Caro leitor Expediente: Editor Camilo Belchior Jornalista Responsável: Cilene Impelizieri 5236/MG Jornalistas: Ana Cláudia Ulhôa Pâmilla Vilas Boas Projeto gráfico e coordenação gráfica Cláudio Valentin Seção Artigos Marcos Maia A iDeia Design é uma publicação da Editora PlexuDesign, patrocinada pelo Grupo Loja Elétrica / Templuz, com veiculação gratuita, não podendo ser vendida. Sua distribuição é feita para um mailing seleto de profissionais das áreas afins, ao design e formadores de opinião. Contato: contato@revistaideia.com
Sempre atenta ao processo de transformação do design, a primeira edição de 2018 da iDeia Design traz mais uma alteração em sua estrutura. Já fomos uma revista seriada, em edições de 2012 a 2015. Passamos pelas coletâneas em 2016 e nos rendemos ao digital em 2017. Para 2018, iDeia Design acompanha a tendência do hibridismo contemporâneo e da convergência, fazendo a junção de dois tipos de publicações de suma importância para quem valoriza a gestão do conhecimento: trata-se da revista/livro ou, como é mais conhecido em um contexto mundial, de magazinebook. Esse novo estilo de publicação traz o melhor de cada um: a profundidade de conteúdo de um livro, com a amenidade e fluidez de uma revista. Portanto, não teremos as tradicionais seções temáticas e, sim, um conjunto de matérias, entrevistas e artigos que giram em torno de uma temática ampla, preparadas por nossa fantástica equipe jornalística: Cilene Impelizieri, Ana Claudia Uhôa e Pâmilla Vilas Boas, além do trabalho gráfico primoroso de Cláudio Valentin. Nessa primeira edição, optamos por falar sobre uma temática que, particularmente, é um dos meus objetos de estudos, “a significação” no cerne do design, em suas múltiplas ramificações. Entrevistamos nomes nacionais e internacionais, conceituados nesse segmento: Donald Norman (design emocional); Vinicius Romanini e Renira Rampazzo (semioticistas); e Rafael Cardoso com o seu “design para um mundo complexo”, cada um trazendo sua visão e conceitos, dentro de suas expertises. Matérias muito interessantes, que abordam os processos da significação e que nos fazem refletir sobre nossa relação com o mundo tangível e intangível que nos rodeia. Como nosso público maior situa-se entre arquitetos e designers, trouxemos um projeto muito bacana, criado e desenvolvido em Belo Horizonte: o Mercado da Boca é uma proposta com significados completamente diferentes do que conhecemos. Vejam a análise semiótica social feita por Renato Caixeta e atentem para o projeto de iluminação que fez toda diferença! E, para reforçar nosso conteúdo, a seção “Artigos” traz dois textos que primam pela importância da narratividade do design com a designer e pesquisadora italiana, Silvia Crimaldi, e o cineasta brasileiro João Carlos Massarolo, ambos sob a curadoria do roteirista e pesquisador em linguagens, Marcos Maia. E, tem muito mais! Olhe no índice, leia tudo atentamente e desfrute desse trabalho que, como sempre, é feito com muito carinho por toda uma equipe de profissionais que se empenham em trazer o melhor da informação e conhecimento até vocês. Não deixe de visitar nossa página e redes sociais: revistaideia.com
Boa leitura. Camilo Belchior
RevistaiDeiaDesign
revistaideia_design
Foto: divulgação Katerina Kamprani
Índice 06 O absurdo nos faz pensar
14 Para comer com a boca e os olhos 22 Design, desígnio, desejo / Entrevista com Renira Rampazzo
28 Repensando o design em um mundo complexo /
Entrevista com Rafael Cardoso
36 O manipulador de signos /
Entrevista com Vinicius Romanini
40 Design com significado /
Entrevista com Donald Norman
48 Objetos que contam história 54 Uma pincelada de vida 58 Artigos
59 Narrativas no Design /
Artigo baseado no projeto “Design for Narrative Experience”, de Silvia Grimaldi
63 Design Ficcional e a Construção de Mundos Transmídia /
Por João Massarolo
68 Espaços que conectam
74 Alegria rítmica e felicidade colorida 80 Uma fonte para a inclusão
84 Mercados municipais: lugar de encontros e tradições 94 Aravrit: um alfabeto para a coexistência
Donald Norman
O absurdo nos faz pensar Designer cria objetos desconfortáveis para repensar a função em nosso cotidiano Por Pâmilla Vilas Boas
A arquiteta e designer grega, Katerina Kamprani, criou a coleção “The Uncomfortable”, uma série de objetos desconfortáveis.
A filha do imperador Constantino VIII, de Constantinopla, trouxe, em meados do século XI, o garfo para a Europa. O artefato foi muito contestado pela Igreja, pois se assemelhava ao objeto utilizado pelo Diabo em suas representações clássicas. Além disso, até então, os alimentos eram comidos com as mãos, o que significava natureza e era percebido como um ato divino.
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O utensílio foi então proibido pelo clero. A partir do século XV, o garfo voltou a reaparecer e se tornou popular na Itália. Henrique III da Inglaterra criou o garfo individual como uma possibilidade mais higiênica, mas, foi a partir do século XVIII, que se tornou um símbolo de luxo, apreciado até mesmo pelos padres. Nesse período, o significado se inverteu e comer com as mãos passou a ser muito mal visto pela sociedade. Na cultura ocidental, o garfo passou a condensar o significado de uma boa alimentação.
Fotos: divulgação Katerina Kamprani
Já o hashi começou a ser usado 2.500 anos antes de Cristo e foi o principal elemento para o desenvolvimento da cultura culinária oriental, que se adaptou para ser consumida por esses palitinhos. É por isso que os alimentos são cortados de forma que possam ser facilmente segurados e há quem diga que é mais higiênico do que o garfo. A grande regra de conduta para esse objeto é a delicadeza e como tal não deve jamais perfurar os alimentos, o que é visto como uma grande grosseria pelos orientais. A arquiteta e designer grega, Katerina Kamprani, explica que, se compararmos o garfo ocidental com o pauzinho (hashi) oriental, poderíamos potencialmente descobrir os valores subjacentes das duas culturas. O garfo como uma ferramenta pontiaguda agressiva para perfurar e remover a comida e os pauzinhos, com
uma abordagem mais elegante, e não abrasiva para a alimentação consciente. "Se o design é visto como uma solução para problemas e questões, então, as questões colocadas e, portanto, os objetos gerados, têm tudo a ver com os valores e o processo de pensamento de uma cultura", ressalta. E, foi assim, estudando as histórias dos objetos e percebendo seu impacto em nosso dia a dia, que a designer criou a coleção "The Uncomfortable", uma série de objetos desconfortáveis que criam um curto-circuito em nossa mente. A designer analisou cuidadosamente a função pretendida de cada objeto e, em seguida, descobriu a melhor maneira de distorcer seu significado a partir da ruptura da relação entre forma e função. O mais emblemático dos objetos criados por ela é, justamente, o garfo. Um artefato com um design incrível, mas incapaz de perfurar os alimentos, tornando-o impossível de ser utilizado. Outra variação é o garfo com haste flexível, ao mesmo tempo impecável e agonizante. "Sempre percebi o garfo em grupo com a colher e a faca, mas o garfo é uma adição muito recente em utensílios de mesa! Tornou-se popular por volta do século XVIII e eu o percebo como um produto inovador do passado recente", relata. A coleção surgiu de um questionamento e desapontamento de Katerina com
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as teorias sobre inovação no design. A partir de então, ela decidiu se concentrar em objetos comuns e, muitas vezes, subestimados por nossa percepção cotidiana. "Tenho um processo para cada objeto que desenho. Tento analisar o objeto e pensar em ideias para sabotar passos simples na interação do usuário com ele", ressalta.
Significação como um processo criativo Uma cadeira vermelha com traços simples e um design encantador. O que seria um objeto de desejo traz, ao mesmo tempo, uma repulsa. Os pés desnivelados causam surpresa ao espectador. O objeto comum torna-se, instantaneamente, estranho à nossa percepção. A Uncomfortable Chair #2, de Katerina, traz uma ruptura do objeto com seu significado. Ela cria ainda um empecilho à lógica aparentemente direta entre encosto, assento, pernas, cadeira e a ação de sentar.
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"Os objetos desconfortáveis realmente criam um curto-circuito no cérebro. Está na percepção e funciona como uma piada visual. O cérebro é, inicialmente, enganado. Percebe um objeto conhecido comum e, em questão de segundos, entende que algo está errado. Esse truque não funcionaria com objetos complexos ou obscuros, portanto, a natureza do projeto está na simplicidade e na comunalidade dos objetos", ressalta. Katerina acredita que o design cria objetos que já estão conectados a um conceito, assim como a cadeira, como uma ferramenta para descansar nossos corpos, está conectada ao conceito de sentar. "Outros significados também podem ser somados ao objeto, mas isso pode ser por inúmeras razões sociológicas, culturais ou econômicas. No The Uncomfortable, uso objetos que já têm uma conexão muito estabelecida com um conceito comum de uso e, ao quebrar isso, aprimoro a consciência do significado original do objeto", revela.
Fotos: divulgação Katerina Kamprani
Narrativas do design A designer explica que, no início, o projeto era também um exercício mental e uma forma de entreter. Foi depois que ela percebeu as inúmeras interpretações que seus objetos criavam no público. "Mas, para mim, o maior impacto foi que comecei a apreciar o design de objetos simples do dia-a-dia e espero que isso também se traduza no espectador", ressalta.
O absurdo é apenas outro modo de pensar,
Ela explica que seus objetos foram criados primeiramente em projeto 3D. Posteriormente, ela decidiu construir protótipos a partir de um convite para uma exposição individual no Zagreb Design Week, em 2017, na Croácia. "Meu objetivo era produzir objetos que parecessem feitos em massa, em uma fábrica. Colaborei com muitos artesãos diferentes, como oleiros, madeireiros e carpinteiros. Para alguns dos itens usei métodos como impressão 3D e alguns deles foram feitos à mão ou finalizados por mim", explica.
artístico, comercial e até científico. Eu,
avalia Katerine. Ela percebeu a potência de seu projeto em sua primeira exposição individual, na Croácia. As reações foram muito diversas, mas chamou a atenção dela como as crianças riam e faziam gestos, como se estivessem tentando usar os objetos. "Em geral, o projeto foi muito bem aceito. Provou ter valor educacional, realmente, não tinha ideia de que isso aconteceria e, se alguém me dissesse, anos atrás, não acreditaria!", avalia. O absurdo pode também ser mais libertador que a lógica. E, o lúdico tem um grande poder em nossas percepções. Para Katerina, pensar de forma absurda traz infinitas e inesperadas possibilidades de significados entre conceitos. "Algo que não segue as regras esperadas e que
“Chain Fork” é um dos objetos inconvenientes criados pela designer
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“Waterfall teapot”, “engagement mugs”, “broom”, “thick set” e “watering can” são exemplos de objetos que criam um curtocircuito em nosso cérebro.
abre novos caminhos em nossos cérebros", completa. O designer e ilustrador Henrique Eira, mestre em Design Gráfico pela California Institute of the Arts e especialista em interfaces poéticas e design especulativo, considera o The Uncomfortable como um projeto de design especulativo, na medida em que não visa solucionar um problema ou desempenhar algo com viés utilitarista, mas sim gerar provocações e estranhamento. "Acredito que o projeto, a partir da sua materialidade, chama a atenção não só para o fazer do designer, mas para as nossas funções cotidianas", avalia. Se a frase "defina um problema antes de definir o design" já foi muito ouvida pelos profissionais da área, o que imaginar quando o próprio design é o que gera o problema. Criando objetos problemáticos, Katerina, implicitamente, também critica o impacto do design em nossa sociedade.
Fotos: divulgação Katerina Kamprani
Henrique explica que o termo design especulativo, do inglês "Speculative Critical Design" é uma abordagem de design que não pretende solucionar problemas (como o design foi muitas vezes definido ao longo da história), mas, sim, gerar provocações e conversas na sociedade. Outro ponto importante é a questão da materialidade. "Design (crítico) especulativo tem a ver com gerar provocações a partir da forma, e não das palavras", aponta. Rafael Cardoso, no livro “Design para um mundo complexo”, explica que a visão de que "forma" e "função" seriam o cerne das preocupações do designer, persistiu por bastante tempo. Em âmbito internacional, ela começou a ser questionada na década de 1960, paralelamente ao surgimento da contracultura. "No Brasil, ela permaneceu dominante até a década de 1980, apesar dos esforços de alguns
rebeldes. Até hoje, perdura o vício entre designers e arquitetos brasileiros de falar em ‘funcionalidade’” (CARDOSO, 2011, p. 16).
Design crítico Os “United Micro Kingdoms” (UmK) são divididos em quatro partes habitadas por diferentes grupos: digitarianos, bioliberais, anarcho-evolucionistas e comunonuclearistas. Essa ficção de design, criada pelos designers Anthony Dunne e Fiona Raby e encomendada pelo Museu de Design de Londres, apresenta um futuro fictício para o Reino Unido. Nesse mundo possível, a Inglaterra é transferida para quatro condados autônomos, cada um livre para experimentar governança, economia e estilo de vida. Esses “laboratórios vivos” questionam o impacto cultural e ético das tecnologias e como elas alteram a maneira como vivemos. Os digitarianos dependem da tecnologia digital e de todo o seu totalitarismo implícito: marcação, métricas, vigilância total, rastreamento, registro de dados etc e sua sociedade é organizada inteiramente pelas forças de mercado. Já a sociedade comuno-nuclearista utiliza a energia nuclear para fornecer energia ilimitada e o Estado provê tudo o que é necessário para a sobrevivência. Embora ricos, ninguém quer viver perto deles, devido às constantes ameaças de ataques ou acidentes. Os anarcoevolucionistas abandonaram a maioria das tecnologias e se concentraram na ciência para maximizar suas capacidades físicas. Já os Bioliberals abraçaram totalmente a biotecnologia, levando a um cenário tecnológico radicalmente diferente do nosso. Nesse projeto, os designers Anthony Dunne e Fiona Raby utilizaram elementos do design industrial, arquitetura, política, ciência e sociologia para provocar o 11
Fotos: divulgação Katerina Kamprani
The Uncomfortable Wine Glass
debate sobre o poder e o potencial do design na atualidade. Eles foram também os responsáveis por cunhar o termo "Speculative Critical Design", no livro “Speculative Everything”, de 2013. Henrique explica que o termo é, de certa forma, uma expansão do "Critical Design" que aparece no livro "Hertzian Tales" de Anthony Dunne, em 1999. "Os autores deixam claro que não se trata necessariamente de uma prática ou abordagem nova, mas sim de dar um nome para um tipo de prática em design que eles já observavam há algum tempo", ressalta. Henrique Eira explica que, como o termo é novo, ainda há pouco estudo a seu
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respeito, particularmente no Brasil. A maior parte dos debates acontecem nos Estados Unidos e Europa. Ele acredita também que essa centralização das pesquisas e projetos no hemisfério norte contribui para uma dificuldade de entendimento comum sobre o termo. "Outra questão que vejo é a associação do termo com temas como ficção científica ou arte. Esses temas, de fato, se relacionam com o design especulativo em alguns pontos, mas não o esgotam e, muitas vezes a mistura desses conceitos também pode dificultar ou limitar o entendimento de todo o potencial do design especulativo", completa. Se nós criamos as ferramentas e elas nos recriam, o que aconteceria na era do transporte instantâneo e ilimitado? O
“Teleport city” é uma exposição de arte e tecnologia para pensar em como seria um mundo onde todos tivessem acesso ao teletransporte. A exposição da arquiteta Gabriela Bilá mistura várias linguagens: arquitetura, arte, ilustração, mecatrônica, videoarte mapping para explorar o mundo futurista. A partir disso, ela discute se o teletransporte solucionaria todos os problemas de mobilidade urbana, hoje um dos principais desafios de sua prática na arquitetura, ou nos traria problemas antes não imaginados. A exposição foi inaugurada em novembro de 2017, no Museu da República, em Brasília. Para Rafael Cardoso, o que importa, em termos de design, é que a capacidade das formas de comunicar informações à mente humana é muito mais profunda e abrangente do que um conjunto de significados impostos pela fabricação, distribuição e consumo. "A plena compreensão dessa sequência já é uma tarefa e tanto! Se juntarmos a ela a dimensão biológica e psicológica dos fatores condicionantes da percepção, estaremos diante de uma escavação de profundidade geológica" (CARDOSO, 2011, p.141). Se é nessa profundidade de nossas percepções que o design também
atua, por que não brincar com os sentidos e provocar reações diversas para além de uma possível solução de problemas? É nessa interface que o design crítico ou especulativo aponta para mundos possíveis, imaginados ou não. Henrique explica que o estranhamento que essa abordagem de design provoca tem a característica de deslocar o espectador do seu cotidiano e permitir novas leituras e atribuições de significados para a vida. Para ele, o impacto desse tipo de abordagem de design seria estimular que as pessoas imaginem novas realidades possíveis, para além do que parece mais provável. "Acredito que quem atribui significado aos objetos e produtos de design não é o designer em si, mas sim as pessoas que entram em contato com esses objetos. O designer pode ter algo em mente no momento da criação, mas a atribuição de significado real fica por conta de quem vê/usa/conhece o produto. Acredito que o potencial do design especulativo está justamente em tentar romper um pouco com a visão tradicional das coisas, a partir do momento que propõe algo que gera estranhamento", completa.
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Para comer com a boca e os olhos Por Ana Cláudia Ulhôa
Uma estrutura de aço, vidro e concreto, com dois pavimentos, 4.000 m² e área interna totalmente reformulada para receber 34 operações gastronômicas. Inaugurado em março deste ano, o Mercado Da Boca contou com a dedicação dos escritórios Gustavo Penna, Bloc Arquitetura e Arlo Arquitetos para se tornar uma versão mineira dos food halls internacionais. Da mesma forma que os mercados da Ribeira, em Lisboa, e San Miguel, em Madri, o empreendimento de jovens investidores. em parceria com o Grupo EPO, buscou utilizar um espaço amplo, que estava sem utilização, para inserir diversos empórios, restaurantes, bares e lojas de chefes renomados. O local escolhido para receber o Mercado Da Boca foi o edifício onde funcionava o antigo shopping de decoração Jardim Casa Mall, localizado no bairro Jardim Canadá, em Nova Lima, Região Metropolitana de Belo Horizonte. De acordo com o arquiteto Alexandre Nagasawa, que projetou a construção em 2010 e participou da readequação em 2017, foram necessárias poucas modificações para adaptar o local à nova atividade.
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Foto: BS Fotografias A marca que aparece logo na entrada e toda a sinalização do Mercado Da Boca foram criadas pelo designer Gustavo Grecco.
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A torre de panelas de 9 metros de altura conecta os dois andares do edifício e funciona como um ponto de encontro do mercado.
Fotos: Jomar Bragança
Nos banheiros, a iluminação foi toda realizada com lâmpadas e fitas de LED, instaladas dentro de penicos e bacias.
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“Se você for pensar no que é um shopping
sensação. Alexandre conta que optou
center, vai perceber que é um grande
pelo caráter mais “tátil, quente e bruto” do
espaço vazio com um corredor central e lojas
mobiliário de madeira e da estrutura de
de um lado e de outro. Então, o que fizemos
aço, concreto e vidro. Uma escolha que
foi retirar todas essas vitrines e paredes e abrir
também resultou em um ar de sobriedade
todo o vão”, explica o fundador da Bloc
para o projeto. “Não seria uma apoteose de
Arquitetura, Alexandre Nagazawa.
materiais que faria o ambiente mais cool ou mais refinado. O simples também tem o seu
Para acomodar todos os estabelecimentos
lugar e ele é típico desse ambiente que se
que funcionam dentro do empreendimento,
chama mercado”, afirma.
foi pensada uma disposição com os balcões de atendimento no entorno e as mesas e cadeiras ao centro. Um corredor técnico, entre a fachada do prédio e das operações, também foi criado com o objetivo de servir como entrada de funcionários, transporte de louças, abastecimento de alimentos, entre outras atividades. Alexandre lembra que organizar essa área dedicada aos serviços dos empórios, restaurantes, bares e lojas foi uma das tarefas mais difíceis do projeto. “É uma coisa que nunca vi igual. Um restaurante é muito complexo, e lá a gente colocou mais de uma dúzia deles. São muitas coisas acontecendo ao mesmo tempo, com fluxos cruzados e diferentes necessidade de espaço, exaustão e refrigeração”, destaca Nagazawa. Outra preocupação do arquiteto foi não deixar que o lugar se transformasse em uma praça de alimentação de shopping. “Apesar de ter uma similaridade formal, a gente tentou trazer mais humanização. Além do tratamento de design, existe essa liberdade das pessoas poderem pegar seus pratos ou seus copos e sentarem na arquibancada externa, na parte avarandada ou em qualquer mesa. A gente sempre buscou criar um ambiente mais aconchegante, onde as pessoas permanecem por mais tempo, têm experiências boas e ficam mais próxima umas das outras”. O material utilizado, tanto na parte externa quanto na interna, contribuiu para essa
Decoração A decoração, criada pelo escritório do arquiteto Gustavo Penna, também seguiu a mesma linha. Apesar do modelo de negócios do Mercado da Boca ter sido trazido do exterior, Gustavo buscou referências nas cidades do interior mineiro. Através da utilização de elementos típicos, ele recriou a simplicidade e hospitalidade, tão comuns do povo de Minas. Uma das peças de decoração que mais chama a atenção de quem conhece o empreendimento é a torre de panelas e talheres, de 9 metros de altura. Localizada bem no centro e cortando os dois andares do edifício, a escultura pretende funcionar como uma praça central. “Eu queria um lugar feito uma cidadezinha de Minas Gerais. Aquela torre de panelas é como o obelisco da praça. Ele é o ponto de referência onde todo mundo vai se encontrar”, diz Gustavo Penna. Penicos e bacias usados em fazendas antigas também foram aproveitados pelo arquiteto. O primeiro foi instalado no teto dos banheiros, como uma espécie de luminária, já o segundo ganhou a função de moldura dos espelhos. Na área externa, o clima campestre ficou por conta dos caixotes de madeira utilizados por produtores rurais para carregar frutas e legumes. Algumas dezenas deles foram coladas junto aos pilares de sustentação da construção.
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A iluminação principal ficou por conta de lâmpadas LED bolinha, que dão um efeito de céu estrelado. Nos balcões de trabalho foram usados projetores para criar uma iluminação mais forte.
As colunas externas do mercado foram decoradas com caixas de madeira usadas para carregar alimentos. Para destaca-las foi feita uma iluminação com lâmpadas LED bipino.
O prédio, projetado pelo arquiteto Alexandre Nagasawa chama a atenção por seus brises de aço, que dão uma sensação de movimento à fachada.
Gustavo completou o ar interiorano com um
Na área externa, por exemplo, lâmpadas LED
projeto paisagístico baseado em espécies
bipino, de 2.700 K, foram instaladas dentro
presentes em hortas. Os vasos e o solo no
dos caixotes de madeira que cobrem os
entorno da edificação receberam diversos
pilares. Já no banheiro, os penicos que forram
pés de pimenta, alecrim, manjericão,
o teto ganharam lâmpadas LED balloon 2.700
salsinha, cebolinha, entre outros, para colorir
K e os espelhos foram envolvidos
e perfumar o ambiente.
por fitas de LED.
Os tons usados nas paredes também não
A iluminação principal dos dois andares da
foram escolhidos de forma aleatória. Gustavo
construção ficou por conta de inúmeros
Penna conta que todos foram retirados do “A
pontos de luz feitos por lâmpadas LED
Última Ceia”, de Manuel da Costa Ataíde.
bolinha transparente com filamento 2W e
“Ele foi um dos maiores artistas do nosso país.
temperatura 2.400K. O conjunto dessas peças
Nascido em Mariana, ele pintava figuras
criou a ilusão de um céu estrelado que, de
sacras com feições brasileiras. Para remeter à
acordo com Sônia, proporcionou uma luz
ideia da obra, utilizei o padrão cromático de
“dourada e aconchegante”.
vermelhos, azuis, ocres de tons mais fortes e patinados”.
Para marcar a arquitetura e iluminar os locais de trabalho de maneira mais eficiente,
Segundo o arquiteto, cada componente
a arquiteta encontrou duas saídas. Nos
da decoração foi pensado com o intuito de
quiosques de bebidas, que diferentemente
fazer uma brincadeira. A ideia era tornar o
dos outros, se encontram mais ao centro do
Mercado Da Boca um lugar lúdico e alegre.
piso, foram colocados projetores com LED
“Eu acho importante esse conceito. A gente
COB de potência e ângulos diferenciados.
não vai a um lugar para se aborrecer, a
Já os balcões de atendimento dos empórios,
gente vai para divertir o olhar, porque os
restaurantes, bares e lojas, dispostos no
olhos também saboreiam”, destaca.
entorno da área das mesas, receberam lâmpadas fluorescentes T5.
Iluminação Um item importante para ajudar a criar esse ambiente pensado por Gustavo Penna foi a iluminação. Com uma proposta de favorecer soluções simples, a arquiteta responsável pelo projeto de light design, Sônia Mendes, optou por inserir a luz em elementos do edifício, como se fossem uma unidade. Para isso, ela contou com o auxílio da Templuz, que forneceu quase todas as peças para o projeto.
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Sônia Mendes explica que nenhuma peça grande foi utilizada no espaço, a fim de manter um clima agradável para o mercado. “Quando as pessoas vão a um lugar para comer, elas gostam de ambientes que não tenham o desconforto da luz nos olhos. Locais que envolvem grande público têm que ser equilibrados, com possibilidade de dimerização. Luz que transforme o ambiente de dimensões grandes em local acolhedor”, destaca.
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Fotos: Jomar Braganรงa
Fotos: Jomar Bragança
Dentro do Mercado Da Boca foi criado um espaço destinado a aulas e apresentações de gastronomia.
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Significados Baseado na semiótica social, todas as
As cores aplicadas nas paredes, os materiais
soluções usadas por cada um desses
utilizados no mobiliário e a iluminação
profissionais revelam um interesse ou um
também contribuem para essa concepção
contexto social escondido. Quem explica
de espaço gastronômico. “São cores fortes
isso é o professor da área de Estudos de
que remetem a esse desejo de comer e a luz
Linguagem do Centro Federal de Educação
mais suave, combinado ao tom amadeirado
Tecnológica de Minas Gerais (Cefet-MG),
dos balcões, dão um clima de intimidade e
Renato Caixeta.
aconchego”, diz Renato Caixeta.
De acordo com ele, só foi possível criar
No entanto, o professor ressalta que o
uma ideia de mercado porque todos eles
maior êxito do projeto foi criar um sistema
buscaram referências desse tipo de ambiente.
diferenciado de consumo. “Você pega um
“Ele teve uma certa preocupação em remeter
cartão, coloca crédito e vai comer e gastar
à ideia de mercado, por exemplo, quando
do jeito que você quiser. Você pode pegar
cobriu as colunas com caixas”, observa.
uma entrada em um lugar, o prato principal em outro e experimentar uma sobremesa em
Renato também notou algumas referências
mais outro. Se a gente for olhar, a essência
na estrutura dos estabelecimentos.
de um mercado é exatamente essa, a de
“Internamente, eu percebo que os balcões
um espaço democrático. Cada um vai para
possuem um formato triangular em cima e
comprar aquilo que consegue ou precisa e
mais aquadradado na parte de baixo. Mesmo
faz suas próprias escolhas”, finaliza.
tendo tamanhos um pouco diferentes, eles possuem uma certa uniformidade e lembram barracas”.
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Foto: divulgação Renira Rampazzo
Design, desígnio, desejo As múltiplas possibilidades da disciplina no universo transmídia
Por Pâmilla Vilas Boas Quando Renira Rampazzo se formou como designer de produto, há 20 anos, ela nem podia imaginar como o desenvolvimento das diversas plataformas de mídia estaria tão presente na prática do design atual. Desde então, ela vem se adaptando à realidade multiplataforma: "não importa se estamos projetando um móvel, um carro, um website, uma experiência transmídia, o design, como processo, nos permeia", ressalta. Renira Rampazzo Gambarato é especialista em semiótica e transmedia storytelling e professora de Mídia e Comunicação na Jönköping University, na Suécia. Autora de diversas publicações da área, lançará, este ano, o livro “The Routledge Companion to Transmedia Studies”, editado juntamente com Mathew Freeman. Em entrevista à iDeia Design, Renira nos contou um pouco mais sobre sua vivência com o design.
Vivemos tempos de complexos processos de mediação e midiatização no mundo inteiro. 22
Renira Rampazzo é especialista em semiótica, transmedia storytelling e professora de Mídia e Comunicação na Jönköping University (Suécia).
Como o Design atribui significado às coisas ao nosso redor?
devam trabalhar somente com o que
Design como linguagem tem a
a expansão do repertório das pessoas,
habilidade da representação. A
transmitindo mensagens diferenciadas
representação ocorre pela ação dos
e projetando imaterialidade. Dessa
signos. O signo é aquele que está
maneira, o processo de atribuição de
em real substituição em relação ao
significados pode e deve ser criativo.
seu objeto e, dessa substituição, o processo de interpretação (geração do interpretante) acontece. O design depende de operadores de linguagem que irão se utilizar de novas tecnologias, diferentes materiais, características do mercado consumidor etc., para operar traduções de linguagem e desenvolver produtos, serviços,
já é conhecido pelos usuários para poderem ser entendidos por eles. Ao contrário, eles devem contribuir para
Qual é a sua visão sobre mídia na contemporaneidade e sobre os projetos transmídia num contexto de propagação das plataformas e dos meios de comunicação? (Vivemos num mundo em que tudo é mídia?)
experiências etc. Produtos, em meio
Vivemos tempos de complexos
ao seu repertório social e cultural,
processos de mediação e
comunicam suas funções, emitem
midiatização no mundo inteiro.
suas mensagens. Sua própria forma,
Penso que as estratégias mais
sua cor, material, tecnologia,
promissoras no campo midiático
enfim, seu design como um todo é
contemporâneo envolvem a
responsável por essa comunicação e,
comunicação multiplataforma
consequente, geração de significado.
(mais especificamente projetos
Forma e conteúdo se entrelaçam.
transmidiáticos), design thinking,
Podemos considerar esse processo de atribuição de significados como algo criativo e que surge de uma interação entre design, contexto cultural e usuários? Como você percebe essa relação?
engajamento da audiência, democratização da informação, sustentabilidade e avanços tecnológicos, como realidade aumentada, realidade virtual e internet das coisas. Entretanto, essas estratégias não são usadas uniformemente no mundo, dependendo muito de recursos
Objetos carregam sua própria
financeiros e tecnológicos disponíveis
informação, que reflete a maneira
e, sobretudo, de uma mentalidade
de como utilizá-los. Designers têm
(mindset) apropriada para valorizá-
a tarefa de fazer os objetos falarem
las. Como minha área de expertise
por si mesmos. Isso não significa que
atualmente é transmedia storytelling,
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O projeto transmídia “The Great British Property Scandal”, produzido pelo Channel 4 na Inglaterra, discute a crise imobiliária do Reino Unido, que conta com um milhão de propriedades vazias e dois milhões de famílias à espera de habitação social.
gosto muito da metáfora que Anita Ondine
intitulado “A Design Approach to Transmedia
usa para discorrer sobre o futuro de narrativas
Projects”. Lá, explico que o design de
transmidíaticas: “costumávamos falar de
experiências transmídia implica o processo de
comércio eletrônico há alguns anos, quando
design thinking por trás da ideação, construção
nos referíamos a comprar livros ou passagens
e execução de projetos transmidiáticos. Esse
aéreas online. Agora, esse é simplesmente o
é um domínio vasto e que ainda precisa
jeito como fazemos negócios. (…) Da mesma
ser explorado mais profundamente, tanto
maneira, chamamos de transmídia agora o
por pesquisadores, quanto por profissionais
que, dentro de alguns anos, será apenas o jeito
envolvidos no design de experiências transmídia.
que nós contamos histórias”.
O design é uma ferramenta importante em
Qual o papel do Design nas experiências transmídia? Como ele pode ser uma ferramenta importante na expansão dos conteúdos em múltiplas plataformas?
todas as características básicas de projetos transmidiáticos: (1) múltiplas plataformas de mídia, (2) expansão do conteúdo por entre essas diferentes plataformas, e (3) engajamento da audiência. O universo multiplataforma pode envolver televisão, cinema, jogos, mídia móveis, mídias impressa, etc., com a expansão
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No livro “The Routledge Companion to
de conteúdo em detrimento da sua mera
Transmedia Studies, escrevi um capítulo
repetição. O engajamento da audiência
iDeia 90’s >> animação
pode se dar de variadas formas, por meio de
No contexto transmidiático, o engajamento da
interatividade e/ou participação das pessoas.
audiência pode ocorrer pela interação e/ou
Esses serão sempre aspectos primordiais a serem
participação dos usuários. A interação ocorre
considerados no processo de design transmídia.
quando a audiência interage de alguma
Você acredita que os significados dos objetos podem ser alterados de acordo com as diferentes plataformas e sistemas em que estão inseridos?
forma com o projeto, mas não interfere e nem altera o resultado final. A participação é um processo de colaboração, de co-criação entre os produtores do projeto e os prosumidores (consumidores que são também produtores), influenciando o resultado final. A participação
Sim, não só objetos como também experiências
contribui vastamente para a variabilidade
transmídia.
de geração e, consequentemente, de
Como o Design pode contribuir para maior interação entre os usuários e projeto? Você aponta para uma importante diferença entre interação e participação em projetos transmídia. Você acha que essa distinção também pode ser estendida aos projetos de Design?
interpretação dos signos em projetos transmidiáticos. Essa variabilidade contribui para a ausência de condicionamento e eliminação do óbvio, gerando interpretantes mais ricos e criativos. Esse é o objetivo do design, a meu ver. Portanto, a participação das pessoas em projetos de design, em geral, também é altamente enriquecedora. No âmbito do design de produto, por exemplo,
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essa participação é comum em situações de customização, nas quais o produto é adaptado às preferências dos prosumidores. O papel do designer, nesse contexto, é oferecer oportunidades para a participação de prosumidores.
Qual o papel do Design em oferecer experiências mais significativas para os usuários? Penso que o papel do design em tempos de obsolescência programada é exatamente se libertar das amarras puramente comerciais e mergulhar na esfera idílica dos signos, oferecendo experiências mais enriquecedoras e significativas para as pessoas. Design, desígnio, desejo.
Quais projetos transmídia você destacaria onde o design foi a ferramenta principal para a expansão do conteúdo? O design é uma ferramenta importante em todo projeto transmidiático. Eu poderia destacar projetos transmídia produzidos pelo Channel 4, na Inglaterra, tais como Fish Fight e The Great British Property Scandal. São projetos não ficcionais que me interessam muito não apenas pelo design, mas sobretudo pelo impacto social gerado por eles. O projeto Fish Fight é um exemplar esforço para impactar a mudança de políticas públicas na União Européia em relação à indústria da pesca.
O projeto transmídia Fish Fight, também produzido pelo Channel 4, aborda a mortandade massiva de peixes, que gera um desequilíbrio nos mares.
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Como a semiótica pode contribuir para os processos de inovação no Design?
E é justamente no momento da
O design é uma linguagem, um
abdução é um processo de raciocínio
sistema de signos. Nesse sentido, a semiótica, como a teoria geral dos signos, pode e deve contribuir para os processos de inovação no design. Trabalho com a semiótica peirceana e o principal conceito que Peirce desenvolveu relacionado à inovação é o da abdução. No universo estético, a abdução se comporta como um estatuto de hipóteses, de possibilidades. A abdução é um processo de geração de hipóteses explanatórias.
formulação de uma nova hipótese que a criatividade, a inovação é gerada. Mais precisamente, a que gera hipóteses e a descoberta, a inovação, ocorre quando a hipótese se comprova verdadeira. Segundo Peirce, a abdução tem a tendência de gerar hipóteses corretas por conta do instinto natural do homem. Apesar do seu caráter instintivo, abdução é uma inferência lógica e não há regras exatas para que ela aconteça. Não há uma fórmula para a origem de novas ideias e é exatamente por isso que a abdução pode gerar alguma coisa completamente inovadora.
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Repensando o design em um mundo complexo Por Ana Cláudia Ulhôa
Rafael Cardoso é um exemplo de profissional multidisciplinar. Apaixonado pelo conhecimento, acabou se enveredando por diversas áreas. Graduou-se em Sociologia nos Estados Unidos, realizou um mestrado em História da Arte no Brasil e um doutorado, na mesma linha, na Inglaterra. Ao longo desses anos de academia, aproveitou para cursar disciplinas como Cinema e Letras. O flerte com departamentos variados fez com que Rafael chegasse ao design. Enquanto pesquisava sobre arte e tecnologia para sua tese, ele começou a ter seus primeiros contatos com autores desse campo do conhecimento. Cardoso. O autor austríaco escreveu “Design for the Real World” (1971), que tinha como objetivo conclamar todos os designers a desenvolverem um olhar crítico tanto sobre a profissão, quanto
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Foto: Nino Andrés
Victor Papanek foi um dos nomes que arrebatou
Rafael Cardoso, sociólogo e autor do livro “Design para um Mundo Complexo”.
Me interessei pelo design por questões históricas mesmo. Estava tentando entender a relação entre arte e tecnologia, ou melhor, porque essas áreas se apartaram depois da Revolução Industrial.
conhecem”, lembra.
Você não chegou a fazer um curso de design. Como você começou a se interessar por essa área? Por que você decidiu pesquisar e escrever sobre esse tema?
“Design para um Mundo Complexo”
Me interessei pelo design por
sobre o mundo em que viviam. Essa ideia despertou em Rafael uma vontade de criar uma obra revolucionária. “Daí, nasceu essa brochura amarelinha que vocês
(2011) surgiu como um diálogo com a obra de Papanek, dedicado, principalmente, a estudantes de design. Nele, Rafael Cardoso analisa o contexto do novo milênio para lembrar que esse campo do conhecimento “só existe como parte de uma rede ampla de relações” e não pode ser pensado de uma maneira simplista. Para ampliar o debate, convidamos Rafael para um bate-papo. Nessa conversa, ele contou um pouco sobre sua relação com o design, a contribuição que ele tem deixado para a área, o processo de construção de seu livro e os novos desafios que os designers enfrentam nos tempos atuais.
questões históricas mesmo. Estava tentando entender a relação entre arte e tecnologia, ou melhor, porque essas áreas se apartaram depois da Revolução Industrial. O nascimento do design faz parte desse processo. Comecei a ler John Ruskin e fiquei fascinado com a influência das ideias dele sobre o movimento “Arts and Crafts”. Não conseguia encaixar o discurso radical de unidade da arte no ideário modernista de design. Então, me propus a pesquisar o assunto nas fontes primárias. Minha tese de doutorado é sobre o ensino e teoria do design na Inglaterra vitoriana, onde essas questões do lugar da arte na sociedade industrial foram discutidas pela primeira vez.
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Ilustrações: Francisco França
As mudanças na embalagem do fermento em pó Royal ilustram a ideia de Rafael Cardoso sobre como o design trabalha a identidade de um objeto. Neste caso, alguns aspectos são preservados para manter o produto familiar, mas novas formas são buscadas para torná-lo mais sedutor.
Às vezes, contar com o olhar de alguém de outra área pode ser muito enriquecedor. Qual contribuição sua pesquisa sobre design pode trazer? Concordo. Meu olhar para o design sempre foi de historiador. Se fiz alguma
Para começar as discussões sobre as pautas desta edição, usamos como base o seu livro Design para um Mundo Complexo. Como surgiu a ideia de escrever esse livro e como foi o trabalho para a construção dessa obra?
coisa pelos designers, foi apenas dar
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visibilidade ao legado de projeto
Em 2007, dei um curso no extinto
no Brasil. Até os anos 1990, os alunos
POP (Polo de Pensamento
aprendiam nas faculdades que o
Contemporâneo), no Rio de Janeiro,
design brasileiro começava nos anos
com esse título. Fazia mais de uma
1950. Isso gerava sérios problemas,
década que estava lecionando em
porque colocava o design como algo
faculdades de design, Esdi e PUC-
que havia sido importado da Europa
Rio, e estava pensando sobre como
e imposto de cima para baixo, de
o design contribui para estruturar o
modo artificial. As pesquisas que fiz e
mundo. Queria devolver aos alunos um
orientei demonstram o contrário. As
pouco do que eu, como historiador,
atividades projetuais têm uma história
havia aprendido na convivência
rica e variada na sociedade brasileira.
com designers. Hoje, acho que isso se
Surgiram de demandas sociais e
chamaria 'design thinking'. Entre 2008
culturais coletivas, e não do capricho
e 2009, ministrei esse curso mais quatro
desse ou daquele indivíduo ou escola.
vezes: no Centro Maria Antônia, da
USP; na UAM-Xochimilco, no México; no Centro de Design do Recife; e na Federal do Maranhão. A cada vez, o conteúdo crescia e ia amadurecendo. Depois da crise de 2008, eu estava convencido que era questão de tempo até que o sistema financeiro quebrasse de novo. Me deu uma urgência de formatar esse conteúdo como livro e botar logo na rua. Comecei a escrever, bem rápido. Foi meio febril, mas as ideias já estavam maduras. Havia algumas editoras interessadas. Falei com a Elaine Ramos, na Cosac Naify, e coloquei duas exigências para ela: que o livro saísse rápido e que fosse vendido a um preço acessível para estudantes. Ela topou. Daí, nasceu essa brochura amarelinha que vocês conhecem. A gente queria que fosse uma espécie
Ilustrações: Francisco França
O canivete suíço é um dos exemplos usados por Rafael Cardoso para explicar a ideia de durabilidade. Segundo ele, quanto mais um produto é capaz de agregar e simbolizar valores reconhecidos, mais resistente ele se torna ao esvaziamento e ao descarte.
“O Design para um Mundo Complexo” pode ser considerada uma atualização das discussões do “Design for the Real World”? Como a obra de Victor Papanek influenciou o seu livro? “Design para um Mundo Complexo” se propõe a ser um diálogo com o livro do Papanek, através do filtro do tempo. “Design for the Real World” me impactou muito quando o li pela primeira vez, pela urgência, pela vitalidade, pelo calor da hora. Quis que meu livro compartilhasse um pouco dessas qualidades. Que ele falasse às pessoas de forma tão imediata quanto o modelo que o inspirou.
de manifesto, dedicado a estudantes. Uma obra quase de guerrilha, como o “Design for the Real World” foi para a geração dos anos 1970. 31
Para entrar um pouco mais em seu livro, gostaria que você explicasse primeiro o conceito de mundo complexo.
mundo opera mais como uma rede
Você vai começar logo pelo mais
estanque, que podia ser pensado e
difícil! Explicar a complexidade é complicadíssimo, mesmo para quem entende de teoria de sistemas e da informação. Eu sou leigo no assunto. Recomendo que as pessoas leiam autores da área de sistemas complexos. Há toda uma bibliografia sobre isso e até revistas especializadas. Vou tentar resumir de modo bem simplificado. Um sistema complexo é composto de muitos componentes que interagem e formam relações de interdependência. Essas interações, por sua vez, alteram e condicionam o funcionamento do sistema. Ou seja, o todo não pode ser reduzido à soma de suas partes. A maioria das redes e dos organismos funciona assim. O conceito
Capa e interior do livro Design para um Mundo Complexo, escrito por Rafael Cardoso.
de 'mundo complexo' sugere que o
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ou um organismo do que como um acúmulo de objetos físicos. No design, existia, historicamente, uma tendência a olhar para um objeto como algo representado à parte de sua inserção em contextos de uso e circulação. Uma visão complexificada do design não admite isso. O objeto/projeto só existe como parte de uma rede ampla de relações.
Na introdução do seu livro, você já aborda o assunto que acabou sendo a temática principal desse número da revista: o processo de significação das coisas. Como esse mundo complexo interfere nisso? Os objetos vão ganhando e perdendo significados com o uso, desgaste, descarte e reutilização. O tempo
transforma tudo. Daí, é fundamental
signo. Essa ação de revestir as coisas
pensar, desde o princípio, como um
de significado é constante no design.
projeto se encaixa no sistema em que será introduzido. A rigor, aliás, não existe início, meio, fim. O processo é contínuo. Nada vem do nada. O 'novo' é produzido a partir do que já existe. O 'velho' continua a existir mesmo após o descarte, só que ganha outras
Como a tecnologia e a globalização têm impactado a área do design e seus profissionais? Quais são os maiores desafios enfrentados pelos designers hoje?
denominações. 'Lixo', por exemplo, nada mais é do que algo que foi
Essa pergunta é gigantesca! Não
esvaziado de funções.
tenho capacidade para começar
Gostaria que você explicasse também como o design é capaz de criar e recriar os significados para as coisas que existem em nosso mundo.
a responder isso. Mas, gostaria de aproveitar a ocasião para falar sobre o desmonte do modelo fordista de produção em massa. Hoje, com os sistemas de comando informatizados, as indústrias já não precisam mais produzir tudo igual e em grandes
O design faz isso o tempo todo. É só
quantidades para se manterem
olhar para qualquer embalagem. Elas
competitivas. Por causa disso, a
não são apenas invólucros neutros que
ideia funcionalista do 'objeto-tipo'
contêm as coisas. Elas comunicam e
ou padrão vai por água abaixo. As
caracterizam o conteúdo. Uma caixa
noções de indústria, produção e
de Omo transforma sabão em pó em
produto que se ensinam em muitas
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A Sapatilha Zig Zag, criada em 2006 pelos irmãos Campana, remete ao design da Poltrona Vermelha, um dos primeiros objetos da dupla que ganhou reconhecimento internacional. De acordo com Rafael Cardoso, ligar os dois produtos pela aparência é uma estratégia para dar significado e valor agregado ao sapato.
faculdades de design são de 50 anos atrás. O principal desafio hoje é de gerar projetos consequentes em termos ambientais. Como criar produtos novos sem contribuir ainda mais para a degradação do planeta? Isso não é mais apenas uma questão ética, mas um imperativo de sobrevivência. Não faz mais nenhum sentido projetar um produto que não possa ser reabsorvido ou reaproveitado sem estragos para o meio-ambiente. Até o gasto de Ilustrações: Francisco França
energia para fazer a reciclagem precisa ser levado em conta.
Em um determinado momento do seu livro você fala sobre isso. Você explica que o mundo atual pede uma nova forma de pensar o processo produtivo industrial. Me explique mais detalhadamente como você acredita que isso deve ser feito. Precisamos perguntar aos ambientalistas e engenheiros ambientais e termos a humildade de saber ouvir e seguir suas recomendações. Se o consenso científico é que não há mais espaço para o uso de automóveis, então os designers devem procurar formas de acabar com os automóveis. Projetar sistemas de desmonte e substituição, gerar alternativas de transporte. Não podemos continuar a corrida em direção ao precipício
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simplesmente porque os empresários
Rio, onde lecionei por dez anos, entre
querem crescimento e os políticos
2000 e 2010. Percebi que muita coisa
morrem de medo de perder votos.
mudou. Não somente os rostos dos
Buckminster Fuller já dizia que o mundo
alunos, que se renovam sempre, mas
é importante demais para ser deixado
também os professores, o espaço
aos políticos.
físico, as atitudes, o clima de opinião.
Estou longe do ensino de design desde
Fiquei feliz de ver que as pessoas lá leem e debatem meu livro. Acho que falta à gente se unir mais. Tem muita gente querendo a mudança, mas ainda falta agregar essa energia toda para uma ação coletiva. Ilustrações: Francisco França
Você também fala que essa gama de informações que temos hoje devem ser usadas a nosso favor e recomenda um pensamento crítico para a transformação do aprendizado na área do design. Como essas questões são debatidas hoje na academia? O que falta evoluir ainda no Brasil e no mundo?
2012. As coisas mudam rápido hoje em dia. Mês passado, participei de uma conversa com alunos da PUC-
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O manipulador de signos
O professor Vinicius Romanini aponta para a importância da semiótica na prática do design.
Vinicius Romanini discute a importância da semiótica para o design na atualidade Por Pâmilla Vilas Boas
Um projeto de design é como uma receita de cozinha. A manipulação dos temperos na intensidade e momentos corretos podem aguçar o paladar das pessoas, assim como basta errar uma pitada para que o prato fique impalatável. Como explica o semioticista Vinicius Romanini, o designer faz com o signo o que o chef faz com os ingredientes. Ele precisa adicionar o símbolo no momento e intensidade adequados para que seu propósito seja atingido e suas criações façam sentido numa comunidade. Vinicius Romanini é professor de Ciências da Comunicação da Universidade de São Paulo, atual presidente da Sociedade Brasileira de Ciência Cognitiva (SBCC) e editor-científico da revista SEMEIOSIS (Revista Transdisciplinar de Semiótica e Design). É pesquisador do Centro de Estudos Latino-Americanos sobre Cultura e Comunicação; do Grupo de Estudos em Sistemas Sígnicos do Design da UEMG, dentre outros. Em entrevista para a revista iDeia ele destaca a importância da semiótica na prática do design. “Nesse sentido, designers semioticistas são sempre inovadores, críticos e revolucionários”.
Se a palavra signo está na etimologia da palavra Design, que significa "a partir dos signos", podemos dizer que esse processo de significação é inerente à prática do design? De fato, o processo de significação é a essência do design. Compreender isso nos faz avançar para uma epistemologia do design em que as noções de signo, representação e interpretação 36
o designer faz com os signos o que mestres manipuladores fazem com cheiros, paladares e princípios ativos. Cada símbolo, tomado como um predicado, precisa ser adicionado (sintetizado) no momento e intensidades adequadas diante do propósito desejado.
Foto: Veronica Manevy
passam a ocupar uma posição central. O designer
seus predicados lógicos, ou sua compreensão do
não cria “ab novo”, de uma maneira misteriosa ou
mundo. Diante de um problema novo que exige
inexplicável. Essa é uma visão romântica que não
sua atenção, e animado pelo propósito de solucio-
encontra respaldo científico nem lógico. O desig-
ná-lo, o pensamento do designer associa e sinteti-
ner organiza seu pensamento a partir de certos
za esses símbolos predicáveis, produzindo um novo
propósitos gerais voltados a resolver um problema
símbolo, possivelmente mais desenvolvido. Aqui,
da vida prática. As soluções que encontra para es-
reside a essência da criação investigativa: a apli-
ses problemas têm a forma lógica de uma propo-
cação desse novo símbolo sobre o problema que
sição. Uma proposta de design é justamente uma
o originou é conjectural e, portanto, falível. Essa a
proposição geral que procura representar o resul-
tarefa da abdução no processo criativo: introduzir
tado da argumentação desenvolvida pelo pensa-
um predicado novo, criar um interpretante original
mento. De certa forma, ela captura, num diagra-
capaz de reduzir a complexidade dos predicados
ma mental, a essência dos atributos envolvidos no
presentes na memória à simplicidade de uma nova
conceito pensado. Essa concepção semiótica do
concepção. Por isso é uma síntese criativa.
design também nos livra de uma ontologia rasa sobre os objetos do design e permite conectá-lo à prática do design em formas contemporâneas, que incluem o design de experiências, o “design thinking” e as dimensões da realidade aumentada
Por que o designer pode ser considerado um manipulador de signos? O designer é então aquele que dá concretude ao intangível?
e da virtual. Na verdade, a partir da perspectiva semiótica, o design é uma área muito ampla e
A manipulação é uma metáfora interessante, que
inclui, como subáreas, a arquitetura, o urbanismo,
remete aos boticários, mestres perfumistas e che-
o paisagismo, a moda e o design de vários outros
fes de cozinha. Uma essência, princípio ativo ou
tipos objetos.
tempero adicionado no momento e intensidades
Nesse sentido, como o design cria significados para as coisas?
corretos criam efeitos inebriantes e desejados. Mas, basta errar uma pitada ou gota para que tudo desande e o resultado seja reprovável. Ora, o designer faz com os signos o que mestres manipuladores
Primeiro, precisamos esclarecer que o design cria
fazem com cheiros, paladares e princípios ativos.
significados conceituais, e a aplicação desses
Cada símbolo, tomado como um predicado,
conceitos a coisas é meramente contingente. Um
precisa ser adicionado (sintetizado) no momento
designer pode produzir um conceito que jamais
e intensidades adequadas diante do propósito
será instanciado em coisas tangíveis, como um
desejado. Cores, texturas, qualidades de materiais,
arquiteto pode criar um projeto que jamais será
formas etc, se apresentam como um universo de
executado. Na filosofia, dizemos que conceitos
experiências possíveis para o usuário do objeto do
desse tipo são juízos sintéticos, a priori. Sintéticos
design, assim como um chefe de cozinha escolhe
porque criativos e informativos. A priori porque
os predicados de seus pratos a partir do propósito
gerais e, portanto, independentes da experiência
das percepções que deseja suscitar nos comen-
(que é sempre particular). O importante aqui é
sais. Um projeto de design é como uma receita (de
que a criação de significado é uma consequência
cozinha, de boticário, de perfume…), um diagra-
da ação do signo, ou semiose. Peirce chama de
ma, que organiza logicamente os predicados na
interpretante essa consequência ou efeito, e de
forma de uma proposta que é, como vimos, uma
interpretação a ação de produzir interpretantes. O
proposição lógica. O designer participa de um pro-
tipo de argumento responsável pela produção de
cesso que Peirce descreve como crescimento da
significados é o abdutivo. A abdução é uma con-
razoabilidade concreta do universo. Trocando em
jectura, a produção de uma hipótese. Ela nasce
miúdos, o designer concretiza seu pensamento em
de um problema, uma dúvida, uma inquietação
suas criações, e os produtos do design criam uma
intelectual que nos força a buscar uma resposta
esfera de significação dentro da esfera maior da
plausível. O designer tem um repertório de símbo-
cultura. É um processo de crescimento da informa-
los em sua memória, formados ao longo de sua
ção e da complexidade cultural.
experiência de vida. Esse repertório é o universo de 37
Qual a importância da semiótica para a prática dos designers?
das formas de cognição de outro. Foi preciso um
Todo designer manipula signos, e vive deles. Um
trializados, para satisfazer os desejos e propósi-
designer que conheça a semiótica e compreenda como o design se organiza a partir da semiose é capaz de desenvolver uma consciência sobre sua ação mental que lhe permite uma reflexão crítica muito mais profunda. A analogia aqui poderia ser entre um músico que toca de ouvido, mas não conhece partitura nem teoria musical, e um músico que não só toca, mas conhece profundamente a teoria musical e exercita seu conhecimento de forma criativa. Um bom designer não precisa conhecer a semiótica, mas designers que a conhecem atingem níveis de consciência muito maiores e são capazes de levar sua criação a territórios inexplorados. Nesse sentido, designers semioticistas são sempre inovadores, críticos e
transformar recursos naturais em produtos industos de uma sociedade, implica em conceituar logicamente. Um objeto de design é diferente de uma obra de arte ou de artesanato. Um objeto artístico não precisa ser fundamentado num conceito, nem ter propósitos lógicos voltados para consequências pragmáticas. Nesse sentido, tem componentes icônicos e indiciais muito fortes. Um objeto de artesanato, por outro lado, se funda em hábitos situados e incorporados no seio de uma comunidade e já estabelecidos pela tradição. É, portanto, um símbolo bastante consolidado. Ora, um designer não cria obras de arte nem reproduz um artesanato por meio de hábitos tradicionais. Ele cria novos conceitos a partir de predicados possíveis e que poderiam vir a ser instanciados em
revolucionários.
objetos tangíveis. Há um virtualidade inerente ao
Como unir a lógica prática dos designers e a lógica conceitual da semiótica no cotidiano desses profissionais?
de trabalho do designer não é muito diverso de
O domínio conceitual da semiótica, naturalmente, aproxima os dois universos. Um designer semioticista consegue identificar, por exemplo, os elementos icônicos, indiciais e simbólicos envolvidos nas possíveis interpretações de um projeto, e antecipar os efeitos ou interpretantes no público alvo. Numa sociedade cada vez mais complexa e diversa, a capacidade de identificar camadas sutis de significações se torna uma aliada estratégica para a elaboração de produtos que consigam atingir propósitos e metas que exigem
seu trabalho. Hoje, entendemos que o método um geômetra ou de um programador que cria algoritmos dos aplicativos que usamos em nossos celulares.
Como a semiótica ajuda a conectar designers, clientes e usuários? Como o designer desenvolve conceitos e conceitos são símbolos cuja natureza é sempre geral, temos que admitir que um símbolo só pode se desenvolver no seio de uma comunidade de intérpretes. Um símbolo criado por uma mente isolada (se fosse possível), não comunicaria seu significado. Seria como uma alucinação inex-
sintonia fina com o usuário.
plicável. Conceitos, portanto, são a essência
Apesar de a semiótica ser inerente ao trabalho dos designers, nem sempre as duas áreas caminharam juntas. A que você atribui tal distanciamento entre as disciplinas?
agentes de uma comunidade ou sociedade.
Há muitos motivos, inclusive históricos. Como atividade profissional, o design é fruto da revolução industrial e estreitamente ligado aos avanços tecnológicos. A semiótica, que se anuncia como disciplina científica no início do século XX, começou em dois flancos diferentes: o estudo da estrutura das linguagens, de um lado, e o estudo
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longo percurso para que compreendêssemos que
do processo comunicativo, os conectores entre Nesse processo comunicativo, o designer é o mediador entre clientes e usuários. O cliente é o responsável por apresentar o problema, a trazer uma inquietação ou dúvida que precisa ser mitigada. É o enunciador da questão. O usuário é o receptor final da resposta, que experimentará um conjunto de sensações trazidos pela resposta apresentada. O designer é aquele que toma a questão do cliente como um desafio e manipula os conceitos de seu repertório para sintetizar uma proposta (ou proposição) ao final de um processo de investigação e argumentação lógica. A proposta é justamente um novo conceito, original e
geral, que deveria satisfazer os usuários. Veja que
conceito compartilhado por uma comunidade.
estamos descrevendo um processo comunicativo:
Por ser um geral, ele é, em alguma medida, tradu-
emissor, mediador, receptor. O produto do design
zível entre diferentes conjuntos de repertórios, da
é a mensagem que leva a resposta à pergunta
mesma maneira que uma palavra de uma língua
do cliente sobre os desejos e necessidades do
pode ser traduzida numa palavra ou expressão
usuário. Semiose, ou ação do signo, é justamente
de outra. Ao participar idealmente da experiên-
esse processo comunicativo.
cia do usuário, o designer internaliza um conjunto
Como é possível conhecer o repertório e os juízos dos usuários que vão capturar as mensagens produzidas pelo designer? E qual a importância da semiótica nesse processo de tornar o designer mais sensível à captura dos signos e sinais do mundo?
de predicados, muitas vezes de forma inconsciente, e que o ajudarão na produção do conceito necessário para atender os requisitos práticos que o problema coloca. A esse processo chamamos de fundamentação, ou grounding. Piece chama isso de experiência colateral. É a partir da fundamentação que o designer traz para o plano da consciência algo que funciona como
A melhor maneira é exercitar a empatia, a atitude
passa a trabalhar os processos de representação,
de se colocar no lugar do usuário final. Isso é
fazendo com que o signo cresça em compreen-
possível de várias maneiras, e o melhor talvez
são. Por fim, o designer comunica e compartilha
seja exercitar um pouco de cada. Uma delas é
com a sociedade sua criação, cooperando para
precisamente a comunicação direta com os usu-
o aumento da razoabilidade na comunidade da
ários numa investigação sobre os efeitos possíveis
qual participa. Note que esse processo implica
de uma mensagem. Outra maneira é fazer uma
não apenas em considerações estéticas, mas
imersão no universo da experiência do usuário,
também éticas e, sobretudo, lógicas. É por isso
capturando os conceitos que balizam suas ações
que o designer é um operador da “logica utens”,
e escolhas. Como já dissemos, ao designer interes-
ou lógica pragmática.
sa a generalidade do símbolo, que é sempre um
Fotos: Veronica Manevy
um signo, presentificando-o. A partir disso, ele
Romanini explica que a capacidade de identificar camadas sutis de significações é uma aliada estratégica para os designers.
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Por uma abordagem que provoque mudanças significativas na vida das pessoas
Don Norman é um dos maiores pensadores sobre Design no mundo.
Por Pâmilla Vilas Boas e Raphael Vilas Boas Se sua casa estiver pegando fogo e você precisar sair correndo, o que vai levar junto? Com essa pergunta, Don Norman, um dos maiores pensadores sobre design no mundo, nos aponta para a relevância da disciplina em produzir coisas com significado e resolver problemas relevantes e que realmente impactem a vida das pessoas. Norman é professor emérito da Universidade da Califórnia, em San Diego/EUA e ganhou notoriedade no final dos anos 1980 com o livro “O design do dia a dia”. Desde então, publicou dezenas de livros que chamam a atenção para o papel central do design na solução de problemas complexos. “Se as pessoas querem fazer objetos bonitos, isso é legal, mas isso não irá mudar o mundo, eu quero mudar o mundo”, afirma.
Como o design atribui significado às coisas ao nosso redor? Significado é um conceito muito difícil. Eu e meu amigo Roberto Verganti, de Milão, temos discutido sobre isso por muitos anos e ainda não entendi o significado do Significado. Mas, parte disso é o que é significativo em nossas vidas: significativas são nossas conquistas, nossa família, a forma como vivemos, a moralidade que trazemos para nossas vidas e para o mundo. Quando alguém fala sobre trazer significado através do design, sempre me preocupo. Se você olhar os objetos no mundo ou, se sua casa estiver pegando fogo e você tiver que sair correndo, o que vai levar com você? Não serão as coisas mais bonitas, nem as mais caras. Você pode levar um copo quebrado, barato, porque foi da sua avó e passou por gerações de sua família e traz memórias muito significativas. Talvez você leve fotografias, coisas que não pode repor, coisas assim.
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Eu não faço objetos bonitos, eu produzo experiências. Mas o mais importante para mim, é que o design é um modo de pensar. É uma forma de resolver problemas importantes.
Foto: divulgação Donald Norman
Design com significado
Para mim, a pergunta é: como fazer coisas com significado? Coisas que impactem a vida num sentido positivo. Muitas das coisas que os designers projetam são triviais, ridículas, não acrescentam à vida. O design está preso a uma mentalidade horrível, na qual devemos criar uma nova variação de produtos existentes e que estão funcionando perfeitamente. E, isso não acrescenta em nada e nem traz significados para nossas vidas.
Como prazer e emoção entram nesse processo de significação? Basicamente, temos dois componentes em nossas mentes: cognição e emoção. Cognição é o entendimento, a reflexão sobre nossas experiências, tentando entender o que está acontecendo. Emoção, entretanto, é o que estabelece valor, se é bom ou ruim, seguro ou perigoso. Esses dois trabalham juntos, são partes de um mesmo sistema. Existem as emoções imediatas: tenho medo de altura se ando perto de um penhasco. Ou, as emoções de longo prazo: penso em quando meus filhos eram crianças e como interagíamos. São emoções reflexivas e as mais importantes e poderosas.
Qual a importância da emoção nesse processo de comunicação? Você acha que o design faz parte desse processo de comunicação? Em processos tradicionais de produtos, o design é a comunicação entre o produto e as pessoas. Os engenheiros testavam como o produto seria percebido pelas pessoas. Sim, o design faz parte de um processo de comunicação físico, que nos permite entender e usar as coisas apropriadamente. É mais uma experiência, acredito... Todo bom design é uma experiência. Não faço objetos bonitos, produzo experiências, mas, o mais importante, é que o design é um modo de pensar, de resolver problemas importantes. Tenho algumas regras: não resolvo o problema que sou solicitado a resolver, porque ele é, quase sempre, o sintoma. Quero resolver o problema de fato. Trabalho muito com problemas relacionados à assistência médica. O que devemos fazer sobre doenças contagiosas, por exemplo? O médico pensará em qual remédio receitar. Isso é bom, mas não impede o aumento das doenças. É preciso saber é o que causa as doenças. A cólera, por exemplo, tem como causa é a má higiene. A saída seria ensinar as pessoas a lavar as mãos? Geralmente, pessoas pobres não possuem casas ou um bom saneamento. Se você precisa curar a cólera, a primeira coisa a fazer é curar a economia. Alguns pensam que é problema médico, outras, educacional. É também, mas, abaixo disso, é falta de emprego, renda. As pessoas sabem que estão em situação de risco, mas sentem que não há nada que possam fazer sobre isso. A solução é ajudá-las para que possam ajudar a si mesmas. Vocês têm esses problemas no Rio de Janeiro, em São Paulo, nós temos em San Diego/EUA. São os problemas mais difíceis de resolver, porque são econômicos, políticos e, às vezes, religiosos, culturais.
Imagem que ilustra a capa do livro “O design do dia a dia” de Donald Norman que foi amplamente difundido na década de 1980.
São os problemas com os quais trabalho,
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Foto: divulgação Precious Plastic o engenheiro e designer holandês, Dave Hakkens, desenvolveu máquinas para que qualquer pessoa possa reciclar em casa e começar um negócio de reciclagem fabricando por conta própria objetos feitos de plástico descartado. Essa máquina pode contribuir para amenizar um quadro alarmante: pesquisadores apontam que em 2050 haverá mais de 12 bilhões de toneladas de resíduos plásticos no mundo.
porque são difíceis de superar. Se as pessoas
disso, não é difícil responder. Primeiro, eles
querem fazer objetos bonitos, isso é legal, mas
estão em um local montanhoso, muito pobre,
isso não irá mudar o mundo, eu quero mudar o
um bom tratamento médico está a três horas
mundo! Se você realmente quer me perguntar
de distância. Estão acima do peso, bebem e
sobre significado, quero provocar mudanças
fumam muito, não praticam exercícios físicos. As
significativas na vida das pessoas.
pessoas falam que se trata de um problema de
Você teria exemplos de projetos de design ajudando as pessoas e realmente resolvendo o problema?
educação, mas, não, as pessoas que vivem lá sabem que esse tipo de vida não é saudável. Mas, que escolhas têm? A forma tradicional de resolver problemas é trazer os especialistas, eles analisam e dizem o que fazer, e quase sempre
Estamos trabalhando nos problemas do leste
não funciona. Acreditamos na democratização
dos EUA, numa área no Estado de Kentucky
do design. Existem muitas pessoas espertas e
chamada Appalachia, uma área montanhosa
criativas ao redor do mundo que entendem os
onde fica o Instituto Nacional do câncer dos
problemas e, usualmente, oferecem soluções
Estados Unidos. O local tem o mais alto índice
que ajudam a eles e suas famílias.
de câncer e a maior taxa de doenças do coração dos EUA. Se você for verificar o porquê
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Então, o que gostaríamos de fazer é, ao invés
de chamar os especialistas, é dizer: aqui está,
jeito de construir uma com garrafas velhas de
o problema de vocês, queremos ver o que as
plástico, um motor e mangueiras de borracha.
pessoas já estão fazendo. E, então, ajudarmos
Fizeram uma “bomba” que funcionou muito
a seguir ou a modificar o que estão fazendo.
bem e resolveu o problema. Sabiam que
Achamos que essa é a abordagem. Está muito
tinha ficado feio, mas era funcional. Essa é a
cedo para dizer o quão fomos bem sucedidos,
abordagem de baixo para cima, mas, quando
porque estamos apenas começando. Como
eles vêm até nós, podemos dizer, “oh isso é
você se sentiria se eu fosse às áreas pobres do
incrível. Vamos ver se podemos ajudá-los a
Brasil e mandasse antropólogos descobrirem os
transformar em algo atraente”.
problemas fundamentais e, então, mandasse designers para projetar soluções maravilhosas?
O ponto importante é: não quero fazer algo
Depois, os designers retornariam e ganhariam
atraente do jeito que o mundo tecnológico
prêmios. Porém, eles colocam os resultados
gosta, com foco em coisas minimalistas.
para a comunidade e não têm valor algum,
Mas, isso não é verdade para todos os
não se encaixam no estilos deles, nos costumes
grupos. Algumas pessoas gostam de coisas
e, mesmo se funcionar, quando quebrar, eles
chiques, a maioria das artes nativas são
não conseguem consertar. Se você quer coisas
cheias de pequenas ondas decorativas etc.
com as quais as pessoas consigam trabalhar,
O que queremos é encontrar o artista na
elas têm que construir por conta própria, elas
comunidade e pedir que nos ajude a fazer
têm que compreender por si mesmas. Na
esse design em algo que é mais sensível.
verdade, mesmo que surja a mesma solução
Novamente, é a mesma filosofia, é uma
que você está recomendando, quando elas
combinação de abordagem de baixo para
encontram sozinhas é aceitável e isso tem um
cima com uma de cima para baixo. A de
impacto, quando outra pessoa diz o que fazer
baixo para cima é a ideia, a solução, e de
é rejeitado. Então, o que estamos tentando
cima para baixo é o conselho, a sugestão,
fazer é mudar o jeito que o design funciona,
juntar as coisas, e também ajudar a espalhar a
somos mentores e facilitadores, não somos os
notícia para outras pessoas. Isso, então, ajuda
especialistas e esse é o design com significado
mais pessoas.
(meaningful design).
Como você percebe a relação entre função e emoção no design, atualmente? Pensando nessa forma de baixo para cima de atuar?
Esses exemplos apontam para o design sistêmico conectado a processos sociais e culturais? Nosso objetivo é sempre conectar a processos sociais e culturais. Essa é uma boa forma de
Nenhuma diferença. Aqui vai um exemplo:
se colocar. Muito do design moderno, do
função é aquilo que você precisa e, então,
jeito que ensinamos nas universidades, nos
a aparência, a emoção é sobre algo bonito,
desconectam das práticas culturais.
agradável. Um grupo de pessoas precisava de uma bomba d’água. Eles descobriram um
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Foto: divulgação Nintendo LABO
Nintendo LABO – Este novo produto é composto por uma série de acessórios feitos de papelão que trabalham em conjunto com o switch. Ele permite uma montagem de elementos que, associados ao switch, criam uma nova maneira de interação ativa com o brinquedo a partir da criação, montagem e uso dos mesmos. A proposta é trazer novas experiências aos usuários, resgatando o modo como se brincava antigamente.
Podemos falar de uma não separação entre função e emoção? Seria esse o ponto?
encorajam a escrever neles ou esculpir etc.
Não podemos separar isso em nossas vidas.
Esse é o motivo que o título original do livro, em
Tudo tem ambos os significados. Essa bomba d’água talvez tenha ficado feia, mas as pessoas a amavam. Elas tinham uma emoção ligada à bomba porque resolveu o problema. Poderíamos fazê-la mais atraente? Sim, mas a atratividade, eu acho, é uma segunda filha. A satisfação emocional de resolver o problema por conta própria que era importante. Há uma tentação no design moderno, que acha que tudo é sobre a aparência visual. Não! É sobre qual mudança tem em sua vida!
No livro “Design do dia a dia” você diz que o vidro é para ser quebrado e a madeira para ser escrita. Existe uma percepção cultural que impacta na relação entre pessoas e objetos? Podemos falar sobre uma imaterialidade dos materiais? Quando comecei, há 30 anos, li essa incrível citação que dizia que alguns materiais te
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Essa citação foi muito importante porque me colocou na direção que levou ao livro inteiro, tentando entender a psicologia das coisas. inglês, era “The psychology of everyday things”. Mas, era um título muito ruim, que não atraia nem psicólogos e, muito menos, designers. Então, quando fomos produzir a versão impressa, queriam mudar o título para “The design of everyday things” e eu disse, “não, isso é horrível”, mas, fui esperto o suficiente para pesquisar e os donos das livrarias disseram, “oh, sim, mudem o nome do livro!”.
No livro, você aponta para o paradoxo da tecnologia. Como o designer deve lidar com isso? Esse é um problema padrão com praticamente tudo o que introduzimos, são chamados de consequências sem intenção. É uma troca, acho que não é possível evitar esse paradoxo quando você introduz algum tipo de dispositivo. Designers estão sempre construindo algo, geralmente, dispositivos físicos. Mas, eu construo procedimentos. Por exemplo, olhando a
Foto: divulgação Nintendo LABO
assistência médica, tento entender como ela
liga? Antes de termos automóveis, tínhamos
acontece para transformar a interação entre
outros meios de resolver esse problema e,
pacientes, instituições, famílias e técnicos.
então, não há uma resposta fácil, é sempre
Isso quase sempre resolve alguns problemas
uma troca.
e melhora a vida das pessoas. Contudo, introduz novos problemas. Com frequência, especialmente na medicina, muitas pessoas
Você acha que é um problema que não tem fim?
têm que trabalhar juntas para resolver casos não usuais, porque todo mundo é diferente.
Sim. Design é sempre um problema sem fim.
Quando algo dá errado, e uma pessoa
Na verdade, a vida é assim. Designers têm
essencial não está lá, ou um instrumento está
que lidar com isso o tempo inteiro, nós estamos
quebrado ou o cômodo onde é necessário
tentando produzir algo o tempo inteiro que vai
realizar o procedimento está sendo usado
impactar muitas pessoas. Temos que ter muito
por outra pessoa, isso introduz dificuldades.
cuidado com essas “trocas”, e é um problema
Não estávamos lá antes, quando tinham um
diferente também, nem sempre sabemos o que
método diferente. Penso que a maioria do
essas “trocas” serão. Quando o automóvel foi
design é uma troca. No design quase tudo
inventado, uma das coisas ditas era que iria
o que você faz é um jogo de balança entre
reduzir a poluição, seria mais fácil de viajar.
diferentes alternativas; posso fazer melhor, mas
Ninguém nunca pensou que teríamos tantos
vai custar mais dinheiro. E, se é mais importante
automóveis, que iriam aumentar a poluição e,
que não seja caro, ou se é mais importante que
ainda por cima, muito do mundo hoje é todo
essas características extras sejam adicionadas,
pavimentado, mas quem ia saber disso bem no
introduzir isso vai tornar a maioria das coisas
começo, quando ainda havia poucos carros?
melhor, mas, ocasionalmente, você ficará muito
E, no começo, a poluição realmente diminuiu,
confuso, terá dificuldades, ficará frustrado. Seu
basicamente, todo o transporte anterior era por
automóvel é muito importante, é como você
animais, e animais poluíam as ruas, era muito
viaja, o que acontece no dia em que ele não
ruim, e nos livramos disso.
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A bolsa Pirarupet faz parte do projeto coordenado pela artista e designer Monica Carvalho em parceria com cerca de 100 mulheres e artesãs do Rio Negro. A bolsa é produzida com garrafas PET que imitam escamas do Pirarucu, o maior peixe de água doce do Brasil.
Fotos: divulgação Pirarupet e Ania Kanicka
A poltrona “Urso Polar” da designer polonesa Ania Kanicka é inspirada em um dos animais mais poderosos do nosso planeta, uma combinação de força e fofura que nos faz retornar ao mundo dos sonhos da infância.
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Quais são os principais paradoxos e pecados do design moderno? Havia um famoso designer americano, Victor Papanek, que, há muitos anos, disse que o design é uma das profissões mais perigosas do mundo. Por que produz coisas que ninguém se importa e que não ajudam a melhorar a vida. Um grande problema que enfrentamos hoje é que o design lida mais com o trivial, enquanto o desafio é resolver os maiores dilemas que o mundo enfrenta, como fome, pobreza, falta de educação, comida etc. Foi por isso que, quando comecei o laboratório de design na Universidade da Califórnia, falei que não iríamos fazer os tipos simples de design. Iríamos trabalhar com o que chamo de problemas tecnosociais complexos, coisas que vão causar
uma solução tecnológica/técnica, problema é um problema de pessoas. O terceiro é: tudo é um sistema, as coisas estão conectadas. Quando você faz uma coisa, impacta outra de forma boa ou ruim. É preciso pensar no sistema como um todo. E, finalmente, estamos falando sobre questões culturais e sociais, então, não há solução simples. Devemos sempre testar nossas ideias de uma forma simples e, então, modificar e continuar modificando. Será sempre uma experimentação. Esses quatro princípios podem ser aplicados em qualquer campo. Uma coisa que estou tentando fazer em minha universidade é que todo estudante deve aprender essa forma de pensar. Não me importo se seus estudos são em literatura, história, arte, engenharia ou ciência, todo
mudanças reais no mundo.
mundo deve entender essa abordagem. É isso
Qual é o futuro do design e como você percebe a profissão daqui a 20 anos?
na camada média da sociedade. Você ouve
Gostaria de ver os designers como líderes, por que são ensinados a serem muito criativos, a pensarem sobre novas formas de abordar velhos problemas, o que, às vezes, chamamos de design thinking, um termo que não gosto
o que espero. Designers, hoje em dia, estão sobre engenheiros se tornarem presidentes, você não vê designers. Por que não? E, aqui está a diferença entre um bom designer e um bom engenheiro – engenheiros são muito bons em resolver problemas, um bom designer, entretanto, vai dizer: “Oh, essa é uma solução incrível, mas vocês resolveram o problema
muito.
certo? Engenheiros nunca perguntam se esse
Tenho 4 filosofias: uma é resolver o problema
futuro, que designers, com essa abordagem,
certo; a outra é focar nas pessoas, não em
é o problema correto. É isso que eu espero no sejam nossos líderes!
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Objetos que contam história As peças do designer André Ferri trazem a memória em seus processos e aprendizados.
Um prédio abandonado por mais de 20 anos se encontra em processo de restauro e ocupado por artistas de Belo Horizonte/MG. O Luiz Estrela, edifício centenário da capital mineira, que fica na rua Manaus, 348, no Bairro São Lucas, foi construído em 1913, quando sediou o primeiro Hospital Militar da Força Pública Mineira. Em 1994 foi tombado pela Diretoria de Patrimônio de BH e, em 2013, foi ocupado por coletivos de teatro, música, comunicação, permacultura, patrimônio e memória, formando o Espaço Comum Luiz Estrela. As madeiras centenárias, resgatadas durante o processo de reforma, deram origem à coleção “Memória” do designer André Ferri. A coleção foi lançada em junho deste ano no Luiz Estrela e agora segue para exibição em São Paulo.
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Na coleção “Memória”, o designer André Ferri utiliza madeira de demolição na criação de peças que contam história.
Por Pâmilla Vilas Boas
Durante o restauro do casarão algumas madeiras perderam sua função estrutural pelo desgaste sofrido e tiveram que ser removidas. O designer então estudou o material e encontrou diversas espécies, como peroba do campo; peroba rosa; braúna, jacarandá e maçaranduba. Ele optou pela permanência das marcas do tempo, ainda cravadas na madeira, para elaboração de suas peças. “Consegui preservar detalhes interessantes, como furos dos pregos da construção original, algumas rachaduras das madeiras que permaneceram e que contam um pouco
André Ferri é formado em Arquitetura e Urbanismo, com especialização em Design de Móveis e também em marcenaria tradicional.
Foto: Tiago Nunes
dessa história”, revela.
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Fotos: “balanço gira” e “costureira” - Tiago Nunes
Foto: “entre e passe” - André Ferri
As luminárias “entre e passe”, “balanço gira” e “costureira” são exemplos de peças premiadas e que utilizam das técnicas construtivas da marcenaria tradicional.
Ele produz peças autorais com uso das
que vai passar de pai para filho e isso
técnicas construtivas da marcenaria
me interessa muito. Criar peças que
tradicional e já ganhou importantes
fazem sentido para as pessoas e que
prêmios, como o Salão Design 2018,
transcendem o consumo”, ressalta.
com a luminária “Costureira” e o Salão Design 2016, com a “Entre e
André acredita também que cada
passe”, dentre outros. A paixão pela
trabalho é único e que cada
movelaria veio da infância e de suas
encontro com uma madeira e histórias
lembranças do cotidiano na oficina
diferentes trazem conhecimentos e
mecânica de seu pai, onde aprendeu
novas inspirações para seu trabalho.
e se interessou pelo trabalho manual.
“Cada vez que chega uma madeira com sua história, ela me deixa muito
A coleção “Memória” vem ao
conhecimento. O contato com
encontro da proposta de valorizar
aquela madeira que, muitas vezes, já
a relação entre design, produto e
está degradada, que não funcionaria
memória. “Essas madeiras carregam a
para nada, funciona muito bem
memória centenária do casarão. Fico
para o mobiliário. Eu consigo pegar
imaginando a idade daquela árvore
pedaços menores, fazer junções e
e como essa madeira participou
produzir uma peça muito bonita.
dos acontecimentos, toda a energia
Quando o cliente traz uma madeira
do espaço está, de certa forma,
que eu não trabalho ainda, é mais um
acumulada nela”, argumenta.
conhecimento”, completa.
“Memória” é consequência, também,
Forma e processo
da relação que André foi construindo com a madeira de demolição. Para ele, trata-se de uma forma de transformar histórias de vida e memória em peças de mobiliário, que serão passadas de geração a geração. “Recentemente, um cliente trouxe a madeira da casa dos avós que foi demolida e, com ela, fiz uma poltrona. Não se trata de mais uma peça, ela se torna parte da família e conta a história daquela família. Deixa de ser um produto para ser algo
A Luminária de mesa “Entre e Passe” é composta por duas peças torneadas em madeira Freijó e outras duas metálicas, cobertas por uma iluminação embutida em LED. A luminária traz um ambiente lúdico, convidando o usuário a montá-la e reviver o processo de criação. André percebe a madeira como um ser vivo que, inclusive, direciona seu processo criativo. Outro ponto
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A “luminária Ó” é feita de madeira Freijó e latão numa busca pela organicidade em peças autorais.
Foto: Tiago Nunes
importante do trabalho é o processo
O designer avalia que os significados
construtivo, que também influencia
que os seus objetos provocam nos
no design que ele propõe para o
usuários têm muito a ver com a
momento, num processo fluido,
bagagem e a história que se traduz
vivo e mutante. “O desenho, muitas
nas peças. “Apesar de pensarmos
vezes, parte do maquinário que
a madeira como uma coisa só, ela
tenho, do meu processo construtivo,
tem várias espécies que funcionam
dos encaixes que estou estudando,
de uma forma muito específica.
numa forma muito fluida. Tenho uma
Você não consegue fazer o mesmo
inquietação que faz com que eu
produto com braúna, freijó e
vá à marcenaria, crie um desenho,
jacarandá, por exemplo. Com essa
prototipe na hora e depois volte
relação, alcanço um pouco da
para o computador para criar algum
alma do produto”, completa. E
detalhe”, revela.
acrescenta: “Eu entendo primeiro a madeira para depois fazer design”.
Seu espaço de trabalho também traduz seu processo e a busca
O grande diferencial do seu trabalho
pela organicidade em peças
é o caráter único de cada peça,
abauladas, esferas ou discos, como
que transita entre o design, a arte e
a luminária Ó; a luminária Costureira
o artesanato. “A relação do design
e o banco Viga. A inspiração e os
com o objeto é muito fria e, quando
significados dos objetos vêm da
faço design na marcenaria, meus
técnica que ele aprende e aplica
produtos passam a ter um pouco
no dia-a-dia. “Minha inspiração
mais da alma da marcenaria. A
sempre foi direcionada para a
questão do processo ser lento
madeira e o diálogo que posso
também é muito interessante, porque
criar com esse material. E, assim, o
meu mobiliário não vira um produto, é
trabalho foi crescendo e o design
artesanato, é arte e tem um diálogo
foi acompanhando isso. Hoje, a
entre as áreas”, completa.
marcenaria é meu lugar de criação”, completa.
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Foto: Divulgação Hospital Rooms
Uma pincelada de vida A arte e a criatividade como instrumentos de transformação Por Ana Cláudia Ulhôa
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Sala da Família criada pelo artista plástico Mark Titchner, localizado na Snowsfields Adolescent Unit em Maudsley Hospital.
Relative’s Room criado pelos artistas plásticos Mark Power & Jo Coles para a Phoenix Unit em Springfield Hospital.
Foto: Divulgação Hospital Rooms
“Temos a arte para não morrer da verdade”.
A partir daí, a dupla se dedicou a pensar em
A frase é de Friedrich Nietzsche, mas pode
como poderia transformar esses espaços de
ser perfeitamente aplicada ao trabalho que
uma maneira em que não desrespeitassem as
a curadora de arte, Niamh White, e o artista
regras impostas pelas instituições. “Os hospitais
plástico, Tim A Shaw, vêm desenvolvendo no
que cuidam de pessoas com doenças
país de origem deles, a Inglaterra. Através do
psiquiátricas graves e contínuas possuem
projeto “Hospital Rooms”, os dois profissionais
muitos regulamentos para garantir que os
têm utilizado vários tipos de obras de arte
ambientes sejam seguros para eles”, explica
como instrumento para melhorar a vida
Niamh White.
de pessoas que precisam encarar a difícil realidade das doenças psiquiátricas.
No entanto, era preciso tentar “trazer algo do mundo exterior para esses ambientes e,
A ideia surgiu quando Niamh e Tim decidiram
ao fazê-lo, incluir as pessoas que os usam
visitar um amigo próximo, que havia sido
com dignidade, valor e bem-estar”, ressalta
internado em um centro de saúde mental.
Niamh. Pensando nisso, a curadora e o artista
Ao chegar ao local os dois se depararam
plástico começaram a utilizar uma paleta
com um ambiente considerado por eles
variada e vibrante de cores nas fachadas e
muito estéril e nada estimulante. “Ficamos
paredes dos hospitais. Tons de vermelho, azul,
impressionados com o quão inadequado,
amarelo e verde cobriram todo Recovery
sombrio e clínico era o lugar. Também
College, em Springfield University Hospital,
descobrimos como o acesso às artes visuais
por exemplo. Fotografias, pinturas e colagens
é limitado para pessoas em unidades
com representações de plantas, pássaros
como essas e decidimos que, com nossas
ou imagens abstratas de diferentes artistas
habilidades e contatos, poderíamos fazer algo
também passaram a cobrir as salas
sobre isso”, conta Tim A Shaw.
dos edifícios. 55
A seleção dos profissionais que trabalham
O último passo é a realização de uma oficina
nesse projeto é bastante rigorosa. Niamh
para estimular o lado inventivo das pessoas
White revela que opta por pessoas que
que estão em tratamento nos centros de
tenham um alto nível de especialização
saúde mental participantes. “Queremos
profissional, artistas interessados em práticas
que eles se inspirem para criar suas próprias
sociais e que já possuem alguma experiência
peças e desenvolver suas próprias habilidades
em cuidar de alguém ou usar serviços
criativas. Muitos dos nossos pacientes já
de saúde mental. “Isso dá uma camada
são incrivelmente imaginativos e criativos e
adicional de percepção, porque eles
gostamos de fornecer uma saída para isso”,
entendem o contexto da situação muito
diz Tim.
intimamente”, afirma. Segundo a curadora, as abordagens do Após serem chamados para participarem do
Hospital Rooms são constantemente avaliadas
Hospital Rooms, Niamh esclarece que todos
para garantir que sejam eficazes. “Estamos
passam pelo mesmo processo. Cada artista
sempre procurando maneiras melhores de
é levado para conhecer a unidade em que
garantir uma colaboração genuína entre
irá trabalhar. Em seguida, é realizado um
essas comunidades e permitir que nossos
encontro com pacientes e funcionários com
artistas produzam obras de arte realmente
o objetivo de coletar ideias e opiniões. Uma
excepcionais, que rivalizariam com qualquer
proposta é montada e apresentada à equipe
coisa que mostrassem em um museu ou
do hospital, que avalia se a obra cumpre as
galeria. Porém, estamos constantemente
normas da instituição. Ao ser aprovado, o
evoluindo e adotamos diferentes ideias e
trabalho é instalado no local, junto com textos
abordagens. É muito importante que todo
Foto: Divulgação Jennifer Moyes
informativos.
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projeto e trabalho artístico responda à
comportamento dos pacientes de forma
unidade específica e à comunidade”.
positiva”.
Nesses dois anos de trabalho em hospitais psiquiátricos, Tim A Shaw e Niamh White já
Tim ainda completa “acreditamos que,
repaginaram um total de cinco unidades
se você aplicar um alto nível de cuidado,
e perceberam uma melhora significativa
respeito e atenção em um espaço, isso pode
na qualidade de vida, tanto dos pacientes
ser traduzido como uma mensagem para
quanto de funcionários. “Vimos nossos projetos
as pessoas que o usam. Estamos dizendo
fortalecerem os laços sociais entre a equipe
a um grupo de pessoas vulneráveis: vemos
e os pacientes, aumentar os sentimentos de
você, respeitamos você e valorizamos sua
autovalor e desenvolver noções do que é
dignidade”.
possível nesses espaços clínicos”. Diante desses resultados, Niamh se mostra Segundo Tim A Shaw, existem inúmeros
extremamente contente e revela a vontade
estudos que mostram como o contato com
de expandir ainda mais o trabalho. “Fomos
a arte e atividades criativas auxiliam no
inundados com pedidos de projetos, tanto
tratamento dessas pessoas. “Isso se deve
que implementamos um processo de
a uma multiplicidade de fatores, como
aplicação e planejamos crescer e aumentar
oferecer às pessoas coisas novas para
nossa capacidade. Uma de nossas próximas
conversar, encontrar um terreno comum
prioridades é aumentar o alcance geográfico
entre elas ou compartilhar opiniões e formar
do Hospital Rooms e garantir que mais
amizades. Pode aumentar o conforto, o
pessoas possam se beneficiar de uma arte
apoio e a tranquilidade e pode afetar o
extraordinária”. Niamh e Tim também estão desenvolvendo o Making Time, um novo projeto que funciona de maneira complementar ao Hospital Rooms. De acordo com Tim, a proposta é treinar profissionais para cuidar de pessoas em hospitais de saúde mental, lares de idosos
Sutapa Biswas pintando sua obra no lounge para mulheres da Garnet Ward em Highgate Mental Health Centre.
e universidades. A ideia é que eles consigam conduzir suas próprias oficinas de arte com pacientes. “Isso garante que a energia artística, que é iniciada por Hospital Rooms, possa ser mantida pela equipe existente quando a maior parte do projeto estiver completa”, conclui.
Niamh White é uma das fundadoras do projeto Hospital Rooms. Ela também é curadora e consultora independente de artes visuais, além de professora em várias universidades do Reino Unido.
Tim A Shaw foi o parceiro de Niamh na criação do Hospital Rooms. O artista plástico foi um dos responsáveis pelas obras que compõem o projeto.
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Artigos Jerome Bruner, psicólogo que já ministrou em Harvard e Oxford, faleceu em 2016 deixando como legado, entre outros, seus estudos sobre como os indivíduos constroem a realidade, seu desenvolvimento cognitivo e a aprendizagem por meio dos signos e da simbologia. O autor divide os modelos cognitivos entre pensamento paradigmático e pensamento narrativo. O paradigmático se relaciona com argumento, lógica, enquanto o narrativo é a forma como as pessoas organizam suas experiências. Para o autor, “narrativas são uma versão de realidade cuja aceitabilidade é governada apenas por convenção e por ‘necessidade narrativa’, e não por verificação empírica e precisão lógica” (1991)1. Estudos recentes se relacionam com essa abordagem teórica, na medida que buscam entender os impactos e o potencial das narrativas, na construção de significados de experiências pelo usuário, como no campo do design. Em diálogo com a temática dessa edição, trazemos duas pesquisas atuais, de pesquisadores influentes em suas áreas e que, apesar de possuírem trajetórias diferentes, trazem abordagens sobre o processo de design que se aproximam dos estudos narrativos de diferentes formas: a designer italiana, Grimaldi, líder do curso MA Service Experience Design and Innovation no London College of Communication, e o professor associado da UFSCar, o cineasta e editor da revista científica GEMInIS, João Massarolo. Grimaldi traz uma abordagem narrativa dos processos de design de artefatos em que explica como o designer pode ter maior controle sobre as possíveis interpretações dos seus projetos, incluindo os significados e emoções construídas na experiência narrativa com o artefato. Massarolo nos apresenta uma metodologia de design ficcional para a projeção de protótipos de artefatos diegéticos, existentes em espaços discursivos que permitem uma experiência coordenada em narrativas transmidiáticas. É interessante perceber que os autores propõem a utilização de estratégias narrativas, seja para a projeção de artefatos, como propõe Grimaldi, ou na construção de mundos ficcionais para protótipos diegéticos, conforme Massarolo, que criam oportunidades para incorporar aspectos da experiência dos usuários no processo de design, construindo significados a partir de elementos narrativos.
Por Marcos Maia
1 Bruner, J. S. (1991). The narrative construction of reality. Critical Inquiry, 17, 1-21.
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Narrativas no Design Artigo baseado no projeto “Design for Narrative Experience”, de Silvia Grimaldi. Tradução: Marcos Maia
Cabana de Freya. Projeto Freya e Robin, do Studio Weave, utiliza elementos narrativos como ferramenta do design. A história começa com dois personagens que viviam em lados opostos do rio, servindo de princípio orientador do projeto, motivando escolha de materiais, formas e funções.
Narrativas são comumente usadas dentro do processo de design. Designers de produtos usam ferramentas narrativas como diários e etnografias de usuários; sondagens culturais, personas e cenários para conduzir pesquisas; comunicar percepções de usuários através de uma equipe de design; criar empatia com o mercado alvo; imaginar futuros contextos e estimular a criatividade da equipe de design.
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Porta telefone celular retrô, que remete a uma TV antiga. Criado pela Wise Kids é produzido por meio de tecnologia de fabricação 3D.
Funil de cozinha da ALESSI, criado por Stefano Giovannoni. Possui um apelo emocional forte por remeter ao mundo das histórias infantis que grande parte da geração atual teve acesso.
Objetos, frequentemente, vêm
Alguns objetos usam a narrativa para transmitir
acompanhados de narrativas, como, por
algo ao usuário através da sequência de
exemplo, quando alguém mantém uma
eventos no uso do produto. Por exemplo,
herança familiar por causa das histórias
designers de interação, em algum momento,
associadas a seus avós, ou quando um objeto
estruturam a experiência do usuário ao
é mantido como um lembrete de um evento,
longo do tempo por meio de uma série
como uma lembrança de uma viagem.
de eventos que são experimentados
Esses objetos estavam no lugar certo e na
em sequência, semelhantes a como os
hora certa ou, simplesmente, aconteceu de
eventos são estruturados em uma história.
sobreviverem ao teste do tempo, e passaram
Essa é uma estratégia usada no design de
a representar aquelas pessoas ou momentos.
produtos digitais ou interfaces para orientar a experiência do usuário, mas, raramente,
Outras narrativas acompanhantes são
usada de forma deliberada no design de
deliberadamente construídas em torno de um
produtos não digitais, embora tenha um
objeto, como a publicidade e as narrativas
grande potencial.
das marcas. Ao usar uma determinada marca de calçados, o usuário lembra e incorpora os
Experiências acontecem ao longo do tempo,
valores da mesma em torno do luxo ou pensa
incluindo as que envolvem artefatos de
em si mesmo como tendo um estilo de vida
design. Narrativa é a maneira pela qual as
ativo.
pessoas organizam sua compreensão de eventos baseados no tempo. Os designers
A maneira menos comum que as histórias
podem usar técnicas narrativas para entender
aparecem no design do produto é através
e imaginar como a experiência de um
das narrativas que os próprios objetos
produto pode se desdobrar ao longo do
transmitem através de seu uso. Por exemplo,
tempo e entender como os usuários podem
no design crítico e especulativo, no qual
interpretar detalhes específicos de seu design
os designers criam objetos ambíguos ou
ou seus recursos em geral.
provocativos com o objetivo de fazer o usuário refletir sobre questões mais amplas,
Ao usar uma cadeira, por exemplo, o
como ética ou códigos culturais. Ao mostrar
usuário vê a cadeira, decide sentar-se nela,
artefatos realistas que parecem pertencer
aproxima-se dela, puxa-a de debaixo da
a futuros distópicos, por exemplo, designers
mesa, senta-se, talvez avance para ajustar
criam empatia com personagens em cenários
sua posição etc. Pensar nesse processo de
fictícios.
60
uso pode ajudar os designers a imaginar quais dessas etapas eles poderiam projetar ou interagir e como isso poderia moldar a história e a interpretação dessa interação. Designers poderiam decidir trabalhar na aparência geral da cadeira, ou na textura do encosto que é agarrado ao puxá-la para fora, ou na sensação que o usuário sente quando se senta, ou qualquer combinação desses elementos. Alterar alguns desses detalhes poderia criar experiências com significados que são descobertos através das sequências desses elementos. Narrativas carregam significado e emoção, e informações apresentadas na forma narrativa têm maior probabilidade de engajar o público, ressoar com as pessoas, causar emoções e empatia e serem lembradas. Narrativas também são particularmente boas em fazer as pessoas refletirem, mostrando valores e estimulando a imaginação. Se, por exemplo, o aspecto visual de uma cadeira difere de seus aspectos táteis, uma história é criada, na qual o usuário esperava certa experiência e, depois de usar o objeto, foi
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surpreendido ao encontrar algo diferente; é
divide a experiência do usuário com os
uma história de surpresa ou imprevisibilidade.
artefatos, em etapas que acontecem ao longo do tempo e estimula o designer a
As narrativas são uma maneira natural de
pensar quais os elementos dessa experiência
comunicar ideias e estimular a imaginação
podem criar narrativas para o usuário, que
além de propósitos funcionais, além de criar
efeito podem ter e como criar uma história
experiências envolventes e memoráveis. Isso é
coerente de uso.
particularmente relevante porque os designers de produto são muito bons em articular para
Esse kit de ferramentas reforça a ideia de que
que serve seu projeto, qual função cumpre,
todos os detalhes do design e da experiência
mas têm mais dificuldade em articular sobre
se comunicam com o usuário e ajudam a
o que é esse design, como ele é interpretado
focar as opções de design em termos de
e o que comunica ao usuário através do uso.
comunicação entre o designer e o usuário.
Concentrando-se na narrativa que o usuário
Também incentiva os designers a manterem o
encontra usando o objeto, os designers
foco nos objetivos do design, sobre o que é o
podem fornecer pistas sobre o que é seu
design, e que efeito que desejam criar.
projeto e como ele pode ser interpretado pelo usuário.
Isso ajuda designers e estudantes de design a imaginar e interagir com a experiência do
Com esse objetivo, estou desenvolvendo um
usuário e do ponto de vista dele, visualizando
kit de ferramentas para ajudar os designers
a potencial experiência com o objeto e como
a identificar, articular e manipular aspectos
isso pode ser interpretado e lembrado como
narrativos de seu projeto. O kit de ferramentas
uma história do usuário.
Referências Este artigo é baseado no projeto de doutorado “Design for Narrative Experience”, de Silvia Grimaldi (em andamento), em seu próximo artigo “Narratives in Design Toolkit” (2018/2019), e no paper “Narratives in Design: A Study of the Types, Applications and Functions of Narratives in Design Practice” de Grimaldi, S., Fokkinga, S. e Ocnarescu, I. (2013), publicado nos anais da “6th International Conference on Designing Pleasurable Products and Interfaces”. New York, NY, USA: ACM (DPPI ’13), pp. 201–210. doi: 10.1145/2513506.2513528.
Silvia Grimaldi é pesquisadora e líder do curso MA Service Experience Design and Innovation na London College of Communication da University of the Arts London.
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Design Ficcional e a Construção de Mundos Transmídia Por João Massarolo
Cena de vídeochamada no filme “2001: Uma odisseia no Espaço”, 1968. Criada na ficção, antes do surgimento da tecnologia com hangout, facetime ou skype, por exemplo.
Design ficcional é um termo amplo e dotado
Imagem: pangalacticos.com.br
interações futuras, se constituindo numa abordagem
de múltiplos sentidos, que se caracteriza pela construção de mundos imaginados, mas passíveis de complementar da construção de mundos transmídia, na qual o usuário vivencia experiência ao invés de apenas consumir produtos. O termo foi cunhado originalmente, pelo escritor norte-americano Bruce Sterling, no livro Shaping Things (2005), no qual apresenta a definição de design ficcional como “o uso deliberado de protótipos diegéticos para suspender a descrença sobre a mudança.” Nessa definição, Sterling considera os objetos de mundos ficcionais especulativos como protótipos diegéticos, ou seja, tecnologias disruptivas que antecipariam as mudanças tecnológicas que estão porvir, contribuindo para a aceitação desses novos aparatos na vida cotidiana. 63
Neste processo, o design ficcional instala a estética
científica, o dispositivo empático conhecido como
de ‘mundanidade’, na qual protótipos diegéticos
VoightKampff - baseado em sistemas algoritmos, é
existem somente em função do ‘real da tela’
utilizado em testes para detectar com precisão as
(REIS et al., 2002, p. 27), como forma de validar e
reações emocionais e, assim, identificar e distinguir
conferir inteligibilidade aos mundos imaginados, ao
humanos de replicantes.
mesmo tempo que “influencia o desenvolvimento tecnológico no mundo real (KIRBY, 2010).”
No entanto, ao contrário do que é mostrado no filme Blade Runner, no qual um dispositivo empático
Nessa perspectiva, design ficcional se constitui
antecipa os atuais sistemas de vigilância e controle
num espaço privilegiado para a exploração de
ativados por banco de dados, no design ficcional
tecnologias disruptivas relacionadas à interface
contemporâneo os protótipos dietéticos não são mais
humano-computador (IHC), levando em
considerados como subprodutos da narrativa, se
consideração a definição de protótipos diegéticos
tornando o foco principal da construção de mundos
como “representações cinematográficas de
destinados a testes e explorações do seu potencial
tecnologias futuras, que possuem vantagem,
de interações futuras.
inclusive, sobre protótipos ‘reais’, pois são objetos reais na realidade da narrativa, com suas particularidades,
Nessa perspectiva, o design ficcional é uma
limites e coerências determinadas pelo autor.”
metodologia para “(1) a criação de mundos de
(KIRBY, 2010)
história e (2) de protótipos diegéticos dentro desse mundo de histórias (3), resultando na criação de
Em Blade Runner, o caçador de androides (EUA,
um espaço discursivo.” (COULTON et al., 2017). Essa
1982), de Ridley Scott , um filme clássico de ficção
dimensão projetual do design sobre as propriedades
Cena da série “Star Trek”, 1966. Capitão Kirk usando o “comunicador”, artefato criado antes do surgimento do celular em 1973.
64
dos mundos imaginados funciona como um
fragmentos de histórias nas plataformas midiáticas
elemento facilitador para a acessibilidade do usuário
pressupõe que a atividade diegética precede
junto as estruturas de mundos (ECO, 2012, p. 95),
necessariamente a arte de construir mundos, já que
contribuindo para a exploração das propriedades
não pode haver narrativas transmídia sem que haja
dos mundos possíveis.
uma história pré-existente para ser desdobrada.
Assim, ao utilizar variados protótipos diegéticos com o
Na perspectiva do design ficcional de mundos
intuito de construir mundos com múltiplos pontos de
transmídia, o envolvimento do público ocorre a partir
entrada, o design ficcional complementa e amplia
da sua interação com as ‘propriedades abstratas’
a noção de ‘experiência unificada e coordenada’
do mundo criado e, a partir da atualização desses
(JENKINS, 2009, p.19), das narrativas transmídia.
elementos, surgem novas concepções de mundos
Na concepção de Jenkins (2009, p. 158),
possíveis.
narrativas transmídia “estão se tornando a ‘arte da construção de mundos’, à medida que os artistas
Desse modo, a relação entre o design ficcional e
criam ambientes atraentes que não podem ser
as narrativas transmídia se transforma num espaço
completamente explorados ou esgotados em uma
de experimentação, onde designers utilizam
única obra, ou mesmo em uma única mídia.” Nesse
linhas de histórias para especular sobre ‘possíveis
processo, extensões transmídia conectam os usuários
futuros’, oferecendo uma visão crítica das narrativas
por meio de artefatos diegéticos às propriedades
tecnológicas criadas pela indústria de tecnologia,
dos mundos criados, permitindo, desse modo, que
através de protótipos narrativos exploratórios.
as histórias sejam integralmente dispersas pelas múltiplas plataformas midiáticas. No entanto, coletar
“Comunicador”, artefato criado na ficção “Star Trek”, 1966. Inspiração para a criação do celular, e posteriormente, o celular Motorola StarTAC, primeiro celular flip, em 1996. Fonte da imagem: https://www.dailycoolgadgets.com/star-trekcommunicator/
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Cena do filme “007 contra Goldfinger”, 1974. Apresenta o primeiro conceito de GPS. Em 1978 foi lançado o primeiro satélite para uso militar do GPS. O primeiro GPS comercial só surgiu em 1989. Fonte da imagem: klasyczny.com
Referências COULTON, P.; LINDLEY, J.; STURDEE, M.; STEAD, M. Design fiction as world building. In: Proceedings of Research through Design Conference (2017). Disponível em: http://eprints. lancs.ac.uk/83974/1/DF_for_WB_final_.pdf. Acesso em: 29 jun. 2018. ECO, U. Lector in Fabula. São Paulo: Perspectiva, 2002. KIRBY. D. A The Future Is Now: Diegetic Prototypes and the Role of Popular Films in Generating Real-World Technological Development (2010). Disponível em:3 <http:// journals.sagepub.com/doi/abs/10.1177/0306312709338325> Acesso em: 01 jun. de 2018. JENKINS, H. Cultura da convergência. São Paulo: Aleph, 2009. Reis, C. & Lopes, A. C.M. Dicionário de teoria da narrativa. São Paulo, Ática, 2002. STERLING, B. Shaping Things. Cambridge, Massachusetts: The MIT Press, 20
João Carlos Massarolo: cineasta, professor universitário; Doutor em Cinema pela USP, é diretor e roteirista de vários filmes, entre os quais, São Carlos / 68 e O Quintal dos Guerrilheiros (2005). Publicou: Live transmídia: as novas formas de produção de conteúdo e engajamento em multiplataformas (2018), Prática de binge-watching nas multiplataformas (2017), Roteiro audiovisual para Narrativas Transmídia (2016); Sobre a midiatização do consumo ficcional transmidiático e seus efeitos (2015); Storytelling transmídia: narrativa para multiplataformas (2014), entre outros artigos. É professor associado da UFSCar; pesquisador vinculado ao Obitel Brasil; coordenador do grupo GEMInIS e editor da Revista GEMInIS. Email: massarolo@terra.com.br
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Fundada em 2010, a WeWork se tornou a maior rede de espaรงos de trabalho do mundo.
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Espaços que conectam WeWork amplia o significado do trabalho em ambiente de interação entre comunidades Por Pâmilla Vilas Boas
Para além dos espaços físicos, a WeWork propõe uma mudança dos significados do trabalho, a partir da humanização das relações profissionais. Presente em mais de 70 cidades e 21 países, a empresa norte-americana, fundada em 2010, se tornou a maior rede de espaços de trabalho do mundo. Ela já conta com mais de 210 mil clientes, que incluem empreendedores, freelancers, artistas, pequenos negócios e grandes corporações e a meta é chegar ao final do ano com 400 mil pessoas conectadas pela WeWork. De acordo com a FIEMG Lab, a startup é tida como a 5ª mais valiosa do
Fotos: divulgação Wework
mundo e foi avaliada em U$20 bilhões.
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é a terceira cidade da WeWork no
2017, a empresa conta com prédios
Brasil e possui uma forte vocação
em São Paulo e Rio de Janeiro e
empreendedora pelo já consolidado
acaba de anunciar sua expansão
ecossistema de startups. Ao mesmo
para a capital mineira. A empresa
tempo, ele percebe várias outras
irá ocupar seis andares do prédio
indústrias mais tradicionais, como
localizado na Savassi (região Centro
do setor de mineração, que estão
Sul de BH) com capacidade para
abertas a se reinventar e a observar
800 posições de trabalho nessa fase
novas formas de trabalho. “Nossa
de abertura. A inauguração será
chegada à cidade é mais um passo
em outubro deste ano e já conta
em direção à crescente expansão
com a Take, que irá se instalar
física da comunidade no Brasil.
nos novos espaços, tornando-se a
Esperamos contribuir para conectar
primeira empresa mineira a integrar
nossos membros daqui, com os de
a rede. A expectativa é que a
São Paulo e Rio de Janeiro, estimular
WeWork se torne o epicentro do
a realização de negócios e, assim,
mercado de tecnologia em Belo
contribuir para o fomento da
Horizonte.
economia local”, ressalta.
Lucas Mendes, diretor geral da
Apesar de tratar-se de uma empresa
WeWork no Brasil (e mineiro de
global, cada unidade da WeWork
origem), explica que Belo Horizonte
no mundo leva em conta as
Fotos: divulgação Wework
Presente no Brasil desde julho de
características de cada país e da região onde está inserida. Isso se reflete nos elementos de design aplicados aos prédios e às particularidades das comunidades que vão se formando nos espaços. No caso da WeWork Savassi, cujas obras iniciaram-se no mês de julho, já está prevista uma iniciativa voltada para a área da mineração, uma das atividades econômicas mais importantes do estado. A proposta é a criação de um centro de inovação, que funcionará em um andar dedicado do prédio, que irá abrigar startups, empreendedores e empresas do segmento dedicadas a gerar inovação aplicada aos desafios da atividade mineradora. Os espaços também contam com serviços de internet de alta velocidade, café e chope à vontade, limpeza e recepção, segurança 24 horas, dentre outros. Presente no Brasil desde julho de 2017, a empresa conta com prédios em São Paulo e Rio de Janeiro e acaba de anunciar sua expansão para Belo Horizonte.
O modelo de negócios da WeWork, de acordo com Lucas, se baseia em transformar prédios em ambientes dinâmicos que estimulem a criatividade, a produtividades e as conexões entre os membros. ”Acreditamos que presidentes de empresas podem ajudar uns aos outros, que escritórios podem ser tão confortáveis quanto a nossa própria casa e que todos podemos aguardar ansiosos a chegada das segundas-feiras, se encontrarmos um propósito de verdade naquilo que fazemos”, acredita.
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Em entrevista para a FIEMG, André Vilar, labs manager da WeWork no Brasil, credita parte desse sucesso ao
Os espaços contam com serviços de internet de alta velocidade, café e chope à vontade, limpeza e recepção, segurança 24 horas, dentre outros
pioneirismo do conceito de negócio da WeWork. ”O co-working sempre existiu, mas fomos os primeiros a perceber que o poder do espaço compartilhado de trabalho não estava no ambiente físico em si, mas na comunidade que ele criava”, diz. De acordo com o Censo Coworking Brasil de 2017, cerca de 25 mil pessoas utilizam o sistema em Minas Gerais por mês, nos 47 espaços em
“O Brasil já é destaque global em um indicador interno de interação entre membros, medido a partir do engajamento no aplicativo da empresa”, lembra Lucas Mendes.
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Fotos: divulgação Wework
BH e 20 no interior do Estado.
Ele aponta ainda que mais de 50%
visões de negócio semelhantes para
das companhias que utilizam dos
crescer juntos”, avalia.
espaços da WeWork já realizaram negócios entre si. “Aqui essa
De acordo com o SEBRAE, a
interação acontece de maneira
economia colaborativa, também
muito orgânica e inclusive ultrapassa
chamada de compartilhada ou em
as barreiras profissionais - há casos
rede, é uma tendência que já está
de grupos de corrida, de leitura
mudando o mercado e que vem
e vários outros exemplos que se
impactando principalmente a forma
formaram a partir de conexões que
como fazemos negócio. Dentre
nasceram na WeWork”, completa.
as mudanças está a necessidade
“Nos primeiros meses de operação
das empresas atuais em manter
no Brasil, presenciamos histórias
baixos custos fixos, e a necessidade
de sucesso e superação entre os
de buscar parcerias com outras
membros. Desde empresas que
empresas, ao invés de monopolizar
triplicaram seus negócios graças
todas as soluções dentro do próprio
a conexões geradas nos nossos
negócio. Nesse contexto, o SEBRAE
espaços, até empreendedores
aponta para a necessidade
que fundaram organizações com
de investir e estreitar laços com empresas que se complementam.
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Fotos: divulgação Paul Brouns
Alegria rítmica e felicidade colorida Paul Brouns traz novos significados para a arquitetura e fotografia Por Pâmilla Vilas Boas
Geometria, ritmo e cor. Estes são os principais elementos da fotografia de Paul Brouns que trazem novos significados para a arquitetura, a partir da recomposição de detalhes fotográficos. Outros significados também para a fotografia digital, que assume novos contornos em sua obra. Quando Paul começou a utilizar câmeras digitais, logo descobriu múltiplas possibilidades de ampliar seu escopo criativo com os novos recursos disponíveis.
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A obra “Summer Song” do fotógrafo Paul Brouns revela seu olhar único para a fotografia de arquitetura.
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“Blue in Green” e “Corridors of Insomnia” trazem novos significados para a arquitetura a partir da recomposição de detalhes fotográficos.
Fotos: divulgação Paul Brouns
A obra “East of the sun” tensiona os limites e as interseções entre o realismo da imagem arquitetônica e a composição de uma imagem artística.
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O fotógrafo, designer e artista
como janelas, portas, paredes,
holandês Paul Brouns mantém um
cores, reflexos e sombras, criando
método criativo que desconstrói
verdadeiras tapeçarias. Uma das
o processo fotográfico, de forma a
principais plataformas de difusão
tensionar os limites e as interseções
do seu trabalho é o Instagram
entre o realismo da imagem
(@paulbrouns) que conta com
arquitetônica e a composição de
quase 30 mil seguidores e um feed
uma imagem artística. Essa é a
que impressiona pelas cores e pelos
sua principal potência ao utilizar a
traços, nos limites entre fotografia,
fotografia como meio de expressão.
pintura e arquitetura.
"Outro aspecto do meu trabalho é que, às vezes, crio novas impressões
"Você pode olhar para a
sobre os espaços recombinando
arquitetura e se concentrar apenas
detalhes fotográficos. Seria
nas formas abstratas. Você pode
maravilhoso se tais composições, no
compor uma imagem como se
final, inspirassem os arquitetos em
estivesse montando uma tela
troca", ressalta.
de uma maneira que Mondrian poderia ter feito. O que gosto
Atualmente, o principal projeto do
na fotografia é que, junto com a
fotógrafo é o Urban Tapestries ou
maneira abstrata de olhar, você
Tapeçarias Urbanas, no qual Paul
ainda pode reconhecer os detalhes
compartilha sua visão sobre a beleza
do mundo real em que vivemos.
abstrata da arquitetura urbana.
Esses minúsculos retângulos da
A proposta é utilizar elementos
composição abstrata podem se
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tornar mais interessantes quando um olhar atento os evidencia", explica. Quando começou a utilizar o Instagram, Paul pôde visualizar o conjunto de sua obra num feed sempre em expansão. Assim, teve uma nova visão sobre seu trabalho e aprendeu a fazer escolhas para construir um perfil capaz de traduzir uma mensagem potente aos seus seguidores. "Isso me trouxe mais foco e me fez redescobrir um estilo similar ao que eu tinha como pintor. O Instagram também me colocou em contato com muitas outras pessoas criativas ao redor do mundo - incluindo outros fotógrafos e artistas - e é revigorante poder ver o que as pessoas estão fazendo. Outra vantagem de usar o Instagram é que você recebe feedback sobre o que compartilha com o mundo e também ajuda a divulgar meu trabalho. Quando expus em Tóquio, fiquei agradavelmente surpreso ao entrar em contato com pessoas que já conheciam meu trabalho há vários anos", revela. Com a quantidade de fotos compartilhadas no aplicativo, é quase impossível descobrir e surpreender o mundo com algum lugar desconhecido. Paul, por exemplo, chegou a ver locais se transformando em destaques turísticos apenas por que foram fotografados e compartilhados milhares de vezes. É por isso que o fotógrafo busca o novo em detalhes cotidianos quase invisíveis ao nosso olhar apressado. "Claro que a quantidade de pessoas que compartilham fotos é inacreditável nos dias de hoje. Existem câmeras,
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“Like a cool breeze” e “Palace of hidden desires” apontam para a influência da pintura e do design na obra de Paul.
telefones e drones ao nosso redor.
cerâmica, ilustrações, metal islâmico
E, claro, também há desvantagens
ou escritos antigos encontrados em
nesse desenvolvimento. Mas, quando
tijolos de argila.
eu decido sair e tirar algumas fotos novas, esqueço tudo isso. “Só pego a
Essas múltiplas inspirações vem
bicicleta com minha câmera e ainda
também do fato de Paul ter atuado
fico surpreso com o que me chama a
como pintor por muitos anos e
atenção em qualquer canto", reflete.
ainda trabalhar como designer em complemento ao seu trabalho
Múltiplas linguagens
artístico. "Em qualquer disciplina, trabalha-se com cor, contraste, ritmo
Paul ganhou sua primeira câmera aos
e saturação para obter o bom humor:
18 anos, quando começou a estudar
você pode fazê-lo com pincel sobre
na Art Academy. Imediatamente,
tela, trabalhando em uma foto ou
ele descobriu seu fascínio pelo ritmo,
escolhendo o papel certo e usando
linhas e geometria e encontrou
uma fonte e espaçamento específicos
em elementos arquitetônicos,
ao projetar a página de um livro",
como portões, janelas, arcos e
explica.
superfícies, uma forma de se expressar artisticamente. A maneira como ele
Para ele, o principal objetivo é que o
fotografa edifícios traz uma visão
trabalho tenha uma forte sensação
muito particular e uma forma pessoal
gráfica. "Sempre tento encontrar
de contar sua história a partir da
imagens que, intuitivamente, chamam
fotografia.
minha atenção de alguma forma.
Fotos: divulgação Paul Brouns
Pode ser a luz, combinação de cores Além da principal inspiração que
ou um certo padrão que gosto.
são os elementos arquitetônicos, o
Depois disso, busco configurações
fotógrafo percebe a influência da
de edição para chegar o mais
pintura e do design em sua obra.
perto possível da essência. Removo
"Adoro reconhecer elementos de
elementos perturbadores, às vezes
design gráfico em edifícios: algumas
repito elementos e encontro um
fachadas podem até me lembrar
equilíbrio correto de luz e cor", ressalta.
alguns hieróglifos abstratos. Em outros
O fotógrafo explica que obtém esse
casos, o padrão de cores de um prédio
resultado mantendo a profundidade
com os detalhes certos, pode até
da imagem o mais superficial possível.
mesmo evocar uma peça de música
“Você pode ver isso em minha
jazzística para mim. É isso que faz
série Urban Tapestry: fachadas que
com que estar vivo e olhando para o
preenchem toda a imagem para que
mundo seja tão fascinante", descreve.
a foto do prédio esteja completamente
Artistas como Paul Klee, Mondrian,
alinhada com a superfície de uma
David Hockney ou Mark Tobey também
impressão (ou tela) e sem o contexto
são fontes de inspiração criativa, revela
do entorno (o céu, a rua)”, completa.
o fotógrafo. Além disso, Paul é um admirador das artes decorativas como
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Por Ana Cláudia Ulhôa
Fotos: divulgação Kosuke Takahashi
Uma fonte para a inclusão
Simulação de como seria a aplicação do Braille Neue na sinalização de espaços públicos durante as Olimpíadas de Tóquio em 2022.
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Imagine uma cidade na qual a sinalização do metrô, as placas de rua, botões de elevadores, entre outros, podem ser lidos sem qualquer dificuldade, tanto por deficientes visuais quanto por pessoas que enxergam normalmente. O projeto Braille Neue, do designer japonês Kosuke Takahashi, surgiu para tornar esse cenário realidade.
Unindo as formas dos alfabetos latino e japonês com os pontos do braile, Kosuke conseguiu criar uma fonte que pode ser vista e tocada ao mesmo tempo. A ideia surgiu quando o designer realizou uma visita a um centro de saúde especializado em visão. Observando os pacientes do local, ele percebeu como a sociedade está pouco familiarizada com o braile. “Uma das inspirações para o projeto foi minha ida ao Hospital Japonês de Oftalmologia no ano passado. Havia gente lendo braile a uma velocidade muito grande, e fiquei espantado”, conta. A partir daí Kosuke Takahashi passou a se fazer várias perguntas. “Como posso ler braile? Será que se eu ligar os pontos se torna uma letra? Me senti incomodado com o fato de que pessoas com visão não conseguiam ler”, explica. De acordo com o designer, raramente o braile é implementado em locais públicos, uma vez que requer um espaço maior para ser aplicado e as pessoas com visão não o consideram importante. Dessa forma, sua proposta passou a ser projetar
uma sinalização com o objetivo de criar oportunidades. “Queremos que pessoas com visão aprendam braile e façam uma ponte entre os que enxergam e os cegos, para uma sociedade mais inclusiva”, ressalta Kosuke. No entanto, para se chegar ao Braille Neue, Kosuke Takahashi enfrentou algumas dificuldades. “As regras são muito diferentes para o braile e outros caracteres existentes. Tivemos que explorar um equilíbrio legível para ambos”. Após diversas experimentações, o designer chegou ao Braille Neue Standard, formado com letras do alfabeto latino, e ao Braille Neue Outline, feito com os ideogramas japoneses. Para testar a aplicabilidade de seu projeto, Kosuke desenvolveu uma identidade para o evento No Look Tour, do Kobe Eye Center, e uma demonstração em um edifício de Shibuya, Tóquio. O próximo passo é negociar com o Comitê Olímpico Internacional para utilizar o Braille Neue nos Jogos Olímpicos e Paralímpicos de Tóquio, que ocorrerá no ano de 2020.
81
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Fontes Braille Neue em suas versões para o alfabeto latino e japonês.
Exemplo de sinalização com o Braille Neue indicando o banheiro. Nela é possível tocar nos pontos e enxergar a palavra.
“Há muitos lugares em que o braile ainda
incluam braile. Através dessa contribuição
não está implementado no Japão. Estamos
podemos aumentar a variação do tipo de
planejando instalá-lo em locais como botões
letra que combina braile com os caracteres
de elevador, grades, placas-guia. Além disso,
existentes. Acredito que podemos criar uma
eu gostaria de utilizá-lo na educação em
sociedade inclusiva no qual o uso de braile se
braile, como livros e brinquedos e gostaria de
torne comum”.
implementar bilhetes e guias olímpicos”.
Imagens: divulgação Kosuke Takahashi
Para Kosuke, o projeto consiste não apenas Animado com a perspectiva de seu projeto,
em uma fonte, mas em um meio de
Kosuke Takahashi quer ampliar ainda mais
comunicação. “Embora seja possível transmitir
a ideia da utilização do braile. Para isso, ele
informações mesmo se as letras e braile
tem se conectado com vários designers pelo
existentes forem escritos separadamente,
mundo que possuem trabalhos parecidos.
a lacuna entre os dois mundos não será
Ele também está trabalhando em uma
superada, não importa quanto tempo passe.
forma de transformar o Brialle Neue em algo
A informação tem o poder de conectar as
colaborativo.
pessoas, então, gostaria de utilizar esse poder para unir os deficientes visuais às pessoas que
“A partir de agora, gostaria de fazer dele um
enxergam normalmente”, conclui.
projeto coletivo e aberto em que qualquer um possa criar e usar tipos de letra que 83
Fotos: Cyro José Soares
Mercados municipais: lugar de encontros e tradições As especificidades das construções brasileiras e a continuidade dos mercados nos dias atuais. Por Ana Cláudia Ulhôa Garrafadas, pacus frescos, cerâmicas marajoaras, pimentas de cheiro, carnes secas, berimbaus, queijos canastra, imagens de Iemanjá, doces de leite, rendas, cajus, cuias para chimarrão, cordéis. Os mercados espalhados pelo Brasil são ricos em cores, cheiros, sabores e cultura. Um cenário que encanta pessoas, como Cyro José Soares, fotógrafo mineiro que teve a oportunidade de registrar os mercados municipais mais importantes do país.
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Box com objetos de cozinha do Mercado Central de Belo Horizonte.
O sonho de clicar lojas e personagens desses espaços começou há 30 anos, quando Cyro pisou pela primeira vez no Ver-oPeso, em Belém, no Pará. “Eu viajo muito a trabalho e quando chego em um lugar, primeiro vou conhecer o mercado. Ao visitar o Ver-oPeso fiquei muito entusiasmado com a arquitetura, a história e a importância para a cidade. Então, tive a ideia de fazer um livro. Cheguei até a montar uma boneca e saí mostrando para todo mundo, tentando patrocínio”, conta. O projeto de Cyro José só veio a se concretizar em 2009, ano em que a editora Autêntica decidiu bancar a obra através de recursos da Lei de Incentivo à Cultura do Governo Federal. O livro, de 216 páginas, narrou e ilustrou a história e o dia a dia de 10 mercados municipais em diferentes estados e ganhou o nome de Mercados do Brasil: de Norte a Sul. 85
De acordo com o fotógrafo, o
fotográfica, uma lente minitele, uma
processo de produção do material
lente micro, um tripé e um disparador.
foi muito corrido, porém prazeroso.
O resultado foram imagens que
Ele explica que permaneceu em
captam movimento, detalhes, a
cada cidade por apenas três
composição dos espaços, além de
dias. Em todas elas, um repórter
retratos coloridos e alegres de quem
o acompanhava com o objetivo
ajuda a fazer a história dos mercados.
de entrevistar as pessoas e redigir os textos que estão presentes na
Entre os personagens que mais o
obra. “A gente adotou o seguinte
marcaram está Abdenago de Souza
sistema: em cada lugar um jornalista
Leite, um senhor de mais de 80 anos
era contratado. Ele conversava
que viveu a vida inteira no Mercado
com o pessoal das bancas
de São José, em Recife, Pernambuco
e eu ia coletando o material
e é conhecido por todos como
fotográfico. Depois, nós sentávamos
“Seu Microfone”. “Todos as manhãs
e conversávamos sobre o que
ele está lá. O ‘Seu Microfone’ virou
tínhamos feito. Foi uma turma muito
uma figura folclórica, todos querem
boa, sempre”.
conhecê-lo. Ele é muito inteligente e tem uma conversa muito rica. Você
Para captar cada momento, ele
puxa um assunto e ele já começa
utilizou poucos recursos. Cyro
a falar. Também compõe músicas e
lembra que, em todas as viagens,
declama poesias com versos muito
carregou apenas uma máquina
bem construídos”.
Mercado Municipal Adolpho Lisboa – Manaus / AM Ano de Fundação: Em 1883 já existia uma versão menor do mercado, com apenas um pavilhão central de ferro, mas seu ano oficial de fundação data de 1906. Quantidade de boxes: 182 Principal atração: O prédio construído com ferro trazido da Grã-Bretanha durante o apogeu do comércio da borracha, é um dos maiores atrativos do local. Produtos de destaque: Artesanato indígena.
Complexo de Mercados e Feiras Ver-o-Peso – Belém / PA Ano de fundação: Os espaços foram criados em data diferentes. Porém, segundo a Prefeitura Municipal de Belém, o mercado Ver-o-Peso surgiu em 1688 por meio de uma provisão régia. Quantidade de boxes: 1.280 Principal atração: O setor de ervas e a estrutura do complexo, diferente de todas as outras do país. Produtos de destaque: Peixes, ervas, frutas exóticas, açaí, artesanato e vestuário.
Mercado de São José Recife / PE Ano de fundação: 1875 Quantidade de boxes: 545 Principal atração: Pescados e artesanatos. Produtos de destaque: Mariscos, crustáceos, roupas e artesanato para casa.
Fotos: Cyro José Soares
Os cajus e outras frutas típicas do Brasil são encontradas no Mercado Varejista do Porto, em Cuiabá.
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Área interna do Mercado Varejista do Porto em Cuiabá.
O Mercado de peixes do Ver-o-Peso, em Belém, reúne todas as espécies da Bacia Amazônica.
As peças de cerâmica marajoara são algumas das peças mais procuradas pelos turistas que vão conhecer o Ver-o-Peso.
Vista do Ver-o-Peso, o maior complexo de mercados do Brasil, às margens do igarapé do Piri.
Obras de Cordel comercializadas no Mercado Modelo, em Salvador.
Fotos: Cyro José Soares
A Feira de São Cristóvão reúne o melhor da cultura nordestina na capital fluminense.
Mercado Modelo – Salvador / BA Ano de fundação: 1912 Quantidade de boxes: 262 Principal atração: Artesanato e lembranças da Bahia. Produtos de destaque: Quadros com imagens que remetem à Bahia, peças decorativas afro-brasileiras e berimbau.
Mercado Varejista do Porto – Cuiabá / MT Ano de fundação: 1994 Quantidade de boxes: 209 Principal atração: Variedade de peixes.
87
Mercado Central Belo Horizonte / MG Ano de Fundação: 1929 Quantidade de boxes: Cerca de 400 Principal atração: Bares e ingredientes para culinária. Produtos de destaque: Queijos, cachaça mineira, doces típicos e condimentos.
Assim como Abdenago, existem
Diante de tudo isso, Cyro não tem
várias outras figuras que se tornaram
dúvidas ao dizer que os mercados
parte dos mercados municipais
representam muito mais do que um
espalhados pelo Brasil. No Mercado
centro comercial. Para o fotógrafo
Público Central de Porto Alegre,
esses lugares são a expressão da
localizado no estado do Rio
cultura e história de cada lugar.
Grande do Sul, um dos nomes mais
Segundo ele, é no mercado se que
conhecidos é o de Darci de Souza
conhece a cidade. “Em minhas
Oliveira, também chamado de
conversas com as pessoas, cheguei à
Paulo Naval. Com 73 anos de idade
conclusão que o mercado é o local
e 52 de mercado, ele é hoje o
mais democrático de todos, porque
garçom mais antigo do local.
ali você fica sabendo de tudo,
Feira de São Cristóvão – Rio de Janeiro / RJ Ano de Fundação: 1945 Quantidade de boxes: 700 Principal atração: Shows de música nordestina, de repentistas e cordelistas. Produtos de destaque: Artesanato, culinária e música.
todo mundo quer conversar e você De acordo com livro de Cyro,
também conta suas histórias”, afirma.
Naval coleciona histórias de visitas ilustres, como dos músicos Lupicínio Rodrigues, Nelson Gonçalves, Carmem Miranda, Elis Regina e Carlos Gardel. Ele também é conhecido por ser o poeta do mercado. No cardápio do estabelecimento em que atende, está estampado o seu poema
História dos Mercados
“Carreteiro de Charque, tchê”: A introdução do livro Mercados do
“Meu velho arroz carreteiro /
Brasil: de Norte a Sul conta com texto de uma das fundadoras do
Feito em beira de estrada /
Grupo Editorial Autêntica, Rejane
Tem gosto de manjerona /
Dias. Através de uma pesquisa detalhada, ela reúne dados para
E cheiro de madrugada /
contar um pouco sobre a criação
Quando começo a te comer /
desses centros comerciais nas cidades ao redor do mundo, as
Parece que estou beijando /
especificidades das construções
A minha china amada /
brasileiras e a continuidade dessa
Que faz o acompanhamento / Eu sinto estar servido / No prazer deste momento!”.
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Capa do livro Mercados do Brasil – de Norte a Sul, com fotografias de Cyro José e organização da editora Autêntica.
Fotos: Cyro José Soares
tradição nos dias atuais.
E com o feijão mexido /
O Mercado Municipal Adolpho Lisboa, em Manaus, foi uma dos que foram construídos com ferro trazido da Europa no final do século XIX e início do XX.
Os boxes de queijo são mineiros são alguns dos atrativos do Mercado Central de Belo Horizonte.
O Box 32 é um dos bares mais famosos do Mercado Público de Florianópolis.
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Fachada do Mercado de São José, em Recife.
O Mercado de São José é o mais antigo do Brasil, sua construção data de 1875.
Seu Microfone é uma das figuras mais antigas e conhecidas no Mercado de São José, em Recife.
Fachada do Mercado Municipal de São Paulo construído em 1933.
Fotos: Cyro José Soares
Mercado Municipal – São Paulo / SP Ano de fundação: 1933 Quantidade de boxes: 291 Principal atração: O sanduíche de mortadela. Produtos de destaque: Bacalhau, vinhos e azeite.
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Paulo Naval é o garçom mais antigo do Mercado Público Central de Porto Alegre com 52 anos de atividade.
Mercado Público de Florianópolis – Florianópolis / SC Ano de fundação: 1898 Quantidade de boxes: 140 Principal atração: Box 32, bar conhecido por receber celebridades. Principal atração: Peixes, frutos do mar, calçados e vestuário.
Mercado Público Central de Porto Alegre Porto Alegre / RS Ano de fundação: 1869 Quantidade de boxes: 109 Principal atração: Bomba Royal da Banca 40, prato feito com salada de frutas, três bolas de sorvete e nata batida. Principal atração: Erva-mate, peixes, artigos religiosos.
Segundo Rejane, a origem dos
Rejane esclarece que era um hábito
mercados e das feiras pode ser
iniciar o povoamento dos territórios
considerada tão antiga quanto o
com a construção de um cruzeiro e
surgimento do agricultor e pecuarista
uma capela, que serviam de ponto
que trocavam o excedente de
inicial para o desenvolvimento das
suas produções. “As primeiras
demais construções e atividades
aglomerações urbanas já contavam
locais.
com atividades agrícolas e citadinas, constituindo-se em núcleos de
“Levando em conta esse fato,
povoamento e comércios locais”,
podemos imaginar que não é à
explica no livro.
toa que muitos mercados brasileiros tenham nascido nas futuras praças
Rejane Dias também lembra que,
da Matriz”. Rejane ainda completa
inicialmente, “a troca de produtos
em sua introdução: “Esse quadro
que garantiam o abastecimento da
das cidades brasileiras, repleta de
população local era feita nas feiras
vendedores ambulantes, como foi o
e mercados abertos, localizados
caso do Rio de Janeiro, prevaleceu
em abrigos temporários – como
até meados do século XIX”.
ainda acontece hoje em dia com feiras livres semanais das cidades
A partir desse período, os mercados
brasileiras”, escreve.
ganharam uma nova configuração. Com o início da Revolução Industrial,
De acordo com o texto da editora,
a ampliação dos espaços urbanos e
esses centros comerciais começaram
a utilização de ferro como principal
a se estabelecer completamente
matéria-prima para construções,
durante o final da idade média,
esses locais passaram a ser cobertos
período em que há um renascimento
e amplos. “No caso do Brasil, dentre
das cidades europeias. “Com o
todos os edifícios pré-fabricados
passar do tempo, em decorrência
em ferro, nenhum teve tanta
do crescimento populacional, da
aceitação e utilidade quanto os
expansão urbana e do aumento
mercados públicos. A variedade de
das produções locais, que traziam a
módulos que podiam ser importados
consequente possibilidade de bons
e a facilidade de construção,
negócios para os mercadores, fica
possibilitaram o surgimento do
evidente a necessidade de mercados
primeiro mercado em ferro brasileiro:
no qual a população pudesse se
o Mercado de São José, instalado no
abastecer”.
Recife, em 1875”, relata no livro.
Após a colonização portuguesa no
Inicialmente, os centros comerciais do
Brasil, não demorou muito para que
país eram inspirados nas construções
essa tradição chegasse ao país.
europeias. Porém, o clima brasileiro
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Fotos: Cyro José Soares Área interna do Mercado Municipal de São Paulo com vista para o vitral criado pelo artista russo, Conrado Sorgenicht Filho.
O sanduíche de mortadela é uma das iguarias mais procuradas no Mercado Municipal de São Paulo.
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Fotos: Cyro José Soares
era bem diferente do encontrado no velho continente, o que resultou em diversas adequações nos prédios. “Os projetos arquitetônicos dos mercados brasileiros incluem, além do característico vão livre coberto por um grande teto – comum a todos os mercados -, algumas adaptações às nossas condições climáticas. Como uma construção com todas as laterais abertas para as ruas, permitindo a iluminação e ventilação do ambiente no caso dos edifícios situados nas regiões mais quentes Artesã fazendo esculturas regionais em cristal murano no Mercado Público de Florianópolis.
do país”. Passando para os dias atuais, a editora lembra que os mercados já se tornaram modelos de negócios defasados em relação aos seus concorrentes. Hoje em dia, eles competem com supermercados e grandes redes de lojas físicas e virtuais com estratégias pesadas de marketing e propaganda. Mesmo assim, Rejane acredita no poder da tradição dos mercados. Para ela, o que faz esses locais permanecerem são suas peculiaridades. “O que importa é que os mercados são espaços democráticos, cheios de vida e de histórias, abertos à
Fachada do Mercado Público de Florianópolis, fundado em 1898.
itinerância de frequentadores de todas as idades, gostos e interesses, de todas as classes sociais. São pontos de compras e encontros, de pequenos e grandes negócios, de boemia e gastronomia, de arte e convivência social”, conclui em seu texto. 93
Aravrit: um alfabeto para a coexistência Por Ana Cláudia Ulhôa e Pedro Parisi
A linguagem define territórios, reúne pessoas e representa um dos principais ingredientes da cultura de um país. Quando dois povos com tradições e idiomas diferentes convivem em um mesmo lugar, a diferença de idiomas passa a fazer parte da política e do dia a dia da população. Isso gera conflitos linguísticos que, muitas vezes, espelham a geopolítica local. A designer especializada em tipografia, Liron Lavi Turkenich, nasceu e cresceu em Israel, onde o choque de costumes e de idiomas é um dos mais relevantes do mundo. Incomodada com isso, ela desenvolveu o Aravrit, um novo alfabeto que reúne os caracteres do hebreu e do árabe, formando letras compreensíveis para falantes das duas línguas. “Em Haifa, minha cidade natal, as placas de trânsito são escritas em três línguas: Hebraico, Árabe e Inglês. Percebi que, simplesmente, passei 30 anos ignorando tudo que estava escrito em árabe, e isso me incomodou
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A sinalização de trânsito trilíngue de Israel foi o gatilho para Liron Lavi Turkenich idealizar o alfabeto Aravrit.
Em um país plurilíngue, até donos de pequenos negócios têm a necessidade de se comunicar com todos através de três idiomas.
Um dos ideais de Liron é ampliar o diálogo sobre o conflito árabe-israelense utilizando o Aravrit em instituições culturais, como museus e teatros.
Fotos: divulgação
muito. Passou a não fazer mais sentido conviver com pessoas que falam árabe, ver a língua árabe diariamente e, simplesmente, não prestar atenção nela”, conta Liron. Com a ideia de unificar a tipologia das duas culturas em conflito, Liron buscou inspiração no oftalmologista francês Louis Émile Javal que, no final do século XIX, descobriu que é perfeitamente possível ler o alfabeto latino usando somente a metade superior das letras. Ao estudar os abecedários de sua região natal, Liron descobriu que, na grande maioria de letras hebraicas, a parte mais importante para a cognição fica na parte de baixo, e das árabes, na parte de cima. Era a combinação perfeita. Entretanto, para que os caracteres formassem palavras compreensíveis para os dois lados, a tipógrafa teve que fazer todas as combinações possíveis entre as 22 letras do hebreu e as 29 do árabe, para chegar no total de 638 caracteres do Aravrit. Ela testou, exaustivamente, os conceitos com amigos que falavam as duas línguas, além de aplicar testes em pessoas em lugares públicos. “Durante meu trajeto diário no trem, ficava perguntando para as pessoas se elas conseguiam compreender o que eu havia escrito em Aravrit. Na maioria das vezes, me respondiam animados, e davam sugestões e críticas. Isso foi muito importante para o projeto”, explica. Liron tem percorrido o mundo, apresentando o Aravrit em
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O Aravrit pode ser compreendido tanto por leitores da língua hebraica, quanto árabe. A parte de cima de cada letra é baseada no alfabeto árabe enquanto a de baixo no hebreu.
palestras e workshops. De acordo com ela, o principal resultado até agora foi a repercussão e a possibilidade de transmitir uma mensagem importante sobre coexistência. “Percebi que as pessoas começaram a falar sobre viver juntos e sobre coexistência. E, para mim, isso já é um grande resultado”, conta. A ideia é promissora e tem potencial de ser utilizada em outros lugares do mundo, onde alfabetos diferentes dividem territórios. “Eu acredito que isso funciona melhor onde existe conflito real, quando é possível trazer uma mensagem mais profunda. Uma coisa excelente é que o novo alfabeto pode ser lido por todos. Outra é quando ele levanta um debate social e uma mensagem positiva sobre um tema complicado”, explica. Liron também trabalha no projeto Makeda, que reúne os alfabetos latino, hebreu e o amárico em uma família tipográfica. O amárico é a língua falada na Etiópia e por uma minoria étnica em Israel. Além do cunho social, o projeto traz uma mensagem feminista, pois foi Makeda da Etiópia ao Rei Salomão, de Israel.
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Imagens: divulgação
inspirado na lenda da visita da rainha
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