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A SENTENÇA CRIMINAL E AS TEORIAS AGNÓSTICAS

A SENTENÇA CRIMINAL E AS TEORIAS AGNÓSTICAS Sergio Francisco Carlos Graziano Sobrinho *

O tema proposto neste artigo é o conteúdo da sentença penal condenatória proferida nos autos da Ação Penal nº 5046512-94.2016.4.04.7000/PR que tramita na 13º Vara Federal de Curitiba, delimitado no aspecto de seu conteúdo probatório, isto é, entender os mecanismos pelos quais o magistrado sentenciante formou sua convicção e atribuiu ao Ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva a prática dos delitos de corrupção passiva e lavagem de capitais, condenando-o a uma pena de 9 anos e 6 meses de reclusão. O objetivo central desse artigo é percorrer, do ponto de vista dos fundamentos da sentença, quais conexões – princípio da correlação – foram estabelecidas pelo magistrado entre fatos, narrativa acusatória e as provas produzidas pela acusação e a efetiva condenação para, ao fim e ao cabo, minimamente, entender seu conteúdo finalístico. É importante analisar o ponto em que o magistrado utiliza argumentos para fundamentar seu convencimento, em especial de que Lula praticou ilícitos criminais por ter participado conscientemente do esquema criminoso em que Diretores da Petrobrás utilizavam seus cargos para recebimento de vantagem indevida em favor de agentes e partidos políticos e, além disso, teria também recebido, o próprio acusado, valores corporificados na disponibilização de um apartamento sem que houvesse pagamento do preço correspondente. Aqui reside um primeiro ponto que deve ser iluminado, evitando uma subliminar obscuridade, senão vejamos: a terminologia “disponibilização” é utilizada logo no início da sentença judicial, para que, ao final, haja compreensão, no senso comum, da correlação entre a imputação feita pela acusação (Ministério Público) e a sentença condenatória (Juiz). O argumento e sua forma de apresentação são sofisticados, mas é preciso atenção, pois o juiz se torna agnóstico em relação à própria lei, isto porque se posiciona de forma indiferente ao texto normativo, pois ignora e se exime da reflexão dogmática mínima, com o firme propósito de esgrimir seu argumento e adequá-lo aos elementos do tipo penal “corrupção”. A sofisticação do argumento está nesses dois pontos: a) não há um tipo genérico “corrupção”, mas dois tipos penais, a corrupção passiva (artigo 317 do Código Penal, praticada por funcionário público) e a corrupção ativa (artigo 333 do Código Penal, praticada por particular); b) ambos os tipos penais, corrupção passiva e ativa, não possuem a terminologia “disponibilização”, pois as ações previstas nos referidos tipos encerram 5 condutas: solicitar ou receber vantagem indevida e aceitar promessa de vantagem (corrupção passiva) e oferecer ou prometer vantagem indevida (corrupção ativa). Lula foi acusado pela prática de corrupção passiva, isto é, ele deveria ter solicitado ou recebido vantagem indevida, ou ainda, ter aceito promessa de vantagem indevida. Conforme a sentença, a empresa OAS teria deixado à disposição de Lula valores corporificados no apartamento tríplex, contudo ele disse “não”, pois até hoje esse apartamento não está no nome dele, nem ele é seu possuidor de fato.

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* Doutor em Direito, professor do PPG em Direito Ambiental da Universidade de Caxias do Sul (RS). E-mail: graziano@grazianoerizzatti.com.br

Cumpre destacar outra passagem histórica do artefato jurídico produzido naquele processo penal, a qual esclarece – do ponto de vista dogmático, mas não o ponto de vista político e ideológico da sentença – nosso debate no presente artigo. Vejamos: nos Embargos Declaratórios propostos pela defesa do Ex-presidente Lula, o juiz, instado a se manifestar sobre a prova dos autos e a relação entre a denúncia e a sentença, esclarece: “Este juízo jamais afirmou, na sentença ou em lugar algum, que os valores obtidos pela Construtora OAS nos contratos com a Petrobras foram usados para pagamento da vantagem indevida para o ex-Presidente”. Aos propósitos do presente debate, a decisão nos Embargos Declaratórios é reveladora, isto porque esclarece, por exemplo, que, se a OAS disponibilizou o apartamento triplex, reformado, mobiliado e decorado aos gostos da família do Ex-presidente Lula, isso seria suficiente para caracterizar o crime de corrupção (genérica, que não existe). Contudo, esta mesma sentença também reconhece, por exemplo, i) que a Petrobrás não teve prejuízo com os contratos firmados com a empresa OAS; ii) que os valores recebidos pela OAS em razão dos contratos (lícitos) firmados com a Petrobrás não serviram para pagamento de vantagem ilícita ao Ex-presidente Lula; iii) que o Ex-presidente Lula não cometeu o crime de corrupção passiva, pois este crime exige que o funcionário público solicite, receba ou aceite promessa de vantagem ilícita, contudo, como visto, nada disso existiu. Por fim, do ponto de vista dogmático, cabe ainda esclarecer que, se os dirigentes da empresa OAS disponibilizaram o apartamento triplex com alguma finalidade ilícita, estes poderiam ter cometido algum crime, contudo não é automático, nem obrigatório, que o suposto beneficiário a quem teriam disponibilizado o apartamento tenha cometido o crime de corrupção passiva, isto porque a existência de um crime não pressupõe, obrigatoriamente, a existência do outro. Oferecer (corrupção ativa) dinheiro ao policial para evitar multa de trânsito, não significa, automática e obrigatoriamente, que o policial cometeu o crime de corrupção passiva, pois esta somente ocorreria se, e somente se, o policial houvesse recebido o valor ofertado. Cabe, para finalizar, algumas reflexões sobre os pontos aqui levantados. De forma bem evidente é preciso dizer, em primeiro lugar, que este é apenas um ponto de vista sobre um conto de uma longa sentença. Longa sentença, que é menor de conteúdo e maior de ostentação. De forma profunda, ela é rasa. Em sua completude, ela é vazia. Foi uma tentativa de obra, mas não passou de um rascunho. Pretendeu ficar registrada, conseguiu entrar para o lixo da história. Não agregou, mas dilacerou corpos e mentes. Estará proscrita em breve. Possivelmente será rapidamente esquecida, basta que alguns semoventes lhe dê o coice que merece. Tentar apagar o brilho de uma estrela é a praga rogada por quem nas trevas reside, ou, como diz Márcia Tiburi o juiz de Curitiba é mais um “sem brilho próprio” que sobrevive tentando apagar o alheio”. A sentença condenatória proferida contra o Ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva pode ser analisada por diversos outros aspectos, inclusive o psicanalítico, em especial seu conteúdo narcísico, não fosse nosso cenário de ódio contra as classes sociais menos favorecidas. Certamente esta decisão judicial veio no bojo do excesso democrático que transbordou o cálice e a autorizou por aclamação pública, ainda que esta tenha sido manipulada numa espécie de inconsciente coletivo completamente embriagado.

A criação de um novo elemento típico no cenário da dogmática penal é absurda, contudo o pensamento utilitarista em que os fins justificam os meios, está na lógica do transbordamento da água contida no cálice. Este é um dos vetores mais frequentes no sistema de justiça criminal, os quais indicam o baixo grau de democratização de uma sociedade, em especial porque a frequente inobservância das violações às garantias constitucionais fundamentais revelam a fragilidade institucional que vivemos e vivenciamos dia a dia. Na esteira do que diz João Ricardo Dornelles, “vivemos um grande desafio histórico. (...) O fascismo contemporâneo é infinitamente mais complexo e sofisticado”. Preparemo-nos, pois haverá um longo período histórico. É preciso resistir.

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