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USO E ABUSO DA CONDUÇÃO COERCITIVA

USO E ABUSO DA CONDUÇÃO COERCITIVA Otavio Pinto e Silva *

A publicação da sentença proferida pelo juiz Sergio Moro no julgamento da ação penal movida em face do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva suscitou inúmeros debates no meio jurídico, tendo em vista a fundamentação utilizada para sustentar a condenação do réu pela prática dos crimes de corrupção e lavagem de dinheiro, no âmbito da denominada “Operação Lavajato”. No presente artigo, pretendo focar minhas reflexões em um ponto específico: as considerações adotadas na referida sentença acerca do instrumento da condução coercitiva, que está previsto no ordenamento jurídico para obrigar um cidadão a prestar depoimento perante um juiz, independentemente de sua vontade. No momento em que o Estado brasileiro estabelece o monopólio da atividade processual no campo penal, prevendo na Constituição que “não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal” (artigo 5º, inciso XXXIX), assume o dever, por meio do Poder Judiciário, de apreciar as diferentes situações da vida que envolvem a prática de delitos e, quando provocado, adotar somente os meios adequados (e previstos em lei) para solucionar as questões jurídicas trazidas para sua apreciação. Surge então a necessidade de debater o princípio do devido processo legal, como um compromisso político do Estado com seus cidadãos, previsto no artigo 5º, inciso LIV, da Constituição: “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”. Carlos Roberto Siqueira Castro explica que o princípio do devido processo legal é apontado como um dos mais antigos institutos da ciência jurídica, que despontou na Idade Média, atravessou os séculos e garantiu sua presença no direito contemporâneo com vigor renovado. No direito constitucional norte-americano experimentou profundas variações no tratamento jurisprudencial, culminando em significar novas condições no relacionamento do Poder Público com os indivíduos e a sociedade civil, condições essas que refletem a visão da pessoa humana e do mundo acerca da liberdade e da solidariedade social no Século XXI. O roteiro histórico do chamado “due process of law”, assim, demonstra a sua transformação de simples garantia processual a um princípio substantivo e limitador do próprio mérito das decisões estatais372 . Essas considerações são de extrema importância, uma vez que o processo precisa estar em perfeita consonância com a Constituição, que afinal de contas rege todo o direito que será aplicado na solução dos conflitos jurídicos e na punição aos que comentem delitos. Nesse sentido, leciona Ada Pellegrini Grinover:

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* Professor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo – USP e advogado membro do Conselho Estadual da OAB/SP. 372 CASTRO, Carlos Roberto Siqueira. O devido processo legal e os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade. Rio de Janeiro: Forense, 2010, p. 5/26

O direito processual não se separa da constituição: muito mais do que mero instrumento técnico, o processo é instrumento ético de efetivação das garantias jurídicas. Sobre os princípios políticos e sociais da constituição edificam-se os sistemas processuais, num inegável paralelo entre o regime constitucional e a disciplina do processo373 Com a inserção do princípio do devido processo legal no texto constitucional, o sentido que se lhe atribui é o de um direito fundamental do cidadão. Não é apenas dever do juiz velar pelo respeito às normas jurídicas processuais: é uma garantia assegurada ao jurisdicionado, ao lado de outros direitos fundamentais previstos na Constituição. Como explica Dalmo de Abreu Dallari, a Constituição é a declaração da vontade política de um povo, ela expressa solenemente o que se deseja para a organização e vida em sociedade.374

Vale dizer, então, citando Norberto Bobbio, que a norma do artigo 5º, inciso LIV, da nossa Constituição pode ser classificada como “categórica”, ou seja, aquela que estabelece certa ação que deve ser executada. Difere da norma “hipotética” (a que estabelece certa ação que apenas deve ser executada quando se verifica uma determinada condição). É uma norma categórica porque prescreve uma ação a ser executada ainda que sua inobservância não importe em qualquer sanção: a obediência ao comando normativo não depende de qualquer condição, ao menos quanto ao sujeito em relação a quem a norma é dirigida (o juiz)375 . Essa é uma das dificuldades do Direito: como lidar com os conceitos vagos ou indeterminados, a fim de lhes atribuir concretude. Segundo Karl Olivecrona, o objetivo de todas as disposições jurídicas, pronunciamentos judiciais, contratos e outros atos jurídicos é dirigir a conduta dos seres humanos. Desse modo, a linguagem jurídica é um meio para atingir esse fim, é um instrumento crucial para o controle e a comunicação social. As palavras podem estar carregadas de características emotivas ou volitivas, podem ter funções de signos ou realizativas; mas o propósito da linguagem jurídica é diretivo376 . No nos itens 67 a 77 de sua sentença, o juiz Sergio Moro busca expor os argumentos para sustentar a validade do procedimento por ele autorizado para a condução coercitiva do ex-Presidente Lula, embora reconheça “as controvérsias jurídicas” de sua adoção sem a intimação prévia do cidadão a ser conduzido. Alega, assim, que a medida se fez necessária porque alguns diálogos obtidos por meio de interceptação telefônica “sugeriam que o ex-Presidente e associados tomariam providências para turbar a diligência, o que poderia colocar em risco os agentes policiais e mesmo terceiros”. Acrescenta ainda que o tempo teria mostrado que a medida era necessária, pois houve tumulto no aeroporto de Congonhas, para onde o ex-Presidente foi conduzido

373 GRINOVER, Ada Pellegrini. Os Princípios Constitucionais e o Código de Processo Civil. São Paulo: José Bushatsky Editor, 1975, p. VII. 374 DALLARI, Dalmo de Abreu. Constituição e Constituinte. São Paulo: Saraiva, 1982, p. 21/30 375 BOBBIO, Norberto. Teoria della norma giuridica. Turim: G. Giappichelli Editore, 1958, p. 240/241 376 OLIVECRONA, Karl. Lenguaje jurídico y realidad. Buenos Aires: Centro Editor de America Latina, 1968, p. 43/59

coercitivamente para prestar depoimento, “decorrente da convocação de militantes políticos para o local a fim de pressionar as autoridades policiais”. É verdade que a doutrina prevê a validade do uso do mandado de condução coercitiva com a natureza jurídica de medida cautelar pessoal restritiva da liberdade, podendo ser decretado em face da vítima (nos crimes de ação penal pública), de testemunhas e até do investigado ou acusado. Ocorre que as justificativas adotadas na sentença não se coadunam com a garantia constitucional do devido processo legal, uma vez que o próprio julgador reconhece que não houve intimação prévia para prestar depoimento e que tenha sido desobedecida pelo ex-Presidente. Com efeito, o artigo 8º da Convenção Interamericana de Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica) estabelece, dentre as chamadas garantias judiciais, que “toda pessoa tem direito a ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido anteriormente por lei, na apuração de qualquer acusação penal formulada contra ela, ou para que se determinem seus direitos ou obrigações de natureza civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer outra natureza”.377 Ora, se havia a necessidade de obter esclarecimentos acerca de questões fáticas que eram objeto de investigação ou apuração, bastava marcar dia e hora do depoimento e intimar o cidadão a comparecer perante o juiz. Apenas em caso de ausência ou recusa injustificada em atender a essa intimação é que se poderia adotar a condução coercitiva, pois se trata de uma das garantias judiciais assumidas pelo Estado brasileiro em relação aos seus cidadãos (e explicitada perante toda a comunidade internacional). Conclui-se, portanto, que a fundamentação adotada na sentença não nos convence acerca da imprescindibilidade do uso da condução coercitiva. O ato de força, que contou com ampla cobertura midiática, era completamente desnecessário e inadequado. Afinal de contas, uma suposta necessidade de segurança dos agentes policiais não pode jamais ser colocada acima das garantias individuais dos cidadãos, sem que isso represente uma ofensa ao princípio do devido processo legal.

377 Decreto nº 678, de 6 de novembro de 1992. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/anexo/and678-92.pdf, acesso em 20/07/2017

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