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Jornal Laboratório do Curso de Comunicação Social do UniBH Ano 31 • número 195 •Julho de 2014 • Belo Horizonte/MG
A cultura em
alta velocidade
vinte anós após a morte de ayrton senna, reportagem destaca a presença da Fórmula 1 na música, na literatura, no cinema e nas artes plásticas brasileiras. PÁgiNas 2 e 3
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Esporte e cultura
Belo Horizonte, julho de 2014
Impressão
De Fittipaldi a Senna Bandeira quadriculada da Fórmula 1 marca presença na produção cultural brasileira fotos:divulgação
Senna Leandro & Leonardo
Artista plástico Paulo Soláris cria os troféus do GP Brasil
Henrique Menezes Vinicius Toscano
Todo esporte tem um pé na cultura. A emoção que ele traz aos adoradores é ímpar. Muitos mudam suas vidas por causa de um time ou um ídolo. Outros são mais profundos e preferem colocar esse amor à mostra por meio de poemas, canções, quadrinhos, telas. No Brasil, o futebol é o mais lembrado. Crônicas, biografias,
Pivete Chico Buarque “Arromba uma porta Faz ligação direta Engata uma primeira E até Dobra a Carioca, olerê Desce a Frei Caneca, olará Se manda pra Tijuca Na contramão Dança pára-lama Já era pára-choque Agora ele se chama Emersão...”
filmes e músicas retratam equipes, atletas ou torcedores apaixonados. Mas a Fórmula 1, se não ocupa a pole position, vem logo em seguida nessa seara cultural. O esporte da bandeira quadriculada tem gerado, há décadas, ídolos iguais ou até maiores que os do futebol. Quem não comemorou quando Emerson Fittipaldi ergueu seus troféus de campeão mundial? Ou quando Piquet comemorou o tricampeonato? Quem nunca parou o que estava fazendo para olhar Ayrton Senna fazer um milagre nas pistas e vencer aquele Grande Prêmio de Interlagos? Mas como esses ídolos conseguiram alavancar a modalidade nas artes brasileiras? O sonho do pivete
Na canção “Pivete”, lançada nos anos 1970, Chico Buarque conta o dia a dia de um garoto de rua que, em meio a biscates e pequenos assaltos, sonha virar um esportista famoso. Num momento ele é Pelé, noutro, é Mané (Garrincha), e, quando rouba um carro, vira Fittipaldi. A Fórmula 1 sempre buscou o seu espaço, por mais curto que seja. “Por ter rapidamente caído no gosto do brasileiro, especialmente a partir do início dos anos 1970, quando Emerson Fittipaldi abriu o caminho para uma participação constante do País, a Fór-
mula 1, tal como o futebol, passou a fazer parte de nosso cotidiano cultural. Deu origem a filmes, a uma literatura incipiente até a década de 1990, quando um volume maior de obras chegou ao mercado, foi citada em músicas e passou a servir de inspiração para obras de arte”, comenta o jornalista especializado em automobilismo Rodrigo Gini. Quando apareceu o primeiro grande ídolo brasileiro no automobilismo, Emerson Fittipaldi, a seleção canarinho já tinha Pelé, Tostão e outros ídolos. A F1 traz emoções e alegrias, mas sempre andará na sombra do esporte mais querido do país. “Os meninos não correm de carro nas ruas como jogam peladas, no máximo brincam com seus carrinhos sonhando ser campeões. É um envolvimento indireto, via meios de comunicação, e uma sensação de pertencimento menor”, explica Gini. Para o jornalista, “talvez por isso, qualquer iniciativa que aproxime o público do automobilismo seja tão popular e desperte tamanho interesse”. No Brasil, para usar o vocabulário do automobilismo, a F1 estava alguns minutos atrás do futebol. Um retardatário. Quando a população descobriu Fittipaldi e Nelson Piquet, os minutos caíram para segundos. E quando chegou a vez de Ayrton Senna, ela já estava no vácuo do futebol.
Um menino foi correndo mais veloz que um passarinho Foi correndo, foi correndo, foi tão longe o menino Era um rei, parecia a própria simplicidade Dividia o que tinha, era feito de bondade Cavaleiro do asfalto, dono da velocidade Quem te trouxe foi o vento, quem levou foi a saudade Hoje mora nas estrelas onde as dores são pequenas Ela não fazia tipo, ele não fazia cena Senna, ela não fazia cena Ou, ou, ou, Senna, Senna, Senna Ele não fazia cena. Cavaleiro do asfalto, dono da velocidade Quem te trouxe foi o vento, quem levou foi a saudade Hoje mora nas estrelas onde as dores são pequenas Ela não fazia tipo, ele não fazia cena Senna, ela não fazia cena Ou, ou, ou, Senna, Senna, Senna Ele não fazia cena.”
ImprEssão
Esporte e cultura Senna sempre em cena
Heroi da velocidade Milionário e José Rico “Eu presto, cantando, Minha homenagem Ao grande herói Da velocidade Que parou na curva Do grande desejo De repetir de novo (Senna) do Brasil Porém, na manhã De um domingo triste O mundo parou O herói tombou Para sempre Deixou a certeza De uma missão cumprida Se transferiu dessa vida Nos cobriu de saudades E foi morar com Deus Nessa longa estrada Da vida Vou correndo e não posso parar Na esperança de ser Campeão...”
Muito daquilo que se escreveu, desenhou, cantou ou filmou a respeito de Senna tem bem mais a ver com o personagem, o mito, do que com a categoria em si. Tanto assim que, ainda hoje, muitas pessoas deixam claro que não se interessavam pela F-1 em si, mas pelo que Ayrton representava dentro dela, como símbolo de sucesso de um país que se reencontrava com a democracia e buscava uma identidade. Curiosamente, quando o próprio Chico Buarque regravou seu “Pivete”, no início dos anos 1990, trocou “Emersão” por “Ayrton”. Não é para menos: Senna foi inspiração para muitos artistas, antes e depois de sua morte trágica em Ímola. A figura do piloto – e o misto de patriotismo e orgulho despertado por suas conquistas – ganhou grande espaço na cultura brasileira. Na moda, por exemplo, sua influência fez com que os fãs usassem não só artigos da McLaren ou da Williams, mas que tivessem a logomarca do tricampeão e o verde e amarelo da bandeira. Nos quadrinhos, Rogério M. Martins e Ridaut Dias Júnior criaram o personagem Senninha, voltado aos milhares de fãs mirins do esportista. Na música, foram muitos exemplos, como nas letras aqui expostas, das duplas Leandro & Leonardo e Milionário e Zé Rico.
A hora e a vez de Senninha
Além de representar um dos maiores nomes da história do esporte brasileiro, e conseguir encantar gerações que não viram a era do Senna, a figura do Senninha está marcada nas histórias em quadrinhos.
O personagem já figurou como marca de calçados, brinquedos, produtos automotivos, óculos, materiais escolares e gêneros alimentícios. É difícil falar se o Senninha influencia a cultura brasileira ou apenas alguma parte dela. A TV Futura chegou a transmitir uma série de vinhetas tendo o personagem como protagonista. “Não sei se o Senninha influencia a cultura diretamente, mesmo porque a faixa etária de leitores das revistinhas não viu o inspirador do personagem em ação. Vejo que ele se coloca como símbolo, sim, de tudo de positivo que está embutido no trabalho do Instituto Ayrton Senna, que faz um elogiável conjunto de ações para manter viva a memória do tricampeão e seu legado esportivo e social”, comenta Rodrigo Gini.
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A pole position no carnaval
Em 2014, acompanhamos a vitória da Unidos da Tijuca no Carnaval do Rio. O curioso foi o tema, “Fórmula 1”. Como levar a mais alta categoria do automobilismo à maior festa cultural do País? Fácil. Basta citar o esporte em si. Com carros alegóricos, música, o tema da vitória, que ficou consagrado, e terminar com ele, Ayrton Senna. No desfile, a escola de samba conseguiu transmitir toda a alegria e emoção que Ayrton propagou durante sua carreira. Nem mesmo o futebol conseguiu tal façanha. Esse ano não foi tudo diferente. Claro, teve o embalo dos 20 anos da morte de Senna, mas a escola não ficou só focada no brasileiro. Conseguiu mostrar, com fantasias, coreografias e carros alegóricos, a dança da Fórmula 1.
As “quatro rodas” da cultura As quatro rodas são: cinema, literatura, música e artes plásticas. A Fórmula 1 esteve muito presente nesses quatro campos culturais. Os cinema é, talvez, a roda mais fraca. No Brasil, produziu-se o ficcional Roberto Carlos a 300 Quilômetros por Hora (1971) e o documentário O Fabuloso Fittipaldi (1973), ambos dirigidos por Roberto Farias (sendo o segundo em colaboração com Hector Babenco). Mais recentemente, em 2010, foi lançado o documentário Senna, que ganhou vários prêmios importantes ao redor do mundo. Mas, apesar do tema nacional, o filme teve roteirista, diretor e produtores estrangeiros. Em 2011, Marcos Bernstein e Cesario de Mello Franco lançaram o documentário Era dos Campeões, que conta a história dos títulos de Fittipaldi, Piquet e Senna na modalidade. A literatura também não é lá a melhor roda do carro. Existem diversos livros sobre aspectos técnicos ou biografias de pilotos, mas são poucas as obras de ficção que colocam a F1 como tema. Na literatura juvenil, fez sucesso, na década de 1980, a
aventura O enigma do autódromo de Interlagos, de Stella Carr. Mas é uma exceção que confirma a regra. O que predomina são obras informativas, como Os arquivos da F1, de Lemyr Martins, Fórmula 1: o circo e o sonho, de Nice Ribeiro, Entre ases e reis de Interlagos, de Bird Clemente, A arte de pilotar, de Emerson Fittipaldi. Também estão disponíveis no mercado biografias de pilotos menos famosos, como Ingo Hoffman (Ingo, escrito por Tiago Mendonça) e Alex Dias Ribeiro (Mais que um vencedor, autobiografia). Entre as crônicas, destacam-se a coletânea Eu me lembro muito bem, com textos publicados por Nelson Piquet no Estado de S. Paulo, e O boto do Reno – histórias de um repórter de Fórmula 1 pelo mundo, do jornalista esportivo Flávio Gomes. As músicas sobre a F1 já possuem uma variedade maior. A maioria foi produzida em homenagem a Ayrton Senna, como as já citadas canções de Leandro e Leonardo e Milionário e José Rico. Outras músicas também citam a Fórmula 1, por exemplo, “Primeiro Lugar”, do NX Zero, e “Fórmula 1”, do Dominó. Já outras, como “Pivete” e “Baticum”, ambas de autoria de Chico Buarque, não falam apenas da F1, mas de uma cultura na qual a modalidade esta incluída. Nas artes plásticas, temos vários exemplos, como Nanci Marconi, Cecília Centurion e Telma Ramos. Mas o maior nome é o de Paulo Soláriz, que direcionou toda a sua produção para o automobilismo, a ponto de ser, há algum tempo, o responsável pelo desenho dos troféus entregues aos vencedores do GP Brasil, em Interlagos. A maior exposição de arte relacionada à Fórmula 1 ocorreu em 2008, no Hotel Transamérica, em São Paulo. A mostra foi toda de Soláriz, que homenageou Sid Mosca, um dos maiores designers de capacetes da Fórmula 1.
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Música
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Dois estranhos na orquestra Um gosta de samba, o outro de sertanejo: dois repórteres pouco eruditos vão a um concerto da Filarmônica de Minas Gerais e relatam suas surpresas e observações fotos:divulgação
Noite de quinta-feira, véspera da Sexta-Feira Santa, avenida Afonso Pena, em frente ao Tribunal de Justiça, no Centro de BH. Na calçada, dezenas de pessoas e bagagens esperam o ônibus da excursão para sabe-se lá onde neste feriado prolongado. Há gente vestida como se fosse ao shopping, há gente de chinelo, há quem pareça que acabou de acordar. Todos reunidos diante do prédio de arquitetura imponente. Do outro lado da avenida, os traços mais modernos do Palácio das Artes. Os prédios se olham. Do passeio (leia-se: o lugar para a passagem de pedestres) burocrático para o cultural. É ali no Palácio que um conjunto de músicos clássicos se apresentará às 20h30, exatamente às 20h30, não depois das 20h30; pontualidade é uma característica desses artistas e o alerta é para o espectador chegar com antecedência, senão corre o risco de só poder entrar no intervalo (como assim? Show com intervalo?). O movimento na calçada é, basicamente, de quem vai presenciar o concerto da Orquestra Filarmônica de Minas Gerais. Em geral, homens e mulheres posudos e elegantes, bem como no imaginário popular. Um ou outro destoa.
Filarmônica em ação: grandiosidade do espetáculo não intimidou os jornalistas
O fã de MPB Matheus de Oliveira
“Ingresso, ingresso”, anuncia timidamente o cambista a quem passa por perto. Setenta reais é o preço da entrada para a chamada plateia superior (que, na realidade, é inferior: são as cadeiras populares). Ela é nomeada assim por estar num espaço acima das outras, como a arquibancada superior do Mineirão, mais longe do campo. Neste caso, do palco. O valor cobrado na bilheteria, anteriormente, era de R$ 35. Metros adiante, outro vendedor paralelo de tickets. De longe, eles conversam, agora, sem timidez. “Ele quer só um (bilhete)!”, grita o primeiro, dando a impressão de trabalho em parceria, em sociedade, quem sabe. O segundo, já na entrada do Palácio, também tenta vender seu peixe. No hall, mais senhores de ter-
nos ou apenas camisas sociais e mais senhoras de vestido ou, ao menos, uma calça ou saia formal. A maioria é de pessoas com 40, 50, 60 anos. Poucos jovens. Alguns tênis de corrida, bermuda jeans e camisa polo são o extremo da ousadia. Moças agradáveis recepcionam os espectadores com um “boa noite” e lhes entregam um livrinho. Ou melhor, uma revista. Nela, há detalhes do que ocorrerá dali a alguns instantes dentro do teatro e nas apresentações do restante do mês. Todos estão com o bem elaborado informe, mas poucos leem. Também são minoria os que se aproximam de um garoto elegantemente uniformizado e com alargadores nas orelhas – um detalhe contrastante com o ambiente, o que não é ruim. Mas o que tem ele de especial que atrai a atenção dos outros? Ah, ele distribui champagne Chandon em taças.
Champagne! Pode acreditar. Água também, mas champagne? Jamais encontraria isso num show de MPB. Faltam cinco minutos para o espetáculo começar e surge um sinal sonoro, como aqueles de escola. Não é hora do recreio. O aviso é para lembrar aos presentes que o momento de a cortina se abrir está próximo. Finalmente, o teatro. Plateia 2, fileira EE, poltrona 48. Mas cadê a cortina? A sirene toca mais uma vez. Agora é para valer! Baixa a luz, entram os músicos e a plateia aplaude. Segundos depois, entra o maestro, o paulista com sobrenome e traços orientais Marcos Arakaki, suplente de Fabio Mechetti. Novas palmas. Aproximadamente 70% dos lugares preenchidos. Meu relógio acusa dois minutos de atraso. No do rapaz ao lado, olho discretamente, já são 20h35. Começa o concerto.
Na fileira de trás, a única adolescente vista até o fim da apresentação. Está acompanhada de uma mulher, aparentemente, sua mãe. No assento da frente, uma velhinha de cabelos loiros tingidos e algo curioso: ela usa um binóculo. Não parece ter problema de visão, já que está sem óculos. É mesmo para observar com minúcia os movimentos cirúrgicos dos músicos. No palco, os artistas se organizam, em ordem crescente, conforme o tamanho dos instrumentos de corda. À esquerda, violinos; no centro, um instrumento parecido, mas um pouco maior (pesquisando depois, descobri que ele se chama viola – veja só!) e, à direita, violoncelos. Também centralizados, mas atrás dos músicos de corda, os de sopro, além de um com pratos e outro com algo como um tambor e baquetas de bateria. A idade dos artistas varia. Há desde uma
Música
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senhora de madeixas brancas, com penteado semelhante ao da excelentíssima ministra do Supremo Tribunal Federal (STF) Carmen Lúcia, até um jovem rapaz com cabelo à Luan Santana. O maestro, à frente de todos, sobre um palquinho de 1m², só dele. O ritmo da música é o mesmo dos movimentos braçais do regente. Soa engraçado quando há mudança do andamento lento para o acelerado. Mas a impressão de quem observa da plateia é de que os artistas estão atentos mesmo é à partitura. O maestro parece apenas figurar. Os regidos não olham para ele. Ou será que sim? O público é atento e estático. Os sons da “Abertura trágica”, de Brahms, só se misturam às tosses e ao ranger das poltronas. No corredor paralelo ao teatro – é possível observá-lo de algumas cadeiras, – um segurança dá de ombros para
a apresentação e se entretém com um celular: um vaga-lume no corredor escuro. São 20 minutos de apresentação, de uma única composição, até a primeira parada e o novo cumprimento do público. Misteriosamente, Arakaki sai de cena e retorna poucos segundos depois. Ele pede para que os músicos fiquem de pé para receber os aplausos e, em seguida, todos saem do palco. Há uma pausa de não mais que dois minutos, enquanto um piano é carregado por três homens e ajeitado em frente ao local dos integrantes da orquestra. É o instrumento que será dedilhado pela convidada especial, a uzbequistanesa Anna Malikova. Ela entra em cena e também é acolhida pelo público, mas, desta vez, os próprios músicos é que puxam os aplausos. O leigo, se acompanhasse o concerto pelo rádio e não tivesse a informação,
não notaria diferença. A música, assim como na primeira parte da apresentação, varia. Ora mais acelerada, ora lenta. A participação de Malikova termina e, desta vez, não ocorrem apenas palmas. Há veneração. Pelo menos cinco minutos ininterruptos de aclamação e dois gritos entusiasmados de “bravo!”, proferido por um mesmo homem. Ela recebe flores de alguma funcionária do teatro e, como o regente ao fim do primeiro período do concerto, sai misteriosamente para, em seguida, retornar. Ao que parece, a ideia da atitude é receber mais ovação. Dá certo. Agora, sim, intervalo de verdade. A maioria dos espectadores sai do teatro e vai para um espaço onde há lanchonete e bar com vários destilados, mas ninguém os bebe. A champagne é que, novamente, aparece em cena. Muitos
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estão com taças com o líquido dourado nas mãos. Num balcão, há grandes garrafas, talvez três litros da bebida. Capuccino e pão de queijo também têm boa saída. Homens e mulheres conversam, alguns em grupo de cinco ou seis e parecem velhos conhecidos. Outros vão para a área de fumantes. Depois de 20 minutos, o sinal volta a soar e todos retornam para a sala de concerto. Recomeça o trabalho da Filarmônica. O som lembra, em vários momentos, trilhas sonoras de filmes com temas medievais ou, até mesmo, momentos de algazarra protagonizados por Jerry contra o pobre gato Tom. São mais 32 minutos de música e, desta vez, informa o livrinho, é a Sinfonia em sol menor, do brasileiro Alberto Nepomuceno. Se dissessem que era Mozart ou Beethoven, passaria despercebido por mim.
O fã de sertanejo Luciano Vieira
Camisa social, terno e gravata, camisa polo, vestido longos. E, claro, muita elegância. Ao chegar ao Palácio das Artes, no dia 17 de abril, às 19h45, já era nítido que o tipo de público era completamente diferente daquele de eventos que frequento. Logo lembrei: cada gênero musical tem sua característica própria, e a música clássica não seria exceção. Enquanto aguardava meu companheiro de reportagem, Matheus de Oliveira, observava que, mesmo com toda elegância e sofisticação, uma orquestra também tem cambista. Os “empresários das ruas” comercializavam os ingressos da apresentação da Orquestra de R$ 35 por R$ 70 – preço salgado para
o público de baixa renda que queira conhecer ou admirar um concerto. Mas, afinal, qual a diferença entre a Orquestra Filarmônica e a Sinfônica? Também não sabia até o final da noite, já que essa é a essência da reportagem: dois estudantes de jornalismo em um “universo paralelo” ao deles. Após a chegada de Matheus, entramos no Palácio e retiramos nossos ingressos. Com o tempo, observei o público chegando ao evento e o estereótipo se confirmou: brancos, entre 40 e 70 anos, e, novamente, elegantes e finos. Jovens? Poucos. A grande maioria acompanhada dos pais. Negros? Apenas um rapaz com amigos brancos e uma família de afrodescendentes formada por quatro pessoas. Após tocar o sinal, às 20h15, entramos e sentamos nas poltro-
Anna Malikova: do Uzbequistão para BH, com direito a ovação maciça
nas enumeradas do lotado Grande Teatro. Às 20h35, com apenas cinco minutos de atraso, os músicos entraram no palco e se posicionaram. Após a instalação dos artistas, o maestro Marcos Arakaki foi recebido com aplausos do público e dos músicos. O artista é natural de São Paulo e vem dirigindo as principais orquestras brasileiras, além de já ter conduzido concertos em países como Estados Unidos, México, Ucrânia e República Tcheca. Com um toque de melancolia e suspense, que me fez lembrar filmes e séries épicas e medievais, como O Senhor dos Anéis e Game Of Thrones, a Orquestra funcionava quase como um organismo. Formada por diversos instrumentos – violinos, violoncelos, sopro, saxofones, trompetes – e por mú-
sicos de idades variadas, cada um em seu mundo, mas em total harmonia, a resultar no que chamamos de música. Música que, por vezes, me provocou reflexões: qual o sentido de admirar e apreciar um gênero em que não há voz e mensagem? Mas, se para um bom entendedor “meia palavra” basta, para outros, “meia nota” também. O comportamento do público durante o concerto é admirável. Olhares concentrados, respeito pelos músicos e cabeças balançando ao ritmo da levada da música. Ataques de tosses, toques de celulares ou conversas ao pé do ouvido podem ser alvos dos olhares mais censórios. Azaração típica de um show sertanejo? Nem pensar. Aplausos? Só durante as pausas. Dividida em três partes, com duração de duas horas e intervalo de 20 minutos para músicos e plateia descansarem, tomar uma água – alguns, uma taça de champagne, um copinho de whisky e fumar um cigarro – e, enfim, poder conversar. Os primeiros 45 minutos do concerto foram suportáveis. Os 30 minutos iniciais, algo surpreendente e bastante interessante. Mas, com o passar do tempo, por volta de 21h30, surge o cansaço e o sono, além da vontade excessiva de conversar sobre a experiência. A apresentação da Filarmônica foi “recheada” de aplausos aos músicos, principalmente ao maestro, claramente o mais admirado pelo público. Mas o momento de êxtase de todo o concerto foi a apresentação da pianista Anna Malikova. A artista, que nasceu no Uzbequistão e é referência mundial quando se comenta do instrumento, “arrepiou” a plateia com sua forma peculiar de tocar. Em uma de suas pausas, foi aplaudida de pé por quase cinco minutos! Foram duas horas de música clássica e minha noite sertaneja só estava por começar... #partiubalada
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Moda
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Da tragédia à esperança Izabella Borges Maíra Leni
Transfigurar situações sociais desfavoráveis em esperança é a proposta abordada pelos alunos do primeiro período de Design de Moda do Centro Universitário UniBH, no primeiro semestre de 2014. A interdisciplinaridade do trabalho envolveu notícias atuais e trágicas que chocaram a sociedade. Os fatos foram impressos de forma autêntica pelos grupos. A pretensão é que seja evidenciada a importância social do design de moda no cenário cotidiano e como estes podem retratar de forma lúdica a situação de um país.
MEU TETO É A LUA_Transparência, tecidos robustos que lembram cobertores, bolsos e adornos reciclados estampam e simbolizam a invisibilidade e às condições dos inquilinos das ruas na coleção denominada “Do pó ao homem”. No dia 27 de fevereiro de 2012, no Distrito Federal, jovens atearam fogo em dois moradores de rua. Tal barbárie inspirou as alunas Luiza Amaral, Alice Martins, Kamila Pinheiro, Camila de Oiveira Rosa, Caroline Santarelli, Brenda Jessie da Silva e Thays Baesse a pensar sua coleção. A proposta é que a esperança não surja meramente da (possível) mudança de situação dos moradores de rua a novos estilos de vida e de posição social. O foco está na ideia de que eles merecem conquistar o respeito e o olhar de todos, como seres humanos, independentemente de moradia.
MULHERES EXPLORADAS_A coleção “Metamorfose” retrata a exploração física e psicológica da mulher, como ênfase no abuso sexual. O nome da coleção, elaborada por Márcia Pacheco, Rosiane Marcon, Aila Lima de Souza e Danielle Garandy, é uma referência às borboletas, que passam por diversos estágios até que se transformem em deslumbre estético da natureza. O estágio da lagarta associa-se ao princípio da superação. A pupa, formada pelo endurecimento do corpo da lagarta, acumula energia para ser transformada no produto final. Metaforicamente, alude-se, desse modo, ao estágio em que há reestruturação do “ser mulher”. A composição dos looks contará com gradientes de cores claras e vivas e a peça-conceito será um vestido de noiva tradicional. A coleção terá estilo próximo ao adotado por mulheres que não passaram por tal trauma, uma vez que as personagens simbolizadas buscam se reintegrar socialmente.
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Moda
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DUALIDADE FAMILIAR_O caso do garoto Bernardo – dentre as coleções, a notícia mais recente – foi o tema selecionado por Ana Paula Silva, Laura Faria e Thays Almeida. O corpo do menino de 11 anos foi encontrado enterrado no Rio Grande do Sul no dia 14 de Abril de 2014. Os acusados de homicídio são a madrasta e o pai de Bernardo. A coleção foi caracterizada pela flexibilidade das peças e da possibilidade de mais de uma forma de uso, a peça-conceito é composta por um vestido branco com bordados e um outro vestido preto sobreposto. Remete-se, assim, aos valores familiares que hoje podem ser entendidos de várias maneiras, apresentando uma ambivalência da família contemporânea.
HOMOFOBIA_Intrepidez define a coleção denominada “Colorindo o mundo sem preconceito”. Isto porque a peça-conceito definida pelo grupo – formado por Tayná Cabral, Fernanda Neves, Paula Renata e Renata Aparecida da Silva – foi modelada em um corpo adulto, apesar de o restante das roupas se destinarem a crianças. A proposta remonta à história do garoto norte-americano Michael Morones, de 11 anos, que acabou ridicularizado e perseguido, em escola no estado da Carolina do Norte, por gostar do desenho My little pony: friendship is magic (Meu pequeno pônei: a amizade é mágica). Com base na notícia, as peças contam com estampas de pôneis e cores vibrantes de um arco-íris, além de modelagens infantis e divertidas.
O MONSTRO DO PORÃO_Explorar a possibilidade de renovação, a ser traduzida em peças de vestuário, é a ideia da coleção intitulada “Fênix”, fruto do trabalho das estudantes França Caetano, Clarissa Gonzaga, Ana Cleide Campos e Gabriela Brenha. O título remonta ao lendário pássaro da Mitologia Grega, que morre e, certo tempo depois, renasce das próprias cinzas. Dos mitos à realidade, a notícia que as inspirou refere-se ao chamado “monstro do porão”, como ficou conhecido Josef Fritz, australiano que manteve duas filhas em cárcere privado por 24 anos. Com elas, o agressor teve filhos, gerados em repetidos estupros. O objetivo do grupo foi provocar a reflexão das pessoas e fazer com que a produção de roupas ultrapasse a mesmice do dia a dia.
SOMOS TÃO JOVENS_“Sem sinal” foi o nome escolhido para dar vida à coleção de Ana Paula, Talitah Bôscoli, Mariana Medeiros e Deborah Antunes. O nome faz jus ao tema escolhido pelo grupo, um dos assuntos mais comentados no primeiro semestre de 2013: o incêndio na boate Kiss, na cidade de Santa Maria, no Rio Grande do Sul. Pela falta de sinalização do lugar, as garotas designaram como de “bom grado” a autenticidade do nome. A escolha de cores vibrantes, como o laranja, é uma alusão às chamas que consumiram o local. Na maioria de seus croquis, as estudantes de Design de Moda destacam as nuances “quentes” e não abrem mão do uso de tecidos leves, como alívio à dor da tragédia.
PECADOS DO VATICANO_O chamado “escândalo do Vatileaks” remonta ao vazamento de documentos secretos, que revelam a existência de ampla rede de corrupção, nepotismo e favoritismo entre as altas cúpulas da Igreja Católica no Vaticano. O assunto foi o tema abordado para a coleção de Athos Henrique, Renata Coelho, Bruna Gomes e Ana Flávia Boaventura. Com o intuito de dar vivência aos croquis, o grupo optou pela escolha de tecidos leves, com rendas e transparência. Além disso, usou cores em tom pastel, nuance que garante a ideia de calmaria e devoção. O nome da coleção, “Sussurros na Basílica de São Pedro”, remonta aos mistérios que, na verdade, devem se tornar públicos. Afinal, “nada deve ficar escondido” da sociedade.
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Cinema
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Pornochanchada renasce e ganha adeptos em meio aos jovens
Alex Moura
Dez da noite. Os ponteiros do relógio parecem estar travados. Só impressão mesmo, pois o display do celular confirma o velho “Faustão”. Merda. O controle remoto, se falasse, suplicaria para que a “zapeação” infinita parasse naquele instante. Gastando tempo, 10 minutos de uma série são acompanhados, mas logo ela fica de lado. Mais 30 minutos vendo os gols da rodada do Campeonato Brasileiro. O momento mais importante do dia nunca chega. Faltam 30 minutos para começar. Mas, antes do início, como sempre, liturgicamente, os preparativos. Esvaziar a bexiga para não haver nenhum problema na hora “h”, aquela em que o que há de melhor invade o canal 67. Um copo d’água para a boca não ficar seca. O volume da televisão está no mínimo, assim, ninguém perceberá o que está passando na TV. Passando? O quê? Onde? –Começou! Agora, no Canal Brasil, “Super Fêmea”, filme com Vera Fischer nua em pelo. Imperdível!
A historinha acima é fictícia, mas, com certeza, tais fatos já aconteceram muitas vezes na vida – principalmente, na adolescência – de um bom apreciador da pornochanchada, gênero de filme que mistura a chanchada (comédia, besteirol) com o erotismo, e que surgiu no fim dos anos 1960, mas se popularizou mesmo na década seguinte. O filme “Super Fêmea”, por exemplo, foi uma das obras que ajudou a alavancar o gênero. Viúvas fogosas, maridos e esposas infiéis, um jeca que se dá bem com a patroa, a menina inocente que não consegue se guardar para o casamento. As obras brincam e mostram como as convenções morais pré-estabelecidas não são aplicadas no dia a dia; ficam somente nos discursos. A figura da mulher, por vezes, suplanta até as cenas de sexo. Não há nenhum príncipe encantado, o desejo é por prazer e bens materiais. Talvez por isso, muitas das atrizes que participaram dessa fase do cinema brasileiro habitam, ainda hoje, o imaginário de muitos fãs da pornochanchada. Rafael Spaca, produtor, radialista e autor do blog “Os Curtos Filmes”, é um desses fãs. Ainda adolescia quando descobriu o gênero. Logo se apaixonou. O que era, no início, uma apreciação, agora se tornou trabalho. Ofício extremamente prazeroso para ele, claro. Spaca explica (e precisava?) os principais motivos que o levaram a ser um apaixonado por esse estilo de filme: “É um interesse histórico. A pornochanchada está inserida num contexto de grandes transformações dentro e fora do cinema, como o avanço da figura feminina no organograma dos filmes, por exemplo, de coadjuvantes a protagonistas. Na sociedade, surge a pauta para discutir o papel da mulher na sociedade, o machismo, a mulher à frente de suas decisões, o avanço no mercado
de trabalho”, conta. Como a história que abre esse texto, muitos telespectadores – principalmente, os mais jovens – têm receio em relação ao beneplácito da família. Será que os pais, por exemplo, irão rechaçar o seu refinado gosto. Para o produtor, isso não foi um problema, pois seus pais sempre entenderam o papel que os filmes tinham, e têm, na sociedade, principalmente, no que diz respeito à luta feminina por equidade nas relações de trabalho no cinema. Quando surgiu, a pornochanchada causava repulsa em praticamente todos os críticos de cinema. Eles não consideravam aquilo arte; era apenas um grande e descompromissado besteirol. Hoje, teses, livros e artigos são feitos sobre as produções. Para Rafael, que pesquisa e produz conteúdo sobre os bastidores daquela época, não se trata, simplesmente, de chanchada e erotismo: “É mais que isso. Ela acompanhou as transformações que aconteciam no mundo: a liberdade sexual, a discussão de tabus. Numa época em que o acesso à informação era difícil, não havia internet e a pluralidade de publicações para todos os gostos e nichos. A pornochanchada cumpriu papel extremamente relevante para a sociedade. Os filmes foram muito importantes, um ‘catecismo audiovisual’ para muitas pessoas, e ajudaram, involuntariamente, a ‘acalmar’ a população, a diminuir a tensão diante do truculento e odioso período de ditadura”, afirma. Mesmo com o desprezo da crítica, os filmes fizeram muito sucesso. Spaca afirma que somente as obras feitas na região chamada Boca do Lixo, em São Paulo, podem ser classificadas como pornochanchada. Não considera, portanto, um filme rodado no Rio, como Dona Flor e seus dois maridos, que de 1976 a 2010 foi recor-
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dista máximo de bilheterias no país, até ser superado por Tropa de elite 2 – O inimigo agora é outro. Alguns críticos enquadram Dona Flor no gênero, mas Spaca discorda: “Ele é adaptado de uma obra literária, de Jorge Amado, tem apelo sexual, mas não há ingrediente que o classifique como pornochanchada. Muitos falam de “Dama do Lotação”, mas também não é. São curvas dramáticas, completamente diferentes. Há sexo, nudez, mas não são. A pornochanchada era produzida em SP, por cineastas daqui, da Boca”, afirma. As musas da Boca
Por meio de seu trabalho, o produtor tem tido a oportunidade de conhecer suas musas. O blog “Os Curtos Filmes” tem como enfoque curtas-metragens, mas a série “5 Estrelas da Boca” surgiu da vontade de criar um atrativo a mais para os leitores. A pesquisa a respeito da Boca Lixo, anterior à criação da série, nasceu na adolescência. “Não represo o conhecimento. Eu sempre compartilho com o público”, diz Rafael. O que é o projeto “5 Estrelas da Boca”? Cinco atrizes foram convidadas para dividir com o público o álbum de fotos e as suas lembranças a respeito daquele período. É como se elas convidassem para entrar em casa, abrir o álbum e conversar a respeito de um momento em que as atrizes eram, de fato, protagonistas das histórias. O contato, como se poderia imaginar, não foi tão difícil. Segundo Spaca, “elas são de uma simpatia contagiante. Hoje, me considero um amigo delas. Mantenho contato com todas, e elas me disseram que a repercussão da série foi muito positiva. Os objetivos foram atingidos, consegui deixar o público e as atrizes felizes”, comemora. Conhecê-las foi muito marcante, relembra, “sair do campo platônico e ter esse contato real é uma experiência fantástica. Aquela imagem que forjamos, a distância, pode ser igual ou diferente quando as encontramos pessoalmente. Tive a sorte de, em todas as ocasiões, essa impressão ser a melhor possível”. Os cartazes, que eram tão divertidos quanto os filmes, serviam de chamarizes. Ainda é possível encontrar alguns em sites de vendas. Esses filmes não saíram em DVD, não há um movimento para isso. “São raros os filmes nacionais antigos que tiveram a chance de ter sobrevida digna, mas espero que esse panorama mude. Há público para isso. Tenho um acervo de cartazes raros da Boca do Lixo, de filmes que saem do conhecimento comum. Meu objetivo é expô-los em galerias e espaços culturais de todo país. Estou buscando apoio para emoldurá-los. Assim que conseguir essa parceria, eles irão rodar todo o Brasil”, conclui Spaca. Atualmente, o Canal Brasil exibe, todas as quartas e quintas, às 00h15, essas pérolas do cinema nacional. Além de exibir e digitalizar boa parte da produção da Boca do Lixo, o canal mostra séries importantes que falam a respeito das obras com propriedade.
Cinema
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O gênero No momento em que surge, principalmente pelo fato de o Estado estar sob a batuta dos militares, a pornochanchada contribui, também, para a transformação, o rompimento, com o estilo de cinema feito até então: o cinema intelectual, de protesto, conhecido como Cinema Novo, produzido por cineastas como Nelson Pereira dos Santos e Glauber Rocha, por exemplo. Os filmes cômico-eróticos, além de
romper com a forma como se fazia cinema na época, eram uma forma de se criticar, implicitamente, por meio do humor, da família tradicional, do casamento convencional, da relação entre patrões e funcionários, da sociedade de um modo geral. Apesar de as produções serem feitas, em sua maioria, na Boca do Lixo, polo cinematográfico da pornochanchada em São Paulo, esse cenário não foi organizado e planejado.
fotos:divulgação
Rafael Spaca: admirador e colecionador de artigos relacionados à pornochanchada
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Um drama espinhoso Segundo filme de Derek Cianfrance foge do clichê romântico e tem elenco de peso fotos: divulgação
Hiago Soares
Derek Cianfrance estreou seu Blue Valetine (2010) no Brasil de uma maneira não muito honrosa, visto que teve a má sorte de ser chamado de Namorados para Sempre. A estratégia se valeu também pela época do lançamento do longa, o Dia dos Namorados. Logo, Blue Valentine ganha contornos de romance mamão-com-açúcar, quando estamos, na verdade, lidando com um romance dramático. Ou seja, a matéria que constitui a segunda experiência cinematográfica de Derek são as dores, as desavenças, os conflitos, as discussões – o amor, mas o amor bruto, vertebrado, e não um enlace hollywoodiano de fácil digestão. Passada as decepções das salas de cinema, dos casais românticos atordoados com a verdade em tela grande, Namorados para Sempre é suficientemente bom para fazer cinéfilos pesquisarem vida-e-obra do diretor e desandarem a acompanhar seus feitos futuros. O Lugar Onde Tudo Termina, terceira empreitada de Cianfrance, foi elogiadíssimo. Repete parceria com Ryan Gosling, mas abandona o drama de casais para um longa de ação policial. Dean (Ryan Gosling - cada vez mais exaltado por sua competência como ator, mais do que o tal “rostinho bonito”), insatisfeito com os rumos do casamento com Cindy (Michelle Williams – convincente em seu tédio, em seu silêncio, em seus gestos mínimos de afastamento, merecedora da indicação ao Oscar de 2011 pelo papel), consegue levá-la até um motel longínquo, com ares futuristas, banhado em azul quase neon, para uma noite de sexo e tentar remediar possíveis fraturas da relação entre o casal. Intercalando flashbacks durante as ações (sem nenhuma firula tecnológica, o efeito de memória entra em um corte seco, que te faz imaginar se aquilo está se passando ou já se passou, e te prende à narrativa), o filme mostra como Dean e Cindy se conheceram, como eram suas vidas
antes do relacionamento e daí em diante. Namorados para Sempre manifesta também o tema da morte. Os dois protagonistas, antes de se conhecerem, cuidavam de idosos em um asilo. Ali já se encontra a proximidade do fim. Da cadeira de rodas à cama enferma, tragados em um lençol de abandono, a morte espreita a distância do porvir. Mas o jovem casal vive a morte do outro. Não há tempo quando jovem de vislumbrar o fim quando ainda é início. O longa é feito com diálogos simples, sem rodeios, mas essenciais. Não é mais, nem menos. Está no ponto. E é nesse limite que, alinhada a uma câmera não muito estática, percebemos a riqueza escondida em um filme para além da
brandura e da felicidade. Fotografia adequada a uma Nova York de figurinos hipsters, de cenários mais alternativos, longe do grande centro. E é no meio dessa calmaria que se instala o fogaréu de farpas – acalmadas pela doçura de Frankie, filha do casal. Ela é o ponto de reflexão, de mediação. “Mas eu o amo”, frase dita no final por Frankie, mostra que a distância corrói e os colocam para pensar. Namorados para Sempre pode até te fazer torcer por um calmante final feliz. Em direção oposta, vejo-o, desde o início, na contramão dessa ideia. É para arrancar do conforto que nasceu Blue Valentine. É para prestar atenção a Derek Cianfrance que você precisa ver.
Ficha Técnica Título: Namorados Para Sempre Título Original: Blue Valentine Ano: 2010 (EUA) Duração: 112min Gênero: Drama Diretor: Derek Cianfrance Roteiro: Derek Cianfrance, Cami Delavigne, Joey Curtis Elenco: Ryan Gosling, Faith Wladyka, Michelle Williams
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Um táxi e mil destinos Em seu primeiro livro, A Máquina de Revelar Destinos Não Cumpridos, Vário do Andaraí levou o 2º lugar no Prêmio Jabuti, na categoria Contos e Crônicas divulgação
Luciano Vieira
O taxista Vário do Andaraí – pseudônimo de Elder Figueiredo – busca nas crônicas de A Máquina de Revelar Destinos Não Cumpridos contar um pouco de seu cotidiano, mesclando poesia, filosofia e humor. Na apresentação, o autor já provoca a afinidade com os leitores, de forma engraçada e agradável: “Carioca, de classe média, brincou de boleiro, brincou de músico, brincou de analista de sistemas, brincou de comerciante, brincou de vagabundo, hoje brinca de taxista”. Embora haja uma crônica que fale de uma tal “máquina de revelar destinos não cumpridos”, podemos também entender que essa máquina do título é o próprio táxi, dentro do qual Vário atrai e revela a história dos passageiros, clientes inusitados – alguns “normais” outros “estranhos”. Em 33 crônicas, o taxista circula pela cidade maravilhosa, Rio de Janeiro, por lugares perigosos e bairros nobres. A cidade que aparece nas páginas é bem diferente daquela que conhecemos na mídia: “O Rio, o mito, visto de cima, daquelas tomadas aéreas de cinema e tevê, não é o mesmo que se vive cá embaixo, sobretudo longe da brisa do mar, na depressão do subúrbio, no labirinto de asfalto, encarando um Minotauro por dia.” A bordo da viatura 055, pega os passageiros indicados pelas
chamadas do rádio da cooperativa ou clientes que pedem para ele parar e relata os momentos vividos durante a madrugada carioca: “é durante a madrugada que as pessoas se revelam”. É notável, também, o nível de cultura do autor. Ao longo das crônicas, Vário cita com propriedade autores e artistas marcantes como Fernando Pessoa, Tom Jobim, Nelson Rodrigues, Jorge Luís Borges, Federico Fellini e Tim Maia. Além disso, dialoga com obras famosas, como, por exemplo, Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, e O ser e o nada, de Sartre. As crônicas podem fazer o leitor lembrar o seriado da Globo “Faça sua História”, com o ator Vladimir Brichta, já que os dois relatam o cotidiano da profissão. Mas segundo o autor, em uma de suas crônicas, quando um cliente soube que ele estava escrevendo um livro, essa comparação não faz sentido, já que cada taxista tem características diferentes. O livro contém 157 páginas recheadas de crônicas belíssimas e engraçadas, mas vale destacar algumas: “Cheio das razões”; “A bela, a fera e a nefelibata”; “Engarrafado”; “Trucagens”. Através da poeticidade e humor da obra, a vontade que fica é de embarcar nessa viagem “louca” da máquina de revelar destinos não cumpridos, ou seja, da viatura 055 do Vário do Andaraí.
TRECHOS “É Dia das Mães. Eu não ligo muito pra datas deste tipo. Na minha certidão de nascimento, por exemplo, gostaria de trocar a data que está lá para ‘esquecida’. Todo mundo sabe que muitas datas celebrativas são criadas pelo comércio para o frenesi da macacada; e as correias precisam rodar as engrenagens de dar empregos, de gerar consumo, de dar cinco minutos de paz aos oneomaníacos, de produzir tralha e lixo, de fazer as chaminés das fábricas fumarem e de tornar a atmosfera irrespirável aos sem-mãe, aos sem-pai, aos sem-filhos, aos sem-amigos e aos sem fé.” "Que culpa tem Graham Bell das inhacas do coração? Nenhuma, diria a lógica. Ora, muito se penou pelas incomunica-
bilidades do amor bem antes de este Bell senhor ter inventado a máquina de fazer angústia. Mas nos tempos do onça, quando não havia ainda o celular e os aflitos se missivavam, caso a carta não chegasse ou atrasasse, o coração esperançava-se com a possibilidade de uma pata quebrada do cavalo postal ou precariedades afins." “Às vezes cobro o valor da corrida bem abaixo do que deu. Ou nem cobro nada. De madrugada os ônibus rareiam, e é muito comum – muito comum – pegar família humilde plantada há horas num ponto ermo e escuro de alguma rua valha-me-a-sorte. Eu imagino ao cálculo que o cara faz pra estender a mão e me chamar. Sei da angústia dos poucos reais a mais da diferença entre o que ele gastaria nas passagens do ônibus e o que vai pagar pela minha corrida.”
Ficha Técnica
Título: A Máquina de Revelar Destinos Não Cumpridos Ano: 2009 Autor: Vário do Andaraí (Pseudônimo de Elder Figueiredo) Gênero: Crônica Editora: Dimensão Tamanho: 157 páginas Projeto Gráfico: Guto Lins
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Crônicas
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Agora é que são elas Thatiane Pereira
Elas já estão trabalhando, votando, gerenciando, comandando, manifestando, gritando... e por que não pregando? Sim! Pregando o evangelho, sendo Papas! Que tal? Taí um bom slogan para o novo movimento feminista. Mulheres no poder da igreja, JÁ! De forma utópica, podemos imaginar uma mulher liderando o Vaticano. Tudo seria menos frio, menos branco, menos rotineiro. A imaginária Papisa daria mais vida para aquele lugar espantoso, chamado Palácio do Vaticano, mais parecido com cenas do livro de apocalipse, segundo João. Coisas de fim do mundo, bem assustador. Contudo há esperança para as irmãs de fé, e ela atende pelo nome de Francisco. A julgar pelo primeiro ano e pouco, o Papa promete estremecer conceitos arcaicos da igreja romana. Mas ele que se prepare, porque os conflitos de praxe dos católicos (aborto, casamento gay, camisinha...) ficarão em segunda instância se depender de suas lindas e charmosas seguidoras. Os cardeais terão um conflito mais colorido para discutir: ELAS, mulheres que proclamam o poder em decisões religiosas, querem suas vozes ativas ecoando pelo estado do Vaticano. Para musa inspiradora, a mais votada será Maria Madalena, aquela que foi liberta de demônios e seguiu Jesus fielmente em sua peregrinação. Histórias relatam que era a discípula preferida de Cristo. Não foi Pedro, nem José, foi Maria Madalena. E o que di-
zer de Maria, mãe de Jesus? A Mulher que concebeu o filho de Deus. Graças à presença feminina foi possível a vinda do Messias. Imaginemos se por um estado de TPM ela recusasse o recado do anjo. Meu Deus, puro caos! O machismo da igreja católica é óbvio, sabemos que ele está lá, limitando a mulherada da bancada democrática dos céus. Será que estão com medo de as mulheres mudarem as cores das cortinas do palácio, ou, distribuir flores semanalmente para todas as belas mulheres de Roma? Cuidado, Vaticano! Mas outra solução e esperança está além de Francisco. Do lado de lá, na ‘’irmã bastarda’’ da igreja dos romanos, as mulheres protestantes já podem tudo. Podem ditar regras em suas congregações, gritar e podem até expulsar os demônios de seus fiéis. Não fazem nem voto de castidade. O prazer e o orgasmo não são votos de pobreza: é totalmente lícita uma boa noite de amor debaixo da benção divina. Passam um belo rouge rosado em suas bochechas amareladas e brilham como o sol. As roupas não são limitadas às batinas tradicionais com cores tristes. As pastoras protestantes usam lindos vestidos floridos, saias das mais diversas formas, sapatos de grifes, óculos Dior, bolsas Gucci, brincos e acessórios espalhafatosos. A beleza feminina do lado de lá é louvável e apreciável, dizem até que o próprio Senhor Deus lhes concedeu a graça de se enfeitar todos os dias. Não é pecado, queridas irmãs católicas, isso é dádiva dos céus!
Flagrante Wilson Albino
Se uma amizade sobrevive a um Trabalho Interdisciplinar de Graduação, então esta amizade resiste a tudo. Não é de hoje que ouço esse dizer. No principio, era o medo. Mas o cenário era favorável. Entre buganvílias, sibipirunas, bem-te-vis e joões-de-barro, toda gente festejou na Cidade do Conhecimento, local criado pela faculdade para a apresentação de centenas de trabalhos, de todos os cursos. No final de um TIG, as mal ditas palavras pronunciadas nas horas erradas são sempre perdoadas. Os sorrisos amarelos e as gargalhadas, os cumprimentos formais e os abraços apertados, as lágrimas disfarçadas e o choro incontido, tudo é vivenciado, fotografado, filmado e postados nas redes sociais. Em meio ao barulho produzido por uma gente feliz demais em compar-
tilhar conhecimentos, vi uma moça alheia às comemorações. Seu grupo seria o próximo a se apresentar. Seus olhos, ora ficavam fixos na tela do tablet, ora fechados em sinal de total concentração. Sem gaguejar ela apresentou a si e ao grupo, falou do trabalho com firmeza, e encarou com seriedade a banca examinadora. A apresentação foi rápida, porém eficiente. Entendi por que a jovem havia sido eleita para representar o grupo. Passada a tempestade, todos aguardavam da bonança. A banca pontuou uma coisinha ou outra, mas parabenizou muito tanto o trabalho quanto a apresentação. O grupo e a moça cederam o espaço aos próximos demais colegas. Na Cidade do Conhecimento, mais precisamente na Rua das Habilidades, o grupo comemorava, enquanto a moça trêmula e chorosa falou ao celular com uma voz embargada: - Aqui. Você tinha razão! Deu tudo certo!