Edição 202 - Caderno 2

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William Araújo

Jornal Laboratório do Curso de Jornalismo do UniBH Ano 35 • Número 202 • Setembro de 2016 • Belo Horizonte • MG


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RELIGIÃO

Setembro de 2016 Jornal Impressão

O livro aberto dos mórmons

Com expressivos sorrisos no rosto, ingerantes da igreja confirmam as boas-vindas anunciadas na placa

Luiz Vila Real A maior parte das pessoas, cristãs ou não, tem uma ideia básica de como a Bíblia é dividida: entre o Antigo Testamento, que narra as histórias do povo israelita, e o Novo Testamento, que reúne os evangelhos e conta a trajetória de Jesus, filho de Deus. Mas poucos sabem da existência de uma terceira parte, que foi agregada aos textos sagrados, e, consequentemente, responsável pelo surgimento de uma nova crença: os Santos dos Últimos Dias, ou, como são mais conhecidos, os mórmons. Cada capela possui um aviso na entrada: “Visitantes são bem-vindos”. Não foi diferente na capela localizada no bairro de Lourdes, em Belo Horizonte. Pouco antes da reunião, duas figuras fizeram uma calorosa recepção: os missionários Elder Howe, natural de Utah, estado norte-americano que abriga o principal templo da religião, e Elder Volino, natural de Curitiba, uma das sete cidades brasileiras que abriga um templo. Ambos me guiaram pelo edifício, onde fui apresentado e bem recepcionado por outros

“irmãos” e “irmãs” (forma de tramento usada pelos membros da igreja), que demonstraram interesse por minha presença e me convidaram a assistir às três reuniões do dia. A primeira delas ocorria em salas separadas: os homens eram destinados à ordem do Sacerdócio, e as mulheres para a Sociedade do Socorro. Elder Volino explicou que, enquanto os homens são encarregados das tarefas ligadas à espiritualidade, às mulheres cabem atividades relacionadas à ajuda a membros mais pobres da Igreja e aos serviços à comunidade. A princípio, sem entender muito aquela divisão, fui conduzido pelos missionários a uma sala onde os homens mais velhos se sentavam à frente e os garotos na parte de trás, em sua maioria vestidos de trajes sociais. Depois de se acomodarem, entoaram um hino de louvor. Enquanto os membros liam um capítulo do livro de ensinamentos de Howard William Hunter, o 14º dos presidentes (também referidos como profetas) da Igreja, Elder Howe, com sotaque estadunidense, explicou o ritual. Naquele momento

da reunião, os homens liam passagens dos ensinamentos de profetas da igreja, e, depois, dariam o testemunho de como aplicar a conduta ao dia-a-dia, na escola, no trabalho, no trânsito e nas mais diversas situações. Indaguei se todos ali presentes eram sacerdotes. “Existem dois tipos de sacerdócio: o aarônico, no qual jovens de 12 a 17 anos podem ser ordenados, e o de Melquisedeque, a partir dos 18 anos”, explicou.

Mudanças e reações Ester, 15, natural de São Paulo, morava em Joinville, antes de se mudar para BH, há oito anos. Frequentadora da Igreja desde criança, incentivada pela família paterna, ela afirma que, ao longo do tempo, viu sua fé crescer. Ela declara que, assim que completar 19 anos, idade necessária para se tornar Sister, pretende participar de uma missão. Perguntei para onde ela gostaria de ir. “É como diz a letra de um hino que cantamos: ‘onde mandares eu irei’, ou seja, ficarei contente com o local que me for designado, não importa qual. Mas gostaria de visitar a Itália, sou apaixonada por esse país”.

No início de sua convivência na escola, a maioria dos colegas de Ester achava estranho e fazia piadas com sua crença, mas ela afirma, enfática: “Eu não ligava, pois sei que escolhi certo e que minha igreja é a verdadeira”. Com o tempo, as pessoas passaram a respeitar e compreender mais sobre as crenças, e uma de suas amigas chegou a ser batizada, após ser convidada a uma palestra com missionário. A vinda de pessoas de outras crenças é algo comum entre os fieis da Igreja, como é o caso de Geniusa, que já foi fiel ao catolicismo e ao protestantismo, até conhecer a capela mórmon, por meio da missionária Sister Balbino. Apesar de ainda não ter sido batizada, com apenas um mês de vida na comunidade ela já manifesta plena felicidade com a mudança de fé: “Foi uma bênção, pois espiritualmente mudei muito, aprendi a respeitar mais ao próximo e aceitar a mim mesma.”. Quanto à reação de sua família, declara que seus sobrinhos mais jovens apoiaram sua atitude, por desejarem seu

bem estar espiritual, enquanto os parentes mais velhos ainda encaram com estranheza, muitas dúvidas e perguntas. Geniusa – ou Graça, como é conhecida entre seus irmãos e irmãs de religião – declara que, apesar disso, não sofreu nenhum preconceito: “Hoje em dia as pessoas me tratam melhor, querem me conhecer mais, têm maior confiança em mim. No começo confesso que senti um pouco de medo, muitas pessoas me diziam que seria uma experiência negativa, mas conforme fui conhecendo, se tornou algo prazeroso, me senti realizada”. Santo dos Últimos Dias há 41 anos, Carlos Teodorico Alves foi católico até seus 30 anos de idade, quando sua irmã lhe apresentou à Igreja após morar em São Paulo, que abriga o primeiro templo a ser construído no Brasil, e desde então a vida mudou para o atual bispo da estaca Bandeirantes (estaca é o nome que se dá a uma comunidade que agrega vários bairros, uma “região” da igreja, por assim dizer). “Eu era bem jovem, gostava de jogar futebol, e

disputava torneios. Mas tinha uma vida devassa, bebia muito. Depois de ter testemunho do verdadeiro evangelho que a Igreja prega, me casei e constituí família, meu três filhos são membros da igreja, dois deles são bispos.”. O bispo alega que a Igreja é a que mais cresce no mundo, com média de uma capela construída por dia. Apesar disso, destaca que uma das maiores dificuldades é encontrar pessoas dispostas a seguirem de forma comprometida os ensinamentos da Igreja e realizar os trabalhos que ela propõe. Sobre a possibilidade de a religião afastar fiéis por apresentar uma imagem muito formal e até elitizada, devido aos trajes usados nas cerimônias, Teodorico afirma que isso não afasta as pessoas: “Não há nenhuma obrigatoriedade no uso dos ternos, um membro pode vir aos encontros de bermuda e camiseta se quiser, não há problema algum quanto a isso. As roupas formais são uma compreensão que temos de que, nos dias sagrados, devemos procurar vir com a melhor roupa que temos, em sinal de respeito.” ACERVO IMPRESSÃO

Luiz Vila REal

Visitantes (e curiosos) são bem-vindos nos templos dos seguidores de Joseph Smith

Templo mórmon está instalado em área de luxo, na Savassi, em Belo Horizonte


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ser um mórmos exemplar, será mandado em missão para sua adorada Orlando, na Flórida; o segundo é um típico nerd que mente compulsivamente. Contrariando todas as expectativas de Price, a dupla é mandada para Uganda, onde são assaltados por soldados do general ButtFucking Naked (algo como Comedor de Bundas Pelado), um cruel senhor da guerra que assola a população local. Os nativos sofrem com a fome, a miséria, a AIDS e, para desespero dos missionários, resistem a qualquer forma de conversão. O enredo é dotado de várias referências cômicas, como quando Elder Price decide afogar as mágoas bebendo várias xícaras de café, bebida que, segundo a palavra de sabedoria dos mórmons, é vetada ao consumo, e outras mais escrachadas, como a cena em que Cunningham admite jamais ter lido o Livro de Mórmon e mistura o pouco que sabe da crença com elementos de obras-primas

da ficção, como hobbits, Darth Vader, Mestre Yoda e a nave Enterprise, de Star Trek. Em seu ano de estreia, em 2011, a peça ganhou nove das 14 categorias que disputou no Tony Awards, a maior premiação do teatro estadunidense. O álbum com as 16 músicas da peça ganhou o Grammy na categoria “Melhor álbum de teatro musical”, em 2012. Há cinco anos o espetáculo segue com casa lotada, em nove apresentações semanais na Broadway, já gerou diversas outras montagens, ao redor do planeta, inclusive uma versão brasileira, dirigida por Rubens Lima Jr. e apresentada com sucesso em 2015, no Rio. O próximo desdobramento é o longa The Book of Mormon, escrito por Stone, Parker e Perez, com produção de Scott Rudin, responsável por filmes como A rede social, Capitão Philips e o vencedor do Oscar Onde os fracos não têm vez. O filme ainda não tem data de estreia.

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Muitas vezes, uma obra que satiriza uma questão tão séria como uma religião recebe as mais duras e fervorosas / raivosas? críticas dos fiéis. Curiosamente, não foi o caso do musical da Broadway “The Book Of Mormon”. Embora apresente os mórmons de forma debochada e iconoclasta, a peça não só foi aclamada pela crítica como bem aceita por grande parte da comunidade SUD, que a utilizou em cartazes para promover a fé, com frases como “o livro é sempre melhor” e “você já viu a peça, agora leia o livro”. É o que conta Fulano de Tal, da igreja mórmon de BH. Com roteiro concebido por Robert Lopez, compositor da trilha sonora do longa Frozen, da Disney, e pela dupla Trey Parker e Matt Stone, criadores do controverso sitcom South Park, famoso pelo humor negro e escatológico, o espetáculo conta a trajetória dos missionários Elder Price e Elder Cunningham. O primeiro é um devoto arrogante que acredita que, por

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De Salt Lake City à Broadway


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tramas contemporâneas

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A paz em uníssono FotoS: Anderson PENA

Para celebrar a fé e a liberdade, Os Ciriacos dançam, cantam e rendem graças aos santos de devoção

Trazendo, nas roupas típicas e colares, as cores que simbolizam a paz, os Ciriacos são uma prova de que tradições não se perdem no tempo

Anderson Pena Ao som de gungas e tambores, o CapitãoMor adentra uma capela, ajoelha-se em frente ao altar e faz o sinal da cruz, com olhos fixos em imagens de santos. Em seguida, presta reverência e se benze na bandeira da irmandade, em ato de fé e devoção. Assim começam os momentos festivos do Reinado de Congado. E dá-lhe canções, com a de Maurício Tizumba: “O Ciriaco gira / e deixa girar. / O mundo gira, / gira sem parar. // Gira com o Ciriaco, / se com Ciriaco gira a paz, / gira mundo Ciriaco. // Tem um novo progresso nessa terra / moçambiqueiro toca tambor / e tá pe-

dindo paz. / O Ciriaco, o Ciriaco! / Foi no tempo de vovô, / foi seu pai que me ensinou. / Bate o pé só com sete gungas, / menino, e segura essa n’goma. // O Ciriaco, o Ciriaco! / Foi no tempo de vovô, / foi seu pai que me ensinou. / Bate o pé só com sete gungas, /menino, e segura essa n’goma”. Em forma de verso, inicia-se, então, a narrativa que resume os festejos e a trajetória da Irmandade do Rosário Os Ciriacos, família de congadeiros que, há décadas, mantém viva a chama histórica de um povo guerreiro, repleto de tradição e fé. O congado faz parte da cultura popular afro-brasileira, sendo que um dos tradicio-

nais grupos resiste ao tempo, de geração em geração. Localizado na cidade de Contagem (MG), eles são popularmente conhecidos como “Os Ciriacos”. Sua fé, um dos pilares a fortalecer o grupo congadeiro, relaciona-se aos ancestrais. Os Ciriacos fazem referências àqueles que sofreram na escravidão e mantiveram viva a devoção pelo congado e por Nossa Senhora – que, segundo eles, teve compaixão por todos. Os rituais do grupo também celebram a libertação do povo negro e exaltam os “Pretos Velhos”, cultuados por terem mantido a fé no Rosário. Segundo o capitãomor da Irmandade de Nossa Senhora do Ro-

sário, Antônio Jorge Muniz, o reinado é uma dança criada pelos negros escravos, como maneira de venerar e festejar a virgem do Rosário. “Segundo a história, os negros que tiraram a Virgem Maria das águas e a levaram à igreja foram elevados por Deus. Damos seguimento, então, àquilo que nos deixaram”, conta, ao lembrar que o Reinado de Nossa Senhora do Rosário pertence, na verdade, aos espíritos: “Quando rezamos e oferecemos os tributos a eles, realizamos a ligação com as almas de nossos antepassados”. Antônio Jorge explica, ainda, que os “Pretos Velhos” representam as almas benditas e sagradas de Maria,

que vêm à Terra com o objetivo de prestar caridade. “Porém, na época da celebração do Reinado, eles não podem se manifestar, pois é contra os princípios da devoção”, completa. As bandeiras do grupo são estampadas com imagens de Nossa Senhora do Rosário, que, para “Os Ciriacos”, assemelha-se à Virgem Maria, a São Benedito e a Santa Efigênia, dentre outros. “O respeito por aquela bandeira se dá porque, primeiramente, nós a temos como guia. Além disso, nela está representada a semelhança do santo de nossa fé. É como se realmente estivéssemos diante de nossa padroeira”, esclarece. Daí vem, aliás, a tradição do grupo em

se ajoelhar, em beijar e passar a bandeira sobre as cabeças de todos, para que as bênçãos desçam sobre todos.

Missa Anualmente, no dia 15 de maio, realiza-se a “missa conga”, assim chamada por ser toda cantada sob o rufar dos tambores. A cerimônia busca honrar e render glórias e louvores aos padroeiros. “São Benedito é da cultura do Reinado, assim como Santa Efigênia, Nossa Senhora das Mercedes, o Divino Espírito Santo e Nossa Senhora do Rosário”, diz Antônio Jorge Muniz, ao destacar que Os Ciriacos pedem a Nossa Senhora as bênçãos e a consagração do santo rito. “E que nos traga


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As origens A origem da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário Os Ciriacos – hoje, Irmandade do Rosário Os Ciriacos –, começou com a trajetória do Capitão Ciriaco Muniz Celestino, em 1952 – que, à época, se inicia no congado como “Rei de Ano”, junto à esposa, Maria Marciana Muniz, a “Rainha de Ano”. Eles integravam a Guarda de Congo do Capitão Joaquim Anselmo, em Água Funda – atualmente, bairro Nacional, em Contagem (MG). Em seguida, Ciriaco é coroado “Rei Perpétuo”, até assumir a função de Capitão, devido ao falecimento de Joaquim. Ele passa, então, a também participar da Guarda de Moçambique do Capitão Luiz Carolina – no bairro Aparecida, em Belo Horizonte –, que, por sua vez, muda-se para o estado de São Paulo e deixa a guarda sob a responsabilidade de Ciriaco por dois anos. Ao retornar a Minas Gerais, porém, Luiz Carolina acaba por transmitir definitivamente o posto a Ciriaco, sob comando e responsabilidade de quem a Guarda de Moçambique realiza seu primeiro toque, em maio de 1954. Nasce, assim, a irmandade. “O Congado é um mistério, uma fé. Não se explica”, comenta o Capitão-Mor Ciriaco Muniz Celestino. Anos mais tarde, o comando da irmandade é repassado a seu filho, Antônio Jorge Muniz, também coroado como Capitão-Mor. Em 13 de agosto de 1986, cria-se a Guarda de Congo dos Ciriacos, sob comando da Mestra Efigênia Aparecida Muniz, esposa do Capitão-Mor Antônio Jorge Muniz. A irmandade conta, hoje, com cerca de 130 integrantes. Anualmente, no primeiro domingo após o 13 de maio – dia dedicado à comemoração da abolição da escravatura no Brasil, pela princesa Isabel –, as irmandades realizam seu congraçamento, com devoção a Nossa Senhora do Rosário, a Santa Efigênia e a São Benedito. Em cada festa, contam com a presença de aproximadamente mil pessoas, entre congadeiros e convidados.

A voz dos tambores Os tambores foram uma das primeiras formas de comunicação no mundo. Na cultura da Irmandade do Rosário Os Ciriacos, por meio deles e dos louvores, são invocadas as capacidades superiores do Divino Espírito Santo: o poder da obra, da graça e da luz divina de Nossa Senhora do Rosário, os quais, para os devotos, fazem parte da grande festa, que reúne toda a representação do povo afrodescendente. Para confecção das caixas de corda, a matéria-prima ideal é o jatobá, que, segundo Antônio Jorge Muniz, é mais resistente. O couro usado nos tambores é de cabra e de carneiro, que, além de mais flexíveis, permitem sons melhores.

paz, amor e felicidade. Eis o significado da missa dentro dos festejos do Rosário”, completa A santa missa faz parte da consagração da caminhada de fé do grupo. Nove dias antes, ocorre o levantamento do mastro de São Benedito e a novena. “No dia de encerramento da novena, ergue-se a ‘bandeira perpétua’, de Nossa Senhora do Rosário. Já no domingo, realiza-se a festa”, afirma Antônio Jorge. Uma procissão das guardas, então, leva os andores dos santos até a igreja, onde é cantada a sauda-

ção da casa santa. Ao final da missa, a procissão retorna à sede dos anfitriões da festa – neste caso, Os Ciriacos. Detalhe interessante é que os anfitriões são os últimos a entrar e a se retirar: em sinal de respeito, eles saem olhando de frente para o altar.

Gungas À época da escravidão no Brasil, sob o olhar de martírio e sofrimento dos negros, os senhores mandavam pôr uma “meia lua” de ferro com pedaços de correntes amarradas nos pés de

seus escravos. Trata-se das chamadas “arbanas”. “Quando o escravo andava, aquilo fazia barulho e os capangas e senhores sabiam onde estavam os escravos. Desse modo, ficavam de olho para que não fugissem. Por meio de nossa fé, criaram-se as gungas, como forma de lembrar o passado, quando não se podia fazer barulho. Batemse os pés no chão, com força, em busca da energia da terra, em sinal de liberdade e em exaltação a Nossa Senhora do Rosário”, relata Antônio Duarte.


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Mídia

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A ex-foca da revista do pinguim Danilo silveira

Clara Becker recorda seu tempo de repórter mais jovem da idílica piauí

Danilo Silveira Quando fui à banca de jornais para comprar edições usadas da piauí, deparei com o número 43 da revista, cuja capa exibia a fotografia em PB de uma menina de cabelo playmobil, com uma bola de futebol na mão direita e uma cédula de dinheiro na esquerda. Ao folheá-la, algo além da capa me chamou a atenção: a manchete “COMO TROCAR DE SEXO – Reportagem de Clara Becker sobre cirurgia de transexuais num hospital carioca”. Como desconhecia o tema, resolvi me enveredar pelo texto, e fiquei ainda mais impressionado com a descrição que davam para repórter no sumário da edição: estagiária. A simpatia pela jovem foca começou ali. Na hora de iniciar meu Trabalho de Conclusão de Curso, não achei que haveria objeto de pesquisa melhor do que a piauí, tanto por ser um leitor assíduo quanto pela experiên-

cia adquirida em minha carreira como estagiário de Jornalismo. Estipulei, então, que meu objeto de estudo seriam os textos de Becker. Não por ambos termos sido estagiários, mas pela forma como a repórter retrata figuras humanas simplórias, a exemplo de um açougueiro. Após ser efetivada na revista, a jornalista transferiu-se para Brasília, onde escreveu perfis sobre os figurões da política, como ministros e deputados, e anônimos, como um tradutor de libras de um canal governamental e um classificador indicativo de filmes. Em 2013, a repórter se desligou na revista, onde atuara desde 2009. Casou-se com um diplomata e mudouse para a capital argentina. Desde então, além de atuar como freelancer, trabalha na agência de checagem Lupa, hospedada no site da própria piauí. Na entrevista a seguir, feita após a defesa de minha monografia,

Becker diz como começou, relata experiências como repórter, fala da relação com grandes jornalistas e dos apuros na execução das pautas. JORNAL IMPRESSÃO: Você cursou Letras e Jornalismo. O que ansiava ao se formar nas duas áreas? CLARA BECKER: Na época do vestibular, eu pensava em seguir carreira acadêmica na área de Letras, mas meus pais me desaconselharam. Eles diziam que iria morrer de fome sendo professora, e, para agradá-los, acabei fazendo duas faculdades ao mesmo tempo. Cursava Letras na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), no período da manhã, e Comunicação na PUC-Rio, na parte da tarde. Felizmente, resultou em uma dobradinha bastante complementar. JI: Como conheceu e ingressou na piauí? CB: Conheci a piauí ainda em 2007, através do meu pai, e passei a

acompanhar a revista. No fim de 2008, tinha acabado de voltar de um intercâmbio em Paris, onde passei um ano estudando Ciências Políticas. Já estava formada em Letras (ainda cursando Jornalismo) e bem perdida em relação ao que queria fazer profissionalmente. A piauí parecia reunir minhas três áreas de formação (Letras, Jornalismo e Política) e encasquetei que tinha que conseguir um estágio lá. Consegui o e-mail pessoal do Mario Sergio Conti, então diretor de redação da revista, e pedi uma oportunidade de estágio durante as férias. Ele me deu 30 dias de experiência. Naquele janeiro de 2009, escrevi duas “Esquinas” [seção da revista com narrativas curtas]. Nenhuma das duas chegou a ser publicada, mas gostaram o suficiente para que eu pudesse continuar como estagiária. JI: Como era o ambiente da redação e o relacionamento com os demais repórteres?

CB: O ambiente era idílico, naquela redação pequena e aconchegante. Éramos apenas oito repórteres, quatro editores e duas designers. Quase sempre almoçávamos juntos. Para minha surpresa, jornalistas por quem eu tinha profunda admiração, como Dorrit Harazim, Daniela Pinheiro e Consuelo Dieguez, se mostraram muito acessíveis e dispostas a transmitir conhecimento para a estagiária. JI: Como funcionavam as reuniões de pauta? O que era determinante para a escolha de tema? CB: Durante muito tempo, a piauí não tinha reuniões de pauta. Uma vez por mês, sempre depois do fechamento, Mario Sergio Conti, o diretor de redação, chamava os repórteres individualmente para conversar sobre suas pautas. Como são meses a fio de pesquisa e apuração sobre um mesmo tema, o determinante para a

pauta é que o repórter tenha um interesse sincero sobre o assunto. Quase nunca fui pautada na revista. JI: No que se refere a desenvolvimento das pautas, escolha dos entrevistados e maneira de contar a história, quais eram os requisitos da piauí e quais eram os seus? CB: O repórter da piauí tem bastante autonomia para desenvolver o seu trabalho. Uma entrevista leva a outra, assim como uma leitura leva a outra. Os retornos constantes com o editor vão moldando a forma como a história será contada. JI: Qual era o tempo para o desenvolvimento de uma reportagem? Havia limite de espaço ou de caracteres? CB: Uma reportagem grande da piauí leva em média uns três meses para ficar pronta. Claro que há exceções: a reportagem que fiz sobre médicos


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(Em sentido horário, a partir da foto à esquerda: Clara Becker e alguns figurões da política perfilados por ela na revista piauí: Alexandre Padilha, Romário e Tiririca

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gens anônimos de lado e fui desbravar o mundo político. Abracei o desafio. Como a revista não tem sucursal em Brasília, trabalhava sozinha, de casa. Foram anos fundamentais para minha formação, aprendi muito. Quem gosta de cobertura política tem que passar pela capital do poder. Em 2011, Mario Sergio sai da direção da piauí e entra Fernando Barros e Silva. Passamos, por exemplo, a ter reunião de pauta.

JI: Em que reportagem você demorou mais tempo? CB: Acho que a matéria dos transexuais foi a que me levou mais tempo. Entre aprovação da pauta e publicação, foram quatro meses.

JI: No perfil O candidato da esquerda, sobre Fernando Haddad, você começa o texto com a cena do confronto entre o então ministro e os grevistas. Naquele momento, onde você estava? Que tipo de aspectos você usa para construir uma cena? CB: Naquele momento eu estava no carro, sentada ao lado do ministro. Para construir uma cena tento sempre buscar as me-

JI: De 2010 a 2013, que mudanças presenciou na revista? E em você, como repórter? CB: Em 2010, me mudei para Brasília. Deixei meus persona-

mórias que mais me marcaram durante o tempo da apuração. JI: Você participou do programa Roda Viva, da TV Cultura, onde sabatinou o Haddad. Como surgiram os convites? No que a experiência contribuiu para a sua carreira? CB: Participei quatro vezes do programa Roda Viva. Todos os convites partiram do Mario Sergio Conti, que assumiu o programa depois que saiu da piauí. Em todas as vezes, fiquei nervosíssima. A experiência só me fez confirmar que prefiro impresso a TV. JI: Em Tiririca no salão, como foi a apuração com as fontes? Qual o tempo para desenvolver a reportagem? Em que lugares buscou informações? CB: Para o perfil do Tiririca, falei com parlamentares próximos do deputado, assessores de campanha, funcionários do gabinete,

família, amigos e outros comediantes. Foram três meses de apuração e fui até o Ceará me encontrar com amigos de infância dele e conhecer o celeiro de comediantes brasileiros. JI: Na reportagem sobre as pessoas que buscam o SUS para cirurgias de mudança de sexo, tema ainda muito delicado, qual foi seu trato com as fontes? O que decidiu contar ou ocultar? Fora isso, houve outras oportunidades nas quais teve que repensar o lado ético do fazer jornalismo? CB: Com transexuais, é preciso ter muita sensibilidade para mexer em suas feridas, pois eles costumam ter histórias bastante sofridas. Principalmente com pessoas humildes, temos que fazer exercício ético diário. O jornalista não pode se valer da ingenuidade delas para publicar conteúdos que podem causar uma exposição negativa.

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legistas no IML do Rio e o perfil da depiladora levaram um mês. Os editores não costumam impor um limite de caracteres para a primeira versão do texto. No entanto, é comum que peçam para o próprio repórter fazer um primeiro corte. Diferente da New Yorker [revista americana do gênero New Journalism], que tem muitos textos longuíssimos, raramente a piauí publica textos com mais de 60 mil caracteres.


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ENSAIO

JANELAS INDISCRETAS

Fotos Wilson Albino

Olhos espiam das estantes, instigando ao delicioso prazer da leitura


TRAMAS CONTEMPORÂNEAS

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Leitura inclusiva Fotos: Danilo Silveira

O desafio do investimento em formatos acessíveis, destinados a milhares de cidadãos brasileiros com deficiência

Como forma de atender a todos os públicos, a Biblioteca Pública Luiz de Bessa diversifica o formato de seu acervo

Ana Borges O setor braile da Biblioteca Pública Estadual Luiz de Bessa, em Belo Horizonte, oferece serviços em prol de pessoas com deficiência visual. A luta dos profissionais é para que seus usuários tenham acesso ao conhecimento, por meio de estudos auxiliados por voluntários, que vão ao local para ler aos cegos, além de auxiliá -los com a internet, dentre outras coisas. No dia 6 de julho de 2016, houve um evento no local, para estimular a leitura destinada aos cegos. Participaram pessoas como Perla Assunção, funcionária da Fundação Dorina Nowill Para Cegos, da cidade de São Paulo, e o promotor Leonardo Costa, que falou sobre a lei, decretada exatamente um ano antes da solenidade. Ao citar o ditado do direito romano, Costa diz que “onde existe uma sociedade, existe também um direito”. Ele lembra que esse direito vem de algum lugar e pretende chegar a outro.

A lei de inclusão O promotor lembra que a Lei foi aceita e

aplicada depois de muita luta da categoria em busca de acessibilidade para a leitura. Ele também é cego e entende essa preocupação. “Na própria Constituição brasileira de 1988, não existem referências a pessoas com deficiência”, explica Leonardo. A partir daí, as editoras foram obrigadas a fornecer obras em formatos acessíveis, como livros em braile ou PDF e audiobooks. Ao citar o artigo terceiro da Constituição, o promotor rememora que ele se destina à solidariedade, que deve “caminhar” lado a lado com a propriedade. “Ninguém é melhor do que ninguém”, comenta. Leonardo defende que o estado deve fornecer, a todos os cidadãos, condições mínimas equivalentes. “O homem parte de algum lugar e, segundo suas escolhas, chega a outros. O estado fornece o livre-arbítrio, e pode fazer o bem ou o mal. A Constituição prevê que se tenha cuidado com quem tem mobilidade reduzida, ou com qualquer tipo de limitação física”.

Outros formatos No que se refere aos direitos autorais, a lei de 1998 destaca: “A reprodução de obras literárias, artísticas e científicas não se constitui para uso exclusivo de deficientes visuais, e não é ofensa que a reprodução não seja para fins comerciais”. Tal reprodução deve ser feita com outros procedimentos, em outros suportes. Porém, o acesso a computadores ainda é muito recente, assim como o sintetizador de voz, que pode dar suporte sonoro aos cegos. Por isso, até há pouco tempo, a única alternativa era o livro em braile. Em resumo, todas as editoras são obrigadas a fornecer livros acessíveis, sendo punidas, por meio de multas, caso se recusem a desenvolver obras em outros formatos. O cego pode, a partir dessa recusa, fazer Boletins de Ocorrência. As editoras, portanto, que pensem muito bem antes de se negar a investir em livros acessíveis, de maneira a privar diversos cidadãos da leitura. Desse modo, afinal, priva-se o público da cultura, da informação e da educação.

Acesso a todos Um projeto que pretende ampliar e qualificar a acessibilidade em bibliotecas por território nacional, além de contribuir para o debate das políticas de inclusão em equipamentos públicos, é o “Acessibilidade em Bibliotecas Públicas”. O plano é uma iniciativa do Sistema Nacional de Bibliotecas Públicas (SNBP) e envolve dez bibliotecas, das cinco regiões do Brasil – das quais faz parte, em

Belo Horizonte, aLuiz de Bessa. Entre os diversos objetivos do projeto, podem ser destacados: - Construir e disseminar conteúdos, referenciais, estratégias e instrumentos para a qualificação das bibliotecas públicas brasileiras em uma perspectiva acessível e inclusiva. - Contribuir com o fortalecimento das políticas, programas e projetos relativos ao li-

vro e à leitura no Brasil, especialmente o Plano Nacional do Livro e Leitura (PNLL), do Ministério da Educação, introduzindo a questão da acessibilidade e inclusão de forma articulada e transversal. - Mobilizar e fomentar parcerias no setor do livro e leitura no Brasil, com foco nas questões relativas à acessibilidade de produtos e conteúdos para as pessoas com deficiência.


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VOCÊ JÁ OUVIU?

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ERA MODA EM 1976 Com críticas e referências à cultura pop, que ainda são atuais, Alucinação completa 40 anos Há 40 anos, uma obra-prima da MPB era lançada: Alucinação, segundo álbum do cearense Belchior. Mesmo não integrando a Tropicália, o disco promove a ideia principal do movimento: a mistura entre ritmos brasileiros e estrangeiros. Logo na primeira faixa, “Apenas um Rapaz Latino Americano”, primeiro single do álbum e um dos maiores sucessos do cantor, já se tem uma amostra da influência tropicalista: a mescla de ritmos nordestinos, folk e blues rock, com um coral feminino ao fundo. Os versos evocam a aura do artista solitário que toca em bares nas noites, não faz muito sucesso, recebe pouco, e cujo único remédio é expor sua dor em forma de música. A segunda canção, “Velha Roupa Colorida”, retrata o saudosismo da liberdade dos anos 60, seja na combinação do teclado atmosférico, com uma pitada de psi-

codelia, e no dedilhado do violão de aço, até a letra, que faz referências a grandes ícones da música na época, Bob Dylan e os Beatles. Talvez seja um lembrete ao próprio cantor, que completara três décadas naquele mesmo ano, da distante juventude, das grandes reviravoltas que a fatídica idade traz às pessoas, como ele mesmo diz no refrão: “Você não sente nem vê/ Mas não posso deixar de dizer, meu amigo/ Que uma nova mudança em breve vai acontecer”. A canção foi gravada por Elis Regina, um ano antes, num arranjo de rock’n’roll, em andamento bem mais rápido e enérgico. A Pimentinha - como a cantora era chamada por Vinícius de Moraes - também gravou a faixa seguinte, “Como Nossos Pais”, bastante conhecida em sua voz. Sua mensagem é uma crítica à repressão que a ditadura exercia sobre a juventude, sufocando o espírito revolucionário e fazendo com que aquela geração reproduzisse o

LISTA DE MÚSICAS 1. Apenas um rapaz latino-americano (4’18’’) 2.Velha roupa colorida (4’50’’) 3. Como nossos pais (4’40’’) 4. Sujeito de sorte (3’17’’) 5. Como o diabo gosta (2’04’’) 6. Alucinação (4’54’’) 7. Não leve flores (4’12’’) 8. A palo seco (2’56’’) 9. Fotografia 3x4 (5’25’’) 10. Antes do fim (0’59’’)

Ficha técnica Título: Alucinação Artista: Belchior Lançamento: 1976 Gravação: 1976 Duração: 37:25 Gravadora: PolyGram Produção: Marcos Mazzola Técnico de gravação: Ary Cavalhaes Auxiliar de gravação: Paulo Sérgio “Chocô” Direção de Arte: Aldo Luiz Fotos: Januário Garcia

comportamento e visão de mundo que os pais carregavam : “Apesar de termos feito tudo, tudo o que fizemos/ Ainda somos os mesmos e vivemos como nossos pais”. O pensamento anticonformista também é presente nos versos de “Como o Diabo Gosta”, que incita a rebeldia de forma clara e contida, num arranjo que lembra música cigana, dando sensação de liberdade. “Alucinação”, a faixa-título, é um cinzento retrato dos grandes centros urbanos, descrevendo as figuras que compõem o cenário caótico e diverso das metrópoles, a dureza do cotidiano e a “solidão das pessoas nessas capitais”. A canção dialoga com “Fotografia 3x4”, uma autobiografia de Belchior, contando sua trajetória de quando saiu do Cea-

rá e foi morar no Rio de Janeiro. Também retrata a realidade de muitos migrantes do sertão e do agreste nordestino, que, fugindo da seca e da miséria, rumavam aos grandes centros urbanos do sudeste, principalmente São Paulo. Não devem ser esquecidas a sétima faixa, “Não Leve Flores”, que fala dos contratempos da vida e serve de conselho para que o passado não se torne uma âncora e prenda as pessoas; e a regravação de uma canção lançada em seu primeiro álbum, Mote e Glosa, de 1974, o grande hit “A Palo Seco”. Sua primeira versão contava com um arranjo mais “romântico”, com direito a trompetes, flauta transversal e um solo de saxofone. A segunda é mais enxuta, com violão, baixo, bate-

ria, guitarra e piano, e casa bem com a mensagem intensa, revelando mais uma vez o fascínio que o compositor tem pela América do Sul. A intenção de Belchior poderia ser resumida no icônico verso “E eu quero é que esse canto torto/ Feito faca, corte a carne de vocês”. Fechando o disco, “Antes do Fim” é curta, simples, porém sincera, com sua mistura entre viola caipira, gaita e a presença sutil de uma flauta. A vida pessoal do cantor, nos últimos anos, tem sido marcada por seu paradeiro incerto e pelo acúmulo de grandes dívidas. Sabemos que ele vive graças aaparições relâmpago na mídia e relatos de fãs que o viram. E claro, graças às suas canções e discografia, até hoje

bastante procurada nos sebos por colecionadores de vinil.

Antes do Fim

Quero desejar, antes do fim, pra mim e os meus amigos, muito amor e tudo mais; que fiquem sempre jovens e tenham as mãos limpas e aprendam o delírio com coisas reais. Não tome cuidado. Não tome cuidado comigo: o canto foi aprovado e Deus é seu amigo. Não tome cuidado. Não tome cuidado comigo, que eu não sou perigoso: - Viver é que é o grande perigo REPRODUÇÃO

Luiz Vila Real


VOCÊ JÁ VIU?

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Amor, Festa e Devoção Clarisse Antunes

Tenho 4 filhos, e todos amam Bethânia”. O recital “Bethânia Recebida no palco e as Palavras”, foi apre- com aplausos e gritos sentado em setembro eufóricos, Bethânia no Sesc-Palladium, na abriu o espetáculo com turnê de divulgação do a canção “As Ayabás” e, livro e DVD “Caderno em seguida, recitou verde Poesias”. Duran- sos da poetisa russa Mate uma hora e meia, rina Tsvetaeva: “Pecarei Bethânia foi acompa- — como peco — como nhada pelo violonista pequei: com paixão! Paulo Dáfilin e o per- Deus deu-me sentidos cussionista Carlos Cesar. — todos os cinco!”. Cerca de uma hora Leu fragmentos da antes do início do espe- canção “Olho de Lintáculo, os fãs, ansiosos ce” e seguiu com “Mane já em grande núme- dingo”, de Roberta de ro, conversavam entre Sá, e o poema “Identisi e tomavam café, para dade”, de Mia Couto. o tempo passar mais Após os dois primeiros rápido. versos de “Massemba”, Conversei com de Roberto Mendes, Maria José Chaves de emendou palavras de Lima, 48 anos, de São Guimarães Rosa: “MesFrancisco do Conde, tre não é quem semcidade bem próxi- pre ensina, mas quem ma a Santo Amaro da de repente aprende”. Purificação, onde Be- Para finalizar o primeithânia nasceu. “Montei ro momento, recitou o um projeto de sarau na “Poetas Populares”, de minha cidade porque a Antônio Vieira. Bethânia me ensinou a Toda a apresentaamar mais a poesia. Ela ção é tecida como uma mesma falou que San- colcha de retalhos, to Amaro é uma cidade muito bem bordada e de poetas e, por isso, é costurada, metaforimuito comum você camente falando, reuouvir poetas populares nindo trechos de canem suas apresentações”. ções, textos e poemas Maria José, durante nos- de uma variada gama sa conversa, não escon- de artistas, com uma deu sua admiração: “Ela interpretação forte, é uma excelente intér- única e expressiva. prete e quem eu acho O público ouviu treque melhor recita poe- chos de canções de Camas. Eu vou à todos os etano Veloso – “Jenipaseus shows, ela parece po Absoluto”, “Oração uma entidade no palco”, ao Tempo” e “Ciclo” – e diz maravilhada. “Eu a Alceu Valença – “Vou acompanho desde o ini- Danado pra Catende” cio da carreira e tenho – e o poema “Velha quase todos os CDs. Chácara”, de Manuel

Ficha técnica Espetáculo: Bethânia e as palavras Artista: Maria Bethânia Lançamento: 2016 Colaboração: Hermano Vianna e Elias Andreatto Duração: 70 minutos Direção, pesquisa e repertório: Maria Bethânia Direção de produção: Ana Basbaum Músicos: Paulo Dáfilin (violão) e Carlos César (percussão)

Bandeira. No intervalo entre uma música e outra, Bethânia relembra seu professor ginasial de português, Nestor de Oliveira, com quem aprendeu a ler, ouvir e dizer poesia. “É possível, sim, uma boa e plena educação nas escolas públicas brasileiras”, afirma, e, sob aplausos, acrescenta, com orgulho: “Eu, Maricotinha, aluna de escola pública, estou aqui, coberta de medalhas, e recém inaugurei a Bienal do Livro em São Paulo. É mole, o recôncavo baiano?! Beijinho no ombro!” Em seguida, mescla o poema “Ladainha de Santo Amaro” com a música “Saudade Dela”, escrita em homenagem a Dona Edith do Prato, figura importante na vida da artista e de seu irmão Caetano. Com a popular “Romaria”, de Renato Teixeira, Bethânia fala de sua devoção por Nossa Senhora de Aparecida e lê um fragmento do texto que havia escolhido no mesmo dia, pouco antes de se apresentar, de autoria do Padre Antônio Vieira. Depois, canta “Folia de Reis”. A artista leu ainda um longo trecho da obra “Grande Sertão: Veredas”, Guimarães Rosa, além de “Quero ser Tambor”, de José Craveirinha” e “O que se odeia no índio”, de Reynaldo Jardim. Em seguida cantou “Salve as Folhas” e “O canto do Pajé” e leu um texto de sua autoria, sobre o que gosta de pensar e falar do país: “Brasil do chão esturricado, do sertanejo silencioso, nobre, sábio... Brasil de Manuel Bandeira, Caymmi, Drummond, Clarice, Cecília, Vinícius... Brasil de Fernanda Montenegro, Castro Alves, Luiz Gonzaga (...)” Na sequência, canta “Sonhei que Estava um

dia em Portugal”, emendando com “Língua”, de Caetano e com “Pátria Minha”, de Vinícius de Moraes. E, como não poderia faltar, traz as palavras de Clarice Lispector: “Olha pra mim e me ama. Não: tu olhas para ti e te amas. É o que está certo”. Para encerrar a noite, Bethânia se despede com a canção “Menino de Braçanã”, de Luiz Vieira e Arnaldo Passos: “É tarde, eu já vou indo... eu preciso ir embora, até amanhã (...)” . Para a alegria dos presentes, ela volta para o bis, cantando “Reconvexo”, de Caetano, animando e tirando o público de seus lugares, trazendo-os para mais perto do palco. Após agradecer e cumprimentar os que estavam mais próximos, aplaudiu, virou-se, apontando para cima, e foi embora. O projeto “Bethânia e as Palavras” teve origem em Belo Horizonte, em 2009, quando a artista recebeu um convite da escritora e professora Lúcia Castello Branco para participar de uma leitura de textos dentro da programação do “Ciclo de Conferências Sentimentos do Mundo”, na UFMG.

FOTOS: CLARISSE ANTUNES

Espetáculo de Maria Bethânia mescla música e poesia


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crônicas

Setembro de 2016 Jornal Impressão

A SALVADORA DE RUAS Marcelo Gomes

meu pai. Percebi também que não estava sozinha, havia mais gente se arrastando, para catar os papeis. Anos e anos de toda minha vida a vendo passar pela porta de minha casa e sem nunca dar-lhe um “bom dia” foi o motivo para eu descer do palco e ir até ela. Molhei-me todo, mas fui. Com medo, cheguei próximo, e ela me disse: “ Veio conhecer a desgraçada?” Fiquei sem reação, mas respondi: “Sim”. De lá do palco, papai viu a ocasião e gritou: “ajudar as pessoas vem de berço, vejam só meu filho amparando uma mendiga”. Após dizer isso, duas chuvas caíam, a de água e a de ovações. Fui obrigado a me retirar de perto

dela, pois os holofotes se voltaram a mim e, se não saísse, todas as pessoas iriam continuar ali me olhando, sem deixar papai continuar a proferir o discurso que tanto ensaiou. As eleições se passaram e papai ocupava o posto cobiçado. Usando sua influência de primeira dama, mamãe começou a ditar a moda da cidade: lançou uma grife, o que angariou mais dinheiro para nossa família, e ela só foi publicizada graças aos papéis que o amigo de papai dava à mamãe. Além disso, a administração de papai ia muito bem. Eu ficava impressionado. Mesmo com a demissão de muitos garis, as ruas da cidade, pelo menos as do

nosso bairro e entorno, permaneciam limpas. Um dia, ao voltar da escola, peguei um engarrafamento e o motorista cortou caminho. Desembocamos em um lugar pobre e fedido, parecia que estava na África, como sempre via nas imagens. Pedi que o motorista fosse bem rápido, mas o mandei parar quando vi que ela estava bem ali. Nossa! Era a minha chance de conhecê-la. Ela estava dentro de uma espécie de oficina, um lugar de reciclagem. Aí raciocinei: ela passava pelo meu bairro catando os papéis para reciclar. Quando me aproximei, um grito disparou: “O que faz aqui?” Quando ela fez isso, uns homens vieram

para cima de mim, não tive escapatória, corri até o carro, tremendo de medo. Aquele meu dia havia sido muito desconcertante, os próximos ficaram ainda mais. Principalmente quando chegou a hora de papai ajudar seu amigo. E papai o ajudou: cedeu um lugar para que ele pudesse ampliar ainda mais sua indústria. E o lugar? Era onde ficava a oficina de reciclagem da “desgraçada”. O tempo passou e, com a indústria ampliada, ela não passou mais. Senti sua falta, sobretudo quando os esgotos entupiram e nossa casa inundou na primeira chuva após o funcionamento da nova filial da fábrica de papel. William Araújo

Acordei, fui até a varanda, e, como sempre, ela estava lá, na rua, carregando aquele enorme saco nas costas. Deus, qual o sentido da existência daquela criatura? Rastejar pelas ruas como um bicho, não faz jus em ser humana. Depois que sumiu das minhas vistas, voltei ao quarto, me arrumar, pois naquele dia seria o comício do meu pai, e toda a família deveria mostrar o “pedigree”. Mamãe já estava toda “tosada”, claro, não da maneira que deus a fez: cabelos loiros, lentes azuis - igual à cor dos olhos da vizinha francesa - dentes brancos, enfim. O fato é que mamãe reverberava

pompa. Já o papai, esse aí deveria reverberar muito mais, haja vista que estava disputando o cargo de leão, isto é, de rei da “selva” de concreto. Quando fiquei pronto, fui até a sala e deparei com toneladas de folhetins empacotados para serem distribuídos durante a campanha. Naquele momento, tive a certeza de que papai iria vencer a disputa, pois não havia ninguém que tivesse um amigo dono da empresa de papel que ajudava na campanha, tão fielmente. Durante o comício, choveu muito, e lá de cima do palco a avistei, como sempre, rastejando, mas dessa vez vi que fazia isso para catar os papeis da campanha de

Três casórios e um Jorjão Thiago Fonseca Meus pais se casaram no ano passado. Um susto! A partir daí, comecei a recordar histórias de casamento da minha família, e me dei conta de que algumas são bastante curiosas. Minha mãe conheceu meu pai muito jovem, aos 18 anos. Começaram a namorar e logo engravidou da minha irmã mais velha. Ele não quis casar, disse que era besteira. Resolveram juntar. Viveram três décadas assim. No fim do ano passado, mamãe resolveu casar! Estava decidida que ia dar um basta na situação. O que a fez mudar de ideia? Em primeiro lugar, alguém comentou

que ela poderia não ter direito aos bens. Além disso, pesaram os conselhos religiosos de tia Verinha. Convencer papai não foi muito difícil. Complicado, mesmo, foi dar entrada com os papéis no cartório. Até em Baldim minha mãe teve que ir para buscar sua certidão de nascimento. Tudo resolvido: pedido de união estável feita. Eis que sai a data. Mais uma surpresa: 26 de dezembro, um dia após o natal. Eu, minha irmã Thais, tia Verinha e tio Ângelo fomos os padrinhos. Meu primo Lucas faria as fotografias do momento histórico, mas quando chegou no estúdio para pegar a câmera fotográfica, teve um susto: roubaram to-

dos seus equipamentos. Nada que pudesse atrapalhar o enlace matrimonial. Desde então, conto para todos que meus pais têm pouco mais de um ano de casados e que fui padrinho. Poucos meses depois do casório, tia Nilza, irmã de mamãe, anuncia que vai se casar. Burburinho na família: com quem? Tia Nilza era divorciada fazia 10 anos, e, desde que se separou de Jorjão, não teve outro relacionamento. Eles ainda moravam na mesma casa. Eis que surge a surpresa: o tal novo marido, porém, não era novo. Era... o Jorjão! A decisão de se casar novamente veio dos dois. Tia Nilza se reconciliou

com Jesus – e Jorjão – em uma igreja evangélica, e disse que queria consertar sua vida perante Deus. Teve aliança nova e tudo o mais. Não bastassem dois casamentos em um período de doze meses, eis que surge uma notícia no meio desse ano: vovó Joaquina, mãe de mamãe e de tia Nilza, vai se casar. O fuzuê foi dez vezes maior do que a notícia dos outros dois enlaces. A família ficou dividida: como pode uma senhora de 72 anos se casar com um homem de 56? Isso mesmo: meu vôdrasto é dezesseis anos mas novo do que minha avó. Papai era a favor, Jorjão contra, minhas tias eram neutras, ma-

mãe colocava lenha na fogueira. Seis meses de namoro e de falatório na família. Vovó estava decidida! Queria, porque queria, casar pela terceira vez. Consultado, doutor Rui, médico da família, disse que teríamos que deixar ela casar. Era bom para a saúde dela, e contrariar uma senhora de idade não seria uma boa opção. Pois bem, deixamos. Ela não queria apenas casar no cartório. Como mamãe e tia Nilsa, queria na igreja! E, no dia 23 de julho de 2016, dona Joaquina e senhor Emanuel se casaram. Templo todo ornamentado de alaranjado e branco. Um bolo de quatro

andares enfeitava a mesa cheia de doces e bombons. Fotos dos pombinhos enfeitavam as paredes da pequena igreja evangélica. Na hora da marcha nupcial, eis que surge a dama... de vermelho! Igreja lotada, pessoas em pé e, até na rua, ovacionavam a entrada triunfal de vovó. Todos do bairro pararam para ver o acontecimento. E não é que foi a coisa mais linda! Uma festança. Tio Jorjão que perdeu. Foi o único que não deu o braço a torcer. Agora, estou esperando para ver qual será o próximo casamento na minha família. Quem sabe o meu não entra para a história?


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