Caro leitor Expediente: Editor Camilo Belchior
Quem se interessa por design sabe que um dos motivos do grande sucesso do design italiano vem precisamente de um período pós segunda guerra mundial, que se firmou durante as décadas de 1960
Jornalista Responsável: Cilene Impelizieri 5236/MG
e 1970. Para reforçar esse sucesso, os italianos criaram o termo “Made in Italy” que determinou um grande modelo produtivo do design, se valendo da “ocasião” por possuírem grandes mestres coexistindo em um
Jornalistas:
mesmo período de tempo.
Ana Cláudia Ulhôa Pâmilla Vilas Boas
Nós, da magazinebook iDeia Design, acreditamos que algo próximo a
Marco Túlio Ulhôa
esse fenômeno esteja surgindo aqui em nosso país e que, possivelmente, pode ser denominado um “Made in Brasil”. Estamos falando dos
Projeto gráfico e
diversos expoentes que vem surgindo, ao longo das últimas décadas, e
coordenação gráfica
que estão levando o nome do Brasil, em se tratando de design, para
Cláudio Valentin
o mundo todo. São profissionais que atuam nas mais diversas áreas e que demonstram, em seus trabalhos, a riqueza da cultura brasileira.
Seção Artigos Marcos Maia
Capa Cerâmicas de Denise Saboia
Apoio Acadêmico GESSD
Ou melhor, explicitando a brasilidade em formas, cores, texturas, mas principalmente, nos significados que cada artefato leva consigo. O território brasileiro é continental, portanto, a diversidade de talentos é enorme e, muitas vezes, pouco conhecida. E, foi justamente nesse ponto que resolvemos nomear a temática desse volume de “fora do eixo”.
Grupo de Estudos em Sistémas Signicos no Design
Nossa proposta foi trazer uma pequena amostragem do que vários desses talentos estão fazendo em suas respectivas regiões,
A iDeia Design é uma publicação da Editora PlexuDesign, patrocinada pelo
pincelando a publicação com matérias e entrevistas de notórias personalidades do design.
Grupo Loja Elétrica / Templuz, com veiculação gratuita, não podendo ser vendida. Sua distribuição é feita para um mailing seleto de profissionais das áreas
Acreditamos que esse misto de informações possa nos ajudar a refletir melhor sobre uma possível resposta para a tão recorrente pergunta: existe um design brasileiro?
afins, ao design e formadores de opinião.
Portanto, o quarto volume da magazinebook iDeia Design apresenta um Contato: contato@revistaideia.com
compilado de informações que compreende o termo “fora do eixo”, tanto no sentido da diversidade de talentos, quanto por profissionais que estão fazendo trabalhos especiais, inusitados, carregados de traços
Os artigos assinados são de exclusiva
genuinamente brasileiros.
responsabilidade dos autores e não refletem a opinião da revista.
Espero que gostem. Ótima leitura! revistaideia.com
RevistaiDeiaDesign
revistaideia_design
Índice 06 Ampliando as fronteiras do design
16 As possibilidades estéticas da literatura 22 Flores com um toque pessoal ENTREVISTAS
26 Uma vida dedicada ao design modernista brasileiro Com Etel Carmona
32 Talento que ultrapassa gerações Com Rodrigo Ohtake
40 O cinema como um
comportamento diante do objeto
Com Walter Carvalho
46 A trama da vida
52 Iluminação: uma arte que exige técnica e beleza
58 A tropicalidade no design nacional 62 Moda em movimento 70 Às margens da história ARTIGOS
81 Projeção de um design brasileiro Com Marcos Maia
85 Design olfativo e brasilidade: os encantos da experiência
Com Isabela Monken Velloso
90 Formação Visual e Brasilidade:
conexões possíveis a partir do Design na Leitura
Com Maíra Lacerda e Jackeline Lima Farbiarz
94 Cerâmica: uma tradição nacional 100 Desenhando o sertão de Canudos
6
“
O design brasileiro é considerado a última grande descoberta estilística e uma descoberta tão importante a ponto de ser considerado uma escola como a francesa, italiana ou americana pelo número e qualidade dos autores.
“
Lissa Carmona
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Ampliando as fronteiras do design Da concentração do mercado no sudeste a iniciativas nos diversos cantos do Brasil Por Pâmilla Vilas Boas
Para lidar com o obstáculo de estar longe do eixo Rio-São Paulo, os designers Felipe Bezerra e André Gurgel, do estúdio Mula, Preta fizeram o caminho inverso: conquistaram o reconhecimento internacional para depois atingir o mercado brasileiro. O Estúdio, fundado em 2012 em Natal (RN), coleciona premiações nos mais importantes eventos de design internacionais, como a A’Design Awards Milan. “Passamos três anos nos inscrevendo em concursos na Itália e EUA. A partir desses prêmios tivemos inserções em revistas da Alemanha, Rússia, China e Inglaterra. Fizemos um caminho inverso de não estar em canto nenhum e, ao mesmo tempo, em todos os lugares”, afirmam os designers. E foi assim que eles chamaram a atenção das fábricas brasileiras, tiraram os desenhos premiados do papel e passaram a produzir seus produtos em escala industrial. “Foi a forma que conseguimos de ter destaque e uma certa atenção dos fabricantes, que recebem dezenas de pessoas todos os dias. Por melhor que seja o desenho, é muito difícil conseguir atenção. Esses prêmios nos ajudaram a vencer uma etapa mais rápidamente que o normal, já que, estando em Natal, é ainda mais complicado bater na porta”, revelam.
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Foto: divulgação
A Furf Design, juntamente com outros estúdios brasileiros, criou a coleção Ginga para a marca global de móveis em couro Natuzzi Editions da Itália.
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“A globalização é a união de regionalismos”, afirma André. Essa frase é o mote do design do estúdio que aposta num desenho incomum, acabamento sofisticado com um toque de irreverência e do espírito local. O próprio nome “Mula Preta” já revela essa postura. “Qual será o nome? Pensamos em nomes estrangeiros, juntar os nossos nomes, mas eu trouxe a raiz para cima da mesa e falei “vai ser Mula Preta”. Ele traz o nosso espírito, o nosso local, além de ser uma marca na memória. É um nome que aguça a curiosidade e chama a atenção”, completa Felipe. Os designers explicam que a opção foi criar produtos com esse toque de industrialização sem perder a irreverência. “Como temos a oportunidade de uma escala maior na indústria e, ao mesmo tempo, carregamos essa essência do regional, isso chamou atenção de lugares como a Itália, berço do design mundial”, apontam. A sede do estúdio é em Natal, mas com uma forte presença em São Paulo. Os designers revelam que estão em processo de construção de um showroom na capital paulista, com inauguração prevista para 2020. A loja vai agregar os produtos do Estúdio, além de moda, lifestyle, tudo com a marca da irreverência.
foi feito cortando e colando peça por peça. É uma pena que a indústria moveleira no nordeste não seja tão avançada, por mais que a gente quisesse tentar desenvolver nossos produtos, lá seria impossível. O Mula Preta nasce com essa carga do nordeste, de ser feito em Natal, mas precisa de parceria no Brasil todo, sobretudo sul e sudeste, para poder tirar as ideias do papel e propagar a mensagem de um nordeste mais sofisticado”, explicam.
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Imagens: divulgação
“Natal não tem indústria moveleira. O primeiro protótipo da poltrona Duna
São Paulo concentra 45% do PIB nacional. Então,
“Se você se torna muito especialista, acaba
é natural que ainda exista uma discrepância na
limitando a própria inovação dentro daquela área”
concentração de mercado consumidor. Apesar
afirma o designer Rodrigo Brenner que alterna seu
dessa realidade, os designers vem percebendo
cotidiano entre as múltiplas videoconferências
a atuação de novos players no Nordeste,
para atender a diversidade de países em que
propagando design em diferentes regiões. “O
atuam. O designer explica que a competição no
público local valoriza muito nosso trabalho. Temos
mercado internacional acontece pela identidade
uma prospecção bacana em nossa cidade e uma
que criaram no Estúdio, o que ele chama de uma
grande repercussão lá. Abrimos caminho para que
linguagem poética ou de micro poesias expressas
a realidade do design aconteça em diversos cantos
em cada projeto. “Uma linguagem universal que
do Brasil”, avaliam.
agrada e conquista muita gente”, avalia. Uma
Sul do país: um novo eixo do design
dessas expressões pode ser encontrada na luminária Saudade - duas metades que se completam e formam uma cúpula. Quanto mais próxima uma da
A Furf Design Studio, fundada há oito anos pelos
outra mais intensa a luz e quando se separam a luz
designers Mauricio Noronha e Rodrigo Brenner,
se apaga.
está instalada em Curitiba, mas realiza projetos em outros 19 países. O estúdio tem uma ampla atuação no desenho industrial e abrange diversas áreas - moveleira, médica, produto - e tem clientes que vão de startups a multinacionais e projetos em colaboração com a ONU.
Já a coleção Bloom, realizada em parceria com a Abex Design, resgata uma técnica
dos pampas gaúchos em busca dessa identidade local e linguagem global ao ressignificar o uso dos tradicionais botões de couro nos móveis. “Encontramos a técnica de
As peças integram a coleção Colina Design, uma linha de mobiliário autoral, projetada pelo designer Marcelo Coelho, com o objetivo de promover e valorizar o design de Brasília dentro e fora da cidade.
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usar sobra de couro da indústria alimentícia para
ajustes que consegue se adaptar ao maior número
fazer essas flores, uma técnica antiga dos pampas.
de amputados possível. Hoje, ela está disponível
Movimentamos a economia e as pessoas estão
em mais de 15 países e no SUS é gratuita”, relata.
voltando a fazer essas flores”, ressalta. Números de cinco anos atrás revelam que apenas Mas o estúdio ficou conhecido internacionalmente
10% das pessoas que se formavam em Design
pelo desenvolvimento da Confete - primeira
realmente atuam no mercado, aponta Rodrigo.
capa adaptável e colorida de prótese de perna
Dos que atuam em design de produto, 95% estão
produzida em massa no mundo. As propostas
na indústria moveleira e de decoração, setor que
que existiam até então não eram atrativas,
representa menos de 3% da indústria. “Então, a
feitas de tubos metálicos que comprometiam o
conta não fecha. Existe mais oportunidade na
volume da perna e impactavam na autoestima
indústria e foi por isso que optamos pelo mercado
dos usuários. As capas convencionais custavam
de larga escala. Estamos desenhando o futuro do
R$ 1.200,00 para o SUS e as iniciativas pontuais
amanhã, não é só uma questão de modismo, a
que surgiram no Canadá e Alemanha, feitas em
proposta do Estúdio é criar coisas democráticas”,
impressão 3D, chegavam no Brasil por 4 mil reais.
complementa.
amputados são China, Índia e Brasil, ou seja, países
Para o designer, São Paulo vem gradativamente
em desenvolvimento. As capas eram feitas sob
perdendo o protagonismo nesse mercado.
medida, por isso tão caras. Nós inventamos uma espécie de camiseta tamanho M - uma capa com
Rede desenhada pelo Estúdio Mula Preta A Centopeia, uma das peças premiadas do estúdio Mula Preta, foi inspirada no inseto exótico de mesmo nome e que habita a floresta tropical brasileira.
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“Curitiba é o equilíbrio perfeito. Temos poucos
A mesa Falésia, do estúdio Mula Preta, foi inspirada na formação geográfica muito presente na cidade de Natal Poltrona Still, desenhada pelo Estúdio Mula Preta
Imagens: divulgação
“Depois dos EUA, os países com maior número de
A Basquete, do Estúdio Mula Preta, é uma cadeira elegante e extremamente confortável inspirada em uma simples bola de basquete.
projetos na cidade, a maioria está no Rio Grande
Brum, pela pulverização das indústrias. “Hoje,
do Sul, São Paulo e Rio de Janeiro. A gente
os maiores centros de design não estão em SP.
prefere fazer um bate e volta do que morar
O design center da Eletrolux está em Curitiba,
nesses grandes centros. A partir do ano que vem
o da Grendene em Farroupilha e o da Fiat em
vamos ter uma experiência física fora, vamos
Betim. As maiores empresas que contam com
criar um estúdio na Itália, mas a sede continuará
dezenas de profissionais de design não estão
em Curitiba”, revela.
em SP”, conclui.
Eixo em deslocamento
O inverso também vem acontecendo. Brum explica que tem se tornado comum que
Para a diretora técnica do Centro Brasil Design,
uma empresa do Rio de Janeiro, que está
Ana Brum, é preciso desmistificar a ideia de
sendo bombardeada de oferta, contrate um
que o território criativo está apenas no eixo
escritório de Curitiba, por exemplo, e ganhe
Rio-São Paulo. A partir das iniciativas do Centro
todos os prêmios de design, como no caso da
em conectar designers e indústria, eles vêm
empresa Ethnos, que contratou a Furf Design
percebendo que as demandas surgem de vários
Studio. O estúdio Abracadabra Design, sediado
lugares do Brasil e, por isso, a oferta não precisa
em Fortaleza, após ter ganhado prêmios
estar nesse eixo. Brum explica que hoje o país
internacionais, como o IF Design Awards, maior
conta com 638 escritórios de design, a maior
prêmio de design do mundo, é procurado
parte da oferta na região sudeste, mas com
sobretudo por empresas de São Paulo e Belo
uma ampliação significativa de iniciativas no
Horizonte, além de dar palestras para designers
resto do país. Isso se dá também, como explica
da capital. Já o escritório mais premiado do Brasil
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Foto: Ricardo Perini Foto: divulgação
Foto: divulgação Foto: divulgação
é a Greco Design, sediado em Belo Horizonte,
Fundada pelo design
cujo sócio, Gustavo Greco, é presidente nacional da Abedesign.
Quando Juscelino Kubitschek decidiu criar Brasília do “zero”, em cinco anos, houve um
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A cada 1% que a empresa investe em design
movimento intenso de designers para produzir
resulta em 3% de retorno nas vendas. É por isso
mobiliário e outros produtos que iriam habitar os
que as empresas não querem mais trabalhar no
novos prédios e a arquitetura de Oscar Niemeyer.
risco ou usar o design apenas para plasticidade
Com destaque para o mobiliário do designer
ou estética. “Ele vem pra modificar processos
Sérgio Rodrigues, utilizado em grande escala
produtivos, racionalizar matéria prima e identificar
no período. Foi baseado nesse histórico que a
oportunidades. Muitas vezes, por não estar no
capital do país, em 2017, foi reconhecida como
eixo, esses estúdios e designers trazem novos
uma cidade criativa do Design pela Unesco. Um
olhares para essas demandas”, completa.
projeto gestado pela Secretaria de Turismo que
O projeto Anjinho da Furf Design foi exposto na Semana de Design de Milão, Pitti Bimbo em Florença, Semana de Design de Moscow, dentre outros.
Outono da Furf Design é a primeira coleção de produtos do mundo criados com biotecido de folha.
Banco Alvorada do designer brasiliense Aciole Félix
Cadeira Delta do designer brasiliense Aciole Félix
objetivou inserir a cidade nessa rede mundial de
as feiras, a divulgação, os eventos e o próprio
designers.
público alvo que está concentrado em São Paulo. “Eu moro em Brasília, mas vou a São Paulo
Brasília ainda é uma cidade muito voltada
a cada dois meses. Quem vai para SP se insere
ao serviço público. Com poucas empresas,
mais rápido no mercado. Eu, pela qualidade de
praticamente sem fábricas ou indústrias, o que
vida, permaneci aqui”, ressalta.
resulta numa produção pequena de design em comparação a outros grandes centros do
Um efeito positivo dessas limitações de mercado
país, como explica o designer brasiliense Aciole
foi a rede de colaboração criada entre os
Félix. Mas o título, juntamente com a criação
designers de Brasília. “Rola uma colaboração
da Associação de Designers de Brasília, foram
muito legal que não sei se existe em SP ou RJ.
iniciativas que visam mudar esse cenário. “Não
Lojas colaborativas, estúdios que se juntam para
dá pra fazer design por royalties como fazem
fazer projeto. Como somos poucos, a gente se
muito no Sul, tem que ficar no design autoral. Para
ajuda mais”, completa Marcelo.
quem está fazendo apenas design autoral existe a falta de mão de obra especializada. Não que
Brasília e brasilidade
os designers de São Paulo estejam super bem amparados. Participo de alguns grupos e todo
Brasília é uma cidade setorizada e reconhecida
mundo passa pela mesma dificuldade de não
pela divisão em quadras, nas quais os números
achar mão de obra para fazer algum detalhe ou
orientam as ruas e marcam a territorialidade
algo mais refinado. Temos dificuldades um pouco
local. Mas existe a Colina, única quadra que
maiores do que as do eixo Rio-São Paulo, mas
leva um nome ao invés de um número. É daí que
não tão maiores”, avalia.
surgiu a coleção mais conhecida do designer Marcelo Coelho. “Uma visão mais humana e
Aciole tem um trabalho reconhecido
menos óbvia de Brasília”, afirma.
nacionalmente com ampla participação em feiras internacionais. Hoje, além de seus produtos
A coleção Colina, que participou da semana
autorais, ele desenha para empresas de outras
de design de Nova York, traz um pouco da
regiões do país. “Com a internet você não
característica modernista da cidade, com linhas
necessariamente tem essa barreira física. Decidi
retas e pouco ornamento. O designer optou
diminuir a produção autoral e focar no desenho
pelo uso da cor branca que também remete à
para essas fábricas, justamente pela dificuldade
cidade, contrastando com a madeira dos Ipês.
de produção local”, revela.
“Temos uma relação carinhosa com o Ipê. Tem períodos da seca em que eles florescem.Vai
Já o designer brasiliense Marcelo Coelho
passando a seca, vão florescendo os amarelos
acaba de se mudar para São Paulo para
e os brancos, o que marca também uma
expandir sua carreira. “Em Brasília a demanda
temporalidade na cidade. A ideia foi trazer essa
é quase inexistente”, afirma. Para Aciole não é
escala bucólica de Brasília em contraste com
exatamente a questão da fabricação que leva
o branco e essa coisa crua do concreto e do
os designers a migrar para São Paulo, mas sim
modernismo”, relata. 15
Foto: Antonio Wolff
Aciole conta que quando começou a desenhar
em Manaus. A manauara Iuçana traduz suas
seus móveis, surgiram algumas demandas para
vivências em peças que vão de jóias, móveis,
desenhar peças inspiradas em Brasília. “Eu não
objetos e tudo o que envolve o design de
me limitei a Brasília, mas por morar aqui e a
produto.
cidade ser tão diferente do resto do Brasil você acaba se influenciando. Tento também sempre
Ela lançou sua marca em 2016, na São Paulo
buscar a mistura de materiais e isso condensa
Fashion Week e geralmente faz duas coleções
essa história de brasilidade”, ressalta.
por ano, uma de joias e outra de objetos, além das consultorias e produção de mobiliário por
O designer explica ainda que a maior parte do
encomenda. Em 2017, a designer ficou um
que produzem é mais apreciado em Brasília do
ano em São Paulo para inserir suas peças em
que no resto do país. Não é tão universal e o
lojas da capital. “O mercado do Amazonas
movimento é valorizar o que é feito na cidade,
não é tão grande como o do Rio e São Paulo,
ou pensado para o brasiliense. Nada impede
então continuo enviando as peças para lojas
que saia, mas é pensar em valorizar o que temos
e comercializando meus trabalhos em outros
de bom e não damos tanto valor”, completa.
Estados. Estou começando a inserir em algumas
Do artesanal ao global
lojas locais e percebo que o pessoal está conhecendo mais e comprando. Aos poucos os moradores de Manaus estão valorizando
Duda Gonçalves, indígena da etnia kubeo, é
os produtos locais, mas as vendas continuam
parceiro da designer Iuçana Mouco desde 2014.
sendo mais significativas em São Paulo”, revela.
Desde então, Iuçana faz os desenhos, envia
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de barco para São Gabriel da Cachoeira, no
Em 2018 a designer participou da exposição
interior do Amazonas. Duda devolve as peças
“Joia contemporânea brasileira - reflexão
prontas e a designer monta e faz o acabamento
colares” com o colar Uirá. A exposição
Imagens: divulgação
A coleção Raízes, da Furf Design, contempla três móveis, que usa cordas para estruturar e desenhar árvores imaginárias.
começou em São Paulo, foi para Rio de Janeiro e depois viajou para alguns países da Europa (Finlândia, Suécia, Lituânia e Estónia ). Participou também do evento “Brasil Plural, Arte Brasileira” que ocorreu na França e da “Feira de artesanato de Florença”, em 2010, além de ter peças que circulam em Portugal e EUA.
A linha Confete, da Furf Design, é a primeira de capas adaptáveis e coloridas de prótese de perna produzidas em massa no mundo.
Em agosto deste ano a designer realizou uma consultoria em Carauari, município distante 782 km de Manaus, em parceria com a Fundação Amazônia sustentável para o redesign do mobiliário produzido pela comunidade local, além do ensino de novas técnicas de marcenaria, demandadas pelos próprios artesãos, como o uso do torno e a marchetaria. Iuçana irá lançar uma coleção de luminárias em dezembro deste ano numa loja especializada de Manaus. A coleção é inspirada na técnica de tecelagem da fibra de Arumã, muito utilizada pelos índios da Amazônia para a confecção de cestarias e utensílios. Essa técnica é singular da etnia Kubeo e Duda é o único em sua região a reproduzi-la como seus ancestrais. Ele transforma o Arumã em uma trama delicada e simétrica, semelhante a um tecido.
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Foto: divulgação
Os cubos feitos em aço foram os primeiros trabalhos de João Diniz que uniram poesia e objetos. Nesse caso, os cubos podem ser usados como móveis em ambientes residenciais e comerciais.
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As possibilidades estéticas da literatura
por Ana Cláudia Ulhôa
Quando se fala em obras literárias, logo vêm
parte de seu trabalho de conclusão que já
à cabeça um livro, conjunto de páginas
pretendia romper com a ideia de um livro nos
encadernadas com palavras e/ou imagens
moldes tradicionais. Composto por três caixas de
impressas. No entanto, o ato de expressar
acrílico que abrigavam 40 escritos da autora em
sentimentos, ações ou ideias por meio das
duas delas e todos os pontos finais dos textos em
palavras pode ocorrer das mais variadas formas.
outra, essa obra trouxe a discussão do que seria
Algumas delas são capazes de extrapolar o
um livro-objeto.
papel usando os mais diversos tipos de materiais e estabelecendo novos tipos de relações com o
De acordo com o conceito utilizado por Anna
público leitor. Em alguns casos, os objetos criados
em seu trabalho “tudo no mundo existe para
rompem até mesmo a fronteira entre o que é
tornar-se livro”. Quando ela cita o poeta e
literatura, se confundindo com os campos do
crítico literário francês Stéphane Mallarmé, ela
design, arquitetura ou artes plásticas. Como o que
deixa clara sua concepção de que qualquer
ocorre nos trabalhos da designer Anna Stolf, do
coisa pode se tornar livro, seja um pedaço de
arquiteto João Diniz e do escritor Mário Alex Rosa.
papel, um retalho de pano ou um objeto de
Livro-Objeto
madeira que contenham uma frase, uma folha ou mil páginas de texto e/ou imagens. “Para mim é tudo a mesma coisa, a encadernação é
Formada em Design de Produto pelo Instituto
conteúdo, o material, a forma. Tudo é conteúdo,
Federal de Santa Catarina (IFSC) em 2010, Anna
não só os textos”, explica.
Stolf nunca realizou um curso de Letras, mas sempre teve paixão pelas palavras. Quando
Dentro dessa ideia, Anna Stolf desenvolveu
ainda era muito pequena, em Florianópolis-
também outras obras durante o mestrado na
SC, costumava usar blocos de anotações e
Universidade Federal do Rio Grande do Sul
cadernos em branco para escrever poesias.
(UFRGS). Um deles é o livro Adotando Abandono
Seu primeiro livro foi feito quando ainda tinha
(2013). Após sonhar que estava em um dilema
apenas 10 anos de idade. Sua irmã pegou
por ter adotado um cachorro que só atendia
um de seus bloquinhos escondido, mandou
quando ela pronunciava a palavra abandono,
encadernar e criar uma capa em tipografia
a designer resolveu contar essa história usando
para presenteá-la.
apenas uma frase que vinha escrita em tipografia desmontável feita em velcro e colada
Mesmo tendo esse gosto pela literatura, Anna
em um rolo também de velcro. Sendo assim, o
nunca pensou em criar livros até entrar na
texto “Sonhei que tinha adotado um cachorro
faculdade. Durante o curso de design foi que
que só atendia pelo nome de abandono”
ela usou os conhecimentos adquiridos para
pode ser remodelada das mais diversas formas,
desenvolver seu primeiro trabalho profissional.
permitindo ao leitor interagir com a obra e
Mandíbula Sonâmbula Perambula (2010) foi
desconstrui-la completamente. 19
Foto: divulgação
O Cuboesia é um cubo de aço com 4 x 4 m² projetado para a CasaCor Minas Gerais 2019.
Anna conta que suas inspirações para criar
transArquitetura
esse tipo de livro simplesmente surgem. Quando brota uma ideia em sua mente, já
Para o arquiteto de Juiz de Fora/MG, João Diniz,
vira uma anotação em algum de seus vários
todas as suas criações também mantêm uma
cadernos ou post-its. Quando ela dispõe de
relação profunda com sua área de formação.
tempo e recursos para trabalhar com eles,
Graduado pela Universidade Federal de Minas
a designer consulta essas listas e começa
Gerais (UFMG) no ano de 1980, ele acredita que
a dar forma ao seu projeto. Ela acredita
as instalações, livros e objetos que desenvolveu
que o fato de ter se formado em design de
desde então sejam uma forma de arquitetura.
produto, e não gráfico, foi essencial para que
Por isso, em 2012, criou o manifesto da
optasse pelo livro-objeto e desenvolvesse esse
transArquitetura ou arquitetura expandida.
processo de trabalho. “Penso o livro com o
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método do design de produto. Começo a
“Esse conceito tem a ver com uma visão mais
criar desenhando a forma do livro, como se
ampla da arquitetura, porque a gente cria
tivesse desenhando uma cadeira. Depois, vou
ambientes em várias situações. Se você está
vasculhando as anotações para ter ideias de
lendo um texto, tem a ideia de um ambiente. Se
texto, desenhos e o que complementa, como
ouve um som e fecha os olhos, é transportado
se tivesse escolhendo a tinta que vou usar na
para um ambiente. Se está assistindo a um filme,
cadeira, ou o parafuso que vou usar para unir
também é levado para um ambiente. Então, tudo
uma parte à outra”, afirma.
é ambiente e ambiente é arquitetura”, esclarece.
Foto: Rogério de Souza
Livro Mandíbula Sonâmbula Perambula feito por Anna Stolf durante a conclusão do seu curso de Design de Produto, em 2013.
Um dos projetos que refletem esse conceito é
Porém, tudo isso permaneceu como hobby
o Cuboesia, que esteve exposto na CasaCor
até o início dos anos 2000, quando conheceu
Minas Gerais 2019. O objeto, feito em aço com
os donos de uma livraria que o incentivaram a
dimensões de 4 x 4 m², foi instalado em um
lançar seu primeiro livro.
jardim, trazendo um verso composto por quatro palavras de quatro letras em cada face. Além
A partir daí, João Diniz começou a frequentar
disso, contou com um áudio que declamava
o meio artístico da capital mineira. Um dos
o texto ao som de uma trilha sonora. “O lance
eventos que sempre comparecia eram os
do cubo é criar espaços sensitivos. Você tem o
saraus. Preocupado em contribuir com as
som, a vista, o tato e o cheiro”, diz João.
performances, ele teve a ideia de tirar sua poesia do papel. “Quando começou esse
De acordo com o arquiteto, seu interesse
negócio, eu pensei: Pô! Como vou fazer isso?
pela literatura surgiu ainda muito cedo, antes
Não sou ator, não decoro textos. Que suporte
mesmo de escolher qual carreira seguir. Seus
posso usar que não seja a folha de papel?
primeiros escritos vieram à luz nos tempos de
Foi aí que comecei a pensar em poemas-
colégio, quando conheceu as obras de Carlos
objetos”, recorda.
Drummond de Andrade, Vinícius de Morais e Fernando Pessoa. Na época, ele também era
Os primeiros trabalhos foram pequenos cubos
apaixonado por música e compunha canções
que poderiam ser usados como objetos de
para a banda que formou com seus amigos.
mobiliário. Depois surgiram experimentos
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variados em que o material usado para construir a
desse olhar desarmado para as coisas”, destaca.
poesia também ajudava o autor a construir seu texto. Como foram os casos da trena que, ao ser puxada,
Formado em História pela Universidade Federal de
falava sobre medidas, o leque que, ao ser aberto,
Ouro Preto em 1993, Mário começou sua relação
dizia sobre os rodeios da vida e o sapato que trazia
com a literatura na adolescência, quando sua mãe
mensagens sobre o caminhar.
faleceu e ele se encontrou emocionalmente abalado. Para aprender a lidar com a dor da perda, ele buscou
João explica que as inspirações para construir
auxílio nos poemas de Manuel Bandeira, que tinha a
esses trabalhos vêm naturalmente pelo próprio
“falta” como tema constante e acabou causando
hábito de escrever. “A escrita é um negócio que
comoção no jovem.
me acompanha. Alguns poetas falam: eu não faço poesia quando quero; faço poesia quando ela
Com o passar do tempo, Mário foi se interessando
quer, então as ideias surgem assim”. Mas também
cada vez mais pelo universo das letras e decidiu
tem um pouco da vontade de fazer. Você diz: ‘vou
realizar um mestrado em 2001 e um doutorado em
fazer um negócio aqui’, e quando começa a mexer
2009 na área de literatura brasileira pela Universidade
com aquilo, aquelas ideias acabam te perseguindo
de São Paulo (USP). Ao longo de todo esse processo, a
também”, reflete.
vontade de escrever as próprias poesias foi crescendo,
Poesia-Objeto
o que resultou nos livros ABC do Futebol (2006), Ouro Preto (2012), Via Férrea (2013) e Formigas (2013). Os poemas que saiam das folhas de papel para
conta que seu processo criativo parte principalmente
ganhar forma através da mistura de letras com
da observação. “A produção começa sempre pelo
objetos do cotidiano também foi acontecendo sem
olhar. Quem olha, guarda. Quando penso numa peça
que o autor se desse conta. “Essa decisão não foi de
já imagino o suporte ideal para ela. Reforço que, para
forma deliberada: ‘agora farei objetos ou poemas-
mim, ficar olhando é essencial. A composição nasce
objeto’. O interesse pela palavra em si sempre me
Foto: Rogério de Souza
Já o escritor de São João del Rei/MG, Mário Alex Rosa,
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fascinou. Acho que lemos ou falamos muitas palavras sem necessariamente visualizá-las”, afirma. Ana Stolf
Entre as principais obras de Mário estão a Abridor, um abridor de garrafas colado às letras D, O e R para destacar a questão da dor emocional. Ele também criou A Lâmpada do Poeta Aladim, uma lâmpada incandescente repleta de pequenas letras coladas, remetendo ao surgimento das ideias. Outro exemplo
João Diniz
é o Uma Vez ao Dia, uma colher que traz o nome da obra impressa em seu cabo e uma porção de letras em sua concha, que dão a ideia de uma bula de remédio orientando o paciente a consumir literatura pela menos uma vez ao dia. Para o escritor alguns poemas funcionam melhor como
Mário Alex Rosa
peças do que em sua forma tradicional. “Há casos que vejo um objeto e já imagino uma outra forma pra ele, enfim, colocá-lo em outro contexto de sua função diária”, ressalta. Para isso, Mário Alex Rosa esclarece que “o
Intitulada Poema para a Massa, a obra de Mário Alex Rosa apresenta um rolo de massa repleto de letras. A Lâmpada do Poeta Aladim traz uma lâmpada incandescente com várias letras coladas para brincar com o surgimento das ideias no processo de escrita.
processo criativo pode ser de uma longa pesquisa, como também de uma entrada numa loja de ferramentas, de utensílios domésticos ou nessas lojas de R$1,99. Raramente entro com esse propósito. Inspiração é uma combinação do acaso com o trabalho, com a liberdade que podemos dar aos nossos pensamentos”, conclui.
Fotos: divulgação
Livro Adotando Abandono feito pela designer catarinense Anna Solf no ano de 2013.
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24
Flores com um toque pessoal Levando o conceito de design floral à sério, jovens floristas desafiam o senso comum e desenvolvem um estilo autoral como alternativa aos produtos existentes no mercado por Marco Túlio Ulhôa Nos últimos anos, a comercialização de
das pioneiras desse novo modelo de
flores tem se destacado no Brasil como
negócio na cidade de São Paulo.
um mercado em expansão. Com o crescimento médio de 10% ao ano, a
História semelhante à da florista mineira,
venda de flores e produtos agregados
Mariana de Paula, que em 2016 resolveu
demonstra um fôlego incomum nos
deixar a arquitetura para abrir a Uma
tempos atuais, alcançando índices de
Floricultura, em busca de ampliar a oferta
crescimento anual até sete vezes maiores
de arranjos e bouquets na cidade de Belo
do que o PIB nacional, segundo o
Horizonte. O apreço pelo trabalho manual
Instituto Brasileiro de Floricutura (Ibraflor).
e a paixão pelas flores, herdada da mãe, levaram Mariana, assim como Nina, a investir
Em sintonia com esse crescimento,
em um trabalho personalizado que nasceu
os trabalhos de alguns floristas têm se
de sua vontade de oferecer semanalmente,
destacado como uma alternativa aos
através do sistema de assinatura, flores frescas
produtos oferecidos pelas floriculturas
para decorar a casa das pessoas.
convencionais. Seguindo uma tendência surgida em países como os Estados
A influência do trabalho realizado por floristas
Unidos, Inglaterra e França, os bouquets
estrangeiros e a busca por uma linguagem
e arranjos decorativos oferecidos por
autoral foram os impulsos que levaram Nina
floriculturas de algumas das principais
e Mariana a investirem em uma nova forma
cidades do Brasil, desafiam o senso
de realizar o design floral. De acordo com
comum e revelam uma maneira autoral
Nina, ao identificar o crescimento da procura
de praticar o design floral.
por bouquets e arranjos florais diferenciados,
Foto: Gabriel Cabral
foi que a ideia de abrir um ateliê se tornou É o caso da florista paulistana Nina Levy,
realidade. Buscando oferecer algo além do
responsável pela Amapá Flowershop,
“tradicional bouquet de rosas vermelhas”,
ao lado da mãe, a artista plástica Kika
a marca pessoal e o lado criativo da florista
Levy. Formada em moda e inspirada
se manifestam em todos os detalhes dos
pelas floriculturas de Nova Iorque, Nina
“bouquets do dia” oferecidos pela Amapá
decidiu, em 2014, abandonar a profissão
às sextas-feiras, a partir de uma curadoria na
para se dedicar às flores e às plantas.
escolha das flores e do estilo “desconstruído”
Inicialmente, atendendo os próprios
e “selvagem” que definem as suas
amigos para, em seguida, se tornar uma
composições.
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Foto: Gabriel Cabral
uma estética “simples” e “minimalista”, oriunda do tempo em que praticava a arquitetura. Na contramão de um design floral
Amapá Flowershop Nina Levy e Kika Levy
pautado pelo “luxo” e pela “ostentação”,
Foto: Gabriel Cabral
Por outro lado, a aposta de Mariana é em
o trabalho foge de uma linguagem mais simples e despretensiosa possível”. Nesse sentido, algumas das estratégias encontradas por Mariana são utilizar o mínimo de embalagens e privilegiar formatos menores que dialoguem com seu conhecimento prévio de arquitetura. Tudo isso a partir de uma prática atenta à composição tridimensional dos arranjos, na medida em que levam em consideração conceitos como forma, volume e movimento. Nas palavras de Mariana, “quando os arranjos têm poucos elementos, você precisa ter muito cuidado com a posição de cada elemento, como se fosse uma escultura viva, uma vez que nos arranjos muito grandes o que fala é a massa”. Se para Nina o objetivo é sempre imprimir um estilo próprio, tendo em vista que a existência 26
Uma Floricultura Mariana de Paula
Foto: Magê Monteiro
convencional, “fazendo as coisas da forma
Foto: Divulgação
Foto: Lara Dias
de outras floriculturas com propostas diferentes lhe permite realizar um trabalho totalmente autoral, para Mariana, essa busca pela autenticidade é a marca de uma linguagem contemporânea e, ao mesmo tempo, uma aposta nas possibilidades do design floral. No entanto, apesar da expansão do mercado, entre os desafios enfrentados por essas floriculturas está a própria aceitação dos produtos. Por mais que a procura por produtos fora do padrão convencional esteja aumentando, muitos clientes ainda preferem os produtos tradicionais. De acordo com Nina, ao optar por não usar flores comuns, como a astromélia, a rosa e o cravo, muitas vezes sua floricultura acaba perdendo alguns clientes. Ainda assim, a aposta tanto de Nina quanto de Mariana é na qualidade e no diferencial de seus produtos. Segundo a florista mineira, somente depois de três anos de existência da Uma Floricultura, as pessoas começaram a entender a proposta de seus arranjos como uma fuga de uma linguagem tradicional. 27
Uma vida dedicada ao design modernista brasileiro Por Pâmilla Vilas Boas Apaixonada por madeira e pelas técnicas clássicas da marcenaria tradicional, Etel Carmona iniciou sua carreira nos anos 1980, restaurando peças de época em seu sítio, no interior de São Paulo. Em 1988, ela abriu a ETEL, com a participação de diversos designers importantes do mercado brasileiro na produção de móveis exclusivos que romperam as fronteiras nacionais. A designer reeditou uma coleção dedicada ao design brasileiro, com nomes da história do modernismo, com destaque aos móveis desenhados por Oscar Niemeyer e Lina Bo Bardi. Em entrevista à iDeia Design, Etel Carmona e a filha Lissa Carmona, que hoje comanda a marca e foi responsável por expandir os negócios aos quatro cantos do mundo, explicam a força e a importância do design brasileiro, considerado uma escola e a última grande descoberta estilística mundial. “Quando a gente reconta a história do design brasileiro do passado, estamos criando o novo design brasileiro”, ressalta Lissa. iDeia Design: Como começou sua relação com a madeira? Etel Carmona: Desde que me entendo por gente, gosto de criar
e a madeira para mim é um material fundamental e que amo muito. Em 1984, começa minha história como designer a partir de meus estudos em arte e pesquisas em antiquários - comprava peças e eu mesma restaurava para ver como era o original. Foi no Museu de Artes e Ofícios de São Paulo que aprendi as técnicas e me aprofundei na arte da madeira. Essas técnicas estavam se perdendo na época e comecei a resgatar, pensando inclusive no social e na sustentabilidade, temas que não eram falados. Foi uma explosão, porque ninguém conhecia mais essas técnicas. Até hoje carrego essa bandeira do design brasileiro, a madeira brasileira e o da marcenaria, da artesania.
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Foto: Fernando Laszlo
nosso grande sucesso veio com essa força da construção, da arte
Etel Carmona, juntamente com a filha, Lissa Carmona, que hoje comanda a marca ETEL
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Ri: Como acontece seu processo criativo? EC: Estava no Acre e vi uma madeira toda rachada
e fiz uma mesa de madeira rústica, muito elegante. É uma essência minha, um processo muito orgânico, que não parte de nenhuma referência. Nessa última coleção, juntei umas esferas que, de repente, se transformaram numa mesa. Fiz em homenagem à madeira, é uma explosão de marchetaria. Trio de livreiros elaborados com madeira nativa e inspirados no conceito do Manejo Florestal
Ri: Você foi a pioneira nesse trabalho com o design brasileiro, que hoje é um tema muito discutido. Como se deu essa relação com o design modernista? EC: Comecei resgatando a história da loja Branco
& Preto, criada em São Paulo nos anos 1950 por um grupo de arquitetos formado por Roberto Aflalo, Jacob Rucht, Miguel Forte, Olínio Croce, Carlos Minal e o chinês Chen Y Hwa, com a proposta de criar uma loja de móveis capaz de traduzir a arquitetura moderna que eles praticavam, com matéria prima brasileira, acabamento impecável, algo totalmente novo para a época. Era um design maravilhoso, nenhuma construção era melhor do que a deles, então isso valorizou demais, não só pela beleza do design, mas também pela construção e hoje o mundo inteiro está de olho. Ri: Como foi o processo de criação da coleção design brasileiro? Lissa Carmona: Trabalhamos com quase todos
os designers relevantes do país. A curadoria da coleção olha para o passado, presente e futuro. Passado é o design moderno a partir de 1913 até 1970. O presente são os designers já consagrados, como Cláudia Salles, Etel, Lia Siqueira, Dado Castelo Branco, Arthur Casas etc. O futuro são as novas gerações justamente para valorizar e incentivar os designers contemporâneos jovens. Quando a gente reconta a história do design brasileiro do passado,
EC: As peças foram reeditadas, numeradas e
contam até com o nome do artesão que produziu. Começamos reeditando algumas peças da loja Branco & Preto e depois partimos para peças de Jorge Zalszupin. A fundação Niemeyer nos procurou reconhecendo a seriedade do trabalho. Temos muita responsabilidade com o legado dos designers. 30
Foto: divulgação
estamos criando o novo design brasileiro.
Foto: Fernando Laszlo
Mesa central “Explosão”, construída exclusivamente com madeiras certificadas de manejo florestal, e inspirada no conceito “mães, filhas e netas”, gerações que garantem a preservação da floresta.
Ri: Qual a importância das mulheres nessa
literatura sobre o assunto, o design brasileiro
coleção?
é considerado a última grande descoberta estilística e uma descoberta tão importante
LC: Muitas mulheres começam na
a ponto de ser considerado uma escola
arquitetura. Em minhas pesquisas percebo
tanto quanto a francesa, italiana ou o design
que haviam muitas alunas, mas poucas
americano pelo número e qualidade dos
chegaram a ter destaque na história. A
autores.
gente lembra da Zaha Hadid, Lina Bo Bard e, na contemporaneidade, Patricia
Ri: Como acontece a lógica antropofágica em
Urquiola, mas são muito poucas. Certa vez,
seu trabalho?
perguntaram para a Lina sobre fazer suas obras sendo mulher e ela disse que nunca
EC: É um olhar para o mundo e para o ser
tinha pensado nisso, apenas fez. Mas depois
humano. Olho para a natureza, para o
ela ressalta que o Masp foi uma obra prima
homem, para o artesão, para o cliente de
feita por uma mulher. Na coleção do Design
forma profunda, sincera e verdadeira, que
Brasileiro, citei alguns exemplos como Etel,
se materializa nos meus trabalhos. Na lógica
Cláudia, Lina, Lia Siqueira. No design, a
antropofágica, esses estrangeiros chegaram
mulher tem um papel importante que está a
aqui e se uniram aos grandes brasileiros
cada vez mais sendo reconhecido.
como Niemeyer, Lúcio Costa, Alberto Rodrigues. O design modernista brasileiro
Ri: Por que o design modernista brasileiro é uma
nasce nessa antropofagia que é a mistura
descoberta recente?
de características europeias com brasileiras.
LC: Tem mais de 20 anos que trabalhamos
LC: O design moderno brasileiro é
nessa redescoberta do design moderno
apaixonante e tem uma característica
brasileiro. Já bati na porta de muito museu
muito peculiar justamente por essa lógica
com livro xerocado em português para
antropofágica. Em relação ao mundo e
contar a história do design modernista
outras escolas, ele carrega um senso de
porque não tinha publicação, por isso
familiaridade, não é exótico, tropical, mesmo
a ETEL reserva esse papel de investir em
que o Brasil seja uma país periférico. Nosso
publicação e geração de conteúdo como
design é sofisticado. De um lado carrega
forma de disseminar o conhecimento sobre
essa estética familiar com a influência dos
o design brasileiro. Devido a essa falta de
imigrantes europeus e, de outro, é único, 31
peculiar, carrega a beleza das madeiras tropicais, essa sensibilidade das curvas e das formas. Além disso, foi criado por uma outra lógica da indústria não desenvolvida, que fez com que os designers se tornassem praticamente artesãos de peças únicas criando obras de arte no mobiliário. Niemeyer fazia esculturas com seus móveis por que não tinha compromisso com a produção em massa da indústria e não precisou entrar na racionalização, e isso nos distingue também. Estamos mais perto da arte do que a Bauhaus, por exemplo. Ri: Você acredita que nós, brasileiros, fomos negligentes com essa história do design modernista brasileiro? EC: Sem dúvida. Basta olhar os documentos, se
eles existem, e como cuidamos deles. Eu acabo de voltar de Houston, no Texas, e grande parte do acervo do Design americano está lá, incluindo o acervo brasileiro. (O Museum of Fine Arts, de Houston (EUA), comprou a coleção de arte construtiva brasileira do paulista Adolpho Leirner, digitalizar esse acervo. A maioria desses designers não tinha documentação nenhuma. É um quebra cabeça. É só olhar o que tem de livro, de acervo ou museu. Esse tesouro tardiamente descoberto é por que não tinha documentação e, quando veio a ditadura, muito se perdeu e muitos saíram do Brasil, como Niemeyer, que foi para a França. Ri: A que você atribui a repercussão internacional da marca ETEL? EC: Qualidade e originalidade do design, temos
uma curadoria muito séria. E a qualidade da execução. LC: Estamos praticamente no mundo todo,
brinco que não é do Oiapoque ao Chuí, mas de Vancouver a Tóquio. Temos uma parceria muito forte com uma galeria do Canadá; temos loja própria em Houston, no Texas; com galerias parceiras em Nova York e Miami e estamos indo para Los Angeles. Na Europa, temos galeria própria em Milão e temos parcerias na Bélgica e Londres. No Oriente Médio, temos parcerias no Líbano, que é a porta de entrada para os árabes
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Foto: Fernando Laszlo
por exemplo). Estou fazendo essa ponte para
A ETEL foi uma das primeiras marcas no Brasil a ter a certificação do Forestry Stewardship Council (FSC) pelo uso sustentável das madeiras tropicais.
do Golfo. Vendemos também para o Catar e
tropicais do mundo. Em 2002, realizei um
Dubai. Na Ásia temos galeria na Coréia do Sul
projeto em Xapuri, no Acre, com a certificação
e em Tokyo, no Japão, onde acabamos de
de uma área de floresta em Xapuri que
fazer uma exposição sobre design brasileiro
garantiu a extração de madeira de forma
em parceria com a embaixada do Brasil. Foi a
ecologicamente correta, bem no local que
primeira exposição sobre design brasileiro no
entrou para a história por causa do assassinato
Japão. Na Oceania, estamos em processo de
do ambientalista Chico Mendes em 1988.
parceria na Austrália, em Sydney e Melbourne
E, agora, vivemos essa polêmica com a
e temos uma galeria que nos representa na
Amazônia. Precisamos nos preocupar com a
Rússia. São parcerias pontuais, mas estamos
origem de nossas madeiras. Nossas madeiras
presentes no mundo todo.
são belíssimas, razão do sucesso das peças. Normalmente, fora do Brasil, na Itália, por
Ri: Você se considera precursora em temas como
exemplo, é utilizada madeira composta que
sustentabilidade?
não tem essa beleza que a gente tem aqui. Essa relação entre social e ambiental que todo
EC: Em 2001, fui uma das primeiras no Brasil
mundo fala hoje é a essência do meu trabalho
a ter a certificação do Forestry Stewardship
desde o início, quando comecei na garagem
Council (FSC) e toda madeira que uso é
do meu sítio. Trabalho com 140 artesãos que
certificada pelo uso sustentável das madeiras
foram capacitados e hoje tem uma profissão. 33
Talento que ultrapassa gerações por Ana Cláudia Ulhôa
A avó foi uma das artistas plásticas mais conceituadas do Brasil. O pai é considerado um ícone da arquitetura nacional. Agora, Rodrigo Ohtake começa a escrever seu nome no design brasileiro. O talento para criar trabalhos intuitivos, que abusam das formas livres e cores variadas, parece ter passado por todas as gerações da família Ohtake. Basta observar as esculturas de Tomie, os prédios de Ruy e os mobiliários de Rodrigo para perceber como as curvas e tons se fazem presentes nas obras deles. Formado em arquitetura pela Universidade de São Paulo (USP) em 2009, Rodrigo começou sua carreira seguindo os passos do pai. De 2008 a 2016, trabalhou junto com Ruy Ohtake, até investir em seu próprio escritório. Mesmo tendo paixão pela área de arquitetura, o caçula da família sempre cultivou um gosto pelo design. Desde os primeiros projetos, Rodrigo desenvolveu móveis - chamados por ele de arquitetônicos - por serem partes integrantes dos ambientes.
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Mas foi no ano de 2015 que o jovem Ohtake ingressou de vez no mundo do design. O curador da Feira MADE (Mercado, Arte, Design), Bruno Simões, o convidou para criar uma peça de mobiliário que seria exposta no evento. Essa foi a deixa para que Rodrigo começasse a conceber cadeiras, mesas, luminárias e não parasse mais. Atualmente, ele se dedica igualmente aos ofícios de arquiteto e designer, porém são os trabalhos com mobiliário que têm dado o reconhecimento de novo talento nacional. Revista iDeia: Você se formou na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP como seu pai. Por que fez essa escolha? Desde cedo queria seguir os passos dele ou foi uma decisão que tomou depois, por outros motivos? Rodrigo Ohtake: Além do meu pai, minha mãe e meu
tio são arquitetos. Então, o universo da arquitetura sempre esteve presente em minha vida desde a primeira infância. Minha mãe conta que quando eu era ainda muito pequeno, dizia que ia ser
Foto: divulgação
arquiteto e guitarrista. A guitarra não deu certo, mas
Rodrigo Ohtake é o filho caçula do renomado arquiteto Ruy Ohtake e neto da artista plástica Tomie Ohtake. Desde cedo ele decidiu seguir os passos do pai, mas também se enveredou pelos caminhos do design.
a arquitetura eu levei adiante. Me lembro que aos sábados, quando acordava muito cedo, desenhava as fachadas das casas da minha rua de memória. Também tenho desenhos que fiz, bem antigos, que são recortes da casa em que morava. Então, sempre me enxerguei como arquiteto, é algo que, para mim, foi muito natural, nunca nem cogitei uma outra opção que não arquitetura. Ri: No início de sua carreira você chegou a trabalhar com o Ruy Ohtake, de 2008 a 2016. Como foi essa experiência? O que vocês têm em comum e o que você vê como seu? RO: Minha busca pelo traço autoral é constante. Se
você me perguntar se cheguei lá, vou dizer que não. Também não sei se um dia vou chegar, porque a arquitetura é isso. Vamos sempre evoluindo, sempre buscando outras influências. Às vezes, viajo e isso fica evidente nas obras seguintes, como na época em que fui para o México e a arquitetura do Luis Barragán me inspirou muito. Dessa forma, acho que sempre temos algumas influências, principalmente quando pesquismos, mas é importante incorporar isso de uma maneira pessoal. É claro que nesse convívio com meu pai, ele se tornou a maior influência sobre mim. Foram nove anos de escritório e mais a relação como pai, sempre viajamos e conversamos muito sobre arquitetura. Em minha obra isso é evidente, mas
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encontrar uma arquitetura que seja somente minha é uma busca que acho que terei até os dias finais. Ri: Analisando as obras de sua avó, é possível perceber algumas semelhanças. Você acha que isso é uma coisa que passou de geração para geração? Quais as influências que sua avó exerceu sobre você? RO: É importante saber que, historicamente, minha avó
tem uma carreira paralela a do meu pai. Então, teve uma influência mútua entre eles. Mas Tomie é uma pessoa que influenciou a família profundamente. Ela fazia os quadros dela de uma maneira extremamente intuitiva, e acho que acreditar na intuição foi o maior legado que deixou para nossa família. A intuição tem um poder gigantesco e é talvez onde a pessoa consiga ser mais ela mesma. Mas vivemos em um mundo que é muito racional e racionalizado. Quando nascemos, temos um lado do Fotos: divulgação
cérebro que usamos mais, que é um lado mais intuitivo e mais lúdico, por isso as crianças brincam com tudo, vão descobrindo as coisas de uma maneira muito intuitiva, ainda não são seres tão racionais. Conforme crescemos, principalmente no mundo ocidentalizado, vamos sendo obrigados a ser mais racionais, então vamos migrando o uso do cérebro para o outro hemisfério, que é mais racional do que intuitivo. Acho isso um pouco chato. Entendo que o mundo funciona dessa maneira, mas
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O Conjunto Parquinho é composto por três peças que formam uma releitura das famosas namoradeiras. A ideia da obra é propor diferentes tipos de interação entre as pessoas que a utilizam.
O Balanço BC foi desenvolvido para o Museu da Casa Brasileira e conta com tubos de aço e assento em trama de fibra sintética.
acredito que perdemos muito da questão singular de cada indivíduo. Então, quando faço os meus projetos busco no momento da criação, usar mais esse lado do cérebro, que é intuitivo e lúdico. E o interessante é que a intuição não é algo que a gente precisa nascer com e nunca mais evolui. Pelo contrário, ela é algo que você pode ir cultivando ao longo da vida, simplesmente pela vivência, experiência e pesquisa. Você vai criando um repertório que deixa a sua intuição mais apurada e o olhar também. Ri: Como é seu processo criativo? Pelo que falou, seus projetos surgem de forma mais intuitiva, mas existe um processo para essa criação? O que te inspira? RO: Não tenho um processo de criação fixo
e não me interesso em ter. Gosto de possuir um processo orgânico no qual a intuição vai me dizendo um pouco do caminho a percorrer. Então, às vezes, fico semanas com um projeto na cabeça, só pensando. Outras, vou desenhando e desenvolvendo o projeto no papel. Ou vou direto na maquete e pego materiais maleáveis, como folhas de alumínio, para ir modelando. E há ainda as vezes que vou direto para o computador. Agora, o que me inspira é muito difícil de responder. Porém, sou profundamente apaixonado pelo processo criativo das pessoas. Mais do que ver a obra pronta, gosto de ver como as pessoas vão criando, e não estou falando só de arquitetura, mas também de artes plásticas, cinema, teatro, gastronomia. Por exemplo, quando vou em um bar, gosto muito de sentar no balcão e ver como que o barman vai criando os drinks. Gosto de dar o desafio dele fazer o que quiser, aí ele vai criando de uma maneira muito intuitiva, porque o paladar é profundamente intuitivo. Ri: Você começou a fazer design em 2015. O que te levou para essa área? Foi uma vontade que surgiu ou foi uma oportunidade que apareceu? RO: Foi um pouco de tudo. Quando estava no
começo da faculdade, minha arquitetura era basicamente fazer reformas de apartamento, 37
como muitos estudantes no início da carreira. Mas não ficava satisfeito, porque em reforma você tem uma série de limitações estruturais. Então, desde a minha primeira obra, desenhava alguns móveis para tornar o espaço mais autoral. Até que, em 2015, o Bruno Simões, que é curador da Feira MADE de São Paulo, e sabia que eu tinha desenhado alguns móveis, me convidou para participar da feira. Aí ele falou: ‘Bom! Você tem que fazer um móvel que não tenha a ver com a sua arquitetura’. Como todos os meus móveis tinham a minha arquitetura como pano de fundo, ele me deu uma folha em branco para eu criar o que quisesse, e tomei gosto pela coisa. Então, foi aí que comecei a desenhar móveis independente da minha arquitetura, e diria que hoje isso toma metade do meu tempo. Gosto muito de, no mesmo dia, pensar em uma escala muito mobiliária, onde faço desenhos praticamente de um pra um ou um pra cinco, e terminar o dia fazendo um projeto coorporativo, quadrados. Então, vou da escala de milímetros para
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A Linha Pouso é composta por uma poltrona e uma mesa feitas em inox com espessura de apenas cinco milímetros e formas bastante simples.
Fotos: divulgação
como estou fazendo agora, de 7 mil metros
centenas de metros no mesmo dia, e acho que isso é muito interessante para o exercício do cérebro. Ri: Você é um arquiteto que hoje trabalha com designer também. Como você vê essa interseção entre essas duas áreas? Você considera importante ter esse diálogo? RO: Como sou um só, não dá para simplesmente
falar: ‘Bom! Agora vou fazer design e esquecer a minha arquitetura e vice-versa’. Então, não tenho dúvidas de que uma coisa vai influenciando a outra, como um vai e vem que é muito interessante. Por exemplo, o curador Bruno Simões quis que eu estivesse na MADE justamente porque ele via os meus móveis como algo visivelmente feito por arquiteto, ou seja, como se fossem pequenas edificações. Isso acontece com alguma frequência em arquitetos que fazem móveis. Por outro lado, o design é uma área em que me sinto profundamente livre para criar, e isso provavelmente vai me influenciar para conseguir A Mesinha Tulio é feita de concreto e vergalhões. A ideia para a sua concepção surgiu após uma visita a uma obra.
A Poltrona Vitis foi a primeira peça de design criada por Rodrigo, inspirada na vinha, uma árvore trepadeira sem tronco.
encontrar a minha arquitetura.
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Foto: divulgação
O projeto arquitetônico Casa Praia do Engenho tem como intuito levar materiais urbanos ao litoral e permitir a entrada da Mata Atlântica em seus espaços.
Ri: Hoje vários veículos têm mostrado o seu trabalho
Ri: Você teve a oportunidade de estudar no Brasil e
e te colocado como um destaque do novo design
na Politécnica de Milão. Também participou de várias
nacional. Queremos saber como tem visto isso. Como
mostras, exposições e tem produzido bastante. Diante
pretende se posicionar e contribuir para essa área?
de tudo o que tem visto no design, como enxerga esse mercado no Brasil?
RO: Nossa contribuição, isso vale para o design,
arquitetura e toda área cultural, é buscar fazer algo
RO: O mercado brasileiro em design tem realmente
profundamente brasileiro. Tenho plena convicção
me surpreendido. Cada vez mais tem surgido
de que somos talvez um dos países mais criativos
pessoas que estão interessadas em comprar móveis
do mundo e que, claro, podemos estudar cultura
genuinamente brasileiros. Mesmo quando falamos
japonesa ou design dinamarquês, porém temos que
de peças industriais, as pessoas têm perguntado
trazer aquilo que é interessante e não tentar fazer
cada vez mais: ‘Ah! Quem é o designer?’. Coisa
uma cópia do traço.
que até recentemente perguntava-se muito pouco. Até móveis de tiragem muito pequena
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Talvez minha principal referência seja os irmãos
e que já têm um valor super alto, em algumas
Campana, que fazem um mobiliário respeitado
feiras o público comprador é majoritariamente
no mundo inteiro e que é inegavelmente brasileiro.
brasileiro. Existe um mercado que talvez ainda
Então, acho que temos que continuar a fazer arte,
seja pequeno, mas que está em plena expansão
design e arquitetura brasileira de forma inovadora,
e preocupado sim com um design brasileiro de
mesmo tendo que superar os obstáculos, porque
qualidade. Isso é muito positivo, porque o mercado
nossa indústria moveleira não é a mais avançada;
talvez seja o principal impulsionador para termos
nossa mão de obra também não e não temos
indústrias e designers melhores, preocupados com
acesso a materiais mais contemporâneos.
acabamento, funcionalidade e originalidade.
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O cinema como um comportamento diante do objeto Um dos cineastas e diretores de fotografia mais premiados do cinema brasileiro fala sobre a experiência de criar imagens sob o ponto de vista do design por Marco Túlio Ulhôa Considerado um dos diretores de fotografia mais importantes da história do cinema brasileiro, Walter Carvalho é dono de um vasto currículo que também inclui diversos filmes realizados como diretor, sendo Janela da Alma (2001) e Budapeste (2009) algumas de suas obras de destaque. Nascido em 1947, em João Pessoa, na Paraíba, Walter Carvalho iniciou sua carreira na década de 1970, trabalhando ao lado do irmão, o cineasta Vladmir Carvalho, e de outros diretores ligados ao movimento do Cinema Novo, como Glauber Rocha, Leon Hirszman e Ruy Guerra. Nas décadas seguintes, o trabalho como diretor de fotografia ganhou notoriedade, ao participar da realização de dezenas de filmes, dentre os quais se encontram as principais produções do período da “retomada” do cinema brasileiro, iniciada a partir da década de 1990. Ao lado de diretores como Walter Salles, Cláudio Assis, Hector Babenco e Karim Aïnouz, Walter Carvalho foi o responsável pela fotografia de filmes aclamados, como Terra Estrangeira (1994), Central do Brasil (1998), Abril Despedaçado (2001), Lavoura Arcaica (2001), Amarelo Manga (2003), Carandiru (2003) e O Céu de Suely (2006). Aos 73 anos, Walter Carvalho nos fala de sua trajetória no cinema, da paixão pela fotografia e de sua influência na carreira do filho, o também diretor de fotografia Lula Carvalho. Lula é responsável por filmes como Cidade de Deus (2002), 42
Walter Carvalho no set de filmagem de Onde Nascem os Fortes (2018)
Walter Carvalho e o cenógrafo Alexandre Gomes
Tropa de Elite (2007) e da série Narcos (2015).
garoto, um adolescente. Não sabia que ali
Tudo isso, a partir de seu aprendizado na
estava se formando um personagem. Depois,
Escola Superior de Desenho Industrial da UERJ,
ele como documentarista e eu já mais velho,
onde, ainda jovem, descobriu que o design é,
com 17 anos, viajamos para realizar umas
antes de tudo, um comportamento diante do
filmagens. Eu era assistente de tudo. Isso me
mundo. Comportamento que também marca
colocou, de certa forma, em outro patamar da
a postura da câmera e do cineasta diante dos
vida, porque viajei e conheci o sertão com ele
objetos, fazendo com que o cinema e o design
e comecei a me interessar pelo que estava a
encontrem um ponto de inflexão na obra de
minha volta. Daí, fui para o Rio de Janeiro em
Walter Carvalho.
1968 e fiz vestibular pra ESDI (Escola Superior de Desenho Industrial). Foi me irmão quem falou
Revista iDeia: Você começou a filmar junto com
da escola, porque já morava no Rio. Então, ele
o seu irmão, Vladmir Carvalho, cuja obra é
teve uma participação muito forte em minha
estritamente composta por documentários. Em seu
formação.
caso, você acabou realizando também ficções e produções televisivas. Qual foi o legado do seu
A ESDI era a única escola de desenho industrial
irmão e da linguagem do documentário na forma
do Brasil. Fui aluno de Karl Heinz Bermiller, Aloísio
como você assimilou o trabalho do diretor e do
Magalhães, Alexandre Wollner, Zuenir Ventura,
diretor de fotografia?
Renina Katz e Décio Pignatari. Lá conheci o
Fotos: divulgação
Roberto Maia, professor que, por sinal, tinha Walter Carvalho: Meu irmão é mais velho do que
entrado para dar aula no mesmo ano que eu
eu doze anos. Desde cedo era uma pessoa que
entrei, em 1970. Aprendi com Roberto a gostar
lia muito, muito ligado às artes. Ele percebeu que
de fotografia. Não aprendi a fotografar, mas a
eu, ainda muito garoto, gostava de desenhar.
gostar de fotografia. Aprendi que fotografia não
Por influência dele, fui estudar pintura com um
se aprende, se pratica, como na pintura, na
pintor amigo dele. Isso lá na Paraíba. Eu era muito
qual você vai de patamar em patamar.
43
Foto: divulgação
Walter dirige Leo Medeiros e Gabriela Hamori em Budapeste (2009)
Porém, não tirei o pé do cinema, influenciado ainda
Ri: Existe uma influência do seu aprendizado na ESDI em
por meu irmão. Até que um dia, fui fotografar meu
sua carreira como diretor e fotógrafo? Você acha que
primeiro filme, dirigido por ele. Ele me chamou e
existem interfaces entre o design e o cinema?
falei: “Ainda não sei fotografar, apesar de viver com a câmera fotografando”. Mas ele queria que eu
WC: Fui descobrindo aos poucos, fazendo fotografia,
fotografasse um filme. “Não, cara, vamos à Paraíba
direção de fotografia, dirigindo cinema e televisão
fazer esse filme lá, a gente aproveita e visita nossa
que minha relação com o objeto, antes de passar
mãe”. Ele já morava em Brasília nessa época: “Você
pela questão da impressão dele no suporte, passa
vai daí do Rio e eu vou daqui de Brasília. Se você errar,
pelo design. Porque, sem saber, na escola estava
não conto pra ninguém, porque sou o teu irmão”.
aprendendo a me comportar diante do objeto, seja enquanto fotógrafo, do ponto de vista do design.
E assim fiz meu primeiro filme. E ainda ganhei um prêmio de fotografia em função dele. Isso serviu como
Por exemplo, existia uma matéria na ESDI que se
estímulo. Aquilo não me disse que eu era fotógrafo,
chamava metodologia visual. Trata-se de uma
pelo contrário, aquilo me desafiou. “Eu tenho então
problemática colocada pela matéria, na qual você
que provar para essas pessoas que me deram o
tem que resolver esse problema na construção
prêmio – que o que estou fazendo, sei fazer”. Essa
do objeto passando por outras matérias. É preciso
ideia do saber o que estou fazendo perdura até
desenhar, fotografar, expressar através da cor – para
hoje. Acho que não vai desgarrar de mim, vai ficar
cada matéria dessa havia um professor – e tinha que
comigo. Até porque, como acho que fotografia não
executar.
se aprende, acredito que, se sentir que aprendi, aí
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é melhor mudar de profissão. Porque você vence
Para executar variava, porque você passava de
uma etapa que não é para ser vencida, é para ser
oficina em oficina. Era possível construir aquele
descoberta sempre.
objeto em madeira, gesso ou metal. No final, havia
Foto: divulgação
Walter dirige José de Abreu em O Rebu (2014)
uma apresentação com a fotografia, passando
Por fim, você vai para a elaboração, que é a
pela gráfica. Não era offset, era uma gráfica de
construção do produto.
tipos manuais que imprimia no prelo da escola. Ao construir aquele objeto, perpassando por tudo
Me lembro de um desses enunciados em que
isso, no final, havia uma grande discussão com
eu tinha que construir um sólido. Podia ser um
o professor de metodologia visual, que era o Karl
cubo, um paralelepípedo, ou cilindro, mas era
Heinz Bergmiller. A turma inteira discutia sob todos
um sólido feito de madeira, metal ou gesso, de
os pontos de vista. Então, naquele momento,
modo que esse objeto tivesse uma conexão com
estava aprendendo sem saber exatamente o que.
outro igual a ele. Como se dividisse ao meio ou
Achava que era design, a construir um objeto de
construísse outro, mas que houvesse uma conexão
madeira. Mas não era isso, estava aprendendo a
entre um e outro, considerando a resistência dos
viver, a me comportar diante dos problemas. E, sem
materiais, da rotação, da pressão e da tração. O
saber que ia me dedicar ao cinema, à televisão e
meu foi um paralelepípedo, mas descobri com o
à fotografia, estava aprendendo de um ponto de
paralelepípedo que o cubo tinha seis lados. Esses
vista do design.
seis lados você não percebe quando olha um cubo. Se pegar um cubo de madeira na mão ou
Naquele momento, eu dizia para as pessoas e para
sobre uma mesa, é possível perceber que ele tem
mim mesmo: “Ser designer não é uma profissão,
seis lados. Você olha e sabe. O teu organismo, tua
ser designer é um comportamento”. Então, aquilo
neurociência diz para você que aquilo tem seis
foi se imbuindo dentro de mim, porque o design é
lados sem que você conte, mas visivelmente você
idealização, criação. Primeiro, vem do conceito.
só percebe três.
Conceituar no design é uma coisa fundamental. Aí vem a idealização, depois a criação, o
Naquele momento, estabeleci que no cubo há
desenvolvimento desse conceito, desse projeto.
seis lados, dos quais percebo somente três. No
45
Foto: Gustavo Moura
Walter Carvalho. Foto: Gustavo Moura
entanto, deduzo o que não estou vendo. Portanto,
mas quando ele me procurou, me propôs que
entre aquilo que vejo e aquilo que deduzo há uma
desenvolvesse uma ideia junto com ele. Ele
suposta poesia e isso é o que me interessa. Então,
queria fazer um filme sobre a miopia, porque eu
se estou dirigindo, iluminando ou fotografando
e ele somos míopes. Quer dizer, eu era, porque
um ator, interessa a mim a distância daquilo que
operei, mas tinha dez graus de miopia. Então, era
vejo e daquilo que não vejo, porque do objeto
um filme sobre a miopia.
ator não vejo todos os lados, do ponto de vista da representação. Isso porque o mistério da fotografia
Na medida em que nossas conversas e
e do cinema diz respeito ao modo como você
o processo criativo antes de filmar foram
representa aquilo no plano bidimensional. Se
avançando, disse: “Não estamos fazendo um
você representa num plano bidimensional é uma
filme sobre a miopia, e sim sobre o olhar”. Apesar
representação. Por isso sou o fotógrafo do preto
da ideia ter sido dele, essa sacada foi minha. E
e branco e não da cor. No cinema e na televisão
aí deu no que deu. Fomos pelo caminho de um
faço colorido, trabalho em cor sem nenhum
filme que, inclusive, se tornou um documentário
problema, mas não consigo fotografar sem ser em
muito premiado, muito visto e comentado.
preto e branco. Então, é dessa forma que, quando
Exatamente, porque tocamos em um assunto que
me encontro diante de um objeto, antes se
ninguém tinha pensado. Porque, independente
manifesta dentro de mim o designer, para depois o
de usar óculos, ser míope, hipermetrope, ou o
fotógrafo ou o diretor.
que quer que seja, olhar um objeto, uma cor, uma paisagem, implica necessariamente em
Ri: O seu filme Janela da Alma é um elogio a tudo
ela seja vista por cada um de forma diferente.
isso que você pensa a respeito da imagem e da
Se estou em uma sala cheia de gente e falo
representação? De onde surgiu a ideia de fazer esse
a palavra “vermelho”, esse vermelho que
documentário?
pronunciei é interpretado de maneira diferente por cada um. Ou seja, vejo o vermelho que
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WC: Esse documentário é um filme feito a quatro
quero. Não existe um vermelho único. Ver é uma
mãos, sou eu e o João Jardim. A ideia inicial foi
interpretação, uma compreensão particular do
do João. Não era exatamente o filme que é,
objeto. Então, o filme é sobre isso.
Ri: Em sua carreira, você trabalhou com alguns dos
para o Lula fotografar cinema como você?” “Olha,
principais diretores do Cinema Novo, como o Glauber
não ensinei ao Lula fotografar, ensinei a gostar de
Rocha, Nelson Pereira dos Santos, Ruy Guerra e Leon
fotografia, de Caetano Veloso e Bob Dylan”. Essa é
Hirzsman. Em um momento posterior, também atuou na
a resposta que sempre dou.
retomada do cinema brasileiro durante a década de 1990. Muito se discute sobre a relação entre essas duas
O Lula foi assistente de todos os fotógrafos de uma
fases. Como você enxerga essa relação e sua atuação
geração, como assistente de câmera e foquista.
nesses dois momentos?
Não só meu, mas de todos os grandes fotógrafos daquele momento, da década de 1990 e meados
WC: Acho que o Cinema Novo está em uma
de 2000. O primeiro foco complicado que ele
proporção para as artes como a Semana de 1922.
fez na vida foi no Lavoura Arcaica. Então, ele foi
Está para a poesia como a geração de 1945. Está
decidindo. Ia me visitar no set e às vezes até viajava
para a música como a Bossa Nova. Está para o
comigo nas férias, ficava um tempo e voltava,
teatro como as peças de Zé Celso e do Chico
mas nunca me disse “Quero ser fotógrafo”, “quero
Buarque. Quer dizer, o Cinema Novo é fruto dessa
fazer igual você”, “quero ser igual você como
cadeia de momentos da arte que são inaugurais
profissional”. Ele ia e ficava ali, mas, ao mesmo
e modificadores. Se você der um corte para o que
tempo, com dez anos aprendeu a carregar chassi,
se faz hoje, percebe uma relação direta com o
porque os meus assistentes ensinavam a ele.
Cinema Novo. O exemplo mais recente é o filme do Kleber Mendonça, o Bacurau (2019). O Cinema
Um belo dia, começou com o Jacques Cheuiche.
Novo se manifesta dentro do cinema atual, esteja
Viajou com ele para fazer uma filmagem e
ele consciente ou não. Porque é da formação do
começou a se interessar. Fez um curso fora de
cinema brasileiro. Então, acho que Central do Brasil
História da Arte. Um dia, quando me fez uma
é um filme que fala com o Cinema Novo, assim
pergunta sobre lente, botei em cima da mesa
como Abril Despedaçado, Madame Satã, Amarelo
um livro sobre história da arte. “Lula, pra entender
Manga e Carandiru.
uma lente tem que entender a Renascença primeiro, porque é lá que tudo começou. Depois
Estou citando filmes que fiz, pois vi que aquilo estava
da perspectiva, é lá que começam os primeiros
ali. Você não sabe que está com as questões
fotógrafos e narradores. Estou te dizendo isso, não
cinemanovistas dentro de você, mas está porque lê,
porque eu entenda, mas porque tenho esses livros
vê, assiste. Tem influências mais europeias, mas aí,
e estudo a Renascença até hoje”. Então, essa foi a
às vezes, cai em uma influência europeia que tem
nossa relação. Ele sendo meu assistente em filmes
a ver com a Nouvelle Vague ou com o neorrealismo
como Lavoura Arcaica. Havia uma relação de
italiano. E o que é isso do neorrealismo italiano e
proximidade com o assunto muito maior do que
da Nouvelle Vague, senão o cinema brasileiro no
uma relação paternal ou familiar.
momento do Cinema Novo, influenciando e sendo influenciado pelo neorrealismo italiano e pela
Em um dado momento, liguei pra ele e disse:
Nouvelle Vague? O Wim Wenders falou certa vez
“Lula, vou fazer um filme e preciso de você para
que aprendeu muito com o Cinema Novo. E ele
fotografar”. Ele respondeu: “Pai, não posso, estou
acha que muita coisa do cinema alemão dele,
fotografando um filme”. Aí comecei a ver que
Fassbinder e Herzog, são como são porque eles
aquilo já não me pertencia mais. Para fotografar
viram o Cinema Novo. Então, o Cinema Novo não
Budapeste, tive que quase brigar com ele.
é uma coisa genial que surgiu na década de 1960,
“Preciso que você fotografe esse filme, porque vou
assim no ar. Isso não está no ar, tem uma origem.
trabalhar dirigindo e preciso de uma pessoa que
Vem lá da semana de 1922, da geração de 1945.
tenha me visto fotografar de uma maneira mais
Vem da música, poesia, literatura. Vem de José Lins
íntima. Você é o único, então preciso de você junto
do Rego, Graciliano Ramos, Guimarães Rosa.
de mim”. Aí vi que, mesmo antes do Budapeste, ali já tinha uma carreira independente e, quando
Ri: Por fim, como que foi acompanhar o
menos percebi, comecei a herdar os assistentes
amadurecimento do trabalho do seu filho, Lula
que começaram com ele. Então, essa é a nossa
Carvalho?
relação e, no momento, estamos nos prometendo, um ao outro, dele fotografar um filme comigo, fazer
WC: Algumas pessoas me dizem assim: “Como
um trabalho juntos.
você fez para ensinar fotografia ao Lula? Como fez 47
A trama da vida
Design, memória, desenvolvimento social e sustentável a cada dia mais interligados Por Pâmilla Vilas Boas
Trama 1 - biodesign A designer Rita Prossi nasceu em Paraná da Eva, no interior do Amazonas. Sua origem indígena é fruto de uma paixão do bisavô, que engravidou uma mulher da etnia Mura. A família não permitiu que ficassem juntos e ele ficou com o bebê. Sua infância, entre vazantes e cheias, permitiu que observasse o trajeto das águas. Seu pai tinha um barco de linha e trocava transporte por alimentos com diversas comunidades indígenas do entorno. “Ele trazia aqueles tapetes desenhados, diferentes artefatos e isso fazia parte de nosso dia-a-dia”, revela. As histórias, lendas e vivências que permearam sua infância hoje são os principais motivos de seu trabalho como biodesigner. “Quem é essa moça que veio lá do Amazonas e que coloca diamante numa semente”. A frase da repórter sobre o trabalho de Rita, em 1999, nunca saiu de sua mente. A designer foi uma das pioneiras a utilizar o termo biojóias para descrever suas peças, que aliam sofisticação, delicadeza e requinte aos elementos naturais típicos da Amazônia.
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Fotos: Yamada
Peça inspirada nas lendas e narrativas míticas da Amazônia para o filme sobre Iara, personagem do folclore brasileiro, que será lançado em 2020.
Colar de cruz em madeira de muirapiranga com pedras brasileiras e cristais, criado por Rita Prossi, para o Documentário sobre Chica da Silva, que será lançado em 2020.
Rita conheceu a etnia Waimiri-Atroari que produz o traçado em fibra de arumã e fornece matéria prima para suas biojoias. Ela produziu um colar com 7 pingentes de ouro com réplicas de objetos típicos da Amazônia como canoa, remo, arco, flecha, tartaruga, sapo e peneira. Essa peça foi a encomenda de uma amiga para presentear a filha dela, que estudava na Flórida. “Ela iria visita-la e queria levar um presente, algo que a fizesse recordar da Amazônia. Quando chegou lá, as amigas da faculdade acharam inusitado e ela virou minha representante nos EUA”, relata. A partir de então, sua peças ficaram famosas no exterior e já foram usadas por nomes como Madonna e príncipe Charles. Na época, não haviam muitos designers produzindo biojoias e o objetivo era que as pessoas não apenas as admirassem, mas que passassem a usá-las no cotidiano. Fotos: Yamada Fotografia
Para mudar esse contexto, Rita começou a vender kits de sementes para produção em Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo na década de 90 e espalhar o uso das peças. Nos anos 2000, ela teve uma peça selecionada para um catálogo de designers brasileiros, difundido internacionalmente. “Estava nascendo a identidade da jóia brasileira”, aponta.
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Com o sucesso de suas peças no Brasil e exterior, Rita chegou a ter uma produção grande, mas optou pela pequena escala. “A parceria com comunidades e artesãos é muito importante para o designer. Eu senti na pele como a industrialização estava me afastando do que eu realmente queria: a simplicidade e a melhor forma de lidar com as pessoas”, avalia. No final de 2018, Rita realizou a exposição de suas biojoias numa galeria de arte em Manaus. Ela convidou os artesãos para expor junto com o objetivo de apresentar a técnica e as histórias por trás de cada trabalho. Hoje, uma de suas artesãs está despontando no Brasil. “Ela veio para o salão do artesanato em São Paulo junto comigo. O importante é não esquecer dessas pessoas que te ajudam e dar chance para que elas não fiquem apenas nos bastidores”, afirma.
Imagens: divulgação
Peças do designer Sérgio Mattos
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Cadeira feita da estampa da chita e tem o aço como estrutura e a amarração em corda que recobre o desenho exótico das flores.
A cadeira Cobra Coral, traz o exotismo que ondula em contornos e cores. A poltrona Bodocongó é inspirada nos elementos da feira livre de Campina Grande na Paraíba. A poltrona Cariri conta com estrutura em aço e trama de corda naval A Cadeira Pirarucu ressalta a imponência do maior peixe que habita as águas doces do Brasil Poltrona Caçuá é inspirada no cesto de vime ou cipó que serve para carregar mantimentos e é transportado por animais de carga no interior do Nordeste
Trama 2 - A imagem do design brasileiro As criações do designer mato-grossense Sérgio
Em entrevista para o portal A Crítica, ele comenta
Matos se tornaram referência para a identidade
o resultado do projeto. “As comunidades indígenas
do mobiliário brasileiro ao preservar técnicas
saíram de um produto que custa R$ 5, R$15
e saberes ancestrais numa trama artesanal
para um produto que custa R$150 a R$700, por
das tradições que transcendem à passagem
exemplo. Em uma feira que eles participaram,
do tempo. O designer trabalha em projetos
saíram de uma venda de R$2.000, no máximo,
juntamente com o Sebrae, gerando renda para
para a venda total de R$80 mil. Estamos dando um
comunidades e também assina produtos e
valor maior para as peças”.
coleções autorais que materializam identidade, celebrações populares e um balé de cores que
O designer explica que a integração dessas
rendeu diversos prêmios internacionais, como o
comunidades é essencial para que elas se
de melhor mobiliário externo na 30ª International
tornem empreendedoras e sejam donas de suas
Contemporary Furniture Fair (ICFF), em Nova
histórias, produzindo o que já é de costume
York. Para Sérgio, o design deve vir carregado de
(ancestralidade), tendo novas ideias e descobrindo
história e função.
um mundo novo, no qual podem criar novos produtos com a matéria-prima utilizada na
“A sustentabilidade e o social estão intrínsecos
comunidade. “Um dos casos mais interessantes são
em nosso trabalho com as comunidades que
as das mulheres de Barcelos/AM, que mudaram
desenvolvo no Sebrae. Já para os produtos que
suas vidas através da venda de seus produtos,
assino como Studio Sergio J Matos, a produção é
cuidando dos negócios como um ciclo fechado.
mais industrial. Claro que existe a preocupação
Elas criam, produzem, vendem e entregam”, relata.
com a sustentabilidade, mas há diferença entre os esses dois projetos. Os advindos da natureza
Para o processo de confecção de materiais junto às
são sustentáveis, pois utilizamos piaçava, taboa
comunidades, Sérgio explica que, primeiramente,
e outras fibras. No meu trabalho autoral, utilizo
há um contato inicial para conhecer a região.
cordas especiais, as tintas são base de água e
“Faço uma primeira visita à comunidade, e tudo
outros tantos detalhes internos”, explica.
que eles me contam serve de alimento para o conceito do produto que iremos desenvolver.
Um dos projetos que Sérgio atuou como consultor
Criamos em cima das histórias deles. É preciso que
foi Brasil Original, em parceria com o Sebrae
eles se identifiquem com o produto”, conta.
Amazonas, que percorreu os municípios de São Gabriel da Cachoeira, Barcelos, Benjamin
O ideal, para o designer, seria unir em um
Constant, Tefé e Manaus com o objetivo de
só produto: o social, o design, a história e o
gerar renda para as famílias indígenas a partir do
sustentável. “Nem sempre é possível, mas nos
artesanato feito com a matéria-prima da floresta,
esforçamos para isso na concepção de cada
além de impulsionar a produção da região.
produto e linha”, ressalta.
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uma coleção para a marca Green House. E estará, junto com outros designers brasileiros, na
A coleção Santa Rita da Trapos & Fiapos revela os olhares e os traços dos artesãos do povoado de mesmo nome, no Piauí.
feira Ambiente Fair em Frankfurt, na Alemanha; no Salão do Móvel em Milão e na ICFF em Nova York, dentre outras feiras internacionais que ocorrerão em 2020. “Aqui no estúdio absorvermos tudo o que temos visto na Paraíba ou em outros estados do Nordeste e até mesmo no Amazonas, nos integrando para saber mais o que eles produzem, sazonalidade do material, técnicas ancestrais, para assim, desenvolver o produto”, completa.
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O trabalho na fábrica da Trapos & Fiapos é realizado de forma colaborativa, no qual os tecelões são estimulados a desenvolver técnicas novas.
Fotos: divulgação
Neste momento, o designer está desenvolvendo
Foto: divulgação
Trama 3 - Tapetes que transformam Em 1984 surge uma nova trama que conta
aproximadamente 9 meses para colher
a história da transformação do povoado
novamente. Estamos sempre preocupados
de Santa Rita, no Piauí, que se redescobriu
com o reaproveitamento de sobras para
a partir da tecelagem. Tereza de Melo,
embalagem das peças. É uma atenção
fundadora da Trapos&Fiapos, explica que
constante”, revela.
a tecelagem era uma prática ancestral das mulheres dessa região e que tinha
Tereza aponta ainda que a atuação da
desaparecido. Desse viés social e cultural
Trapos vem contribuindo para fortalecer
surgiu a Trapos & Fiapos que hoje é
a identidade local e a autoestima dos
referência no segmento de tecelagens feitas
moradores do povoado. “Quando você
à mão.
resgata algo que era do seu antepassado, das suas raízes, você fortalece a pessoa.
Para Tereza o contato que a empresa
Elas comentam ‘minha mãe, meus avós
teve com o Design, com o advento das
me deram esses saberes importantes, e me
universidades na região e o crescimento
empurraram para frente’, relata.
das Trapos, possibilitou que ampliassem o raio de atuação. “O design nos conectou
O trabalho é realizado de forma
com o mundo, porque antes éramos mais
colaborativa. Os tecelões são estimulados
ligados ao ‘quintal’ e agora temos um
a desenvolverem técnicas novas, como
pensamento mais ampliado. Trabalhamos
novas amarrações e novos entremeados.
em parceria com universidades; também
“Pensamos um ponto e todo mundo
reciclamos a taboa para fazer adubo numa
conversa em torno do tear. Quando todo
coleta sustentável. Não arrancamos a raiz,
mundo pensa em conjunto, os pontos saem
colhemos as plantas prontas e esperamos
mais estruturados e equilibrados”, completa. 53
Iluminação: uma arte que exige técnica e beleza por Ana Cláudia Ulhôa Uma boa iluminação pode valorizar o espaço, trazer aconchego e até melhor a saúde das pessoas. A luz também pode exercer uma função decorativa através de peças com projetos de design diferenciados. Atualmente, uma boa parte dos profissionais que atuam no setor têm buscado unir técnica e beleza em produtos que conquistam cada vez mais os consumidores. Prova disso são os dados divulgados pela Abilux, que mostram que 61% do faturamento da área de iluminação no Brasil são provenientes de luminárias. Para mostrar um pouco do que tem sido feito em solo nacional, a Magazinebook iDeia selecionou cinco escritórios que têm chamado a atenção tanto de curadores quanto do público em geral. Todos os designers citados têm desenvolvido luminárias incríveis. Conheça um pouco mais sobre eles:
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A luminária Scarpa foi criada por Fabrício Roncca como uma homenagem ao arquiteto italiano Carlo Scarpa.
Fabrício Roncca Nascido no interior do estado de São Paulo, Fabrício Roncca se mudou ainda criança para Belo Horizonte. Na capital mineira, o jovem teve seus primeiros contatos com o mundo das formas e cores. Frequentou o curso de Belas Artes da Universidade Estadual de Minas Gerais (UEMG) com sua mãe e se encantou com as diversas obras do arquiteto Oscar Niemeyer espalhadas pela cidade. Não foi à toa que, ao completar 18 anos, Fabrício optou pela graduação em Arquitetura. Formado pela Universidade Estadual de Londrina (UEL) em 2002, o profissional abriu seu escritório no município paranaense e começou a realizar projetos de arquitetura, interiores e mobiliário. Nas três áreas, Fabrício Roncca busca unir beleza, sustentabilidade, equilíbrio dos materiais e memória afetiva. Segundo o arquiteto, suas criações surgem por meio de insights que ocorrem ao observar o
Foto: divulgação
cotidiano. O fato de ter morado em várias cidades
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também é considerado determinante. “Vejo muito essa questão da miscelânea de referências locais em meu trabalho. Acho que isso tem muito a ver
A luminária Disco é feita em madeira laminada, com técnica de marchetaria, e canópla de vidro fosco. O objetivo de Rejane Carvalho Leite era gerar uma iluminação intimista e elegante.
com design brasileiro mesmo, porque temos uma cultura muito rica de influências. Então, tento trazer um pouco dessa experiência que tive, e acho que isso naturalmente acaba sendo demonstrado nos projetos”, explica.
Carvalho Leite Formada em Arquitetura e Urbanismo em 1995, pela Faculdade Inter dos Reis, a gaúcha Rejane Carvalho Leite passou anos de sua carreira realizando projetos comerciais em arquitetura. Após realizar um trabalho de grandes proporções para uma empresa que acabara de ser privatizada, Rejane se viu esgotada e percebeu que precisava mudar sua vida. Quando foi convidada para desenvolver um ambiente para a Casa Cor de Porto Alegre, a profissional decidiu que criaria também alguns móveis. Desde então ela tem substituído os trabalhos de arquitetura por design de mobiliário. Para adquirir mais conhecimento na área, Rejane Carvalho passou uma temporada na Itália, estudando design no Politécnico de Milão. Quando o assunto é criar, Rejane diz que não há hora nem lugar. “O processo criativo está vinculado com o pensamento e as emoções 24 horas por dia, porque, por mais que tente desconectar, qualquer coisa é motivo para um insight para determinado produto”. Ela também
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A peça Arame foi desenvolvida pela emDoïsdesign como uma opção de luminária de chão. Feita em madeira torneada e cúpula de metal, ela propõe um contraponto entre o quente e o frio.
Fotos: divulgação
A luminária Relativo foi criada por Cadu Silva usando madeira e metal. Sua inspiração foram os sinos das igrejas de Ouro Preto, Minas Gerais.
gosta de observar as pessoas e as mudanças na sociedade. “As coisas estão mudando muito rápido e, se não estivermos atentos, sempre vamos fazer o mesmo do mesmo. O design tem esse compromisso de visualizar o usuário para que consiga antecipar uma necessidade, que às vezes ele nem percebe”, destaca. Além do escritório, a designer atua também em um coletivo de mulheres, chamado Plataforma 4, para trocar experiências diárias sobre o setor.
emDoïsdesign Comandado pelos designers Mariana Betting e Roberto Hercowitz, o emDoïsdesign nasceu em São Paulo em 2006. A história do escritório começou quando Mariana e Roberto se conheceram e decidiram se casar. Até então, Mariana atuava na área de propaganda e marketing e Roberto trabalhava com desenho industrial. Quando resolveram morar juntos, o casal passou a desenhar uma série de móveis para mobiliar a casa. Com essa experiência e o convívio com o marido, Mariana Betting se apaixonou pelo design. Os dois então decidiram se mudar para Barcelona e se aprofundarem na área. Na volta para o Brasil, Mariana e Roberto se estabeleceram no Rio de Janeiro e fundaram o emDoïsdesign. O casal conta que o trabalho desenvolvido no escritório sempre tem como objetivo proporcionar o máximo de funcionalidade, bom uso dos materiais e estética aos produtos. A inspiração para criar 57
as peças surge de pesquisas a partir de briefings e de situações do cotidiano. Para os dois, o fato de terem formações diferentes também acaba contribuindo para o resultado final de suas obras. “O Beto tem uma graduação nessa área e eu só tenho o mestrado. Então, ele tem conhecimentos técnicos mais aprofundados do que os meus. Só que, por outro lado, por eu não ter esses conhecimentos arraigados eu consigo voar mais. Por isso, o nosso trabalho é super complementar”, esclarece.
Cadu Silva Nascido e criado na cidade de São Caetano do Sul, onde a General Motors mantém um Centro Tecnológico, Cadu Silva cresceu apaixonado por carros. Durante a infância, o garoto passava horas desenhando modelos de veículos na esperança de que um dia eles estivessem nas ruas. Antes mesmo de chegar à idade de prestar vestibular, Cadu não tinha dúvidas de que seria designer de produtos. No entanto, ao ingressar no curso da PUC do Paraná, o jovem entrou em contato com as obras de Joaquim Tenreiro, Sérgio Rodrigues e Lina Bo Bardi e decidiu mudar o foco de sua carreira. Antes de se formar em 2012, ele já desenvolvia peças de mobiliário. Após algumas experiências no mercado paranaense, o designer voltou para a sua cidade e abriu um escritório. De 2014 para cá, Cadu Silva se dedica a realizar projetos que incentivem a união entre pessoas através do conforto e da beleza. A inspiração para criar peças com essas características vem da ideia de identidade cultural brasileira. “Busco sempre referências do que é o Brasil, de como nós nos enxergamos e que história é essa que é contada para nós”. O interesse por essas questões é tão grande que Cadu realizou um mestrado em antropologia. “Se hoje estou um pouco mais crítico em relação às imagens que nós temos sobre o país, é devido à antropologia. Ela também me ajuda a enxergar o design em um contexto social e isso, a meu ver, traz muitas implicações para minha profissão”, afirma.
Débora Aguiar Arquitetos O escritório comandado por Débora Aguiar conta com 20 anos de atuação no mercado. Formada em Arquitetura e Urbanismo pelo Mackenzie, em São Paulo, a profissional divide seu tempo entre projetos de arquitetura, design interiores e iluminação. Segundo Débora, a escolha por essa profissão foi um caminho natural, já que, durante a infância, passava horas imersa nos desenhos ou criando casinhas 58
Fotos: divulgação
O pendente Triangle é um jogo de triângulos de vários tamanhos que permite diversas composições: horizontal, vertical, diagonal, entre outras.
O abajur Petit Meliá foi inspirado nas lanternas ou ‘hurricanes’, permitindo uma luz difusa e um design acolhedor.
para suas bonecas. A arquiteta também conta que a iluminação sempre lhe encantou, por isso nunca deixou de inclui-la em seus trabalhos. “Desde sempre Fabrício Roncca
sou completamente apaixonada pela luz. Utilizo a luz natural sempre que possível e os recursos da iluminação cênica e seus diversos efeitos. A iluminação é a alma de cada ambiente, de cada projeto. É o seu humor, sua temperatura. A sofisticação, o descanso, o realce. É simplesmente transformador”, lembra.
Rejane Carvalho Leite
Ao longo de sua carreira, Débora Aguiar desenvolveu uma série de luminárias elétricas e solares com os mais diversos materiais, como bambu, madeira, acrílico, cristal de rocha e alumínio. Os projetos foram realizados em guardanapos de restaurantes, bloquinhos que carrega na bolsa ou mesmo no computador do escritório. De acordo com ela, qualquer coisa é capaz
emDoisdesign
de estimular sua criatividade. “Tudo me inspira: a natureza, um filme, uma viagem. Mas o que mais me move é o novo desafio, o olhar do cliente e seu desejo de realização”. Débora explica que sempre quis produzir algo que fizesse a diferença e pudesse ter um efeito transformador nas pessoas. “Hoje, tenho plena consciência de que, ao escolher fazer o belo, gero
Cadu Silva
uma energia maravilhosa de criação de empregos, de produtividade em diversos segmentos e de realização ao concretizar, o que foi idealizado”, ressalta. As pessoas que quiserem conferir os trabalhos de todos esses designers podem encontrar algumas peças na Templuz, localizada Avenida Senhora do Carmo,
Débora Aguiar
1150, no bairro Sion, em Belo Horizonte, Minas Gerais. O horário de funcionamento da loja é de segunda a sexta-feira, de 9h às 19h, e aos sábados, de 9h às 14h. 59
A tropicalidade no design nacional Depois de meio século, o Tropicalismo inspira e aponta para um caminho sem volta por Marco Túlio Ulhôa
Há pouco mais de 50 anos, o Brasil assistia a uma verdadeira revolução cultural protagonizada por alguns de seus artistas mais influentes. Glauber Rocha, Caetano Veloso, Hélio Oiticica e Rogério Duarte são só alguns dos nomes que misturaram manifestações tradicionais brasileiras a inovações estéticas radicais, dando origem a um movimento conhecido como Tropicalismo. A importância desse período foi tão grande que até nos dias de hoje é possível encontrar artistas que trazem para suas obras alguns dos traços típicos desse movimento. No campo do design, o carioca Brunno Jahara é um dos que reivindica essa influência, na mesma medida em que aponta para novas interpretações da ideia de tropicalidade e da própria noção de antropofagia defendida pelos integrantes do movimento. Produzindo móveis e objetos diversos a partir de materiais brasileiros e releituras de produtos tradicionais, Brunno diz se inspirar em um Brasil tropical de forma intuitiva, ao se ater aos elementos que integram o modo de vida no país. No entanto, assim como os tropicalistas, Brunno Jahara não está menos atento às mudanças e novidades produzidas em outros países. Apesar de propor uma arte autenticamente nacional, o movimento nunca deixou de buscar referências em correntes internacionais, que acabaram contribuindo para o tom vanguardista da tropicália e para a inauguração no país da arte pós-moderna.
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Gargalos / Coleção com Patrícia Bagniewski
Para o designer carioca, essa experiência, capaz de conciliar a vida no Brasil e o conhecimento do que se produz no exterior, é a chave para se destacar no design, na medida em que essa postura o torna capaz de entender seu lugar como brasileiro em um contexto global. “Hoje em dia, não projetamos design para uma país só, e sim para o mundo”. Nesse sentido, Brunno Jahara destaca a criatividade e o improviso brasileiros como outra maneira de projetar que se demonstra mais intuitiva e, por isso, mais humana e menos presa às tradições. Concepções que outrora embalaram a revolução tropicalista e uma ideia de Brasil que, após cinquenta anos, ainda se mostra mais viva e mais
Foto: divulgação
contemporânea do nunca.
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Coleção Paleae Brasilis
Fotos: Alex Batista
Fotos: Jahara Studio
Multiplastica Domestica
Origens no Design As origens do tropicalismo dentro do design
Para a professora de História do Design da
remontam aos trabalhos realizados pelo baiano
Universidade Estadual Minas Gerais (Uemg),
Rogério Duarte. Ainda na década de 1960, Duarte
Vânia Myrrha, os elementos que predominam
estabeleceu em suas peças gráficas uma espécie
nas peças gráficas produzidas por Rogério dizem
de síntese da cultura popular brasileira. E também
respeito à influência decisiva da contracultura na
da contracultura norte-americana que influenciava
Tropicália como um todo. E, sobretudo, à mistura de
não só a arte e o comportamento dos jovens
elementos da pop art, do fauvismo, do art nouveau
brasileiros, mas a própria vida política de um país
e do surrealismo que, por sua vez, caracteriza essa
situado em meio ao contexto da ditadura militar e
influência.
da promulgação AI-5, em 1968. “Os cartazes transcenderam a função original Da mesma forma que outros membros do
de uso que elas tinham como peças de design,
movimento propunham a relação do Tropicalismo
encontrando uma autonomia de arte. Com isso,
com o Manifesto Antropófago (1928), de
ele possibilitou o diálogo entre a arte, o design e a
Oswald de Andrade, as capas de disco e
música”, afirma.
cartazes de filmes criados por Rogério Duarte
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encarnavam tal concepção sob prisma de
Noções que, a seu ver, iluminam a obra de
uma visualidade alegórica, carnavalesca e
Rogério Duarte como um campo privilegiado
influenciada por diferentes correntes artísticas.
na identificação desse diálogo entre a arte e o
Alguns bons exemplos disso são os álbuns Caetano
design, nem sempre visível em outras peças de valor
Veloso (1968) e Gilberto Gil (1968).
utilitário, como no caso dos discos e cartazes.
Jorge Ben, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Rita Lee, Gal Costa e (sentados) Arnaldo Batista e Sergio Dias, 1968.
Contexto Histórico Tropicalismo O movimento tropicalista não possui uma data exata
Brasil e ao mundo, o tropicalismo e a diversidade de
de fundação. As manifestações em diversos campos
suas criações artísticas.
da arte foram ocorrendo ao longo do final da década de 1960. Entre os principais acontecimentos que
Se o momento seminal do movimento tropicalista
impulsionaram o surgimento do Tropicalismo está a
já apresentava as diferentes vertentes e linguagens,
estreia, em maio de 1967, do filme Terra em Transe,
nem mesmo a forma como sua imagem se tornaria
obra-prima do cineasta baiano Glauber Rocha.
extremamente vinculada à música impediu que outros artistas fossem vistos como peças fundamentais
Assim como a abertura da exposição Nova
no surgimento do grupo e no desenvolvimento de
Objetividade Brasileira, um mês antes,no Museu de Arte
suas propostas conceituais. Ainda que Caetano e Gil
Moderna do Rio de Janeiro, na qual o artista plástico
angariassem o protagonismo da revolução estética
carioca Hélio Oiticica apresentou, pela primeira vez, a
operada pelo Tropicalismo - juntamente a uma
instalação Tropicália.
nova geração de músicos e poetas que, em 1968, estampariam a capa do álbum-manifesto Tropicalia,
Além disso, são considerados marcos do movimento
ou Panis et Circensis – na qual se encontram Tom Zé,
a aparição de Caetano Veloso ao lado da
Gal Costa, Os Mutantes, Rogério Duprat e Nara Leão,
banda de rock argentina Beat Boys e de Gilberto
além dos poetas Torquato Neto e José Carlos Capinam
Gil, acompanhado por três jovens paulistanos
–, outros artistas ligados, sobretudo ao campo das artes
denominados como Os Mutantes. Juntos, fizeram de
plásticas, apresentaram uma enorme contribuição na
“Alegria, alegria” e “Domingo no Parque” hinos de
formulação dos elementos da arte tropicalista.
uma geração que, a partir do fatídico II Festival da Música Popular Brasileira, realizado pela TV Record,
O mais importante dentre eles é Hélio Oiticica que,
conheceriam uma nova perspectiva estética ligada
além de emprestar o nome de sua instalação à
não só à música, mas aos diversos meios de expressão
canção de Caetano Veloso e ao próprio movimento, é
que compõem a cultura brasileira.
o principal responsável, ao lado de artistas como Lygia Clark e Lygia Pape, pelo diálogo da arte tropicalista
Não por acaso, 1967 foi também o ano em que o
com o neoconcretismo e a arquitetura moderna. Hélio
grupo Oficina, dirigido por José Celso Martinez Corrêa,
Oiticica seria também o autor de diversos textos e
estreou a peça O Rei da Vela, adaptação da obra
manifestos dedicados a estabelecer os princípios da
Oswald de Andrade. E, José Agrippino de Paula
arte tropicalista, além de criador de algumas das obras
publicou o romance Panamérica, apresentando ao
mais significativas de todo movimento.
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Moda em movimento Capital mineira se destaca pelo cenário efervescente de marcas que conectam expressividade e transgressão Por Pâmilla Vilas Boas
Não precisa ser gigante para existir. Essa
independentemente de gênero e
frase resume a efervescência das marcas
orientação sexual”, relata Raphael.
de Belo Horizonte, que vêm construindo novos estilos e novas possibilidade de
A aposta inicial dos sócios Raphael Ribeiro
expressão a partir da moda. A frase de
e Tiago Carvalho foi focar no underwear
Raphael Ribeiro, um dos diretores criativos
(roupas íntimas sobretudo masculinas) que
da Cacete Company, traduz o ideal da
era um setor pouco explorado. “Quando
marca em abordar assuntos subversivos e
lançamos, a gente falava que era
que traduzem o mundo contemporâneo.
masculina, mas as meninas começaram
“A gente tenta tirar o véu e jogar na cara”,
a usar, perguntar se ia ter calcinha.
afirma.
Começamos a fazer peças “femininas” no arquivo 04. Entre aspas por que muitas
A Cacete Company surgiu em 2015
vezes criamos algo pensando no público
num momento em que se discutia a
feminino e os meninos compram e vice e
desconstrução do sexo, do gênero, do
versa. É muito fluido nesse sentido”, ressalta.
erótico e sexual. “Cacete na moda, Linn da Quebrada na música e Desali nas artes
Arquivos é o nome que eles utilizam
visuais”, afirma. A marca vai completar
para falar de suas coleções. Eles vão
05 anos e realizou seu primeiro desfile na
arquivando suas pesquisas, histórias e
São Paulo Fashion Week em 2017, como
aglutinam diversos temas que perpassam
parte do Projeto Estufa, incubadora de
o processo criativo, ao invés de apostar
novos talentos do evento. No mesmo ano,
num assunto central que vai guiar as
a cantora Pabllo Vittar estrelou o clipe de
peças, como a maioria dos estilistas faz.
K.O. usando um top da grife. Pablo Vitar,
“Hoje em dia é tanta coisa ao mesmo
usando nossas roupas, foi uma alavanca”,
tempo que é muito difícil falar só de uma
destaca Raphael.
coisa. Cada arquivo traduz questões que estamos pesquisando e pensando. Não
A marca pode ser definida como voltada
é que não tehamos um tema, é que são
para o público LGBTQI+, apesar de atingir
vários”, explica. O último arquivo que
outros públicos em diálogo, sobretudo,
desfilaram na SPFW 2019 foi inspirado na
com essa geração hiperconectada.
obra “Fogueira Tecno Neoxamanica”, da
“Como todo mundo que trabalha aqui é
artista carioca Marcela Cantuária. A obra
gay, bicha, sapatão, acho que tem a ver
retrata uma espécie de seita em torno de
com isso de fazer pensando em pessoas
uma fogueira de computadores, de certa
como nós. Mas no geral são pessoas que
forma, um futuro próximo.
estão nesse processo de desconstrução,
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Foto: divulgação
Jaqueta Valente da LED aposta no tingimento feito manualmente em estampas únicas e marcantes.
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Fotos: divulgação
Cansados de uma imagem eurocentrada, a busca dos estilistas da Cacete Company é por uma moda da rua e para a rua. “Em nosso desfile na última SPFW, comentaram sobre a importância das pessoas que levamos para ocupar aquele lugar no desfile. O que a gente quer menos falar é de roupa”, revela Raphael. A proposta dos estilistas é valorizar essas pessoas que fazem parte de seu cotidiano. “Uma forma de nos sufocar menos. Crescemos entendendo a moda como esse lugar de Paris, Nova York, mas nunca tivemos a oportunidade de estar lá. Tem outra moda que é daqui para cá e tudo bem se não conseguir ser esse tipo de marca gringa”, aponta. Raphael conta que no primeiro desfile utilizaram uma foto da Praça Sete em Belo Horizonte como convite. “Não é Brasil, também não é só São Paulo”, completa. Já a marca LED, idealizada pelo estilista Célio Dias, também prestes a completar 05 anos, surgiu num momento em que se discutia a questão do gênero na moda. Na época de sua criação, Célio apostava em modelagens e estampas fortes para redefinir o que era 66
Cansados de uma imagem eurocentrada, a busca dos estilistas da Cacete Company é por uma moda da rua e para a rua.
conhecido como “roupa sem gênero”, uma tendência associada a peças de tons opacos e modelagens pouco inovadoras . Se no início, seu trabalho era marcado como moda sem gênero, atualmente Célio prefere não se ater aos rótulos. Para o estillista, roupa de fato não precisa ter gênero e quem escolhe isso é o indivíduo. “Eu prefiro falar roupa. Acho que moda sem gênero hoje é um termo datado. Se, na década de 1990, tudo era dividido entre homem e mulher, hoje temos inúmeras possibilidades que uma pessoa pode ser e que foram reprimidas. Temos uma veia criativa forte e esse é o ponto alto dessa nova geração”, afirma. A LED, que também nasceu do boom digital, já foi vestida por artistas como Liniker, Ludmilla, Jaloo e Rico Dalasam, tendo um amplo alcance nas redes sociais. Em 2017, eles desfilaram na SPFW com uma coleção inspirada no visual clássico do adolescente rebelde, com tênis rabiscados, calças rasgadas e outras customizações. Além disso, utilizou de frases de efeito nos looks como “bicha power” e “sem censura”. Eles estão lançando a coleção nova “Valente” em comemoração aos 05 anos da marca. 67
Fora da indústria “Quando somos independentes não temos um manual de instrução. Erramos muito e aprendemos com o tempo”, afirma Célio Dias, que idealizou a LED com apenas 22 anos, após ter se graduado em Juiz de Fora Minas Gerais. Impaciente, criativo e determinado, mudou-se para Belo Horizonte e investiu na ideia. “Quero tudo rápido, mas foi preciso compreender que uma empresa do tamanho da LED não tem essa capacidade. Trabalhei para algumas empresas em que desenhava num dia e no outro dia a peça estava pronta. Então, é entender muito o seu espaço, tempo e processo”, avalia. Mesmo com a repercussão e o sucesso rápidos, Célio produz as peças de forma artesanal e fora da indústria da moda. “Uma roupa tem 03 ou 04 processos que não vão acontecer no mesmo lugar, é um problema que a gente enfrenta. A estrutura é meio na raça”, explica. Para o estilista , a moda brasileira viveu por muito tempo se pautando pelas marcas internacionais, questionando sobre tendências mundiais sem levar em consideração as potencialidades de um país que está identidades. “Apesar de ser muito bom ser global, hoje em dia, isso te coloca em competição com muita coisa gringa, fast fashion, que na década de 90 não existia”, afirma. Para ele, a falta de incentivo do poder público interfere no alcance dessas novas marcas. “No Brasil temos dificuldade em criar junto, em validar o processo criativo de um designer menor. Espero que as marcas maiores comecem a enxergar isso. Temos uma mídia espontânea muito forte e as redes sociais são um grande termômetro”, avalia. A alternativa que Raphael Ribeiro, da Cacete, encontrou para iniciar seu trabalho sem o apoio da indústria foi criar uma espécie de atelier. “Temos um
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A LED celebra seus cinco anos de existência com a nova coleção Valente, com peças únicas que carregam histórias da trajetória da marca.
Fotos: divulgaçào
em outro hemisfério e que possui outras
Foto: Mauro Figa
A Remexe Favelinha é uma das poucas marcas de moda upcycling oriundas da periferia e com um amplo raio de alcance.
atelier de costura e uma pilotista que faz as peças pilotos e as pequenas produções. Só as underwear e camisetas de malha fazemos fora, mas também em empresas pequenas”, relata. A opção dos estilistas é manter a produção bem próxima para não perder a qualidade. “Decidimos, pelo nosso tamanho, por manter essa logística pequena de produção”, revela. Além disso, toda a produção da marca é feita em Belo Horizonte. A grande dificuldade desse processo é conseguir colocar no mercado o que apresentaram no desfile. “O desfile gera desejo e as pessoas querem comprar, mas não conseguimos atender a demanda”, afirma.
Sustentabilidade O Centro Cultural da Favelinha, localizado no Aglomerado da Serra, em Belo Horizonte, recebia doações de roupas que começaram a se acumular no espaço. Foi então que Kdu dos Anjos teve a ideia de realizar um desafio fashion, em 2017, em parceria com o Sebrae Minas, com 30 horas dedicadas a uma maratona de design e criatividade para remodelagem das roupas. A partir dessa iniciativa surgiu a grife Remexe Favelinha que transforma peças
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usadas em novas coleções que, no final do ano, serão apresentadas em Londres. As peças da grife são apresentadas ao público no evento Favelinha Fashion Week. Como explica Isabella Rodsil, à frente da marca juntamente com sua mãe, Miliane Rodrigues e Kdu dos Anjos, o próximo Favelinha Fashion Week será realizado em Londres e irá apresentar a nova coleção inspirada em novas tecnologias e no projeto Garota Hacker, por meio do qual as costureiras do bairro vão aprender mais sobre tecnologia e, assim, mostrar o trabalho que desenvolvem numa faculdade de moda inglesa. “Vamos inserir, por exemplo, QR codes nas peças e quando a pessoa aproximar o celular vai cair em uma animação”, ressalta Isabela sobre o evento em parceria com o Sebrae e o British Council (Conselho Britânico). A transformação das peças são pensadas a partir do modo próprio de vestir das pessoas do aglomerado e das tendências que surgem Fotos: Mauro Figa
no próprio local. “Geramos renda para pessoas O próximo Favelinha Fashion Week, evento que apresenta as novidades da marca, será realizado em Londres e irá apresentar sua mais nova coleção baseada em elementos hi-tech.
que trabalham no Remexe e criamos uma cena aqui dentro. O Favelinha Fashon Week, por exemplo, conta apenas com modelos da região. É muito interessante por que as pessoas ressaltam sempre modelos famosas e padronizadas e o nosso desfile é diverso, além de visar o empoderamento de quem participa e dos moradores que se vêem no desfile”, revela Isabella Rodsil. Remexe Favelinha é uma das poucas marcas de moda upcycling oriundas de um local periférico e com um alcance tão amplo. “Tivemos muitas mentorias e estamos traduzindo esse conhecimento na moda. Estamos nessa linha de frente da moda sustentável e acredito que o Remexe vai ter um potencial ainda maior. Só temos 03 anos e está tudo rolando muito rápido. Inventamos e não geramos resíduos. Pegamos o que está no mundo e transformamos”, completa.
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Às margens da história Juntando fragmentos do passado e do presente na busca de uma história do design a partir das mulheres “Ao homem, a madeira e os metais, à mulher a família e os tecidos” Por Pâmilla Vilas Boas
Como é possível dar maior visibilidade às produções de mulheres brasileiras que foram, por anos, invisibilizadas ou consideradas menos importantes que as figuras masculinas na história? Foi a partir desse questionamento que as designers Juliana Argollo e Luize Araujo iniciaram o projeto Designer Gráfica. Ele surgiu como trabalho de conclusão de curso de Design pela Universidade do Estado da Bahia, em 2017. Hoje, integra um dos projetos da empresa Motora, liderada por elas juntamente com a designer Julia Lago. A cada ícone que entra para a história, dezenas deles são relegados ao esquecimento. Se a história do design foi pautada pela presença masculina, trabalhos atuais de escavação vem encontrando novos vestígios: onde estão as mulheres que foram fundamentais para a constituição da disciplina? Assim como num trabalho arqueológico, recontar essa história é juntar peças de um processo de invisibilização. “As poucas mulheres que conseguem fazer parte da literatura 72
A luminária Cantante, da designer Claudia Moreira Salles, conta com a produção da ETEL e tem a luz dirigida para o bowl de madeira acentuando as características do material.
Sintonia Fina é o projeto criado
Fotos: divulgação
por Claudia Salles para a Lumini com peças que trazem a densidade da madeira e a leveza do cobre.
do design são lembradas sob as regras do patriarcado: definidas por gênero, como produtoras ou usuárias de produtos femininos, ou à sombra de um marido, um irmão ou mentor”, explicam. Sem a participação de Lina Bo Bard e Carmem Portinho não seria possível, por exemplo, a criação do primeiro curso superior de design do país, mas não é exatamente isso que contam os livros de história. Luize e Juliana explicam que a fundação da Escola Superior de Desenho Industrial (ESDI), criada em 1963, tem como nome principal Alexandre Wollner, que é estudado e valorizado. Mas pouco se fala da participação das mulheres na construção da profissão “designer” no país. Sem a participação de Lina Bo Bard, por exemplo, e as trocas que ela mantinha com Wollner e a escola Alemã, esse processo não 73
seria possível. Além disso, o design, como entendemos
digital para o Brasil, com a criação da Folha Serif,
hoje, chega ao Brasil a partir do Instituto de Arte
em parceria com o estúdio alemão MetaDesign,
Contemporânea (IAC) associado ao MASP, também
comandado por Erik Spiekermann. Na mesma epóca
liderado por Lina Bo Bard.
de Cecília Consolo, Evelyn Grumach, Lara Wollner, Valeria London, Marcia Holland, Marili Brandão, alguns
Carmen Portinho fazia parte do grupo de pessoas à
dos nomes de designers que começaram a carreira
frente dos projetos do MAM (Museu de Arte Moderna)
na década de 1970 e que, possivelmente, enfrentaram
no Rio de Janeiro. Grupo esse responsável por firmar
preconceitos dentro das empresas, disparidade de
a aliança política necessária à abertura da ESDI
salários e outras questões ligadas à desigualdade de
(ARAÚJO, BURY, 2017:17). Carmen Velasco Portinho
gênero (ARAÚJO, BURY, 2017: 91).
foi uma engenheira, urbanista e feminista que, em 1919, lutou junto de Bertha Lutz e outras mulheres
Mais recentemente, Elaine Ramos (1974) marcou
pelo direito ao voto. Portinho atuou na elaboração
a história do design brasileiro com a produção de
e coordenação do projeto estrutural do Aterro
coleções importantes para a área. Luíze e Juliana
do Flamengo; na elaboração e coordenação do
explicam que a designer permaneceu na editora
projeto estrutural do Museu de Arte Moderna do Rio
Cosac Naify até o seu fechamento e, nesses 16 anos
de Janeiro; Fundou a União Universitária Feminina e
na editora, foi responsável pela direção de arte de
ajudou a fundar Associação Brasileira de Arquitetas
grandes títulos e de exemplares premiados, além de
e Engenheiras. Carmen aconselhava as mulheres
ter idealizado e produzido o livro “Linha do Tempo
que não mudassem o nome ao se casar, em atitude
do Design Gráfico no Brasil”. Ela acaba de fundar a
de independência e resistência. Foi a primeira mulher
UBU, uma nova editora independente ao lado de três
no Brasil a obter o título de urbanista.
sócias. “A Cosac Naify só durou tanto por causa dela, que pensava no reaproveitamento, custo, além de ter
A ESDI formou uma geração de mulheres, como
produzido as principais bibliografias sobre design. Se
Eliane Stephan. O interesse de Stephan (1953) pelo
a colocarmos na história, ela vai entrar como quem
design gráfico surgiu quando ouviu sobre a Bauhaus
trouxe acesso à informação”, ressalta Luíze.
pela primeira vez. No Jornal Folha de São Paulo, ela
Foto: Vitoria Cintra
comandou o projeto que trouxe a primeira tipografia
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“Quem foi a mulher que montou a primeira prensa
sozinha? Quem foram as monjas caligrafas, grandes tipógrafas do Brasil? E a história de vida de Eliana Stephan, que trouxe a primeira tipografia digital para o Brasil? Quem são as mulheres por trás dos grandes estúdios de design?”, questiona Juliana, que leu sobre uma moça que foi levar a prensa com o marido para os EUA. O marido morreu e ela montou a impressão sozinha. A designer não encontrou nenhum vestígio sobre essa mulher. “É preciso que alguém se interesse pelo assunto e busque em registros históricos”, completa. Luíze cita ainda o exemplo da designer Emilie Chamie, que nunca teve um estúdio próprio e sempre trabalhou com nomes consagrados como Alexandre Wollner. “Talvez tenham tido outras mulheres que trabalharam em estúdios e ninguém vai saber. Geralmente, o trabalho vem com o nome do estúdio e se até hoje temos esse problema, imagina nos anos A Motora Design foi responsável pela criação da identidade visual e embalagens do restaurante “Healthy por Victoria Cintra” que inovou trazendo o modelo de negócio “grab and go” para a cidade de Salvador.
1960”, avalia. Para as designers, o cânone se constrói pela repetição. “Se um designer ocupa a página inteira e colorida de um livro, automaticamente vamos considerá-lo importante, se ele aparece pequeno e num cantinho da página, é médio importante. Quem produziu o livro não estava preocupado em visibilizar as minorias. Nós, brasileiros, que estamos fora do ocidente político, muitas vezes não integramos os grandes livros de design e precisamos querer construir essa história”, ressalta Juliana.
Foto: divulgação
A Motora Design é liderada pelas designers Juliana Argollo, Luize Araujo e Julia Lago. Trata-se de uma empresa liderada por mulheres e impulsionada pela diversidade.
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“Se é um homem que escreveu esses textos históricos, ele vai citar sempre os amigos do ciclo dele. Não é um recorte história justo”, completa Luíze.
Uma nova história Móveis quietos que expressam uma graça espirituosa. Essa é a definição de Adélia Borges para o trabalho da designer Cláudia Moreira Salles. “Adélia entendeu uma coisa que é importante para mim. Essa coisa de ser quieto, a partir de uma geometria simples e equilibrada, sem exagerar”, explica Cláudia. Ela se formou em Desenho Industrial no Rio de Janeiro e faz parte de uma geração de designers que teve que lidar com a indústria pouco equipada e com um mercado consumidor de design ainda muito incipiente no início dos anos 80. Claudia começou trabalhando na indústria de móveis para escritório e, paralelamente, fazia móveis por encomenda. “Passei a ter contato com a mão de obra artesanal e com a madeira. Nesse momento, busquei por esse conhecimento e sobre como inseri-lo no mercado”, relata. Foi quando conheceu Etel Carmona, que estava começando a trabalhar com marcenaria e havia aberto uma loja. Cláudia cita também a designer Jacqueline Terpins, da mesma geração, que a inspirou em como encontrar um mercado e inserir um produto. “Abrimos caminho para uma geração que viu que era possível atuar no design dessa forma”, completa.
O Vidro e o cristal Designer e artista plástica, Jacqueline Terpins atua desde 1973, tendo o vidro e cristal como parte de seu trabalho criativo desde o começo de sua vida profissional, sendo ambos responsáveis por sua trajetória de sucesso no mercado nacional. Ela é uma das maiores referências brasileiras quando o assunto é vidro soprado. Como aponta Cláudia, sua visão ampliada de negócios foi fundamental para o fortalecimento do design autoral. Toda entrevista com designers mulheres geram novas referências e esse foi um processo importante para esta matéria e também para o trabalho das designers da Motora. Como explicam Juliana Argollo e Luize Araujo, foi sobretudo a partir de entrevistas com designers vivas que o coletivo Motora conseguiu ampliar o raio de referências. “Fizemos uma densa pesquisa bibliográfica marcando o nome das mulheres que apareciam, revisitamos as mulheres que já passaram pela Associação Designers Gráficos, 76
mas a lista só cresceu mesmo quando começamos Imagens: divulgação
a entrevistar mulheres que iam se indicando. Foi um movimento lindo”, revela Juliana. As designers realizavam eventos em Salvador com a temática da diversidade e tinham muita dificuldade para encontrar mulheres para compor os eventos, já que a maioria dos palestrantes eram sempre homens. “Se para mim, que estou focada nessa temática, já é A designer Goya Lopes cria suas estampas inspirada na história da África
Tecido com estampa Iorubá criado por Goya Lopes
difícil encontrar, imagina para os homens que realizam eventos há tantos anos?”, indagam. Foi a partir desses questionamentos e para deixar essas informações mais acessíveis que as designers decidiram criar a plataforma Designer Gráfica, que
Pinturas rupestres, ecologia, entalhes da Nigéria e musicalidade da Bahia são algumas das inspirações da designer Goya Lopes na criação de suas estampas
reúne nomes e trajetórias de mulheres que estão atuando hoje na área. O projeto é colaborativo e está em constante construção com a inserção e atualização de novos nomes de mulheres da área. O acervo está no endereço www.designergrafica.info Essa ausência de referência impacta também na construção de repertório e na conformação de uma cultura do design de forma mais ampla. “Design exige muito trabalho de pesquisa de referência. Querendo ou não, você está reproduzindo um certo estilo. Falta um pouco da referência de trabalho de mulheres que te influenciam e que serão futuramente citadas para entrar no ciclo do cânone e mais na história”, avalia.
Drinks suaves Um cliente pediu para que a Motora desenvolvesse o cardápio do restaurante que tinha uma sessão de “drinks para elas”. O que são drinks para elas, perguntaram as designers, e o cliente respondeu que são drinks mais suaves. “Então, por que você não coloca drinks suaves no cardápio? assim você não limita suas vendas, inclusive. E era algo que o cliente nem tinha pensado”, revelam. Para elas, o trabalho de design impacta na cultura, sobretudo pelos signos que está expressando no mundo. “Uma peça gráfica pode reforçar ou não estereótipos. A pessoa é gorda, magra, branca, preta, hoje a gente vê isso com um pouco mais de clareza” apontam.
Design feminista Quando Vanessa Queiroz se formou, em 2003, sua sala contava com 40 homens e apenas 6 mulheres. No terceiro ano da faculdade de design ela criou um grupo só de mulheres para realizar o trabalho final. 77
Durante a avaliação pela banca, majoritariamente
construir um espaço amigável para essa diversidade
masculina, os problemas de seu grupo eram
de gênero, é no dia a dia com os clientes que o
percebidos com muito mais agressividade do que os
machismo ainda é sentido na pele. “Ia em reunião
dos meninos. “É como se a gente já entrasse devendo,
que o cliente não olhava para a minha cara, só para o
mas só criei essa consciência uns 10 anos depois”,
meu sócio. Quando ia sozinha, eles logo perguntavam
revela. Vanessa Queiroz é sócia do Estúdio Colletivo
‘mais o fulano não vem?’ Sempre enfrentei e fui
e um dos poucos nomes femininos dentro do corpo
conquistando o meu espaço, mas sei que, para muitas
diretor da Associação dos Designers Gráficos do Brasil.
mulheres, isso pode ser desencorajador”, ressalta.
Se o design é um reflexo do que está acontecendo
Para Vanessa a discussão sobre o feminismo no
na própria sociedade, é comum que ele reproduza
design ainda está longe de ser ideal, mas já é
os estereótipos de gênero, avalia Vanessa, que hoje
possível ver uma luz no fim do túnel. “Tem muita
percebe um movimento de mulheres de todas as
agência de publicidade que começou a enfrentar
áreas buscando espaço e outras referências. “Em
essa discussão. Não dá para criar uma campanha
vários eventos, ainda sou a única mulher e sou muito
sobre menstruação, por exemplo, com um time
procurada por outras meninas também. É muito
completamente masculino. Hoje, parece um absurdo,
importante abrir um espaço em sua área, antes muito
mas esse era o ambiente em que vivíamos e ninguém
masculino”, ressalta. Ela atua no estúdio Colletivo com
questionava”, completa.
mais outros dois sócios. É ela quem os representa em palestras e eventos justamente para dar visibilidade à
Design afro baiano
atuação das mulheres. A designer Goya Lopes é uma das precursoras ao
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Hoje, o Colletivo tem uma diversidade grande de
abordar a cultura afro-brasileira dentro do design. Ela
designers, em sua maioria formada por mulheres.
graduou-se em Belas Artes e, em 1976, foi uma das
“Já tive escritório só com homem. Além de mim e a
10 selecionadas para uma bolsa do Governo Italiano
recepcionista”, aponta. Se sua empresa conseguiu
para estudar Design na Universidade de Florença. Na
A arte de Goya Lopes mescla sensibilidade e sofisticação, apresentando, em seu trabalho, a cultura afro-brasileira, indígena e barroca.
época, havia uma abertura para artistas plásticos no design com o objetivo de promover uma nova estética para os anos 70.
Imagem: divulgação
Nos anos 80, Goya muda-se para São Paulo e se insere no movimento que buscava uma brasilidade para o design. Foi uma mulher, Maria Henriqueta Gomes, uma de suas maiores influências. Ela estava à frente da ANA, Arte Nativa Aplicada, criada em 1976, e considerada uma das primeiras empresas preocupadas em produzir um design industrial moderno e com traçado realmente brasileiro. “Ela me influenciou a acreditar no empreendedorismo e no trabalho autoral. Maria morreu na década de 90, junto com o marido, Severo Gomes, no avião em que estava Ulysses Guimarães”, explica. Goya queria produzir um trabalho dentro da história da África. Então, “por que não trazer a questão afro brasileira para o design?” Na época, os tecidos eram trazidos da África, sobretudo o Pano da Costa, utilizado nas indumentárias do Candomblé. Influenciada por essa religião, Goya passou a trabalhar com o branco no branco e muitos religiosos que se vestiam com roupas vindas do outro continente passaram a vestir suas peças. Como, por exemplo, as mulheres da Irmandade da Boa Morte de Salvador, que realizam um festejo dedicado à Nossa Senhora há mais de 200 anos. “Após os anos 60 e 70, com o surgimento do movimento Pantera 79
Negra, começavam a surgir no Brasil também os
da criação, produção, distribuição e mídia positiva.
primeiros rastafaris e pessoas que passaram a se vestir
Nós, que trabalhamos o produto afro brasileiro e afro
inspirados nesses movimentos e o próprio mercado
americano, temos sempre algumas restrições de
absorveu”, explica. Esses movimentos de orgulho
espaços em certos eventos e isso é uma questão de
negro influenciaram também os blocos afros da Bahia.
mercado. Se sou considerada nicho, então tenho
“Como mulher, tive essa percepção. Os blocos afros
que ser nicho para o mundo inteiro, vou entrar online,
como o Ilê, Olodum, começando a se posicionar em
vou me desenvolver para ser conhecida como nicho
prol da beleza negra. Por tudo isso, passei a trabalhar
universal, essa é minha postura hoje. Não existe um
para uma estética afro brasileira que, na época,
designer negro famoso, existem os que conseguiram
chamava-se afro”, complementa.
galgar um status e uma condição”, ressalta.
Depois de ter vivenciado uma vasta experiência de
Goya aponta ainda a importância histórica das
desenho para indústria, Goya experimentou, ao invés
mulheres negras - ganhadeiras e quituteiras que
de fazer o desenho e aplicar como serigrafia, realizá-
abriram um mercado imenso que hoje se constitui nos
los em moldes vazados para obter um produto com
microempreendedores. Um mercado não industrial e
uma linguagem diferente. “Queria algo inovador
marcado pelos retalhos. “Esse mercado de retalhos,
e que, ao mesmo tempo, pudesse ser aplicado no
as quitandas, esses lugares foram abertos com essas
cotidiano. Queria um produto que tivesse a nossa cara,
ganhadeiras que saiam para os senhores, depois
mas fosse universal”, revela. Em 1987, a empresa estava
conseguiam alforria e libertavam muita gente. Temos
instalada no Pelourinho, em Salvador.
uma história de mulheres negras muito forte no mercado. Quando se fala em design, precisa também
A principal barreira como designer negra e inspirada
de conhecimento, mas estamos chegando lá”, ressalta.
na afrobrasilidade, segundo Goya, é a visão de que
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seu trabalho só deve ser ressaltado em eventos e
E é preciso pensar também no recorte racial, já que
comemorações pontuais. “Qualquer produto precisa
as mulheres negras experimentam o sexismo de forma
Imagens: divulgação
Os fundadores do Estúdio Colletivo realizaram o trabalho de conclusão de curso juntos sobre o filme Apocalypse Now do diretor Francis Ford Coppola.
muito mais violenta. Apesar do mito da miscigenação O Colletivo Design, liderado por Vanessa Queiroz, construiu o posicionamento e branding da Cervejaria Colorado. Cada rótulo da cerveja tem uma história e uma série de elementos que mantém uma unidade.
e da democracia racial, o racismo permanece como uma questão muito problemática, afetando inclusive o campo do design que permanece excluindo indivíduos não brancos. Como explicam Luize e Juliana, as mulheres negras sofrem um duplo apagamento histórico. “No Brasil, apesar da compreensão de que o exercício do design não está necessariamente vinculado a uma formação acadêmica específica, é inegável que o acesso ao mercado de trabalho e à profissão estão intimamente ligados com algum tipo de educação formal. Enquanto havia mulheres brancas tentando acessar esses espaços de formação, a negra ainda era escravizada e colocada à margem da sociedade. É muito cruel, se não tivermos a preocupação com esse recorte, torna-se difícil visibilizar o trabalho delas”, completam.
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Artigos O que é a Seção Artigos? A cada edição, desde 2018, o magazinebook iDeia Design traz uma síntese da pesquisa e da reflexão de pesquisadores cuja investigação e produção de saberes se dão no campo do design, e que dialoguem com a temática que guia cada edição. Os pontos de vista de cada autor são construídos a partir de referências da pesquisa em design e de áreas que contribuem para seu desenvolvimento, observando seu hibridismo e interdisciplinaridade. A proposta dessa seção é apresentar algumas das inquietações que se desdobram em hipóteses, reflexões, experimentos e novas inquietações para o campo do design, dentro e fora da academia. O pensamento é estruturado, mas ao mesmo tempo fluido, assim como novas e desejáveis reflexões surgidas a partir de sua leitura. Nesta edição, a identidade do design brasileiro é observada sob três diferentes luzes: o design decolonial, o design olfativo e, por fim, sob o olhar do design na leitura.
Por Marcos Maia
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Projeção de um design brasileiro
Poltrona CJ 1 de Carlos Motta
Para Saussure (1995), a linguagem verbal constitui um fenômeno social, possibilitando uma certa unificação dos indivíduos de uma comunidade linguística. A função da linguagem como instância integradora constrói-se também sobre a suposta esterelidade-neutralidade ideológico-social de um signo linguístico. Barthes (2004) concorda que a linguagem não pode ser considerada neutra. Uma vez que o design seja entendido enquanto um fenômeno de linguagem (BRAIDA e NOJIMA, 2016), podemos estender para o design, essas noções da linguagem? Portanto, não há design neutro. Sendo assim, o objeto de design - um artefato, projeto gráfico ou de ambiente etc. – pode trazer, ainda que de forma muito sútil, os atravessamentos discursivos Fotos: divulgação
do sujeito que o projeta? Uma vez que nenhum objeto de design é neutro e traz em si caracteres que permitem sua afiliação à determinadas ideologias e valores, seria possível identificar, dessa forma, valores e sistemas de ideias que revelem uma identidade brasileira no design? 83
Poltrona DIZ de SERGIO RODRIGUES Criada em 2001, a poltrona Diz tornou-se um dos clássicos da produção de Sergio Rodrigues. Leve e extremamente confortável, graças à sua dupla curvatura, é fabricada inteiramente em madeira e está disponível em diversos tons. Ganhou o primeiro lugar no 20° Prêmio Design do Museu da Casa Brasileira, em 2006.
Cadeira de três pés, 1946 de Joaquim Tenreiro
Na história deste país, tivemos e temos ainda diversas
se sustenta apenas na esfera ideológica,
influências em diferentes campos, incluindo o design.
discursivamente, pois o conceito está relacionado ao
Como definimos um ponto exato em que se destaca
processo histórico de invenção da ideia de “nação”,
uma identidade brasileira no design? Landim (2010)
podemos falar de um design nacional a partir da
pode nos indicar alguns caminhos. A autora lembra
variedade e pluralidade que entendemos constituir a
que, dentre os elementos que podem se considerar
identidade brasileira.
nesse jogo de influências, também está a tensão entre aspectos artísticos e industriais (p.109), e
Landim (2010) aponta que a crença no poder
destaca duas grandes tendências dos anos 40 até
do design de agregar valor à produção industrial
o final do século XX: os designers que trabalhavam
nacional, foi um dos fatores que motivou a criação
como se estivessem na Europa e os que entenderam
do Programa Brasileiro de Design (PBD) em 1996,
o quão especial é se dizer ser brasileiro, mas não
localizando o Brasil em um contexto globalizado. As
puderam indicar em que consistem os elementos da
práticas de design no Brasil funcionaram, no fim do
diversidade nacional.
século passado, sob um modelo racional-funcionalista, em que as características locais deram espaço às
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Conforme bem lembra Ono (2004) a “diversidade”
práxis e valores simbólicos estrangeiros, principalmente
não se traduz como “desigualdade”, assim como
europeus, afastando do design a brasilidade pulsante
“diferença” também não significa “divisão”,
que de fato impulsionaria o design brasileiro. Com o
propondo uma coexistência harmônica da
gradativo reconhecimento do fracasso da proposta
diversidade na totalidade” (p.54) e, embora
modernista, surge uma nova política que propõe o
prefira não utilizar conceitos determinantes como
uso de materiais e mão de obra locais, ganhando o
“identidade nacional”, que de forma reducionista
reconhecimento do meio intelectual.
Antes de ideais ecologistas, já existiam ideais de
historicamente a colonialidade, uma proposta de
produção nacional que progrediram para uma forma
projeto mais profundo e também uma tarefa urgente
de protesto contra o modelo “colonialista industrial”
para a subversão do nosso presente padrão de poder
a partir da adoção de tecnologias alternativas. Num
colonial. A decolonialidade é, em síntese, um projeto
contexto pós-moderno, as manifestações culturais do
mais amplo e contínuo que descolonização.
país passam a ser centrais para o design brasileiro. Apresentam-se como referências estéticas a cultura
Pensar um design, cujas tensões surjam internamente
popular e as festividades como carnaval, ou mesmo
das contradições e dissemelhanças de sua própria
as festividades religiosas, que possuem um caráter
riqueza cultural local e de sua diversidade, e não das
de integração dos indivíduos em uma ideia de
pressões intelectuais, tecnológicas ou econômicas
coletividade, ainda que múltipla e diversa.
exteriores é permitir o despontar da diversidade do design brasileiro.
Os pesquisadores Portinari e Nogueira (2016) da PUCRio propõem pensar nas possibilidades do design e as
O design brasileiro volta-se para novas referências
vocações ocasionais para que certos objetos ou coisas
que se apoiam no multiculturalismo e na
ganhem cunho político. Os autores adiantam que é
mestiçagem local, como um novo e possível modelo
impossível conceber uma teoria definitiva que englobe
para o desenvolvimento desse design local, ao
todos os aspectos políticos possíveis no design, uma
distanciar-se das referências do exterior, de uma
vez que tanto os entendimentos do que é uma ação
prática mimética (LANDIM, 2010, p.119). A autora
política, quanto do que é design são múltiplos e
atenta ainda para a consideração sobre um tríplice
permitem diferentes construções teóricas. A partir
aspecto: design, cultura e território como exigência
do ponto de vista de que a dimensão política não
para os designers nesse contexto pós-moderno,
pode ser entendida apenas como uma bandeira, ou
incluindo também a questão ambiental a partir de
impacto social direto, mas uma forma de intervir nos
um olhar para a sustentabilidade.
próprios processos internos. Não falamos aqui de uma visão nacionalista, mas de uma visão descolonializada e, mais do que isso,
de perceber o design, passando pela atenção aos
uma (re)visão contínua de seus próprios processos
seus processos internos, e a própria historicidade
internos, a partir da assunção das características
do design brasileiro, a partir do conceito de design
próprias regionais e locais que se combinam, em
decolonial. O design decolonial se insere em um
uma certa integração dos indivíduos de uma
cenário de crítica aos processos de invasão territorial
comunidade que produz e consome design, não
e cultural vivenciados em diversos países, e, conforme
mais ilusoriamente neutro e ligado a um sistema
explicam Restrepo e Rojas (2010 apud Resende, 2018,
de valores alóctones, mas original, híbrido e em
p.52), refere-se ao processo que busca transcender
constante mudança.
Fotos: divulgação
Propomos então considerar uma prática e uma forma
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Referências: 1: BARTHES, Roland. Aula. São Paulo: Cultrix, 2004. 2: BRAIDA, F.; NOJIMA, V. L. Por que Design é linguagem? 2.ed. Juiz de Fora, MG: FUNALFA: Ed. UFJF, 2016. 3: BRAIT, Beth. Olhar e ler: verbo-visualidade em perspectiva dialógica. Bakhtiniana. Revista de Estudos do Discurso, v. 8 (2), p. 43-66, 2013. 4: LANDIM, P. C. Design, empresa, sociedade [online]. São Paulo: Editora UNESP; São Paulo: Cultura Acadêmica, 2010. 191 p. ISBN 978-85-7983-093-8. Available from SciELO Books <http://books.scielo.org>. Acesso em: 15 set. 2019. 5: ONO, M. M. Design, cultura e identidade, no contexto da globalização. Revista Design em Foco. Salvador, vol. 1, n.1. p. 53 – 66, jul-dez, 2004. 6: PORTINARI, D. B.; NOGUEIRA, P. C. E. 2016. Por um design político. Disponível em: <https://estudosemdesign.emnuvens.com.br/design/article/ view/379>. Acesso em: 15 set. 2019. 7: RESENDE, Ana Catarina Zema de. Direitos e Autonomia Indígena no Brasil (1960 – 2010): uma análise histórica à luz da teoria do sistemamundo e do pensamento decolonial. (tese). Brasília: UnB, 2014. Disponível em <http://repositorio.unb.br/bitstream/10482/17769/1/ 2014_ AnaCatarinaZemaDeResende.pdf >. Acesso em: 07 set 2019. 8: RESTREPO, Eduardo y ROJAS, Axel. Inflexión decolonial: fuentes, conceptos y cuestionamientos. Popayán: Editorial Universidad del Cauca, 2010. 9: SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de linguística geral. São Paulo: Cultrix, 1995.
Marcos Maia Mestre em Estudos de Linguagens pelo Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais (CEFET-MG). Pesquisador integrante do GESSD - Grupo de Estudos em Sistemas Sígnicos no Design, na Escola de Design da Universidade do Estado de Minas Gerais, do CAPTE - Centro de Apoio a Pesquisas Sobre Televisão e do grupo Narrar-se, ambos no CEFET-MG. Roteirista na Rede Minas de TV – Fundação TV Minas Cultural e Educativa. Atua em projetos e pesquisas em audiovisual, discurso e comunicação.
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Design olfativo e brasilidade: os encantos da experiência
“A brisa é boa, pé na areia e braços abertos para o Atlântico” Trecho da descrição do Hotel Janeiro
Por Isabela Monken Velloso
Janeiro, hotel de Oskar Metsavaht na orla do Leblon.
Tudo começou com um convite para compor este artigo. A pauta: design olfativo e brasilidade - termos que, num primeiro momento, parecem ocupar lugares muito particulares e, possivelmente, distantes. O chamado para realizar o texto veio em um bom e importante momento, afinal, a área criativa do design ainda é eminentemente e, por vezes, exclusivamente visual. Não encontramos, com frequência, incursões sobre as interfaces aqui, pontualmente, tangenciadas. Pesquiso, há aproximadamente dez anos, a convergência dos odores no reinado da moda. Aprendi, nesse trajeto, que, no universo da moda, tão marcado pela noção de visualidade e aparência, os odores operam não apenas com a produção de camadas muito palpáveis de emoções evocadas, como também sustentam boa parte da cadeia produtiva das grifes internacionais. O cheiro nos prefacia e antecede, seja ao gozo do encontro com o prazer ou
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com o anúncio do que nos pode repelir. Como
da ideia de um projeto de representação no
nos lembra Patrick Suskind (1985), o odor é irmão
qual o cheiro norteia o encontro com um campo
da respiração, sua vivência encontra nosso íntimo,
semântico que se deseja atualizar, como uma
nossos pulsões e emoções. Em sua obra (SUSKIND,
marca, por exemplo, para a qual se desenvolve
1985), o narrador argumenta que conhecer a
uma espécie de logo ou identidade olfativa.
dinâmica dos cheiros permite às pessoas tocarem o coração humano. Se recorrermos à etimologia
Se pensarmos nos calçados Melissa ou nas roupas
da palavra sagaz (JAQUET, 2014), veremos que
de cama M Martan, um cheiro ali presente parece
o termo se refere àquele que tem um olfato sutil.
trazer todo o conceito que engloba esses universos
Cheiros são, em nossa fisiologia, iguais à emoção,
discursivos, numa encantadora economia
despertam nosso sistema límbico, sem passar antes
simbólica e metonímica da parte pelo todo. Se
pelo crivo da razão e, em vivência, são também as
pensarmos o design como design híbrido, talvez
mais potentes memórias.
falar em design olfativo seja pormenorizar demais. Será? Para quem ainda não se interessa pela
E o design? Na etimologia do termo, design
ação dos cheiros nos projetos de arte e design,
significa: através dos signos, das representações. O
um convite potente seja um breve passeio pela
design estará sempre envolto no desejo de mediar
trajetória de Chandler Burr.
a representação, tornando-a espetáculo. O bule de chá, por exemplo, quando perpassado por um
O primeiro crítico de perfumes do mundo, com
olhar cuidadoso, na poética da representação,
uma coluna dedicada a essa temática no New
não será apenas o receptáculo inerte de ervas
York Times, passou a atuar, em seguida, no setor
imersas num líquido aromático, mas o desenho
de Arte Olfativa, no Museu de Arte e Design de
único de um projeto de um modo de ser, um
Nova York. Suas produções incluem experiências
modo de estar no mundo, vigilante e sensível
como “Hyper Natural Senses: from Design do Art”
que encontrou, nas linhas da forma concreta,
(HYPER, 2019), no qual buscou demonstrar, em um
materializada, um convite intangível de um way
passeio pelo desenvolvimento de várias moléculas
of life. O design é sempre um produto híbrido
desde o final do século XIX até os dias atuais,
(BRAIDA, 2012). Ele é resultante de um corpo
como os odores são meios importantes do design
desperto: ao toque, às texturas, à forma, aos sons,
para construir um conjunto de mensagens, até
aos cheiros.
então, pouco percebidas por nós de forma mais consciente.
O design olfativo é ainda um termo pouco
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perscrutado pela academia brasileira, mas já
Outra iniciativa foi o encontro “Design e Estrutura
se encontra no registro de funções em grandes
na Arte Olfativa” (DESIGN, 2019), em que, reunido
empresas do setor da perfumaria e dos aromas,
a profissionais do setor, discutiram sobre como a
nas quais se pode identificar o cargo de
criação de novas moléculas modificou a maneira
Coordenador de Design Olfativo. Numa busca
pela qual perfumistas projetam a parte estrutural
rápida pelos registros de trabalhos em língua
de suas obras. Omer Polak, renomado designer
portuguesa, a terminologia surge quase sempre
israelense e artista, nos revela em sua palestra
vinculada à noção de branding, de marketing
“Smell as a design tooll” (SMELL, 2019) e em suas
olfativo. O design olfativo, ainda que pouco
obras como a experiência sensorial do olfato em
contemplado e insuficientemente descrito nos
abordagens multidisciplinares pode nos oferecer
textos nacionais, parece não poder se despedir
oportunidades únicas em um mundo saturado por
Josely Carvalho em exposição individual “Diário de Cheiros: Affectio”
signos visuais e pouco explorado na dinâmica dos sentidos e dos odores. Um convite para se compreender mais amplamente o design é expresso em obras como Sensory Design de Joy Monice Malnar e Frank Vodvarka, publicadas pela Universidade de Minesota (MALNAR; VODVARKA, 2004). Juhani Pallasma (2011), com seu encantador Os olhos da pele: a arquitetura e os sentidos, nos mostra sua concepção expandida do espaço e das habitações, acionando vários sentidos humanos em suas reflexões sensíveis. No âmbito da experiência nacional, a artista brasileira, radicada em Nova York, Josely Carvalho (MUSEU, 2019) realizou uma exposição questionadora, “Diário de Cheiros: afecttio”, no Museu Nacional de Belas Artes, na qual demostrou como o olfato é um sentido potente para a produção artística. Para aqueles que ainda não sabem a força dos
Fotos: divulgação
Aroma Vento, da Osklen.
cheiros para a vida nacional, é importante lembrar que estamos entre as primeiras nações no mundo no consumo de perfumes, fomos recordistas
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mundiais no ano de 2010 (BRASIL, 2019). Renata
singular nacional. Nesse sentido, o criador da
Ashcar (2001), pioneira no estudo sistematizado
marca pondera que aquilo que se leva daqui
da cultura do Perfume no Brasil, destaca que
por nossos visitantes e admiradores não são,
devemos às influências indígenas e africanas
necessariamente, materiais ou objetos - como
a afeição aos banhos e aos prazeres da
se dá, por vezes, no perfil de consumo do
aromatização.
turismo do espaço europeu ou do americano - mas a graça e a memória do aprendizado
As experiências criativas em torno da “marca
de uma experiência, uma maneira de ser
Brasil”, dos odores ou da rica flora de nosso
diante do mundo, abordada pelo estilista
país têm permeado campanhas singulares
como um brazilian soul. Com uma consciência
de projetos e desenvolvimento de produtos
do caráter holístico do design, a marca
nos mais diversos setores. A partir dos anos
Osklen, afeita ao universo das experiências
1990 e ao longo dos primeiros anos do século
sustentáveis, se faz também representar por
XXI, principalmente, pode-se dizer que o
uma assinatura olfativa, expressa no difusor de
Brasil, em determinados momentos, tornou-
ambiente “Vento”, por ela comercializado,
se moda, reconhecido e notado nas esferas
com notas aéreas, frescas, sofisticadas ao
internacionais, destacando-se por seus
estilo minimalista. Contemporaneamente, a
designers, estilistas e modelos. Num cenário
vivência criativa no design de moda de Oskar
de intensa globalização, as demandas por
Metsavaht parece prolongar-se, associando-
discursos locais parecem adequar-se também
se à experiência dos projetos de design de
aos interesses discursivos de mercados globais
interiores, na criação do Hotel Janeiro, no
(VILLAÇA, 2007). Sobre a inserção do discurso
Leblon.
da brasilidade, o pesquisador Renato Ortiz (2019) já demostrou em seu texto como a ideia
Se a essência de nosso design seria, então,
de “nação/identidade” pode servir a usos
a intagilbildade de uma forma de inserir-se
ideológicos e políticos, por vezes, muito distintos
no mundo, como sugere o estilista, talvez um
da sua real aplicabilidade no campo da
bom convite aos designers brasileiros possa ser
cultura e da crítica. Para o autor, a noção de
esse: trocar a representação pela experiência.
cultura pode ser entendida como “consciência
Nesse ponto, entre todos os sentidos, o olfato
coletiva que vincula uns aos outros” (ORTIZ, p.
é um caminho possível para fazê-lo. Uma
612, 2019).
imagem nos reporta a algo, um cheiro, por sua vez, traz, holística e, encantadoramente,
Na construção de nossa brasilidade, para além
uma vivência. Ao se conceber o design em
dos grandes temas da mescla cultural e do país
sua dimensão sensorial, híbrida e olfativa,
tropical, estamos unidos por uma experiência
pode-se encontrar novos caminhos para se dar
comum, identificada com um modo de ser.
forma e tangibilidade, cada vez maior, à nossa
Segundo Oskar Metsavaht (2019), criador da
intransferível e experiencial brasilidade, ao
marca brasileira Osklen, aqueles que vêm ao
nosso aromático e especial modo de ser.
Brasil não buscam necessariamente objetos culturais icônicos, mas, sim, uma experiência
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Referências: 1: ASHCAR, Renata. Brasil Essência: a Cultura do Perfume. São Paulo: Nova Cultural, 2001. 2: BRAIDA, Frederico. A linguagem híbrida do design: um estudo sobre as manifestações contemporâneas. Rio de Janeiro, 2012. 297f. Tese de 3: Doutorado -Departamento de Artes & Design, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. 4: BRASIL vira líder mundial no mercado de perfumes. Disponível em: https://veja.abril.com.br/economia/brasil-vira-lider-mundial-no-mercado-deperfumes/ Acesso em 30 set. 2019 5: DESIGN and Structure in Olfactory Art. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=0su3RJo6e8w&t=2454s. Acesso em 29. set. 2019 6: HYPER Natural Scent: From Design to Art - With Chandler Burr. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=VmZAUcF2X-U. Acesso em 29. set. 2019. JANEIRO. Disponível em: https://janeirohotel.rio/sobre/ Acesso em 29 de set. de 2019. 7: MALNAR, Joy Monice; Vodvarka, Frank. Sensory Design. Minnesota: Univ. of Minnesota, 2004 8: MUSEU Nacional de Belas Artes recebe instalação olfativa de Josely Carvalho. Disponível em: https://mnba.gov.br/portal/imprensa/novidades-domuseu/183-museu-nacional-de-belas-artes-recebe-instala%C3%A7%C3%A3o-olfativa-de-josely-carvalho.html. Acesso em 30 set. 2019. 9: OMER Polak. Disponível em: https://www.omerpolak.com/ Acesso em 29 set. 2019. 10: ORTIZ, Renato. Imagens do Brasil. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/se/v28n3/a08v28n3.pdf Acesso em: 19 jul. 2019. Oskar Metsavaht discute a cultura intangível do brasileiro. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=PSB3_jDkOO4. Acesso em 30 set. 2019. 11: SMELL as a design tool -- the S sense project (Omer Polak / TEDxLausanne). Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=dgPoLM3E-VA. Acesso em 29 set. 2019. SUSKIND, Patrick. O perfume: história de um assassino. Rio de Janeiro: Record, 1985. 12: VILLAÇA, Nízia. Brasil: da identidade à marca. IN: Revista Famecos; nº 33; Porto Alegre; ago. de 2007. Disponível em: http://revistaseletronicas. pucrs.br/ojs/index.php/revistafamecos/article/viewFile/3435/2697. Acesso em 30 set. 2019
Isabela Monken Velloso Doutora em Ciência da Literatura/ Semiologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, Mestre em Teoria da Literatura pela UFJF , Especialista em Moda, Cultura de Moda e Arte. Professora efetiva do Bacharelado em Moda do Instituto de Artes e Design da Universidade Federal de Juiz de Fora. Em suas mais recentes pesquisas, vem se dedicando às investigações das estruturas discursivas de marcas e criadores, bem como às interfaces estabelecidas entre a moda e outros campos da cultura - com ênfase na Cultura do Perfume. No Instituto de Artes e Design da UFJF, atua em atividades de ensino, pesquisa e extensão. É líder do grupo de pesquisa e da linha “Interfaces da Moda: saberes e discursos”. Organizadora e autora integrante do livro Cultura do Perfume, Cultura de Moda e Outros Acordes (UFJF Editora, 2015).
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Formação Visual e Brasilidade: conexões possíveis a partir do Design na Leitura
Fotos: divulgação
Maíra Lacerda e Jackeline Lima Farbiarz
Capa do livro Angola Janga: uma história de Palmares, de Marcelo D’Salete, publicado pela Veneta em 2017.
O livro de literatura para crianças e jovens se caracteriza como objeto diferenciado dentro do mercado editorial por se constituir por meio da verbo-visualidade (BRAIT, 2013), posto que seus enunciados são compostos pela junção das linguagens verbais – texto e visuais – ilustrações e projeto gráfico. Segundo Peter Hunt (2010, p. 43), para quem o livro para crianças está no “auge da vanguarda da relação palavra e imagem”, grande parte da complexidade narrativa desses objetos se encontra nos elementos visuais, que – apesar do alcance universal e da identificação com o público ainda em processo de formação e alfabetização – não exigem menos do ato de ler. Considerando que é de fundamental importância para um sujeito na sociedade contemporânea, na qual diversos sistemas comunicacionais interagem e se relacionam, produzir e interpretar significados a partir das imagens que o circundam, o livro de literatura para crianças e jovens se mostra, então, como suporte estratégico. Nesses objetos, que estão ao alcance da grande maioria das crianças e jovens por meio da sua inserção nos espaços escolares, projeto gráfico e ilustração constroem a narrativa e atuam como mediadores de leitura, apresentando para 92
o leitor conceitos e metáforas visuais que, na sua
Roger Mello, designer, ilustrador e escritor, vencedor
relação com o texto, possibilitam a formação visual
do Prêmio Internacional Hans Christian Andersen
do sujeito. Isso é, o processo de educação do olhar
2014, busca em suas obras “o que há de nacional
e de significação das imagens e das representações
e regional nas histórias populares e jogou sua
gráficas, a partir da compreensão desses recursos
imaginação no que encontrou em seu país para
enquanto partes formadoras de uma linguagem, de
contar e mostrar” (YOLANDA In: MELLO, 1998, quarta
um sistema de signos que contém significado. `
capa). Em obras como Bumba meu boi bumbá (1996) e Cavalhadas de Pirenópolis (1998), Roger
Identificado com o “primeiro museu da criança”
Mello traz os festejos para as páginas de papel,
por Nilma Lacerda e Volnei Canônica, o livro
permitindo que brasileiros se reconheçam e se
de literatura permite o contato com projetos
descubram entre versos e ilustrações. São cores,
estéticos que preparam a percepção infantil para
formas e palavras que transpõem para o objeto-livro
a construção de significados a partir de uma
toda uma tradição folclórica brasileira; que contam
iconografia nacional e universal que possibilita o
e mostram diferentes “brasis”.
desenvolvimento da identidade e da alteridade. Ao pensarmos, então, na construção de uma
Na história em quadrinho do autor e artista gráfico
“brasilidade”, na percepção pelo sujeito de algo
Marcelo D’Salete, Angola Janga: uma história de
que qualifica e individualiza o que é ser brasileiro
Palmares (2017), encontramos narrativa verbo-
dentro de toda a diversidade que permeia e
visual que apresenta parte da história brasileira.
constitui nossa cultura, os livros de literatura para
Com estética forte e impactante, são retratados o
crianças e jovens se destacam novamente.
sofrimento e a luta da população negra durante o período da escravidão no Brasil. A partir do
Nesse contexto, surge o conceito de Design
enfrentamento da violência contida nas imagens
na Leitura (FARBIARZ, 2006), que oferece nova
desses livros e no nosso passado, o leitor conecta
possibilidade metodológica para sustentação
tempo e espaço, reconhece o presente ao
de análises no âmbito do Design da Informação.
identificar as raízes do preconceito racial e das
Enquanto o Design do livro se refere unicamente
desigualdades sociais que afligem nosso cotidiano.
ao projeto do objeto-livro em si, o Design na Leitura, em ampliação à ideia anterior, é a concepção
Em movimento similar, o designer Gustavo Piqueira
de um projeto para a mediação do ato de ler.
apresenta Clichês brasileiros (2013), narrativa
Podendo ser definido como um projeto político
exclusivamente visual na qual as imagens,
multimodal, o Design na Leitura se refere a um projeto
compostas a partir do catálogo de clichês
interdisciplinar com vistas à fruição do futuro leitor,
tipográficos brasileiros do início do século XX,
pensado como ser social e dinâmico participante de
recontam nossa história e exploram os “clichês”
um cenário de políticas públicas de leitura, visando
nacionais em uma narrativa que provoca o leitor
ao seu diálogo com o objeto-livro e todas as pessoas
a pensar criticamente sobre a catequização
participantes de sua produção (LACERDA; FARBIARZ;
dos indígenas, a escravidão e também sobre
OLIVEIRA, 2013, p. 166).
a sociedade contemporânea, em um mundo soterrado por carros e cercado por grades.
Temos, na produção editorial brasileira para crianças e jovens, alguns exemplos que se
Entre folclore e história, e ainda entre tantas outras
destacam enquanto projetos que vão ao encontro
possibilidades narrativas – como o encontro
do conceito de Design na Leitura e que permitem
fantástico entre Lampião e Lancelote, o lamento
uma formação visual referente à brasilidade.
do Rio Doce e o cotidiano de um menino entre
Seja em livros que tratam de tradições culturais,
os semáforos da cidade grande –, o livro de
personagens históricos ou eventos de nosso
literatura possibilita a crianças e jovens o contato
cotidiano nacional, leitores se deparam com
com a própria subjetividade e brasilidade, além
projetos estéticos que incluem literatura, projeto
de diferentes realidades e culturas; por meio da
gráfico e ilustração como possibilidades de
experiência literária, o leitor encontra perspectivas
interpretação para o que é ser brasileiro.
diversificadas que o ajudam a nortear a própria vida e projetar o futuro.
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Página 16 da obra Angola Janga: uma história de Palmares, de Marcelo D’Salete.
Capa do livro Angola Janga: uma história de Palmares, de Marcelo D’Salete, publicado pela Veneta em 2017.
Constata-se, portanto, a relevância do processo de formação do leitor; e defendemos que tão importante quanto a formação do sujeito na cultura letrada é a formação visual, que irá possibilitar a produção de sentidos e o desenvolvimento da identidade na verbovisualidade. Por meio das ilustrações e das relações que estabelecem com os textos que acompanham e/ou com os objetos-livro que as contêm, as crianças e os jovens constroem sentidos para as narrativas que leem e para o mundo que os circunda. Considerando, como Salisbury, que “(...) muitas vezes, as imagens dos livros são a primeira ferramenta de uma criança para dar sentido a um mundo que ainda está começando a conhecer”, concordamos quando o autor fala sobre a “grande responsabilidade de um criador de imagens” (SALISBURY, 2014, p. 6. Tradução nossa). Ao propor o conceito de Design na Leitura e pensarmos um projeto de formação visual, acreditamos estar possibilitando a formação de sujeitos potentes na significação da verbo-visualidade, alcançando a condição de indivíduos críticos e agentes de mudanças dos sistemas ideológicos sociais que os circundam, capazes de projetar novas e efetivas formas de intervenção na sociedade.
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Referências: 1: BRAIT, Beth. Olhar e ler: verbo-visualidade em perspectiva dialógica. Bakhtiniana. Revista de Estudos do Discurso, v. 8 (2), p. 43-66, 2013. 2: CUNHA, Leo; NEVES, André. Um dia, um rio. São Paulo: Editora Pulo do Gato, 2016. 3: D’SALETE, Marcelo. Angola Janga: uma história de Palmares. São Paulo: Veneta, 2017. 4: FARBIARZ, Jackeline Lima. Design na leitura: um dos percursos do Núcleo de Estudos do Design do Livro da PUC-Rio. [2006] Disponível em: http://www.dad.puc-rio.br/nel/artigos/06-farbiarz-livro.pdf. Acesso em: 09 agosto 2010. 5: HUNT, Peter. Crítica, teoria e literatura infantil. Tradução Cid Knipel. São Paulo: Cosac Naify, 2010. 6: LACERDA, Maíra Gonçalves; FARBIARZ, Jackeline Lima; OLIVEIRA, Izabel Maria de. Design na leitura: uma possibilidade de mediação entre o jovem e a leitura literária. Rio de Janeiro, 2013. Dissertação (Mestrado em Design) – Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. 7: LAGO, Angela. Cena de Rua. Belo Horizonte: RHJ, 1994. 8: MELLO , Roger. Bumba meu boi bumbá. 4a edição. São Paulo: Global Editora, 2018. _______. Cavalhadas de Pirenópolis. São Paulo: Global Editora, 2018. 9: PIQUEIRA, Gustavo. Clichês brasileiros. São Paulo: Ateliê Editorial, 2013. 10: RODA DE PROSA COM VOLNEI CANÔNICA. Mediação Nilma Lacerda e Maíra Lacerda. 2017. Niterói: Universidade Federal Fluminense. (Notas da autora) 11: SALISBURY, Martin. Ilustración de libros infantiles: cómo crear imágenes para su publicación. 4 ed. Traducción Jofre Homedes. Barcelona: Editora Acanto, 2014. VILELA, Fernando. Lampião e Lancelote. Rio de Janeiro: Pequena Zahar, 2016.
Autoras: Maíra Lacerda Doutora em Design pela PUC-Rio. Tese selecionada no 32º Prêmio Design Museu da Casa Brasileira (2018). Atua como formadora em cursos oferecidos pela FNLIJ – Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil, e no projeto Leitores Sem Fronteiras/ ICE. Pesquisadora do Laboratório Linguagem, Interação e Construção de Sentidos/Design, da PUC-Rio, onde supervisiona o eixo temático Design da informação: sistemas e objetos de informação e comunicação com foco no design editorial. Jackeline Lima Farbiarz Doutora em Educação e Linguagem pela Universidade de São Paulo. Mestre em Letras pela PUC-Rio. Diretora do Departamento de Artes & Design da PUC-Rio. Coordenadora do Laboratório Linguagem, Interação e Construção de Sentidos/ Design. Atua na interface Design e Educação com interesse especial em Design Inclusivo, Design Editorial, Design de experiências em ensino-aprendizagem com foco em espaços e tecnologias inovadoras.
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Cerâmica: uma tradição nacional
Denise Saboia cria peças de decoração feitas à mão em seu ateliê em Fortaleza, Ceará.
por Ana Cláudia Ulhôa Casa com tijolos de adobe, pisos de ladrilhos coloridos, filtros e vasos de barro, xícaras e pratos de porcelana. Observando rapidamente é possível encontrar todos esses itens em diversos lares espalhados pelo Brasil. De norte a sul, a cerâmica faz parte do cotidiano dos brasileiros desde antes do achamento do país pelos portugueses. Segundo o projeto Arte & Artesanato da Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), a técnica de utilizar argila para moldar peças, que posteriormente são queimadas, já era utilizada pelos índios ainda na era pré-colombiana. Os portugueses teriam contribuído para o aprimoramento do processo, com a instalação de tornos e fornos em colégios, engenhos e fazendas jesuíticas. Durante todos esses anos de utilização da cerâmica no Brasil, as técnicas, materiais e objetos criados se desenvolveram e geraram uma infinidade de possiblidades. Atualmente, artistas pesquisa e até mesmo instrumentos musicais feitos a partir da cerâmica. Alguns trabalhos que têm merecido destaque no cenário nacional são os do mineiro Máximo Soalheiro, da capixaba Heloísa Galvão e da carioca radicada no Ceará, Denise Saboia. 96
Fotos: divulgação
se dedicam a trazer à luz não só utensílios para casa, mas também esculturas, projetos de
Máximo Soalheiro Máximo Soalheiro nasceu em Sardoá, Minas
a realizar projetos que extrapolavam a ideia
Gerais, e se mudou para a capital mineira
da cerâmica para a utilização doméstica.
aos 12 anos. Sua paixão pela cerâmica
Apropriando-se de impressoras velhas e tipos
surgiu quando ele ainda tinha entre 17 e 18
móveis de madeira e metal, ele aprendeu
anos e estava se perguntando que profissão
a trabalhar com tipografia e realizou uma
seguir. Nessa época, o jovem realizou uma
exposição em que usava a cerâmica como
inscrição no vestibular de música da UFMG,
suporte para a escrita.
mas mudou de ideia quando visitou um tio em Betim, na Região Metropolitana de Belo
As tonalidades desenvolvidas por ele ao
Horizonte. No local, funcionavam diversas
longo dos anos também viraram obra
olarias e Máximo se encantou pelo cenário
de arte. Máximo Soalheiro montou uma
repleto de fornos, fogos e tons de laranja.
instalação fixa, na sede do Google da capital mineira, com mais de 2 mil potes
A partir daí, ele se dedicou a aprender as
de cores minerais, que ficam expostos em
técnicas básicas da terracota, uma argila
uma parede. Seu projeto mais recente
simples cozida no forno sem passar por
foi o que levou oito músicos ao palco do
processo de vitrificação. Ao todo, foram
Grande Teatro do Palácio das Artes para
quatro anos de aprendizado até o ceramista
executar obras de artistas como Bobby
decidir abrir seu próprio ateliê e fabricar,
McFerrin, Björk, Hermeto Pascoal e Caetano
inicialmente, utensílios para casa. Ainda não
Veloso, utilizando cilindros de cerâmica com
satisfeito, Máximo iniciou uma pesquisa, entre
tamanhos e larguras diversificados.
1978 e 1984, com o objetivo de aprender mais sobre os minerais que compõem a
Apesar de não buscar um traço regional
argila, o efeito do fogo nesses materiais e os
para sua cerâmica, Máximo explica que
diferentes tipos de pigmentação natural.
Minas Gerais foi fundamental para seu trabalho. “Estamos em BH, que fica dentro
“Tive que estudar de mineralogia, geologia
do quadrilátero ferrífero, onde há uma
a engenharia de materiais. Na verdade, é
incidência de ferro e minerais associados. No
um trabalho de uma base muito técnica.
Norte, por exemplo, temos uma formação
Quando a cerâmica é exposta a uma
geológica muito diferente do que temos
temperatura e a uma composição do ar,
aqui. Ou seja, Minas é uma província
isso muda fundamentalmente o material e
mineralógica muito extensa e seria impossível
as cores. Então, durante essa pesquisa, reuni
ter essas cores e essa pegada em outro
mais de 2.500 corpos de provas”, conta
lugar”, destaca.
Máximo Soalheiro. Após esse trabalho, o ceramista criou uma linha de produtos com formas simples e um colorido suave, que lembra algo que veio
Máximo Soalheiro
da terra, e dão uma característica única para suas obras. Máximo também começou 97
Na exposição Tipografia e Cerâmica, Máximo Soalheiro reuniu suas duas paixões em um mesmo espaço.
O projeto Mineral reuniu músicos e peças de cerâmica para criar um concerto no Palácio das Artes, em Belo Horizonte, Minas Gerais.
A instalação realizada por Máximo na sede do Google em Belo Horizonte, Minas Gerais, contou com cerca de 2 mil potes com cores minerais desenvolvidas por ele.
Fotos: divulgação
Além das peças de cerâmica, Máximo Soalheiro também cria projetos tipográficos que foram apresentados na exposição Tipografia e Cerâmica.
Heloísa Galvão Nascida e criada no município de Castelo, no Espírito Santo, Heloísa Galvão também acredita que suas origens influenciaram diretamente suas obras. “Acho que essa coisa de ter morado em um sítio, cercado de montanhas, tem uma presença muito forte em meu trabalho. Tive contato profundo com a natureza até os 17 anos, então, não é à toa que fui buscar uma matéria que é terra e pigmentos que são minerais”, afirma. De acordo com Heloísa, a carreira começou quando se mudou para Vitória, com o objetivo de cursar Artes Plásticas na Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). No início, ela se dedicou ao estudo de técnicas antigas de fotografia, como cianotipia, van dyke e albumem. A jovem só percebeu que seu caminho seria a cerâmica quando experimentou usar esse material como suporte para a impressão de suas imagens. Mesmo não alcançando os resultados esperados, Heloísa não teve dúvidas de que iria continuar trabalhando com a cerâmica pelo resto de sua vida. Ela conta que a liberdade de criação que
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A série Moles tem suas formas criadas pelo próprio peso da peça, que é retirada da forma antes de terminar de secar.
esse material proporciona conquistou seu coração. “Para mim, a cerâmica tem o que procurava lá no começo da minha pesquisa, que era uma coisa de encontrar uma matéria que me trouxesse essas possibilidades de construção. Você dá a forma do que quiser, imagina uma coisa e consegue construir”, recorda. Após se formar, a ceramista abriu um estúdio em Vila Velha, onde realizou seus primeiros trabalhos e permaneceu por setes anos. Para se especializar nessa técnica, Heloísa Galvão realizou um mestrado na Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo (USP) e frequentou o estúdio de cerâmica de Harvard, em Boston, Estados Unidos, por um ano. Hoje, ela vive em São Paulo, desenvolvendo peças feitas em porcelana líquida. Heloísa esclarece que dentro todas as variedades de cerâmica, essa é a que possui mais fluidez e leveza, características que estão sempre presentes em suas obras. Como é o caso de um
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Fotos: divulgação A série Sólidos tem como objetivo brincar com a forma pesada das pedras e a leveza da porcelana líquida.
A série Prismas surgiu do interesse de Heloísa Galvão pelas formas dos minerais.
Denise Saboia desenvolve trabalhos com diversas utilizações. Através de um processo artesanal da cerâmica, a artistas cria utensílios de cozinha, vasos e peças de decoração.
Denise Saboia de seus primeiros trabalhos, uma instalação de asas de
Já Denise Saboia encontra seu impulso criativo em
anjos com três metros de altura na capela do Morumbi.
coisas bastante diversas, muitas delas presentes em seu cotidiano. “Minhas inspirações são as mais variadas
Outros projetos de destaque da ceramista são a
possíveis. Às vezes você está em um lugar e vê alguém
série Líquida, que consiste em vasos bem finos que
vestido com uma estampa que te dá ideias de formas.
trazem gotas em suas bordas; a série Lagos, em que
Ou pode trabalhar dependendo de uma necessidade,
pratos ainda molhados são colocados para repousar
como quando meu pai teve AVC e eu desenvolvi uma
e adquirem a forma dada pelo próprio peso do
xícara que ele podia segurar com todos os dedos e não
objeto. Todos criados de forma bastante intuitiva,
se queimar”, diz.
como comenta Heloísa. “Busco inspiração em meu próprio processo interno e, normalmente, uma série vai
Denise explica que seu objetivo como ceramista é criar
resultando da outra”, esclarece.
obras que sejam universais. Segundo ela, isso tem muito a ver com o fato dela ter nascido no Rio de Janeiro, ter se mudado para a Paraíba na adolescência e, depois de casada, para o Ceará. Além disso, Denise Saboia costuma ir para exterior visitar os filhos e vender suas
Heloísa Galvão
peças. “Me considero uma pessoa do mundo. Devido às minhas vivências, tenho uma coletânea de informações, e meu trabalho mostra isso”.
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Porém, a ceramista chegou a desenvolver
espaço, assim como no Sebrae, Escola de
trabalhos com temáticas regionais, como em
Artes e Ofícios e Instituto Dragão no Mar.
um projeto no qual ela imprimiu rendas típicas do Nordeste em objetos de cerâmica. Essa
Segundo ela, a cerâmica é instigante porque
influência começou quando Denise se mudou,
dá asas para a imaginação e sempre traz
aos 15 anos, para João Pessoa, na Paraíba.
algo de inesperado. “Com a argila você
Lá, seu pai lhe conseguiu aulas com Francisco
pode criar quase tudo, peças utilitárias,
Brennand, um renomado ceramista de
decorativas, escultura. Além disso, é sempre
Pernambuco. No entanto, alguns anos depois,
uma surpresa, porque nessa arte do fogo
ela retornou ao Rio de Janeiro para estudar
nada é previsível. Sempre tem o resultado
Belas Artes, em diversos cursos, como no do
da reação do fogo através da química, dos
Parque Lage.
esmaltes, da argila. Então é uma área que empolga muito”, conclui.
Mas a ceramista não demorou a voltar para o nordeste. Depois de se casar com um cearense, Denise decidiu se firmar em Fortaleza, onde se encontra até hoje. Há
Denise Saboia
22 anos, fundou o seu ateliê e começou a desenvolver utensílios e objetos decorativos. Denise Saboia também dá aulas em seu 101
Desenhando o sertão de Canudos O game Árida é uma imersão nas cores, histórias e personagens que constroem e desconstroem o sertão nordestino Por Pâmilla Vilas Boas
Cícera vive uma jornada de sobrevivência e aventura no sertão brasileiro do século XIX. Com força, fé e sabedoria ela explora as regiões atingidas pela seca que se expressam em múltiplas cores e experiências repletas de magia. O Game Árida (gênero Aventura), produzido pela Aoca Game Lab de Salvador, conta a história de Cícera, uma garota que vive uma jornada de descoberta no sertão. Viver no sertão exige uma ciência própria, já que a fauna e a flora são únicas e os mais velhos da vila guardam os segredos para conseguir água e comida. É com um facão e enxada que o jogador pode conseguir água, abrir caminhos ou cortar um pé de milho. Vai que um dia você precise cruzar o sertão... A Aoca Game Lab é um pequeno estúdio aberto em 2016 e conta com um time de 7 profissionais. Desde então, eles têm focado no desenvolvimento de Árida, o primeiro jogo da empresa, lançado no dia 15 de agosto de 2019 na plataforma Steam. Árida é uma franquia de uma sequência de jogos. da Bahia e a sequência conta com o apoio da Ancine e deve ser lançada até meados de 2020. O historiador baiano Filipe Pereira, game designer e professor da primeira graduação tecnológica em Jogos Digitais da Bahia, explica que a sequência de jogos irá seguir o mesmo universo com elementos distintos de jogabilidade. “Ainda estamos trabalhando no pós lançamento desse primeiro jogo. Lançamos só para windows. Agora serão as versões para Mac e Linox. O certo que é Árida continua e isso você pode escrever”, comemora. O processo de construção de Árida foi colaborativo, envolvendo pesquisas bibliográficas e trabalhos de
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Imagens: divulgação
Este primeiro foi financiado pela Secretaria de Cultura
campo. O time ficou duas semanas in loco em Canudos e Canudos Velho, na Bahia, o que foi fundamental, sobretudo, para a consolidação do design do game. “Foi o ponto de virada do projeto. Tivemos a oportunidade de consolidar coisas da pesquisa bibliográfica e imagética e também de desconstruir muitas outras. O calor do lugar muda tudo. É muito diferente ver fotos e estar lá”, ressalta. Qual a experiência de se caminhar sozinho pelo sertão? Filipe explica que esse foi o mote inicial do design do game. “Andamos por horas sem destino, o que trouxe muitos elementos para o design, desde referência
A principal preocupação dos designers da Aoca no processo de desenvolvimento do game Árida, foi com a humanização dos personagens e a desconstrução do sertão como um local inóspito e cinza.
para a construção do espaço até elementos que incorporamos ao jogo. A presença do bode é um elemento cultural muito forte. Fomos para lugares muito distantes e, do nada, apareciam uns 15 bodes para cima da gente e do nada eles seguiam seu caminho. Tem também essa relação da afetividade que é um traço bem nordestino. Onde chegávamos sempre havia leite de cabra pra tomar, um café e isso não tem como não ser influência e não entrar no jogo” revela. O game é completamente não violento e a mecânica é mais de exploração e colaboração. Apesar do jogo ser jogado sozinho e não coletivamente, a colaboração é algo muito importante em sua concepção, além da oralidade, dos diálogos e do processo de contar
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histórias. “Trabalhamos com elementos de design
da interação com o usuário, mas é quem faz essa
não muito usuais no universo dos games, desde a
projeção”, aponta.
construção do universo ficcional até a concepção os personagens”, completa.
O que é design de jogos?
O designer de jogos geralmente atua em duas áreas: com as escolhas das mecânicas que vão estar no jogo, que tem a ver com a criação mais sistêmica e a parte mais narrativa, que flerta com
É ilustração dos personagens? É programação?
a área de roteiro. “Você pode ter desenvolvido
Usabilidade? Em linhas gerais, Filipe define o
programação e arte muito bons, mas se o game
trabalho do game designer como aquele que
design não for bom, o game terá mais chances de
tem a responsabilidade de criar os parâmetros da
falhar. Às vezes, você tem técnicos não tão boas
experiência, permitindo que os demais profissionais
assim e, se o game designer for bem estruturado,
atuem no projeto. Fazendo uma analogia,
vai ter algo de diferente. Até porque a equipe toda
seria como na construção civil. É como se o
está pensando em design durante o processo.
programador fosse o engenheiro, o artista fosse
O design está para além da parte técnica, ele
o decorador e, o game designer, o arquiteto. Ou
envolve até questões políticas. Com o design você
seja, o profissional que compreende a questão
compreende o que está tentando projetar, por que
estética, mas entende também de materiais e é
e para quem está projetando. É o pensar sobre o
capaz de criar a projeção da experiência. Filipe
fazer”, avalia.
explica que existe uma confusão conceitual sobre o que é trabalhar com design de jogos que deriva
Desconstruindo estereótipos
também sobre as múltiplas possibilidades de
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definição do trabalho de um designer como um
Um lugar cinza, inóspito, inabitado e sem vida.
todo. “Fato é que o design tem uma importância
Quando se fala do Sertão, a primeira imagem que
crucial no desenvolvimento de um game. Ele não
vem a mente é de um local que ninguém gostaria
cria a experiência em si, que é gerada a partir
de estar. Felipe explica que esse foi o primeiro
desafio do design: trazer à tona um imaginário oposto na construção estética do universo do jogo. Durante a pesquisa in loco, de acordo com o game designer, foi possível perceber que, mesmo em períodos secos, o sertão tem uma multiplicidade de cores e uma diversidade estética que se torna ainda mais intensa quando chove. Do ponto de vista dos personagens, a principal preocupação foi com a humanização, diferentemente do que acontece nos jogos quando as mulheres são protagonistas. Geralmente, elas são hipersexualizadas ou tratadas como um elemento sem importância para a narrativa. “Construímos Cícera com um perfil psicológico da forma mais complexa que conseguimos, utilizando referências das meninas da cidade”, ressalta. Já na construção dos outros personagens, a equipe pensou em vetores de temáticas que seriam importantes para traduzir a complexidade do local. Como no caso do curandeiro, em que os elementos semióticos conduzem a um olhar profundo para o personagem. Nesse sentido, o maior desafio foi alinhar essa desconstrução dos estereótipos às Imagens: divulgação
demandas do mercado. A principal preocupação dos designers da Aoca, no processo de desenvolvimento do game Árida, foi com a humanização dos personagens e a desconstrução do Sertão como um local inóspito e cinza.
“Fazer um jogo e fazer com que ele seja notado já é um desafio; fazer um jogo e fazer com que seja notado com esse elemento regional tão forte e, ao mesmo tempo, tentando
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ter referências de internacionalização, é um
Apesar das dificuldades estruturais, Filipe acredita
desafio. Estamos sempre tentando alinhar nossas
que, dificilmente, um jogo com esse perfil seria
questões mais filosóficas com as questões de
gestado em outros estados, onde a cultura não é
mercado”, revela.
algo tão visceral como na Bahia. “Sou apaixonado pela Bahia, a gente respira a cultura de uma
Filipe explica o jogo está sendo baixado na
forma muito diferente. Os problemas das redes e
Romênia, China, República Tcheca, Turquia e
estrutura do mercado fazem muita diferença e
que eles ainda não sabem os motivos dessa
aqui são minimizadas com a criação de espaços
repercussão internacional. “A forma que estamos
de formação no estado. Utilizamos isso como gás e
fazendo o jogo é convidativa para eles? Faz
entendemos a responsabilidade que temos com esse
referência a algum elemento cultural? Não sei
case para inspirar outros projetos”.
se é pela percepção do espaço em que há semelhanças, é meio tentativa e erro”, analisa.
Game fora do eixo
Como Árida parte de uma imersão na cultura do sertão, Filipe acredita que ele pode servir de referência para além do design de jogos. Apesar dos estereótipos, é muito difícil falar do nordeste como
Ao mesmo tempo em que a Internet proporciona
algo unificado. “Existem traços e identificação, mas
novos mecanismos de distribuição, ainda existe
não me sinto confortável em tratar o Árida como
uma desproporção com relação ao acesso a
um jogo nordestino, ainda que ele trabalhe com
investimentos e oportunidades concentrada nos
temáticas e referências do nordeste. Não acho
grandes centros. Para a Aoca é um desafio atuar
que os jogos brasileiros devam trabalhar com esses
num mercado não consolidado e com poucas
estereótipos, precisamos buscar uma forma brasileira
iniciativas semelhantes. “Tentamos quebrar essas
de se fazer jogos, se é que isso é possível, porque são
barreiras conversando com gente do Brasil inteiro.
muitos brasis. Me incomoda muito ver gente tentando
Essa é uma área muito pautada em construção de
se espelhar em outros centros enquanto temos uma
redes”, explica Filipe.
riqueza absurda”, completa.
Equipe Aoca Game Lab
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