmo que em seu desfavor clamassem a ciência penal, o direito constitucional, o direito processual penal, a acusação tinha que ser prestigiada a qualquer preço, sob pena de se ter uma empreitada inacabada. Depois de muitos lustros no exercício diuturno da advocacia criminal, restou indisfarçável, para os que tenham olhos de ver, a posição de extremado rigor do Magistrado sentenciante, a revelar desde os pródromos da inquisa visível tendência incriminatória, passando ao largo da unidade conceitual do Direito, convolando o instituto da propriedade em preceito destituído de relevo à luz do Código Civil, vindo a condenar quem não tinha uso, posse ou gozo de determinado bem. Visitação a imóvel transmudou-se em prova inequívoca da culpabilidade, do mesmo modo que inexistência de ato de ofício para benefício de terceiros também se revelou algo de somenos, de importância nenhuma, valendo toda argumentação como arrimo para validar e viabilizar a tese adredemente concebida. De resto, na espécie, faz corar o entendimento de que seria possível desfrutar o réu exPresidente da República de benefícios em 2014, em razão de atos em relação aos quais a prova é débil no que lhe concerne, que teriam tido lugar em 2007 e 2009, muitos anos antes. Nem o mais severo dos exegetas, o mais conservador dos hermeneutas, o mais tosco e rude intérprete da Lei Penal sustentaria a absurdeza de que se reveste o conteúdo do decisório que apenou o acusado que, por duas vezes, teve a responsabilidade de presidir a República do País.

* Advogado.

Certamente o réu há de ter tido méritos e insucessos, como curial, é da natureza humana. Porém, por tal enfoque, de modo algum será justificável que os institutos garantidores do Direito sejam adaptados à conveniência de punir, fazendo-o a qualquer preço, com o sacrifício do dogma já mencionado, a saber, o da reserva legal. Não é pertinente transformar este aligeirado escrito em incursão doutrinária sobre os modelos penais incriminadores dos crimes contra a administração pública, menos ainda enveredar por cogitações acerca de crime organizado e quejandos, tampouco caminhar na senda vaga e fugidia, com palavra fácil de se pronunciar, trazendo-se à colação o que na moda se encontra, traduzido pela vaga expressão “crime organizado”. O Direito Penal não nasceu hoje, muito menos as perseguições. Das últimas, há de se ocupar a história. Que o digam Tiradentes, Dreyfus, os irmãos Naves e tantos outros mais registrados na literatura universal. O que se julga não é apenas como se fazia, em afronta ao Direito e à Justiça, em épocas já ultrapassadas, não só medievais, mas também antes delas. As garantias se erigem em obstáculos aos ardores punitivos, a reclamar, desde tempos imemoriais, até mesmo antes de 1215 os contornos do que veio a ser em favor da cidadania e do Direito das gentes, o irrenunciável due process of law. Em tempos de delação, procedimento adotado, de forma tumultuária e equivocada, a história o dirá também, já não mais espanta a consciência dos que guardam fidelidade às conquistas da civilização, o que tem ocorrido na assim chamada “República de Curitiba”, atassalhando-se, frequentemente, a Lei Maior. O que se tem visto, e não há como negar que as garantias da Constituição foram abastardadas, o devido processo legal esgarçado, o direito de defesa tido como incomodo a ser tolerado e, mais ainda, se possível, evitado. Já se disse, pasme-se, que “o problema é o processo”. Jamais o problema será o processo. Ao revés, a questão não se põe dessa forma. O que importa é assegurar as garantias fundamentais, bem assim o tratamento equânime às partes, o respeito aos enunciados da Lei Maior, a paridade de armas entre acusação e defesa, a reverência que se há de conferir, de igual modo, tanto aos acusadores quantos aos defensores. Averbe-se, como cediço, que não há hierarquia entre juiz, acusador e defensor, a menos que um ou outro se transforme em déspota, ainda que supostamente esclarecido, o que é incompossível, pois os déspotas se aproximam muito mais do absolutismo do que da boa razão. Cabe à defesa jamais se intimidar, jamais se acovardar, jamais se acocorar, exigindo-se dela altivez, coragem e independência, reclamando, em alto e bom som, o mais completo respeito à sua relevantíssima função. Não nos esquecemos que Voltaire dizia que a única inveja que teria tido em sua profícua existência foi a de não ter sido advogado. Que tempos são esses?

Vem a lembrança o papel exercido pelos advogados no período do regime militar, com o Ato Institucional n. 5, supressão do habeas corpus, torturas, desaparecimentos, e muito mais de barbárie, com o rompimento e ruptura da ordem constitucional. Não será agora que toda essa luta vai se perder, em nome da eficácia repressiva. Para terminar e não nos alongarmos mais, vale conferir especial destaque ao que se lê na polemica decisão vergastada por todos quantos preservem os princípios mais elementares e fecundos do direito posto, assinalando os itens 793, 794, 795 e 796 da sentença que vem sendo festejada por muitos, mas criticada com veemência por mentes arejadas. O sentenciante precisa revisitar a obra de Montesquieu, lembrando-se que os poderes são três, não mais do que o Executivo, o Legislativo e o Judiciário, harmônicos e independentes. O Juiz do Paraná, depois de enaltecer medidas tomadas pelo ex-Presidente Luiz Inácio Lula da Silva em investimentos feitos na Polícia Federal e outros órgãos de controle, afirma, invadindo seara que não lhe compete, in verbis: “Algumas medidas cruciais, porém, foram deixadas de lado, como a necessária alteração da exigência do trânsito em julgado da condenação criminal para início da execução da pena, algo fundamental para a efetividade da Justiça Criminal, e que só proveio mais recentemente, da alteração da jurisprudência do egrégio Supremo Tribunal Federal (HC 126.292, julgado em 17/02/2016, e nas ADC´s 43 e 44, julgadas em 05/10/2016)” E agora surge a pérola, a enormidade, o equívoco em que incide o Magistrado que despreza Montesquieu, ao questionar, impropriamente, o acusado ex-Presidente da República, ao aduzir: “Isso poderia ter sido promovido pelo Governo Federal, por emenda à Constituição, ou por ele ter agido para tentar antes reverter a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal”. (sentença item 795) Melhor será que se olvide o que acaba de ser transcrito, pois ao cabo de contas desde quando compete à Presidência da República “tentar antes reverter a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal”? Cabe a cada qual e a cada um consultar sua consciência jurídica diante do teor da sentença condenatória, confrontando-a com o Estado Democrático de Direito.

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