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PODER PUNITIVO E O DISCURSO MANIFESTO DO CASTIGO: UMA DECISÃO VERTICAL DE PODER
PODER PUNITIVO E O DISCURSO MANIFESTO DO CASTIGO: UMA DECISÃO VERTICAL DE PODER
Ruben Rockenbach Manente *
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O presente artigo objetiva analisar, a partir da perspectiva proposta pelo pensamento crítico no campo penal, a decisão proferida pela 13ª Vara Federal de Curitiba/Paraná, em 12 de julho de 2017, que julgou parcialmente procedente a denúncia apresentada pelo Ministério Público Federal, no âmbito da denominada “Operação Lavajato”, para condenar, entre outros, o ex-Presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva (a) por um crime de corrupção passiva (artigo 317 do Código Penal) pelo recebimento de vantagem indevida do Grupo OAS em decorrência do contrato do Consórcio CONEST/RNEST com a Petrobras; e (b) por um crime de lavagem de dinheiro (artigo 1º, caput, inciso V, da Lei número 9.613/98) envolvendo a ocultação e dissimulação da titularidade do apartamento 164-A, “triplex”, e por ser beneficiário das reformas realizadas (item número 944 da sentença penal condenatória). Registre-se, de início, que tal análise não pretende personificar as críticas da referida decisão judicial na pessoa do magistrado que prolatou dita sentença, mas sim, em atenção ao marco teórico que orienta nossa ação, questionar o discurso legitimador do castigo entendido como alicerce teórico oficial dos centros de sentido da pena criminal que serviu de base para a Justiça Federal do Paraná, enquanto agência judicial do sistema penal, para justificar a aplicação da pena de nove anos e seis meses de reclusão, em regime inicial fechado, pelos crimes de corrupção passiva e lavagem de dinheiro a Luiz Inácio Lula da Silva (item 948 da decisão). O poder punitivo é àquela faculdade que possui o Estado para punir quem comete um crime. Um modelo que representa uma decisão vertical de poder que não está disposta a solucionar os conflitos, ou seja, que não se propõe a evitar, reduzir, reparar ou restituir o dano provocado por alguém (apesar da estratégia midiática utilizada pela “ForçaTarefa da Lavajato” nos vender a ideia da possibilidade de eliminar a corrupção). Ao contrário, como regra, simplesmente se determina o encarceramento do criminalizado por um determinado tempo, ao passo que as condutas objeto de “combate” seguem ocorrendo normalmente (veja-se o exemplo das consequências da guerra às drogas e ao terror. Ou, ainda, o próprio impeachment da Presidenta Dilma Rousseff para “devolver” a governabilidade ao País). A grande “trampa” promovida pelo modelo punitivo é justamente ocultar aquilo que mais lhe interessa: o exercício da vigilância e do controle sobre todos nós. Apesar de seus discursos legitimadores (manifestos) afirmarem que a punição é a única saída para combater a emergência e o inimigo (a “corrupção” e o Partido dos Trabalhadores, respectivamente), o fato é que a própria narrativa serve como justificação para criar um estado de paranoia coletiva que autoriza o exercício ilimitado e desenfreado do poder punitivo (fim latente). Basta ver que todas as promessas de proteger a sociedade contra o inimigo e seus crimes não foram cumpridas pela coação estatal, ao revés, serviram de base para o aumento da restrição de liberdade, dos sujeitos criminalizados ou não, do aprofundamento da
* Doutor em Ciências Jurídicas e Políticas pela Universidad Pablo de Olavide – UPO (Sevilha/Espanha) e Professor de Direito Penal da Faculdade CESUSC (Florianópolis/Brasil).
verticalização social e da flexibilização das garantias constitucionais (vazamento seletivo de dados sigilosos e utilização irrestrita dos “acordos de cooperação premiada”, por exemplo). No entanto, apesar do incumprimento de todo o prometido, o poder punitivo segue existindo e cada vez mais se fortalece enquanto instrumento de regulação dos conflitos existentes no tecido social. O modelo punitivo não precisa “nos livrar do mal e dos pecadores” para acreditarmos em sua existência, ele existe porque nos dá esperança, porque com ele tudo fica mais fácil de resolver. Em sua eterna jornada pelo “grande sertão”437 Riobaldo já sabia dessas armadilhas do discurso ao tentar explicar a diferença entre Deus e o demônio para seu interlocutor, o forasteiro. Em um dos seus diálogos, o sertanista divaga: como não ter Deus?! Com Deus existindo, tudo dá esperança. Sempre um milagre é possível, o mundo se resolve. Mas, se não tem Deus, há-de a gente perdidos no vai-vem, e a vida é burra. Tendo Deus, é menos grave se descuidar um pouquinho, pois, no fim dá certo. O senhor não vê? O que não é Deus, é estado de demônio. Deus existe mesmo quando não há. Mas o demônio não precisa existir para haver – a gente sabe que ele não existe, aí é que ele toma conta de tudo.438
Nas palavras de Riobaldo, o poder punitivo não precisa funcionar para existir, nós sabemos que ele não funciona, mas aí é que ele toma conta de tudo, afinal, como conclui o personagem: “o diabo na rua, no meio do redemunho”.439 O modelo punitivo, quer no exemplo trazido da literatura, quer nos reflexos produzidos após os ataques de 11 de setembro nos Estados Unidos440, se transforma no motor das relações humanas, substituindo as ações democráticas e políticas enquanto gestoras do tecido social por um estado permanente de polícia com nítida tendência ao absolutismo. Tal aparelho canalizador da vingança é instrumentalizado pelo Estado através das agências do sistema penal que se ocupam do exercício do poder punitivo, atuando de forma específica ou inespecífica sobre ele. É que os discursos justificacionistas da pena são colocados em prática por várias agências/instituições judiciais do sistema penal (polícia, serviço penitenciário, tribunais penais, entre outros), em nosso caso específico, a 13ª Vara Federal de Curitiba/Paraná na ação penal número 5046512-94.2016.4.04.7000/PR que culminou com a condenação do ex-Presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva pelos crimes de corrupção passiva e lavagem de dinheiro. O componente institucional dos direitos, nos ensina Joaquín Herrera Flores, é muito relevante, pois toda instituição é o resultado jurídico, político, econômico e/ou social de uma determinada forma de entender os conflitos sociais. Por isso, “entendemos as instituições como espaços de mediação nos quais se cristalizam os resultados sempre
437 ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. 438 Idem, p. 76. 439 Idem, p. 27. 440Neste sentido: ZIZEK, Slavoj. Bem-vindo ao deserto do Real: cinco ensaios sobre o 11 de Setembro e datas relacionadas. Tradução de Paulo Cezar Castanheira. São Paulo: Boitempo, 2003.
provisórios das lutas sociais pela dignidade”441, sem esquecer, por certo, que falar de “instituição” é o mesmo que tratar das relações de poder que primam no momento histórico concreto em que vivemos. De forma idêntica, não podemos esquecer que o sistema penal é o conjunto das agências envolvidas com a questão criminal, isto é, sistema no sentido de um conjunto de entes e suas relações tanto recíprocas como com o ambiente, ou, no dizer de Zaffaroni, “que no se trata de un conjunto de órganos del mismo tejido que convergen en una función (…) cada una de estas agencias tiene sus propios intereses sectoriales”.442 Assim, cada agência tem seus próprios interesses setoriais e seus próprios controles de qualidade de suas operações, afinal, “tienen discursos hacia fuera, que resaltan sus fines manifiestos (oficiales) más nobles y discursos hacia adentro, que justifican para sus miembros la disparidad entre sus fines manifiestos y lo que realmente hacen (fines latentes)”. 443 Tais “interesses setoriais” estão claramente presentes na decisão condenatória objeto de análise, uma vez que seu discurso oficial (hacia fuera) de combate à corrupção (no item 961 da sentença penal o julgador utiliza o ditado “não importa o quão alto você esteja, a lei ainda está acima de você") legitima seu fim manifesto (hacia adentro) de exercício irrestrito do poder punitivo para justificar a procedência da acusação de que o ex-Presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva teria participado conscientemente do esquema criminoso, inclusive tendo ciência de que os Diretores da Petrobras utilizavam seus cargos para recebimento de vantagem indevida em favor de agentes políticos e partidos políticos (item 07 da decisão). A referida vantagem indevida teria sido corporificada na disponibilização ao exPresidente do apartamento 164-A, “triplex”, do Condomínio Solaris, na cidade de Guarujá/SP, sem que houvesse pagamento do preço correspondente (item 12) sob o argumento central de que “foi provado o esquema criminoso que vitimou a Petrobras e que envolvia ajustes fraudulentos de licitação e o pagamento de vantagem indevida a agentes da Petrobras, a agentes políticos e a partidos políticos” (item 835) e que, em dita articulação criminosa, “o ex-Presidente Luiz Inácio Lula da Silva tinha um papel relevante no esquema criminoso, pois cabia a ele indicar os nomes dos Diretores ao Conselho de Administração da Petrobras e a palavra do Governo Federal era atendida” (item 838). O conjunto probatório que conduz o magistrado à condenação se assenta, pasmem!, no fato de que: “parece, aliás, um pouco estranho que, diante da magnitude do esquema criminoso, ilustrado pelo fato da Petrobras ter reconhecido cerca de seis bilhões de reais em perdas contábeis com corrupção no balanço de 2015, não tivesse o ex-Presidente qualquer conhecimento, máxime porque ele, o esquema criminoso, também teria envolvido utilização de propinas em acertos de corrupção na Petrobras para financiamento de campanhas eleitorais, inclusive do Partido dos Trabalhadores e pelo qual o ex-Presidente foi eleito e elegeu sua sucessora” (item 801).
441 HERRERA FLORES, Joaquín. A reinvenção dos direitos humanos. Tradução de Carlos Roberto Diogo Garcia; Antonio Henrique Graciano Suxberger; Jefferson Aparecido Dias. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2009, p. 128-129. 442 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Manual de derecho penal. Buenos Aires: Ediar, 2011, p. 10. 443 Idem, p. 10.
A disparidade entre os fins manifestos e latentes do poder punitivo se projeta, mais uma vez!, na sentença condenatória no momento da realização da primeira fase da dosimetria da pena (artigo 59 do CP) do ex-Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em relação ao crime de corrupção passiva444, quando a pena-base é fixada em cinco anos de reclusão (3 anos acima do mínimo legal) em razão de três (dos oito!) “vetoriais negativos, de especial reprovação”, sendo um deles a “análise negativa a título de personalidade” (item 948). É dizer, apesar de os antecedentes criminais, a conduta social, os motivos e o comportamento da vítima serem favoráveis ao acusado (embora o termo usado na sentença tenha sido “neutro”) a pena-base é aumentada em três anos em total discrepância com as disposições da lei, da dogmática e jurisprudência. A sentença revela, pois, que o modelo punitivo é um instrumento discursivo que proporciona a base para criar um estado de paranoia coletiva que serve para aqueles que operam o poder o exercerem sem nenhum limite.
444 Punido com pena de reclusão de 2 a 12 anos e multa.