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DA VIOLAÇÃO DO ACUSATÓRIO AOS ABUSOS PROCESSUAIS E MORAIS: QUANDO O INDEVIDO PROCESSO LEGAL ENCONTRA A CRENÇA MESSIÂNICA

DA VIOLAÇÃO DO ACUSATÓRIO AOS ABUSOS PROCESSUAIS E MORAIS: QUANDO O INDEVIDO PROCESSO LEGAL ENCONTRA A CRENÇA MESSIÂNICA Rafael Fonseca de Melo *

I – Dos princípios (e suas violações) e da busca da verdade real

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O método utilizado na busca da verdade, tarefa esta atribuída ao processo penal, dispõe as normas a prestar-se principalmente a este objetivo: desnudar e desvendar o absconso como condição necessária ao exercício estatal do monopólio punitivo. Se a justiça é o paradigma do direito penal, a verdade é o paradigma do direito processual penal e se torna pressuposto imperioso (mas, naturalmente, insuficiente) da justiça – sendo o fracasso desta a frustração sintomática daquela382. O respeito a outros modelos historicamente concebidos e realizados, com base no esquema epistemológico de identificação do desvio penal oriundo do garantismo baseado nos princípios constitucionais, assegura o máximo grau de racionalidade e confiabilidade do juízo, a fim de limita-lo quanto ao exercício do poder punitivo e evita, com isso, arbitrariedades383 . A ânsia pela obtenção da realidade por meio de reproduções e representações e a utilização de mecanismos espúrios para, muitas vezes, serem úteis a ratificar a prévia e subliminar disposição de fazer prevalecer interesse ou sentimento pessoal, resulta em intromissões desmedidas na esfera privada individual. As agências policiais e seus serviços secretos ditos “de inteligência”, ao violarem dados sigilosos e a privacidade sob o argumento de se chegar à verdade dos fatos384, adotam a indiferença quanto ao sacrifício de direitos oriundos de conquistas históricas e argumentam a necessidade de controle e o temor a delinquência – interferências que criam um novo direito de intervenção385 e se justificam sob as mesmas premissas da sociedade de risco (Beck) e suas ameaças de crise financeira mundial, corrupção, danos ambientais, imigrações incontroláveis, violência juvenil e menores infratores, terrorismo e crime organizado, desemprego e guerras 386. A criação do pânico por meio desse discurso, assim, desencadeia uma incontrolável e desesperada crença nestas instituições e a aceitação acrítica da necessidade de controle tem por consequência natural a crescente confiança que suas promessas de combate a esses males serão cumpridas, coagindo a anuência coletiva da violação de garantias para assegurar que a desejada verdade será alcançada

* Mestre em Direito Penal pela UFPE. Especialista em Direito Penal e Criminologia pelo ICPC/PR. Professor da Faculdade Damas e do Centro Universitário Estácio Recife. Advogado Criminal. 382 HASSEMER, Winfried. Verdad y búsqueda de la verdade em el proceso penal. México, D.F.: Ubijus, 2009. p.10-11. 383 FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014. p. 38. 384 Sintagma utilizado recorrentemente e que traz uma redundância irresolúvel: como fatos (eventos reais), devem necessariamente guardar íntegra relação com a verdade. Falsas são as representações ou versões que deles se apresentam, não parecendo possível, em oposição, uma inverdade fática ou uma verdade inocorrida. 385 HASSEMER, Winfried. Verdad y búsqueda de la verdade em el proceso penal. México, D.F.: Ubijus, 2009. p.13. 386 HASSEMER, Winfried. Verdad y búsqueda de la verdade em el proceso penal. México, D.F.: Ubijus, 2009. p.13.

– assemelhando-se a um bêbado que, na noite em que perde as chaves de casa, as procura apenas debaixo do poste porque só ali há luz387 . Da análise da sentença que ora se analisa, vê-se o perigo provocado pela substituição das garantias do devido processo penal pelo novo, equivocado e inconstitucional direito de averiguação (e seus promíscuos instrumentos que são utilizados de maneira corrompida e irreversivelmente invasiva) criado pelo magistrado que aquela subscreve e que revela consequências devastadoras. A maior fonte delas é originada no desvirtuamento principiológico de direitos, tais como à privacidade – que, lastreada na má hermenêutica acerca da possibilidade (e não necessidade) da publicidade de atos processuais, é útil a execrar publicamente a dor do indivíduo e expô-lo abertamente em sua intimidade – e afetos à sua personalidade – quando os expedientes como a condução coercitiva388, as buscas e apreensões389, as quebras de sigilo390 e a divulgação de áudios oriundos de interceptações telefônicas391 que devassam a intimidade acabam por alcançar, além da vida privada do acusado, a esfera instransponível e indisponível dos seus familiares e amigos, estranhos ao objeto de acusação. A revelação da indiscriminada utilização destes meios na famigerada busca da verdade aqui referida escancara a forma desumana como o acusado é, não raras vezes, visto e tratado no processo penal brasileiro: sua objetificação estratégica (que pretende anulálo como sujeito de direitos – cujo exercício tem como porta de entrada o sublime e intocável direito de defesa em sua plenitude392) reduz as possibilidades trazidas pelo contraditório e corrompe sua condição presumida de inocente. A pena criminal, assim como sua ensejadora acusação – que, por si só, já consiste em aflição não passível de restituição – são medidas de caráter estritamente pessoal, devendo-se evitar as

387 HASSEMER, Winfried. Verdad y búsqueda de la verdade em el proceso penal. México, D.F.: Ubijus, 2009. p.13. 388 Item II, subitem II.1, pontos 72 e 73 – p. 16. Observe-se que, nestes itens, o magistrado confessa o conhecimento, em suas palavras, das “controvérsias jurídicas” quanto ao uso da condução coercitiva sem intimação prévia, mas afirma ser a medida “necessária” para “(...) evitar riscos aos agentes policiais que realizaram a condução e a busca e a apreensão na mesma data” – não sendo, portanto, prevista em lei tal finalidade para a aplicação da medida extrema e subsidiária, posto não ter sido o conduzido recalcitrante. Tal medida deve respeitar, imprescindivelmente, a antecedência lógica de diligência probatória coarctada. O desvirtuamento acaba por ser mais grave, considerando que os pontos 74 e 75 pretendem castigar a solidariedade e limitar a natureza do apoio popular recebido, obrigando os aderentes, nas palavras do julgador, a serem cúmplices da criminosa condução. Mais que isso: exigindo que apenas quem sofre a agressão pode reprova-la e reprimindo a universalidade dos direitos fundamentais. 389 Item II, subitem II.1, pontos 78 a 82 – p. 16-17. Aqui os argumentos são ainda mais inaptos: no item 82 o sentenciante diz compreender o sacrifício de quem as sofre, mas diz se tratarem de “medidas de investigação rotineiras no cotidiano das investigações criminais”. 390 Item II, subitem II.1, pontos 84 a 90. 391 Item II, subitem II.1, pontos 91 a 94. O item 92 traz uma inversão da lógica acerca do sigilo e da sua quebra. Diz o magistrado que os áudios publicizados são mais relevantes (a que?) para a investigação do que os preservados. 392 No Item II, subitem II.8, ponto 184, há uma afirmação intrigante: ao pretender dar significado restrito ao indiscutivelmente ilimitado e nomeadamente amplo direito de defesa, o magistrado sentenciante escancara o espírito cerceador – o que fica evidenciado dentre outras expressões ao longo do texto, quase sempre hostis e que objetivam desqualificar o trabalho dos defensores e suas atuações na qualidade de advogados dos acusados.

consequências dessas medidas que afetem a terceiros393. A necessidade da permanente lembrança do princípio garantidor da personalidade se evidencia com as associações desqualificadoras tais como a proteção de dados/proteção de criminosos, bem como pela tentativa de limitar as proteções individuais aos fins elegíveis ao bel-prazer de quem o viola394 . Os limites legais são claros, não subsistindo o argumento de que a não-utilização implica em não-violação dos direitos fundamentais395. Quando a quebra do sigilo telefônico foi autorizada e posteriormente utilizada396, deve-se indagar se fora utilizada em ultima ratio397. É certo que a imparcialidade do magistrado pode ser analisada sob vários prismas: desde o pessoal até o ideológico. Não menos certa é a afirmação de que a emissão de opinião prévia sobre a matéria submetida a julgamento evidencia o entendimento acerca do tema-objeto da ação e, se por um lado aponta qual o caminho que será percorrido por entende-lo mais coerente, por outro demonstra a maior dificuldade do defensor duplamente precisar provar o que não ocorreu e, ainda, que o julgador está equivocado no tocante às convicções pessoais acerca da autoria/participação em um fato inexistente. A bem da verdade, o pretenso novo processo penal398 que se apresenta tem por objetivo declarado399 pelos seus componentes mudar a realidade brasileira por meio de condenações – tendo, para isso, usurpado a existência de outros juízos de igual competência jurisdicional que, por força do receio em ver resultado decisório diverso do pretendido e evidenciado por esta crença, levou-o egoística e prepotentemente a corromper as previsões legais acerca da determinação desta alçada. A preocupação existente em desvencilhar o conteúdo da decisão das suas motivações e interesses pessoais400 também revela inequivocamente a vontade de evitar novas suspeitas oriundas de pontos obscuros futuros – sobretudo em relação às impossibilidades resultantes da conclusão da decisão. Ora, é natural a preocupação em justificar desconfiança pretérita, não se explicando a manifestação que sugere a

393 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Manual de Direito Penal Brasileiro. São Paulo, Revista dos Tribunais, 2013. p. 164-165. 394 HASSEMER, Winfried. Verdad y búsqueda de la verdade em el proceso penal. México, D.F.: Ubijus, 2009. p.14. 395 No Item II, subitem II.1, pontos 107 a 109, o magistrado utiliza argumentos de que as provas obtidas por meio da interceptação de escritório de advocacia, por não terem sido selecionadas pela autoridade policial ao considera-las irrelevantes, não constitui violação à inviolabilidade profissional. 396 Item II, subitem II.1, pontos 95 a 127. A questão aqui é mais complexa, porque envolve a (i)legalidade da prova. A lei nº 8.906/94 (Estatuto da Advocacia e da OAB), em seu art. 7º, II e II, confere proteção ao advogado em sua atuação profissional. 397 Entendimento do STJ (HC 130.054/PE, HC 56.967/SP, RMS 11.627/SP) 398 Melhor seria denominar “a nova forma de se fazer processo penal”, considerando esse modelo praticado na 13ª Vara Federal de Curitiba. 399 Note-se que em todas as citações acerca das exceções de competência opostas (Item II. Fundamentação, subitem II.1, pontos 51 e 52) são feitas menções às participações do magistrado sentenciante em palestras e cerimônias, bem como o conteúdo de suas considerações em textos jurídicos publicados em revistas especializadas. Tais mostras patentes de imparcialidade demonstram sua fé no combate à corrupção – conduta que impõe oposição, que por sua vez implica em contestação e ataque –inimaginável de quem se exige inércia e isenção. 400 Item II, subitem II.1, pontos 54 e 55.

desvinculação com as pretensões políticas futuras do acusado. Insinuar as exceções opostas como estratagema defensivo401 é, neste sentido, curioso, para dizer o mínimo. A carga normativa que justifica os atos de ingerência sobre direitos fundamentais se justifica pela importância existente, por exemplo, do direito à intimidade, da inviolabilidade de domicílio e da presunção de inocência. Os argumentos com requinte de tecnicidade utilizados na decisão analisada, nada obstante todos os esforços, em nenhum momento se apresentam convincentes. O dilema oriundo da fundamentação baseada em versões apresentadas por colaboradores402 – sobretudo nos moldes feitos – revela um fracasso na lógica estrutural processual: a desconfiança geral permanente nesta prova403 e a prescindibilidade sistemática da busca da verdade que ameaça, inclusive, a própria culpabilidade, além de violar o já usurpado princípio da publicidade (os termos e a essência dos acordos permanecem sob sigilo – sendo essa, inclusive, uma condição para sua celebração). A vulnerabilidade da busca da verdade é amplificada com os acordos de colaboração premiada porque esta mesma evita a procura criteriosa daquela (portanto, mais trabalhosa) com o seu reducionismo procedimental. A partir de uma versão apresentada (e que aponta culpa, pois as indicativas de inocência são irrelevantes) ignoram-se todas as demais divergências e evidências em contrário, sendo o acusado julgado por uma substituição da verdade pela conciliação entre acusador e terceiro estranho à acusação. Há um outro grave equívoco do julgador na decisão analisada: os limites de desempenho da defesa não são determinados pelo magistrado, nem tampouco pode este cercear o seu âmbito de atuação com a justificativa de que o resultado absolutório anistia a tirania, como visto ao longo da sentença404 – ignorando o juiz a possibilidade de reforma da decisão pela via recursal da acusação que, insatisfeita no tocante às absolvições, ofereceu apelação. A desenfreada busca da verdade a qualquer preço rompe e relativiza princípios que constituem a essência do ordenamento jurídico, não respeitando limites impostos a garantir direitos nas esferas da intimidade, do exercício livre da profissão, da propriedade e da inviolabilidade de domicílio. Garantias não são obstáculos que devem ser superados, mas, antes de tudo, respeitados. A verdade judicial emitida nesta sentença em nada se confunde com a verdade (real), sendo inidônea a fundamentar, como pretendido, a condenação – seja pela utilização de porções incompletas da realidade, seja pela utilização da dúvida em prejuízo do condenado e provocada pelos erros, reduções e distorções utilizados na valoração das provas apresentadas e produzidas. O resultado obtido na sentença analisada não é adequado para representar

401 Item II, subitem II.1, pontos 57, 58 e 65. 402Item II, subitem II.9, pontos 247 e 248 – p. 43. Também Item II, subitem II.9, pontos 252 – p. 44. Notese que, nestes itens, o magistrado uma vez mais confessa o conhecimento do que ele denominou de “polêmicas” quanto às colaborações premiadas. Contradiz-se, no entanto, quando afirma serem exigidas provas de corroboração para utiliza-la (item 248) e, logo a seguir (ponto 249), revesti-la de unicidade quanto à possibilidade de elucidação de crimes complexos. Ora, se é a colaboração premiada a única prova possível para o esclarecimento de crimes labirínticos, como dito, não houve corroboração de outras provas, como justificado. 403Desconfiança esta que não ignora o magistrado no Item II, subitem II.9, ponto 255, in verbis: “Ainda muitas das declarações prestadas por acusados colaboradores precisam ser profundamente checadas, a fim de verificar se encontram ou não prova de corroboração” 404Item II, subitem II.8, pontos 220-222. Também Item II, subitem II.8, ponto 226.

de maneira fidedigna a correspondência com o objeto da acusação, por serem patente e demasiadamente seletivo. A sentença penal aqui analisada é suficiente se considerados os fragmentos da realidade elegida, mas irresistível à determinação histórica e ao prognóstico obtido por meio da análise da recente experiência brasileira, onde a livre valoração da prova é resposta às regras rigorosas próprias do processo inquisitorial. Assim, a valoração da prova é livre na medida em que atende à convicção do juiz, mas desde que respeitadas as regras atinentes ao seu oferecimento e não as regras próprias externas instituídas405 – o que corrobora a tese de que a tortura é produto de um sistema probatório rigoroso, pois a sua utilização como elemento de prova é sempre acompanhada pela convicção do juiz. A conclusão que se chega não podia ser outra: a condenação do acusado, baseada na convicção do magistrado sentenciante, pode não ter se dado diretamente com o uso da tortura ao réu – nada obstante a utilização a alguns dos demais acusadores colaboradores pela via da constrição de liberdade. Isso porque a denominada livre apreciação da prova em busca da verdade real torna-se um atalho, no instante em que utiliza o juiz de um procedimento argumentativo e racional para condenar o réu que não se conforma com os métodos legais, chegando a um resultado específico (condenação) sem serem assegurados os direitos ao acusado. Logo, a valoração dada às corrompidas provas não corroboradas baseou-se na igual corrompida representação da realidade, pois nesta análise dependem a apreciação e a metodologia da apreciação realizadas. O certo é que enquanto não for verificada a realidade com base nas normas da ciência empírica, não se terá uma autêntica busca da verdade – pois, acima disto, está o respeito ao conceito do devido processo, pois o que condiciona as autorizações probatórias é o que indica o nível do respeito ao acusado e reflete a cultura jurídica de cada país.

405 HASSEMER, Winfried. Verdad y búsqueda de la verdad en el proceso penal. México, D.F.: Ubijus, 2009. p.14.

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