2
Julho de 2020 Jornal Impressão
EDITORIAL
PRIMEIRAS PALAVRAS EXPEDIENTE
Por Isabela Santana
REITOR Prof. Rafael Ciccarini
O ano é 2020 e estamos vivendo uma pandemia. O coronavírus propagou uma crise sanitária que tomou conta dos países e parou o mundo. De acordo com o Ministério da Saúde, o coronavírus chegou em janeiro deste ano no Brasil, 30 dias antes do primeiro caso diagnosticado. Nesta edição 214 do Jornal Impressão, vamos discutir diversas abordagens sobre os reflexos da pandemia no Brasil e como o país tem reagido no combate ao vírus. O Brasil ultrapassou a marca de 65 mil mortes no início de julho. O que era pra ser uma triste e preocupante crise sanitária, se tornou um verdadeiro pesadelo. Além da grave pandemia, os brasileiros estão enfrentando, simultaneamente, uma crise política, econômica e moral. Em tempos de cultura do cancelamento na internet, discutimos o que é a moral e se realmente podemos ter a oportunidade de errar e aprender com os nossos erros. O Governo não transparece muita solidariedade com o momento e tem se posicionado de forma indiferente, uma vez que o presidente Jair Bolsonaro está mais preocupado com a economia e flexibilização irresponsável do comércio, do que com o número de casos confirmados, referindo-se à pandemia como uma gripezinha. 65 mil mortes são 65 mil histórias interrompidas. Em um país que está há mais de 50 dias sem um titular no Ministério da Saúde. É trágico! Estamos nadando contra a corrente. Grande parte das pessoas não respeitam o isolamento social e o presidente ainda vetou o uso obrigatório das máscaras em comércios, escolas e igrejas. Onde vamos parar com o nosso egocentrismo? Além disso, a crise que vivemos hoje tem cor. O nosso país carrega um racismo estrutural, na qual os corpos negros são substituíveis. Durante a pandemia, podemos enxergar essa desigualdade desde a democratização do acesso digital ao auxílio emergencial, até ao fato de, muitas vezes, o isolamento social não ser cabível aos negros também. E, no poder, um Governo que não dá o devido apoio e suporte à causa racial. Assumo a responsabilidade de dizer que não foi fácil escrever esta edição, além de ser a primeira produção 100% remota do Jornal Impressão, este dossiê traz temas delicados, que envolvem a nossa realidade, nossas vidas, nossas famílias e nossos anseios. Que esta edição possa abrir nossos olhos para uma visão geral de como estamos tratando as questões políticas e ideológicas, e qual o aprendizado podemos levar diante desta pandemia e suas diferentes perspectivas.
DIRETOR DO CAMPUS BURITIS Prof. Eduardo França COORDENADORA DO CURSO DE JORNALISMO Prof. Joana Meniconi LABORATÓRIO DE JORNALISMO EDITORA Dandara Andrade DIAGRAMAÇÃO Thayna Valadares PROJETO GRÁFICO Laboratório de Experimentações Gráficas (LEGRA) ESTAGIÁRIOS Beatriz Almeida Fernanda Freitas Isabela Santana Laura Mourão Letícia Sudan Matheus Rocha Paulo Henrique Santos Thayane Domingos Thayna Valadares ILUSTRAÇÃO Matheus Rocha Thayna Valadares Paulo Henrique Santos ALUNOS QUE ESCREVERAM PARA ESSA EDIÇÃO Bárbara Veloso Eduardo Almeida Isabela Beloti Jéssica Hellen Keylla Gracielle Lucas Maia Maria Eduarda Coelho Mariana Reis Sarah de Aquino Stéffane Nascimento O Jornal IMPRESSÃO é um espaço de prática, experimentação e aprendizagem em Jornalismo, coordenado pela CACAU – Comunidade de Aprendizagem em Comunicação e Audiovisual do UniBH. Mesmo como projeto do curso de Jornalismo, o jornal está aberto a colaborações de alunos e professores de outros cursos do Centro Universitário. Participe do JORNAL IMPRESSÃO e faça contato com nossa equipe: Av. Mário Werneck, 1685 - BH/MG CEP: 31110-320 jornal.impressao@unibh.br
3
Julho de 2020 Jornal Impressão
VISÃO CRÍTICA
PANDEMIA COLOCA A DESIGUALDADE DIGITAL EM EVIDÊNCIA Cerca de 70 milhões de brasileiros têm acesso à internet precário ou inexistente, e mais de 42 milhões de pessoas no país nunca acessaram a rede
Por Jéssica Hellen, Mariana Reis e Matheus Rocha
A crise do novo coronavírus segue causando impactos enormes na rotina da população brasileira. Durante esse período, o Governo Federal divulgou a criação de várias iniciativas de serviços digitais, entre eles alguns aplicativos para o auxílio desemprego e o auxílio emergencial, que promete beneficiar cerca de 50 milhões de brasileiros com a quantia de R$600 até R$1.200. Apesar desta iniciativa, a pandemia mostra para nosso país, além da disparidade socioeconômica, a desigualdade na democratização do acesso digital. No coração da cidade, estamos vivendo isolados, mas nos vendo o tempo todo digitalmente. Das nossas casas, usamos as redes sociais online para fazer lives, realizamos vídeo chamadas, participamos de correntes, ouvimos música e nos entretemos, na medida do possível, para amenizar a falta de contato físico. Em outros lugares, estão um outro grupo de pessoas, os invisíveis digitais, aglomerados em periferias ou em situação de rua, já sofrendo, muitas vezes, com a falta de alimento e recursos básicos como água limpa. Queremos expor o que está fora do campo de visão da maioria e como a tramitação de políticas que seriam para beneficiar essa parcela da população são excludentes, visto que muitas pessoas não têm acesso à internet ou até mesmo alfabetização. Os dados mais recentes sobre tal desigualdade nos mostram uma realidade de pessoas que já são invisibilizadas cotidianamente. Cerca de 70 milhões de pessoas têm acesso à internet precário ou inexistente no Brasil. Mais de 42 milhões de pessoas do país nunca acessaram a rede e, de acordo com o levantamento do Cetic.br (departamento do Comitê Gestor da Internet, que monitora a adoção de tecnologias de informação), 25 milhões dos mais pobres só utilizam a internet no celular e com pacotes limitados. Com base no relatório do IBGE (2017), podemos ressaltar ainda a população negra ou parda, que é a mais afetada com a falta de acesso digital no Brasil. Os números mostram que 61,4% da população branca já utilizou esse recurso, diante de 39,6% da população preta ou parda.
4
Julho de 2020 Jornal Impressão
VISÃO CRÍTICA INFOGRÁFICO: MATHEUS ROCHA
Tal reflexão já nos denuncia que não, o Brasil não é um país democrático. No entanto, algumas empresas e instituições filantrópicas resgatam nosso otimismo por dias melhores desenvolvendo iniciativas que levam informação e acessibilidade para quem precisa, mais do que nunca, ter as suas necessidades enxergadas e auxiliadas de alguma forma. Pensando na dificuldade no acesso à internet, e também na falta de alfabetização digital, o Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais (CEFET-MG) se voluntariou a ajudar no cadastro do auxílio emergencial. A ideia do mutirão, que está sendo realizado nos campis de Belo Horizonte e região metropolitana, é auxiliar as pessoas que não têm acesso à web ou têm dificuldades para preencher o formulário. Para o cadastramento, foram disponibilizados os laboratórios de informática e a ação contou com a ajuda dos alunos da própria instituição no voluntariado que, além de ajudarem a comunidade no cadastro do auxílio, também tiravam dúvidas sobre o recebimento da ajuda financeira fornecida pelo governo. Mas, as iniciativas foram para além do meio digital. Para Gabi Andrade, proprietária do Las Chicas Vegan, restaurante de alimentação vegana do Edifício Maletta, a própria localidade, no centro de Belo Horizonte, evidenciou que a situação de moradores de rua estava ainda mais precária por falta de doações. Ela lançou uma vaquinha online e se disponibilizou a preparar e entregar marmitex nas ruas, após cumprir seu expediente. “Já distribuímos cerca de mil marmitex!”, afirmou a empresária. Além disso, Renata Vidal, uma das mentoras do projeto social @ligado.amor, tam-
5
Julho de 2020 Jornal Impressão
VISÃO CRÍTICA
bém se solidarizou com as circunstâncias que a pandemia trouxe para a população de rua. “Nesse momento de pandemia, nossas ações voltadas às crianças foram suspensas. Demos continuidade aos trabalhos que envolvem pessoas em situação de rua, porém de uma forma segura, sem contato, para não espalhar o vírus pela cidade. Montamos varais em dois pontos de BH e os abastecemos duas vezes por semana com alimentos e itens de higiene pessoal (pasta e escova de dente, papel higiênico, sabonetes e máscaras)”. Ela, inclusive, notou mais adesão social nesta campanha. É evidente a exposição das pessoas mais vulneráveis, desconhecedores dos smartphones e ainda nada integrados na sociedade moderna da informação. São situações como essas que denunciam a naturalização dos regimes de desumanidade e desigualdade aos quais os mais empobrecidos costumam estar expostos no nosso país. O desafio de promover acesso à informação de qualidade no combate e enfrentamento à pandemia é grande. Em nosso atual contexto, a inclusão digital é imprescindível e deve ser acelerada não somente para o agora - para o acesso a benefícios sociais, às relações de teletrabalho, aos atendimentos remotos em serviços públicos, ao empreendedorismo digital e à economia -, mas também para o período pós-pandemia, reduzindo as desigualdades sociais desnudadas e escarnadas nesta crise sanitária.
O SISTEMA DE SAÚDE BRASILEIRO PRÉ E DURANTE A PANDEMIA O SUS já vivia um “estresse terrível” antes do novo coronavírus chegar ao Brasil, e a preocupação em conseguir oferecer assistência também atinge a rede privada
Por Lucas Maia
Desenhado em um projeto defendido por médicos sanitaristas, e oficializado na Constituição de 1988, o SUS – Sistema Único de Saúde é hoje o maior sistema público de saúde do planeta e o único entre os países com mais de 100 milhões de habitantes. Após a Ditadura Militar, durante o período de redemocratização nos anos 1980, a ideia era promover a saúde como um direito a ser garantido pelo Estado para todos
6
Julho de 2020 Jornal Impressão
DOSSIÊ PANDEMIA
os habitantes, independente de classe, cor ou gênero. De lá para cá, foram vários os desafios que o SUS teve que enfrentar para se manter de pé. Nenhum deles, entretanto, foi tão avassalador como a pandemia causada pelo novo coronavírus. O SUS PRÉ-PANDEMIA
Nas palavras do médico sanitarista Apolo Heringer Lisboa, antes da chegada da Covid-19, “o SUS estava vivendo um estresse terrível”, haja vista as situações que o sistema já enfrentava como cortes de gastos e diminuição do contingente médico. O Sistema Único de Saúde brasileiro, contudo, já encarava, há tempos, diversos entraves que dificultavam a sua atuação na sociedade.
INFOGRÁFICO: MATHEUS ROCHA
6
Julho de 2020 Jornal Impressão
7
Julho de 2020 Jornal Impressão
DOSSIÊ PANDEMIA
Sem dúvida, as consequências das medidas que impactaram negativamente o SUS nos últimos anos foram ainda mais prejudiciais com a chegada do novo coronavírus. Segundo José Marcos Thalenberg, supervisor no Ministério da Saúde e especialista em saúde pública, a medida conhecida como a PEC do Teto de Gastos foi uma das mais nocivas ao sistema, pois “isso praticamente inviabiliza a aquisição de novas tecnologias e ignora o inevitável aumento da desassistência que a falta de recursos trará”. Além disso, José Marcos ainda lembrou que o ex-ministro da saúde do governo de Fernando Henrique Cardoso chegou a criticar a emenda dizendo que seu o objetivo principal era acabar com o Sistema Único de Saúde. Por causa destes e outros tantos acontecimentos, o SUS enfrenta altos e baixos desde sua criação. Por isso, o órgão brasileiro já não estava em seu melhor momento quando o vírus SARS-CoV-2 chegou ao Brasil, infectando centenas de milhares de pessoas e ameaçando colapsar a assistência. OS IMPACTOS DIRETOS DA COVID-19 NO SUS
O novo coronavírus foi documentado pela primeira vez na China, em dezembro de 2019. Foi no dia 25 de fevereiro, contudo, que o primeiro caso da doença causada por este patógeno foi registrado no Brasil, quando um homem de 61 anos, residente em São Paulo, testou positivo para SARS-CoV-2. Desde então, o número de infectados no país ultrapassou 1 milhão de pessoas e as mortes, até o dia 22 de junho, já passavam de 50 mil (dados atualizados aqui: https://covid.saude.gov.br/). Com números tão expressivos e deprimentes, uma dúvida que permeia é se o SUS será capaz de sobreviver a esta crise e, principalmente, se ele possui recursos para tratar todos os pacientes. INFOGRÁFICO: MATHEUS ROCHA
8
Julho de 2020 Jornal Impressão
DOSSIÊ PANDEMIA
Segundo dados de 2020, do Ministério da Saúde, o Brasil possui 6.658 hospitais, sendo que 36% deles são públicos. Considerando que, neste ano, a rede privada e pública juntas dispõem de 426 mil leitos de internação, número 8% menor que o de 11 anos atrás, é correto preocupar-se em aumentar a capacidade física dos setores da saúde para tratarem dos pacientes com Covid-19. Pensando nisso, foram criados hospitais de campanha para pessoas infectadas com o novo coronavírus, e novos equipamentos para o tratamento individual destes pacientes e para proteção da equipe médica foram adquiridos. Segundo a Federação Brasileira de Hospitais (FBH), entretanto, uma proposta mais interessante para o SUS seria destinar os investimentos em hospitais de campanha para a contratação de leitos privados, pois estes já estariam preparados para receber novos tratamentos. FOTO: LEONARDO OLIVEIRA/ FIOCRUZ IMAGENS
Hospitais de Campanha foram criados em todo o Brasil para o tratamento de pacientes diagnosticados com o vírus SARS-Cov-2. SAÚDE MENTAL TAMBÉM DEVE ESTAR EM PAUTA
Com o crescimento do número de casos no país e com o aumento dos óbitos, as políticas de isolamento social começaram a se tornar mais fortes e restritivas, uma vez que, se as pessoas se distanciam umas das outras, o vírus não circula. Um fato preocupante sobre o isolamento, todavia, é a sua nocividade à saúde mental, o que coloca não somente a saúde pública em risco, mas também dificulta com que a população respeite as medidas de distanciamento. A atenção ao fator psicológico não é só para as pessoas em isolamento. Quem contraiu o novo coronavírus e está nos centros públicos de saúde (sobretudo
9
Julho de 2020 Jornal Impressão
DOSSIÊ PANDEMIA
isolado, longe da família), também está em um momento turbulento. Assim como os infectados, os profissionais de saúde fazem parte de outro grupo em situação psicológica vulnerável, pois correm riscos de contrair o vírus e estão passando por uma pressão enorme, ao combater um agente patológico desconhecido e muito perigoso. Maria do Carmo, de 46 anos, é enfermeira de um dos hospitais públicos mais famosos da cidade de Belo Horizonte. Durante a pandemia, ela afirmou que o hospital separou os pacientes em alas e andares. Ela não tem contato direto com os infectados, mas faz o tratamento das pessoas com suspeitas de Covid-19. Maria do Carmo contou à nossa reportagem como ela se sente tendo um contato muito próximo com a pessoas que podem ter o novo coronavírus. “Eu tenho receio, assim como muitos de meus colegas, de ir trabalhar, não só porque no hospital teve caso [de pacientes com Covid-19], mas porque a gente não sabe quem tem a Covid e quem não tem. É um vírus de propagação muito fácil, então, por mais cuidado que a gente tenha, a gente fica sempre com aquele receio, principalmente por poder levar para os nossos familiares”, desabafou Maria do Carmo. Mesmo assim, segundo ela, os profissionais do hospital onde trabalha estão recebendo acompanhamento de psicólogos e do setor de Segurança do Trabalho. AS OUTRAS DOENÇAS NÃO ESTÃO EM ISOLAMENTO
Outro entrave que surgiu com a crise no setor da saúde causada pelo SARS-CoV-2 é como os pacientes que não estão com Covid-19 podem ser tratados. De acordo com levantamento feito pelas Sociedades Brasileiras de Cirurgia Oncológica e de Patologia, durante a pandemia, houve uma redução de até 90% nos exames não relacionados ao novo coronavírus. Além disso, segundo os órgãos, cerca de 50 mil brasileiros deixaram de ser diagnosticados com câncer. De acordo com o médico Francisco Carlos Cardoso, pesquisador do Núcleo de Educação em Saúde Coletiva (NESCON), para atender essas pessoas, “os serviços de saúde precisarão de grandes adaptações, como nos serviços de urgência, onde barreiras arquitetônicas deverão ser criadas para separação dos casos de doenças respiratórias agudas dos demais casos”. Isto poderia dar maior segurança para a realização de exames e atendimentos presenciais de pessoas que não estão com sintomas de Covid-19. Além de pacientes com doenças crônicas e tratamentos emergenciais, há também uma queda acentuada no número de transplante de órgãos. Segundo a Associação Brasileira de Transplante de Órgãos (ABTO), o número de doadores irá diminuir por conta da pandemia - devido a fatores como o risco de contaminação -, o que irá aumentar a lista de espera por transplantes. Apesar disso, o órgão publicou um ofício recomendando manter o transplante de órgãos ativo o quanto for possível. AS PROJEÇÕES DO SUS PARA O PÓS-PANDEMIA
Várias são as dificuldades que o Sistema Único de Saúde enfrenta nos últimos anos. Com a chegada da Covid-19, novos desafios surgiram e problemas antigos foram acentuados. Por isso, questiona-se qual será o futuro do SUS, isto é: ele vai ser capaz de se recompor e superar esta crise? Segundo Apolo Heringer Lisboa, um dos médicos que lutou pela criação desse sistema nos anos 1980, sim. “O SUS vai sair cada vez mais fortalecido e eu acho que, com essa pandemia, o
10
Julho de 2020 Jornal Impressão
DOSSIÊ PANDEMIA
desejo de melhorar o SUS vai estar cada vez mais forte”, disse o médico. Certamente, se o SUS sobreviver à pandemia, sua notoriedade irá subir e, com isso, a verba destinada ao sistema também pode tender a aumentar. Não se pode esquecer, entretanto, que mesmo neste caso, o SUS terá muitos pontos a melhorar, começando pela sua consolidação no território nacional e pela aplicação de investimentos na formação dos profissionais de saúde e na contratação de mais equipes qualificadas. De acordo com Apolo, para consolidar o Sistema Único de Saúde no Brasil, é preciso criar um plano de carreira, o que seria, em suas palavras, “uma segurança profissional para trabalhar”, haja vista que o profissional da saúde saberia claramente o tempo que leva para se aposentar, para ser promovido e qual é a expectativa salarial ao longo dos anos. “O SUS tem uma gestão municipal, mas ele é um plano nacional. Polícia Rodoviária Federal, a Polícia Federal, juízes, professores da Universidade Pública, todos têm plano de carreira. Como o SUS não tem? Isso é uma falha muito grande que os governos do PT, do PSDB, todos eles, negligenciaram”, afirmou Apolo. Além disso, o médico sanitarista ainda disse que o plano de carreira não somente auxilia a consolidar o SUS no país, mas também pode possibilitar a qualificação de seus profissionais. Por isso, Apolo indica que “nós temos que espalhar a ideia de ajudar o pessoal do SUS a ter um plano de carreira profissional, para que eles possam se dedicar, especializar, aprofundar”. Além da consolidação do sistema público de saúde, da aquisição e qualificação de seus profissionais e da necessidade de investimentos, outros desafios irão surgir no caminho do SUS após a pandemia. Um deles é o fato de que o número de casos de “stress pós-traumático” tende a aumentar consideravelmente, devido à saúde mental abalada das pessoas que ficaram meses em quarentena e até mesmo de quem sobreviveu à Covid-19. Isso, sem dúvidas, vai ser um entrave que o SUS terá de lidar bem, depois que a grande onda de contágio do novo coronavírus passar. Ademais, muitos pacientes que faziam tratamentos de doenças crônicas, ou outros tratamentos de quimio e radioterapia, precisarão retornar aos hospitais e, para o SUS, será um desafio retomar o tratamento desses tantos pacientes de forma eficaz, logo após uma grande crise. Virgínia Dias, do setor de Referência Técnica de Apoio e Diagnóstico, da Secretaria de Saúde da cidade de Contagem (MG), alegou que algumas estratégias estão sendo tomadas pelo sistema público de saúde para “programar o momento pós-pandemia sem gargalos”. Segundo ela, as principais medidas são a permanência do tratamento de pacientes de alto risco, a prorrogação de receitas médicas para pessoas com doenças crônicas até o dia 30 de junho, para que o tratamento possa se manter, e a criação de uma “plataforma de consultório virtual, serviço do TeleSUS, para acompanhamento e continuidade do cuidado de pacientes em condições crônicas”. Mesmo passando por enormes desafios, muitos especialistas e profissionais diretamente ligados ao sistema estão otimistas acerca do futuro do SUS. O médico e pesquisador Francisco Carlos Cardoso, acredita que o reconhecimento social do SUS o fará bem após a pandemia. De acordo com ele, “a importância do sistema
11
Julho de 2020 Jornal Impressão
DOSSIÊ PANDEMIA
público, pela sua cobertura e gratuidade, será muito mais valorizada, prevendo-se pressões sociais para o aumento dos recursos para custeio e investimento”. O supervisor no Ministério da Saúde, José Marcos Thalenberg, também frisou a importância do reconhecimento do trabalho do SUS. Mas destacou que “o quanto essa percepção mobilizará sociedade e classe política para neutralizar a asfixia crescente do SUS, é uma incógnita”. FOTO: RAQUEL PORTUGAL/ FIOCRUZ IMAGENS
Com aumento cada vez mais expressivo de casos, Centros de Saúde públicos e privados precisam se adaptar para garantir o acesso ao tratamento.
SISTEMA PRIVADO DE SAÚDE X VÍRUS SARS-COV-2
Segundo nota técnica, assinada pelos pesquisadores Marcos Junqueira, da UERJ (Universidade Estadual do Rio de Janeiro), e Nilson do Rosário, da ENSP/ Fiocruz (Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca), a rede privada de saúde no Brasil possui cerca de 5 vezes mais leitos de UTI que o SUS. Isso significa, em termos de infraestrutura, que o sistema privado está mais preparado para receber os pacientes com Covid-19, mas não quer dizer que a situação dos hospitais privados é mais tranquila. De acordo com a Federação Brasileira de Hospitais (FBH), representante do setor hospitalar da rede privada, o Brasil possui mais de 4 mil hospitais que não são gerenciados pela rede pública e muitos com “certificados de acreditação e reconhecimento mundial”. Mesmo assim, segundo o órgão, o aumento exponencial da demanda “acaba gerando escassez de insumos e equipamentos no mercado, implicando em práticas abusivas de preços; escassez de mão-de-obra; e nos ca-
12
Julho de 2020 Jornal Impressão
DOSSIÊ PANDEMIA
sos das unidades que são referência para o atendimento à Covid-19, a sobrecarga dos atendimentos”. Além disso, a FBH ainda confirmou que, em alguns estados, há “colapso dos atendimentos”. Isso mostra que ambos os setores, público e privado, enfrentam uma situação delicada e que deve ser encarada de forma inteligente. É óbvio, entretanto, que com mais leitos e investimentos, a rede privada pode combater a crise com mais recursos. Vanessa Santana, de 30 anos, é enfermeira há 8 anos em uma das maiores operadoras de planos de saúde do país, e trabalha em um hospital da rede privada de referência em Belo Horizonte. Segundo ela, o hospital disponibilizou mais leitos para o tratamento de pessoas infectadas pelo novo coronavírus e mantém estes pacientes em andares e alas isolados para evitar a contaminação. Além disso, Vanessa confirmou que o hospital ainda possui material e equipe médica suficiente para atender a todos os pacientes. A enfermeira constatou que o centro de saúde estava preparado para receber os pacientes com SARS-CoV-2 pelo histórico de tratamentos que possui, mas o problema maior é a gravidade da situação e a enorme demanda. “A gente já tratou pacientes com esse foco viral, com outro tipo de vírus. Então, a gente estava preparado para atender esses pacientes, mas não para uma demanda tão grande. Mas está dando para atender e ficar em paz nesta situação”, explicou. Em relação aos cuidados com a saúde mental dos profissionais da saúde, a enfermeira esclareceu que há o acompanhamento psicológico destinado a essas pessoas no hospital onde trabalha. Entretanto, ela destacou o receio que sente em ir ao hospital. “Sinto muito medo [em ir trabalhar]. Acho que todo mundo sente, porque é muito complicado você ir tratar de uma pessoa que está com um vírus que você pode transmitir para toda sua família. Então, a gente fica muito receoso de chegar em casa e abraçar a família, cuidar do filho”. Além disso, Vanessa disse que os pacientes com Covid-19 também recebem cuidados psicológicos e as famílias destas pessoas estão sendo atualizadas sobre o estado dos pacientes por meio de aplicativos de mensagens e por vídeo chamada. No que se refere a pacientes que não estão com sintomas de Covid-19, os hospitais privados, segundo a FBH, seguem atendendo os casos de tratamentos de risco. Os outros pacientes eletivos, contudo, “seguem a normativa de suspensão temporária”. A Federação ainda reiterou que, conforme sua avaliação, “os hospitais [privados] detêm condições e estão preparados para realizar os atendimentos com segurança aos usuários dos planos de saúde, apesar da pandemia da Covid-19”, até mesmo porque, o próprio órgão confirmou a crise econômica que muitos centros de saúde privados enfrentam devido à suspensão dos tratamentos eletivos, já que, de acordo com a FBH, “grande percentual da arrecadação dessas unidades provêm desses atendimentos”. Considerando todas as situações citadas, é notório que sistema privado de saúde não necessita da mesma força e dos mesmos recursos do SUS para reagir à pandemia. Isso não quer dizer, todavia, que a rede privada não passa por uma crise nunca antes enfrentada. A própria Federação Brasileira de Hospitais frisou que a situação é preocupante, ainda mais porque muitos hospitais “estão passando por dificuldades financeiras em decorrência da suspensão das cirurgias e procedimentos eletivos”. A Federação destaca que sem a ajuda, até mesmo do Governo Federal, muitos hospitais de médio e pequeno porte - 70% de toda a rede hospitalar brasileira - irão fechar as portas, o que deixará um número incontável de pessoas sem assistência médica. Por isso, o futuro dos setores de saúde não deve ser considerado uma simples incógnita. Esforços não devem ser medidos para ampliar a capacidade dos hospitais de atender pacientes com e sem o vírus SARS-Cov-2. É claro que o pós-pandemia não será o mesmo cenário de antes do vírus, mas o mínimo que se espera é que as autoridades possam dar mais valor ao setor da saúde para que, no futuro, outros desafios possam ser enfrentados com melhores recursos. AS AFLIÇÕES DOS MÉDICOS QUE COMBATEM O NOVO CORONAVÍRUS
Se o sistema de saúde, como um todo, passa por vários desafios para tratar os pacientes diagnosticados com Covid-19, os médicos, que possuem contato direto com essas pessoas, sabem mais do que ninguém quais as dificuldades deste tratamento. Neste podcast, você ouvirá um bate-papo com o médico Renato Zarattini, Diretor Clínico do Hospital Ames em Eunápolis, Bahia. Ele contou um pouco da realidade dos profissionais de saúde em época de Covid-19.
DAS CRISES SANITÁRIAS ÀS CRISES POLÍTICAS Como o governo brasileiro agiu, ou não, durante as epidemias de influenza, meningite e zika vírus
Por Stéffane Nascimento
Em dezembro de 2019, como em todos os anos, os brasileiros se preparavam para o ano novo. Muitas expectativas para um novo ciclo, o último ano de mais uma década. Depois de vivenciar várias “desventuras” no ano passado, como o rompimento da barragem do Córrego do Feijão, em Brumadinho, Minas Gerais, e a perda de várias referências no jornalismo, como a do Ricardo Boechat, além da crise política e econômica carregada desde 2014, a espera por um 2020 diferente e renovado era grande, não se esperava que o ano fosse tão turbulento. No final do ano passado, foi descoberto em Wuhan, na China, o Sars-CoV-2 (novo coronavírus). O vírus se espalhou pelo mundo e foi identificado pela primeira vez
13
Julho de 2020 Jornal Impressão
DOSSIÊ PANDEMIA
no Brasil no dia 25 de fevereiro, quando um homem de 61 anos, recém-chegado da Itália – época em que o vírus começava a se espalhar nessa região – deu entrada no Hospital Israelita Albert Einstein, em São Paulo, com sintomas da doença. Cerca de duas semanas após ser diagnosticado com a doença, o homem foi curado. Mas não parou por aí, pouco tempo depois, no dia 16 de março, o Brasil registrou o primeiro óbito na capital paulista. De lá pra cá, a população brasileira tem travado uma batalha junto com todo o mundo para enfrentar a pandemia. Diante do avanço de casos no Brasil e após a Organização Mundial da Saúde declarar a pandemia do novo coronavírus, os Ministérios da Saúde, Justiça e Segurança Pública, definiram como obrigatórias as medidas de isolamento social para o enfrentamento à Covid-19. Eventos foram adiados, comércio e escolas foram fechados, e várias empresas adotaram o regime home office. Mas, logo, a crise sanitária no Brasil tomou um novo rumo. DESCONTROLE POLÍTICO EM MEIO À PANDEMIA
O presidente da república, Jair Messias Bolsonaro, começou a divergir das medidas de segurança determinadas pelo Ministério da Saúde. Apareceu, por diversas vezes, sem a máscara de proteção, e promoveu manifestações pró-governo instigando aglomerações. Além disso, em meio à crise sanitária, o presidente demitiu o Ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, no dia 17 de abril, e colocou como substituto Nelson Teich, médico e empresário, que demonstrou seguir as mesmas medidas de proteção de Mandetta, defendendo a importância do isolamento para o combate à pandemia. A permanência de Teich no ministério não foi longa. O ex-ministro pediu exoneração do cargo no dia 15 de maio, após o presidente exigir que ele incentivasse o uso da cloroquina como medicamento eficaz para o tratamento da Covid-19. Como a eficiência do remédio contra o coronavírus não foi comprovada, Teich não quis se arriscar. O cientista político, Malcon Camargo, disse que as divergências do governo com o Ministério Publico “provocam confusão” entre os brasileiros com relação às medidas de proteção, gerando um aumento na proliferação da doença e no número de mortes. “Quando o presidente sinaliza de maneira diversa dos organismos internacionais, ou mesmo de outros poderes, Judiciário e Legislativo, faz com que a crise sanitária se transforme também em uma crise política, e essas duas coisas somadas fazem muito mal ao presidente mas, principalmente, fazem muito mal aos brasileiros”. Malcon explicou que “um dos maiores sinais do desconforto e do descontrole do governo neste momento de pandemia é a alternância de cargos chaves que deveriam ser responsáveis pela condução deste processo.” Ele disse que as trocas dos ministros da saúde e as mudanças nas equipes técnicas que trabalham na linha de frente dessa crise, e são responsáveis por determinar estratégias de combate em cada um dos 5 mil municípios brasileiros, mostram a “descoordenação e o descontrole desse governo”. Até o final de junho, o Brasil já registrava mais de 1 milhão de casos do novo coronavírus, 58.385 óbitos e 733.848 pessoas recuperadas. Mas, essa pandemia não é a primeira crise sanitária que se mistura a uma crise política no Brasil.
14
Julho de 2020 Jornal Impressão
DOSSIÊ PANDEMIA
A PANDEMIA DE 1918
Em 1918, durante o último ano da Primeira Guerra Mundial, o mundo foi atingido pelo vírus influenza, que matou mais de 50 milhões de pessoas, segundo o artigo “1918 Influenza: the Mother of All Pandemics”, escrito em 2006 por Jeffery K. Taubenberger e David M. Morens. Por causa da guerra, muitos países censuraram a doença para não expor a fraqueza dos soldados aos inimigos. A Espanha foi o primeiro país a noticiar a epidemia e, por causa disso, a influenza ficou conhecida como “gripe espanhola”, embora o primeiro caso não tenha sido registrado na região. Não se sabe ao certo a origem exata da doença. Há indícios de que a primeira curva da epidemia tenha sido registrada em março de 1918, no estado do Kanssas, nos Estados Unidos, quando soldados em treinamento foram atingidos por uma gripe forte, dando início a primeira onda da “gripe espanhola”. A GRIPE NO BRASIL
A gripe chegou ao Brasil em setembro de 1918, quando o navio Demerara desembarcou tripulantes infectados em Recife, Salvador e Rio de Janeiro. A chegada da “espanhola” foi inesperada. Mesmo com todas as notícias sobre a doença, enviadas da Europa, as autoridades e a classe média não acreditavam que a gripe chegaria ao Brasil. Acreditavam que, caso chegasse, “seria mais branda, por se tratar de um país tropical”. É o que diz a historiadora Anny Jackeliny Torres. Anny é formada em história pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), possui experiência na área de história das ciências da saúde, e é professora de pós-graduação na Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP). Anny conta que, só após a doença chegar ao Brasil, o governo começou a avaliar quais seriam as medidas de combate. “Teve uma discussão grande se haveria ou não necessidade de fechar fronteiras e de fazer quarentena. Considerava que a gripe era uma doença difícil de conseguir controlar a disseminação”. Assim como agora, o governo também determinou algumas medidas de proteção. “Fecharam todas as atividades que desenvolvem aglomerações. Escolas, cinemas, futebol”. Mas, quando o governo começou a traçar um plano de combate, já era tarde. “Enquanto você está debatendo sobre a doença, ela vai se espalhando”, explica Anny. As autoridades foram negligentes em relação à doença no Brasil. Na cidade de São Paulo, o então presidente de Estado Altino Arantes, negou a existência da doença por um tempo. “Mesmo com a constatação de que a epidemia gripal vinha fazendo suas primeiras vítimas na capital paulista, as autoridades inicialmente ignoraram as evidências deixando de precaver a sociedade”. Tudo isso para manter a imagem da “Metrópole do Café”. É o que diz o artigo “A gripe espanhola de 1918 na cidade De São Paulo: notas sobre o “cotidiano epidêmico” na “Metrópole do Café”, escrito por Leandro Carvalho Damasceno Neto, mestre em história pela Universidade Federal de Goiás. Em Minas Gerais, tudo aconteceu da mesma forma. Os jornais noticiavam que estava tudo bem. Anny conta que, “naquele período, você tem algumas censuras”, isso porque o jornal principal da cidade seguia um cunho político, e não iria “manchar” a imagem do governo local.
15
Julho de 2020 Jornal Impressão
DOSSIÊ PANDEMIA
A professora Polyana Valente revela que “há muitos estudos que evidenciam que houve sim uma censura e que isso afetou diretamente nas ações sanitárias de controle da doença, como também gerou um quadro de desinformação e medo na população. Havia notadamente uma precariedade dos serviços de saúde e assistência”. Polyana é formada em história pelo Centro Universitário Newton Paiva, pós-doutoranda pela Fiocruz/MG, e professora da Universidade Estadual de Minas Gerais (UEMG). A doença já tinha tomado uma proporção devastadora no país em menos de dois meses. E, claro, as pessoas mais atingidas com essa pandemia foram pessoas das classes econômicas mais baixas. Muitos não tinham o que comer e tiveram que contar com a ajuda de caridade. A professora Anny Torres explica que, naquele período, “as pessoas saíam muito para fazer caridade, tinha muitas pessoas que precisavam de auxílio. O ritmo da cidade muda, a pandemia marcou a história de muita gente, a dificuldade de encontrar alimentos, medicamentos para poder tratar”. Anny explicou também que alguns serviços essenciais foram escassos. “Tenho relatos de que a empresa de leite não conseguia realizar as entregas porque os empregados estavam doentes”. As pessoas precisavam sair para trabalhar e “por sobrevivência, mas isso também significava a exposição à doença”. A situação da saúde no país ficou precária e o governo não tinha capacidade de lidar com a nova doença. A professora Polyana disse que, naquela época, “havia um movimento em prol do saneamento do Brasil e a gripe espanhola revelou as fragilidades dos serviços de saúde pública”. Por causa disso, a gripe despertou uma arena de luta entre os diferentes grupos políticos. Os hospitais estavam lotados e muitas pessoas doentes foram enviadas para casa sem assistência médica. “Naquele momento, a saúde era do foro privado, onde você paga para fazer o tratamento ou é da caridade para quem não pode pagar”, contou Anny Torres. Na época, o diretor da saúde pública, Carlos Sidl, admitiu sua incapacidade de combater a doença. O então presidente Weceslau Bras exonerou Carlos do posto e nomeou Theóphilo Almeida Torres que, após assumir o cargo, convidou o médico Carlos Chagas para ajudá-lo na missão de ajustar a crise sanitária. A comunidade médica não sabia muita coisa sobre a doença. Segundo o artigo “A medicina e a influenza espanhola de 1918”, escrito pela professora Anny, “haviam muitas dúvidas sobre a verdadeira natureza daquela moléstia. A variedade dos sintomas fazia alguns suspeitarem de um ataque de dengue, tifo, cólera ou mesmo peste; outros supunham ser uma patologia desconhecida”. “Sei apenas que se diz ser uma gripe ou influenza maligna (...) [mas cuja natureza] está, porém, ainda envolta em dúvidas”, era o que declarava o Dr. Carlos Seidl, a mais importante autoridade da administração sanitária brasileira. Ao final da segunda onda da pandemia da “gripe espanhola”, o Brasil registrou cerca de 300 mil casos, segundo o artigo “Pandemias de influenza e a estrutura sanitária brasileira: breve histórico e caracterização dos cenários”, escrito por Ligia Maria Cantarino da Costa, médica veterinária, e por Edgar Merchan-Hamann, médico. Isso sem contar as pessoas que morreram em casa e não foram computadas nas estatísticas. Entre as vítimas, estava o presidente eleito em 1918, Rodrigues Alves, que nem chegou a assumir o cargo.
16
DOSSIÊ PANDEMIA
Julho de 2020 Jornal Impressão
EPIDEMIA DA CENSURA
Os primeiros casos de meningite no Brasil foram registrados em 1906, porém, a maior epidemia da doença aconteceu na década de 70. “No período da meningite, estávamos no regime da recessão e não tinha liberdade de falar sobre as coisas”, conta a professora Anny Torres. De acordo com o artigo “A epidemia de meningite em Minas Gerais na década de 1970”, escrito por Anny e Rita de Cássia Marques, “o número de casos somou 67.858 entre os anos de 1972 e 1977, com uma média anual de 23.407 notificações somente entre 1973-1974.” Durante a epidemia de meningite, foram identificados dois tipos diferentes da doença: meningococos A e C. Os primeiros casos da doença surgiram em 1972, em várias regiões, até que a epidemia eclodiu em São Paulo, no mês junho daquele ano. Ainda segundo o artigo de Anny e Rita, “São Paulo foi o estado mais atingido pela doença, com mais de 26 mil casos registrados entre 1974-1975, sendo 23.185 só na capital. A doença também apresentou alto índice de incidência na Bahia, Minas Gerais, Rio de Janeiro, Distrito Federal, Goiás e nos três estados da região Sul.” Naquela época, havia uma censura acirrada por causa do regime militar. No artigo, Anny e Rita contam que “as notícias oficiais tinham prioridade sobre qualquer outro conteúdo e, se o governo dizia que estava tudo bem, assim era. Entre as manchetes dos jornais mineiros no período, ganhavam destaque aquelas associadas ao “milagre econômico”. A doença se manifestou no “auge do crescimento econômico” durante a ditadura militar. A professora Polyana Valente explicou que “o Página do jornal O Estado de São Paulo, de surto de meningite era extremamente nega26/07/1974, censurada devido ao grande destaque tivo para a imagem que se pretendia passar ao surto de meningite e à omissão do poder público. de otimismo, progresso e desenvolvimento.” E ainda reforçou sobre “a importância da democracia, ainda que caduca e frágil, para garantir direitos e acessos à população.” Durante os primeiros anos da doença, o governo se manteve omisso diante da epidemia e não informou a população sobre os casos. “A informação facilita. A população começa a tomar mais cuidado, fica mais atenta, se você tem algum tipo dos sintomas, você vai ao médico. Você toma decisões mais rápidas”, conta Anny. Somente em 1974 o governo começou a “admitir” a existência da doença. Em julho daquele ano, o presidente Ernesto Geisel criou a Comissão Nacional de Controle da Meningite, que ficou responsável por traçar estratégias de combate à doença. Em março de 1975, foi elaborado o plano básico de operações para garantir a vacinação de 10 milhões de pessoas em apenas quatro dias. A professora PolyaIMAGEM: ACERVO ESTADÃO
17
Julho de 2020 Jornal Impressão
DOSSIÊ PANDEMIA
na Valente contou que “o Ministério da Saúde contou com a atuação da Fiocruz. No ano de 1975, estabeleceu-se um laboratório para a produção de vacina contra meningite. Tornando-se numa grande referência de produção de vacinas e medicamentos: Bio-manguinhos e Farmanguinhos, que hoje, inclusive, são laboratórios de referência nacional e internacional.” A crise sanitária causada pela meningite só foi controlada a partir de 1977, quando deixou de ser epidemia e se tornou endemia. Mas a demora do governo em agir contra a doença deixou grandes impactos na sociedade brasileira. Além de ter contribuído para a disseminação da doença, várias mortes poderiam ter sido evitadas. Até hoje, inúmeras pessoas sofrem com as sequelas da doença, como problemas neurológicos, cegueira e perda da audição. TRÍPLICE EPIDEMIA
Uma das epidemias mais recentes que o Brasil vivenciou em meio a uma crise política foi a conhecida como Tríplice Epidemia: dengue, zika e a febre chikungunya, que começou em 2015. “Essa tríplice epidemia se dá no contexto de dois eventos mundiais: a Copa do Mundo (2014) e as Olimpíadas (2016)”, pontua a professora Polyana Valente. Segundo o 26º boletim epidemiológico, publicado pelo Ministério da Saúde no dia 26 de agosto de 2015, “em 2014, o número de turistas internacionais atingiu 1.138 milhões, 51 milhões a mais que em 2013.” Por causa dos eventos internacionais ocorridos no Brasil, houve um aumento no trânsito de pessoas e agentes de doenças transmissíveis, como a chikungunya, febres hemorrágicas, e o zika vírus. Naquela época, o zika vírus era uma novidade para a comunidade médica brasileira. Não haviam muitas publicações em português que informassem detalhes sobre o vírus. Outro detalhe importante é que os sintomas da “nova” doença são parecidos com os da dengue, como dor nas juntas, dor de cabeça e vermelhidão no corpo; o que dificultou o diagnóstico dos pacientes. “Penso que, no primeiro momento, o principal desafio foi a novidade da doença e o desconhecimento dos seus ritmos, causadores, efeitos, etc. Depois, a reorganização dos serviços de saúde, transporte, ou seja, os serviços básicos como um todo. Mas penso que a questão maior são os problemas de classe, raça e gênero”, reflete a professora Polyana. Após um tempo, foi descoberto que o zika vírus, em longo prazo, pode desenvolver algumas doenças neurológicas em pessoas curadas, como a síndrome de Guillain-barré. Além disso, entre agosto e setembro de 2015, houve um aumento do número de recém-nascidos com má formação no estado de Pernambuco e, logo após, no mês de novembro, foi identificado o genoma do zika vírus nas amostras de duas gestantes das quais os fetos foram diagnosticados com microcefalia por meio do ultrassom. “O Brasil vai declarar emergência sanitária em novembro de 2015 e a OMS declara como emergência internacional em 01 de fevereiro de 2016”, relembra a professora Polyana Valente. “Observo que, desde então, apesar da negligência do governo, houve uma corrida desenfreada de pesquisadores e instituições de pesquisa para isolar o vírus, compreendê-lo e propor respostas à população.”
18
Julho de 2020 Jornal Impressão
DOSSIÊ PANDEMIA IMAGEM: ACERVO O GLOBO
Capa do O GLOBO de 12/03/2016 dá destaque para crise política e traz informações sobre o zika vírus apenas no rodapé
EPIDEMIA ÀS MARGENS DO IMPEACHMENT
O período da Tríplice Epidemia foi “marcado por uma grave crise política, que alguns chamam de processo de impeachment da então presidenta Dilma Rousseff, que eu acho mais correto chamar de golpe”, opina Polyana. A ex-presidente foi deposta do cargo no dia 31 de agosto de 2016, acusada de infringir a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) e a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF). Dilma Rouseff (PT), e o vice-presidente Michel Temer (MDB), foram reeleitos nas eleições de 2014, com 51,64% dos votos válidos. Mas dar continuidade ao governo em 2015 não seria uma tarefa fácil, já que o país passava por uma crise político-econômica. De acordo com o IBGE, houve uma queda de 0,2% no Produto Interno Bruto (PIB) em 2015 em relação a 2014. O PIB per capita caiu 4,3% em relação a 2014, e ficou em R$ 29.324. “Foi o maior recuo nesse indicador na série com início em 1996, sendo que os mais recentes ocorreram em 2014 (-0,4%), 2009 (-1,2%) e 2003 (-0,2%). A indústria e os serviços caíram, respectivamente, 5,8% e 2,7%, enquanto a agropecuária cresceu 3,3%. Foi a primeira queda dos serviços desde 1996, quando começou a série histórica.”
19
Julho de 2020 Jornal Impressão
DOSSIÊ PANDEMIA
Além disso, a presidenta enfrentou uma crise no setor político brasileiro. A Operação Lava Jato, iniciada em março de 2014, prendeu mais de cem pessoas, dentre elas vários políticos envolvidos em corrupção e lavagem de dinheiro. Um deles foi José Dirceu, ex-ministro-chefe da Casa Civil e ex- deputado do estado de São Paulo, e até mesmo o ex-presidente Lula. Por causa dessas crises, muitos brasileiros ficaram insatisfeitos com o governo e foram às ruas no dia 15 de março para protestar e pedir o impeachment ou a renúncia da ex-presidente Dilma. Em meio a este contexto, a epidemia não era prioridade da agenda política. “As notícias sobre a doença desaparecem dos jornais, mas por outro lado, a epidemia mobiliza outros agentes e personagens”, conta a professora Polyana. Mesmo assim, vários coletivos, núcleos de estudos e redes de pesquisas se unem para compreender o zika vírus. Polyana destacou que foi muito importante a atuação das associações civis de mães e familiares de crianças com a síndrome congênita da doença. “Vão lutar por direitos, construir, junto com os pesquisadores, respostas à doença e propor agendas de políticas públicas”, detalha. CRISES SANITÁRIAS E A DEMOCRACIA
As crises sanitárias não são apenas uma luta contra “seres” invisíveis a olho nu que afetam a saúde da população. “Elas evidenciam a importância do Estado e das políticas públicas para produzir respostas, bem como as tensões sociais. Realçam, ainda, a ação importante dos meios de comunicação, dos movimentos sociais, mídias e etc”, é o que diz a professora Polyana Valente. As epidemias estimulam o posicionamento das autoridades diante das deficiências das políticas públicas e às necessidades da população. Segundo Polyana, as epidemias são como uma “lente de aumento” sobre os medos, prejuízos, normas, estereótipos, questões políticas, sociais, de gênero e raça, que englobam uma sociedade como a brasileira. A professora acredita que os processos epidêmicos são históricos conjunturais que mobilizam diferentes setores da sociedade e evidenciam as desigualdades sociais, bem como as relações de poder. “Observamos que, desde os anos 1980, com a redemocratização do país, florescem movimentos sociais e núcleos de pesquisas que alargam o diálogo entre a sociedade, o poder público e a produção científica, que hoje é quebrada, interrompida por um governo conservador, quiçá autoritário, que reduz o diálogo, esconde dados, diminui os efeitos perversos de uma epidemia”, encerra.
PANDEMIA REVELA FRAQUEZAS DO ENSINO SUPERIOR PÚBLICO Mesmo com ações diversas em busca de inclusão, universidades brasileiras enfrentam o desafio da desigualdade no acesso à internet
Por Bárbara Veloso, Beatriz Fernandes e Maria Eduarda Coelho
Uma das medidas tomadas pelo Ministério da Educação (MEC), em 18 de março, frente à pandemia do novo coronavírus, foi a autorização do ensino a distância para universidades públicas e particulares. A medida tinha o prazo de 30 dias, entretanto, frente à situação permanente de isolamento, essa medida foi prolongada para mais um mês, começando a ser contada no dia 15 de maio. No dia 17 de junho, uma nova portaria do MEC autorizou as aulas online até o dia 31 de dezembro de 2020. Como alternativa, o ministério permitiu que as instituições de ensino optassem pela suspensão das atividades acadêmicas pelo mesmo prazo. Com isso, as instituições públicas, em sua maioria, interromperam suas atividades durante o primeiro mês. Apenas 6, das 69 universidades federais, aderiram à aulas a distância, sendo a Universidade Federal do ABC (UFABC), Universidade Federal do Ceará (UFC), Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS), Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) e a
20
Julho de 2020 Jornal Impressão
DOSSIÊ PANDEMIA
Universidade Federal de Itajubá (UNIFEI). Marcílio Lana, integrante do comitê estruturado na Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG para lidar com os impactos da pandemia dentro da universidade e professor do curso de Jornalismo do UniBH, nos explicou sobre a realidade do ensino a distância pensado para as universidades públicas. Segundo ele, o baixo número de adesão ao ensino a distância pelas instituições públicas se deve, entre outros motivos, por uma questão mercadológica que prepara muito mais os professores do ensino privado para esse modelo do que os professores do ensino público. “Os professores do ensino público superior estão muito menos preparados do que nós do ensino privado”, afirma. FOTO: BEATRIZ FERNANDES
Instituições de Ensino Superior aderem ao ensino remoto durante isolamento social.
AS UNIVERSIDADES PÚBLICAS E SEU PAPEL DEMOCRÁTICO
O papel social das universidades públicas mudou muito. Em seu início, a instituição era estruturada para formar uma “elite pensante” da sociedade, sendo “intencional” em sua exclusão pelo nivelamento econômico, por exemplo. Graças às políticas de inclusão, hoje, as universidades públicas não podem ter como opção o caráter excludente. Como resultado, segundo último levantamento feito pela Andifes (Associação de Reitores das Universidades Federais), 70,2% dos alunos da rede pública têm a renda familiar mensal de até 1,5 salário mínimo. Elas têm como obrigação e responsabilidade social, serem inclusivas. É preciso pensar sobre isso, quando se discute a respeito da implementação do ensino a distância em um contexto onde as desigualdades sociais são acentuadas em razão de diversos fatores, como a diferença de acesso à internet. Como o professor Marcílio explica, “adotar o ensino a distância nas instituições públicas vai ser mais desafiador, porque ele não pode deixar de ser inclusivo”. A editora pública da Associação Jeduca, Marta Avancini, concorda dizendo que “estamos criando uma distância muito grande entre alguns poucos que têm conseguido manter uma rotina de aula e atividades, o que contempla as escolas privadas, e uma grande parcela que não estão conseguindo manter essa rotina. Estamos em um cenário que está excluindo muita gente”. Isso se comprova ao analisarmos dados levantados pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), vinculado ao Ministério da Educação (MEC), que mostram que um a cada três estudantes que tentaram ingressar no ensino superior nos últimos 5 anos, por meio do ENEM, não tinham acesso à internet. A estudante do curso de Estatística pela UFMG, Gisele Almeida, de 23 anos, se solidariza pelos seus colegas, expressando compreensão pela decisão da instituição em não adotar o ensino remoto. “Infelizmente, a gente está enfrentando esse período de tensão. A UFMG decidiu parar, porque existem alunos que têm acesso à internet pela faculdade, só na faculdade, então eles estariam sendo prejudicados”. Ela contou à redação sobre seu processo de ingressão na instituição pública, por meio do ENEM. Mesmo sendo considerada uma aluna destaque desde o ensino fundamental, disse que o ensino que recebeu em toda a sua vida em escolas públicas não a fizeram se sentir preparada para o exame. Por isso, optou por se dedicar ao cursinho pré-vestibular por um ano, antes de fazer a prova. Ao entrar na universidade, confessou ter sofrido um choque de realidade. Isso porque começou a ter dificuldades básicas com matérias que eram justamente as que ela tinha melhor desempenho no ensino fundamental. Ela contou que, nos primeiros semestres, a sua base escolar destoava muito dos colegas de turma, a ponto de passar as primeiras férias recuperando o prejuízo.
21
Julho de 2020 Jornal Impressão
DOSSIÊ PANDEMIA
ENEM
O Exame Nacional do Ensino Médio foi inicialmente desenvolvido, em 1998, apenas para avaliar a qualidade do ensino básico público e privado, sendo adotado como forma de ingresso apenas em duas universidades do país, a PUC-RJ e a Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP). Entre os principais marcos da história do contexto do ENEM, está a criação do Programa Universidade Para Todos (ProUni), em 2004, que possibilitou que as notas do exame nacional fossem usadas para concessão de bolsas integrais ou parciais aos estudantes. Como resultado, em 2006, candidatos de renda familiar de até dois salários mínimos passaram a ser 53,7% do público que fizeram a prova naquele ano. Ao longo dos 22 anos de sua aplicação, novas conquistas foram responsáveis por desenvolver o exame nacional, a fim de assumir um caráter ainda mais democrático, chegando a ser, atualmente, a principal forma de ingresso nas universidades. Entretanto, percebe-se que, desde 2018, a adesão pela prova tem diminuído. Pela primeira vez desde 2012, o número de inscrições ficaram na casa dos 6 milhões, sendo que antes tinha a média de 8 milhões de inscritos (entre 2012 e 2017). A contribuir com isso, em 2019, o vazamento das provas instaurou um sentimento de insegurança nos vestibulandos. Percebemos a crise também atualmente. No dia 4 de junho de 2020, o próprio Ministério da Educação enviou ofício à pasta da Economia, alertando sobre a probabilidade de ser necessário que a prova seja suspensa em 2021 por falta de recursos, em razão dos cortes orçamentários ao Ministério. Mesmo assim, duas décadas de história precisam ser preservadas para que não ocorra um regresso em seu papel na democracia. INFOGRÁFICO: MATHEUS ROCHA
22
Julho de 2020 Jornal Impressão
DOSSIÊ PANDEMIA
IMPACTOS DA PANDEMIA NO ENEM
A medida inicialmente tomada para o exame nacional, frente a pandemia do novo coronavírus, foi o adiamento da prova online, dos dias 11 e 18 de outubro, para os dias 22 e 29 de novembro. Já as datas para a prova impressa e presencial permaneciam as mesmas, sendo 1 e 8 de novembro de 2020. O caráter competitivo que o exame pode adotar foi, de certa forma, apoiado pela fala do então ministro da educação, Abraham Weintraub, que declarou em suas redes sociais: “Está difícil para todo mundo. É uma competição. Vamos selecionar as pessoas mais preparadas para serem os médicos, os administradores, os contadores”. Para Marcílio Lana, “a realização do ENEM nesse cenário acabaria favorecendo somente aqueles que vão ter um acesso diferenciado, no sentido de ter melhor acesso às condições de internet, por exemplo. Ele pode ser um mecanismo excludente muito forte, se realizado nesse cenário atual”. Isso é perceptível se levarmos em conta que, durante esse período de isolamento social, apenas as escolas particulares adotaram o ensino a distância no primeiro momento, acentuando ainda mais a relação desigual com o ensino público, que contempla 86% do ensino médio nacional. Além disso, dados do IBGE afirmam que menos de 40% dos estudantes do ensino médio da rede pública têm internet com banda larga em casa, enquanto na rede privada, 83% têm acesso. Entretanto, após toda a repercussão de campanhas como a #AdiaEnem, o então ministro da educação mudou o discurso em declaração feita no dia 20 de maio: “Diante dos recentes acontecimentos no Congresso e conversando com líderes do centro, sugiro que o ENEM seja adiado de 30 a 60 dias. Peço que escutem os mais de 4 milhões de estudantes já inscritos para a escolha da nova data de aplicação do exame”, declarou Weintraub em rede social. O adiamento da prova física foi aprovado pelo Senado no dia 19 de março, ainda sem novas datas, passando para a votação da Câmara logo no dia seguinte, sendo aprovado. Após a decisão pelo adiamento pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) e do Ministério da Educação (MEC), o Inep esclareceu como será a decisão da nova data por meio de nota oficial: “Atento às demandas da sociedade e às manifestações do Poder Legislativo em função do impacto da pandemia do coronavírus no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) 2020, o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) e o Ministério da Educação (MEC) decidiram pelo adiamento da aplicação dos exames nas versões impressa e digital. As datas serão adiadas de 30 a 60 dias em relação ao que foi previsto nos editais. Para tanto, o Inep promoverá uma enquete direcionada aos inscritos do Enem 2020, a ser realizada em junho, por meio da Página do Participante. As inscrições para o exame seguem abertas até as 23h59 desta sexta-feira, 22 de maio.” Entretanto, no dia 22 de Maio, as inscrições foram prorrogadas até o dia 27 do mesmo mês. No total, foram feitas 6.121.363 inscrições, sendo 6.020.263 para a versão impressa e 101.100 para a versão digital. O número de inscrições deste ano foi o menor desde 2010.
23
Julho de 2020 Jornal Impressão
DOSSIÊ PANDEMIA
VERSÃO DIGITAL COM OU SEM CORONAVÍRUS
Vale ressaltar que a medida de implementação da versão digital é um plano para além da pandemia. A projeção é que até 2026 o exame seja realizado apenas de forma virtual. O que é preocupante, se analisarmos a mesma implementação em países mais desenvolvidos que o Brasil. A Dinamarca, por exemplo, foi o primeiro país a adotar a aplicação online de exame similar ao ENEM. O sucesso se deu porque mais de 90% da população dinamarquesa tem acesso à internet de qualidade, possibilitando o alfabetismo digital de forma massiva. Já no Brasil, essa porcentagem cai para 57,8%. Outro país que está a frente do Brasil e ainda sim não obteve 100% de êxito na implementação foi o Estados Unidos. Mesmo tendo um desenvolvimento econômico muito maior, alguns estados americanos sofreram com a mudança em razão da falta de estrutura. A cidade de Oklahoma, por exemplo, optou pelo modelo tradicional por não ter equipamentos suficientes e os prédios, muito antigos, estarem mais propensos a quedas de energia e instabilidade na rede. Outras cidades norte-americanas também enfrentaram problemas técnicos na computação de notas. A pandemia tem afetado todo o sistema de educação nacional. Em relação ao ensino superior, as polêmicas e impasses começam desde a primeira e principal forma de ingresso, como vimos, o ENEM. Dentre as demais áreas e setores, certamente, a educação precisará de atenção e medidas cautelosas e responsáveis por parte do Ministério para sua recuperação após esse período atual de incertezas.
DA SALA DE AULA PARA A SALA DE CASA Os desafios dos educadores em meio às incertezas e adaptações na pandemia Por Beatriz Fernandes, Keylla Gracielle e Mariana Reis
É fato que a pandemia pegou o mundo todo de surpresa. Em poucos dias, todos tivemos, em algum grau, mudanças no cotidiano que impactaram nosso planejamento para além do momento presente. Professores e alunos que o digam: seja em um cenário de ensino remoto ou de aulas interrompidas, surgiram significativas mudanças na dinâmica educacional e na programação traçada para o ano letivo de 2020. Para os alunos, a chegada do mês de dezembro significa uma pausa, um período de stand by para recuperar o fôlego até fevereiro do ano seguinte (quando geralmente se inicia o novo calendário escolar). Se engana quem pensa que os
24
Julho de 2020 Jornal Impressão
DOSSIÊ PANDEMIA
professores também gozam de todo esse intervalo como tempo livre. Apesar de existirem, de fato, dois períodos de férias no ano, não se deve ignorar que parte desse tempo é dedicado à preparação de aulas, atividades avaliativas, entre outras tarefas exigidas pela função de educador. Muito se tem discutido sobre a adaptação escolar no período de quarentena sob a perspectiva dos alunos. Sem dúvida, essa é uma questão relevante para se debater no momento, pois mesmo que tudo se restabeleça, será preciso enfrentar a consequência de inúmeros desdobramentos pedagógicos. Mas, e os professores? Há o mesmo destaque para acolher os docentes e suas demandas? COMO OS EDUCADORES TÊM SE SENTIDO
A rotina dos educadores mudou bastante devido ao novo coronavírus. A pressão em se adaptar com as plataformas virtuais, a preparação de conteúdos e formatos que estimulem os alunos e o tempo para esclarecer dúvidas dos discentes têm sido um grande desafio. A mudança da sala de aula para o ambiente virtual afetou tanto os alunos quanto aos professores. Em poucos dias de isolamento, diversas escolas já haviam adotado as plataformas virtuais como meio para a continuação das aulas. A rede de ensino privada foi uma das primeiras a realizar essa mudança, pois precisavam do recurso dos alunos para sustentarem a escola e pagar o salário dos professores. O instituto Península desenvolveu uma pesquisa que tem, como objetivo, analisar como os professores têm se sentido ao longo do período de isolamento social. Para isso, a pesquisa conta com 4 estágios: até 2 semanas de isolamento, entre 2 semanas e 2 meses, entre 3 e 4 meses e após 4 meses e retorno à normalidade, dependendo das projeções para o período de quarentena. Na primeira etapa da pesquisa, foram entrevistados mais de 2000 professores, sendo que 32% atuam no ensino fundamental e 75% na esfera pública (40% municipal, 32% estadual e 3% federal). Dentre os dados levantados, constatou-se que, para 66% dos profissionais, seu principal papel durante essa crise é se manter em casa cuidando de si e dos seus familiares, além de disseminar informações seguras para os mais próximos. Atualmente, 3 em cada 4 professores acreditam que o papel do professor é interagir remotamente com os alunos. No início da paralisação, essa relação era de 2 para cada 5 professores. Entretanto, na segunda etapa, 84% dos professores que participaram da pesquisa declararam que ainda não se sentiam preparados para o ensino remoto. Essa insegurança, entre tantas outras a respeito desse momento, pode afetar a saúde emocional dos profissionais. INFOGRÁFICO: THAYNA VALADARES
25
Julho de 2020 Jornal Impressão
DOSSIÊ PANDEMIA
A mestre em história e editora pública da Associação Jeduca, Marta Avancini, tem ouvido muitos professores dos diferentes níveis de ensino. Ela conta que tem percebido desde dificuldades dos profissionais com adaptação às tecnologias, até sobre como trabalhar metodologicamente com os estudantes. Marta afirma que quase 90% dos professores com os quais tem conversado estão tendo dificuldades de se adaptarem ao ensino remoto. Isso mostra que, para além de estereótipos de idade e esferas pública e privada, o momento tem sido desafiador para praticamente todos, pelo fato do ensino autodidata não ser uma normalidade difundida em nossa cultura. “A questão não é apenas saber usar a tecnologia, mas é ter autonomia diante de uma ferramenta. É exigir que as pessoas assumam uma postura de autodidatismo que não é normal de nossa cultura”, explicou Marta. Ela também contou que, na educação infantil, essas dificuldades acabam se acentuando. Isso porque, do ponto de vista legislativo, o ensino a distância não é uma opção. Por isso, a União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime) norteia, em nota pública, que qualquer medida educacional para o ensino infantil seja apenas no âmbito do suporte e colaboração entre professores e pais e não em uma perspectiva de aula. A nota orienta que “sejam produzidos e/ ou divulgados campanhas televisivas e materiais orientadores às famílias para a realização de atividades interacionais e lúdicas na perspectiva do desenvolvimento e fortalecimento das dimensões afetiva e socioemocional.” A professora do segundo período do Colégio Chromos, Josiane Jardim, de 38 anos, em conversa com a redação, expôs preocupação sobre o momento de retorno à normalidade. Definindo o momento com a palavra “paciência”, contou que a escola tem tentado administrar esse período por meio de plataforma virtual, disponibilizando vídeos 2 vezes por semana. Para ela, “esse tempo de pandemia tem sido de ressignificação, desafios, se reinventar, administrar a saúde mental e, acima de tudo, perseverar. Precisaremos readaptar em todo o processo, aprender a conviver com uma nova rotina escolar, ser mediadores do ensino sem um nível de exigência devido a uma mudança que foi feita repentinamente, na verdade, a palavra-chave seria paciência.” Entretanto, esse sentimento de acolhimento e compreensão por parte da instituição, relatado por Josiane, não é unanimidade por parte de professores de outros níveis de ensino. Em desabafo feito na plataforma de compartilhamento de textos Medium, a Tamyris Monteiro, professora de história dos ensinos fundamental e médio da rede privada (preferiu não divulgar o nome da instituição), discorreu sobre o acúmulo de funções impostos pela nova realidade fora de sala aula. “Como professora da rede particular, quero falar sobre alguns desafios diários nessa quarentena. Estamos trabalhando muito mais do que antes, afirmo com segurança: precisamos preparar material didático em um volume muito maior. Se antes poderíamos nos apoiar ocasionalmente nos livros e apostilas durante as aulas, agora eles são a principal ferramenta de contato - o que inverte a lógica de ensino-aprendizagem e compromete os resultados; ficamos disponíveis praticamente 24h por dia, recebendo e-mails, mensagens, ligações, e a todo momento estamos alertas - o que agrava nossa condição psicológica já abalada pela pandemia”. Procurada pelo Jornal Impressão, Tamyris pondera que o uso das tecnologias tem
26
Julho de 2020 Jornal Impressão
DOSSIÊ PANDEMIA
suas vantagens, mas deixa claro que não concorda com a condução improvisada do processo. “Da forma como está sendo feito, tem muito improviso, e eu não gosto disso. É claro que tem nos proporcionado aprender a utilizar novas ferramentas para o ensino, até mesmo obrigando a uma reciclagem de muitos professores, que nem conheciam essas ferramentas. Isso é bom?”. Ela mesma responde: “Sim, claro. Mas estamos fazendo isso aos atropelos com pouco ou nenhum suporte”. Diferente da modalidade EAD, o ensino remoto no contexto da pandemia foi uma imposição abrupta que afetou a dinâmica das aulas planejadas pelos professores. “A tentativa de implementar aulas a distância para dar conta do mesmo planejamento feito no começo do ano incorre em um erro pedagógico básico: planejamos as aulas para uma realidade e estamos aplicando em outra. Se tivéssemos tido tempo para planejar essas aulas remotas, sabendo que elas durariam um tempo específico e quais conteúdos teríamos que abordar nesse período, seria muito mais produtivo”, finaliza Tamyris. DIFICULDADES TÉCNICAS
Para o professor de ensino religioso da rede pública Rangel Marinho, que leciona na Escola Estadual Professora Benvinda de Carvalho, no bairro Jardim Montanhês, em Belo Horizonte, a tutoria online que vem sendo exigida para os professores tem um agravante, os desafios de custear a internet e sustentar o ensino remoto com os salários atrasados. “Em relação à tecnologia, eu não tenho muita dificuldade. Mas existem dificuldades técnicas, pelo atraso no salário do servidor público. A educação sempre fica por último nas escalas de pagamento. A minha internet provavelmente vai ser cortada. Tem muito professor tendo que comprar celular e computador para poder utilizar os aplicativos e ferramentas exigidos.” Em Minas Gerais, a alternativa para o andamento das aulas do ensino público foi dada por meio de três ferramentas. A primeira, seriam as apostilas mensais com orientações de estudos e atividades para serem feitas pelos alunos em casa, nomeadas como PET (Plano de Estudo Tutorado), que devem ser baixadas pelo site da Secretaria de Estado de Educação - SEE. A segunda ferramenta é o programa “Se liga na Educação”, cujas aulas de diferentes disciplinas são transmitidas diariamente para alunos do fundamental ao ensino médio. As aulas ao vivo são exibidas pelo canal Rede Minas, de segunda à sexta, de 07h30 às 12h30, e depois são disponibilizadas no aplicativo Conexão Escola. O app também conta com um chat para estabelecer a comunicação entre alunos e professores, permitindo o esclarecimento de dúvidas. Assim como Tamyris, o professor Rangel relatou que o home office na realidade do professor é desgastante. Após o programa Estude em Casa, da SEE, ser instituído, ele tem recebido diversas mensagens de pais e alunos em horários que vão muito além do expediente. “O trabalho em casa não estipula horários, então a gente trabalha muito mais, se esforça muito mais, produz muito mais material do que o normal e não recebe a mais por isso. Não existe horário. Parece uma bobagem, mas é uma violação dos nossos direitos trabalhistas básicos. Recebo mensagens onze e meia da noite”, disse.
27
Julho de 2020 Jornal Impressão
DOSSIÊ PANDEMIA
Ele também fez ressalvas sobre a metodologia adotada pela SEE e comenta sobre a falta de êxito de algumas funcionalidades. “Ao meu ver, o problema foi o formato escolhido (das teleaulas, das apostilas em formato pdf, do aplicativo). A única coisa que funciona do programa todo é o site, que é bem organizadinho e intuitivo, você consegue baixar todos os documentos. Vários municípios não recebem sinal da emissora Rede Minas. Boa parte dos professores não conseguem entrar no aplicativo. O principal objetivo do aplicativo era ter o chat, que não funciona ainda. Lançaram um aplicativo incompleto, por isso se fez a necessidade de criar grupos de WhatsApp.” Além disso, o professor mostrou preocupação com os alunos que, orientados a imprimir os arquivos de 80 a 150 páginas, enfrentam dificuldades financeiras que inviabilizam o acompanhamento das aulas. Em acesso ao site Estude em Casa, a instrução do guia prático para estudantes, pais e responsáveis orienta que “se você não possui acesso à internet, entre em contato com a equipe de sua escola para saber a melhor forma de receber o material”. De acordo com o professor Rangel, essa opção não é tão simples assim, afinal, estariam quebrando o isolamento social e também esbarrariam na falta de estrutura da escola, em termos financeiros, para isso. “Às vezes rola uma vaquinha entre os professores para comprar folhas para imprimir as provas. Como vamos fornecer material a todos os alunos? Na minha escola temos 5 turmas de ensino médio, como vamos fornecer um material de 150 páginas se todos os alunos resolverem ir lá?” Para ele, uma alternativa mais eficiente neste processo seria substituir o ao vivo pela exibição de aulas gravadas. Segundo o educador, isso também ajudaria os professores na adaptação às aulas online. “Os professores se sentiriam mais à vontade, no ao vivo eles ficam extremamente nervosos e gaguejando. No momento em que os professores tiram dúvidas dos alunos, você vê claramente que até os professores que ficaram mais nervosos conseguem dominar essa parte com muito mais facilidade, porque é mais próximo da realidade de se relacionar na sala de aula”. O atraso dos salários ou até mesmo a redução, também têm sido bastante discutidos nos últimos dias pelos educadores da rede de ensino privada. Os pais pedem pela redução da mensalidade devido ao impacto do coronavírus na economia, e isso preocupa os educadores, pois com o atraso ou a redução dos salários, a vida pessoal também é afetada. Além disso, a professora do ensino fundamental da rede privada, Kênia Rosa, de 42 anos, comentou sobre outro aspecto de dificuldade: a compreensão dos pais. “A falta de cooperação das famílias não só com os professores, mas com o novo método, também é difícil. Alguns pais não entendem que, da mesma forma que os alunos estão aprendendo a lidar com essas novas ferramentas, nós professores também estamos”. OS DOCENTES DO SUPERIOR
Os professores do ensino superior também enfrentam desafios frente às adaptações necessárias para esse período. Como professor do Centro Universitário de Belo Horizonte - UniBH, e pesquisador na Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG, Marcílio Lana, conta que percebe uma diferença de preparo entre os professores das duas esferas. Ele acredita que isso se deve ao posicionamento mercadológico presente nas faculdades privadas que não existe nas instituições públicas: independente do cenário atual de pandemia e adaptação ao ensino remoto em razão do isolamento, o crescimento da oferta pelo ensino a distância por parte das universidades privadas tem aumentado, chegando a ultrapassar o número de vagas do ensino presencial em 2018. FOTO: BEATRIZ FERNANDES
Professores deixam as salas de aula para lecionarem nas salas virtuais durante isolamento social.
28
Julho de 2020 Jornal Impressão
DOSSIÊ PANDEMIA
“Tem um lado positivo nas instituições privadas que, de certa maneira, prepararam a gente para uma mudança que o mundo exige, uma mudança do lugar do professor dentro de sala de aula (essa sala de aula pode ser presencial e virtual) e também para lidar de uma maneira mais autônoma com as diversas tecnologias. Se compararmos as universidades públicas com privadas, percebemos que as públicas estão muito menos preparadas para lidar com o ensino a distância”, comenta Marcílio. Mesmo assim, o professor expõe que essa preparação não o isenta das incertezas a respeito do período e das adaptações no ensino. “Não quer dizer que eu esteja fazendo uma defesa ao ensino a distância. Pessoalmente, ainda não sei te dizer, é a primeira experiência efetiva que eu estou tendo. Saber se ela foi legal para os alunos, ou para mim, ainda não dá para dizer.” Em razão da adoção majoritária pela paralisação por parte das universidades públicas, Álida Angélica, professora de geografia e educação do campo da UFMG, nos explicou que “o trabalho de um professor universitário em uma instituição de ensino superior pública está organizado em torno do chamado tripé, formado por ensino, pesquisa e extensão e, também, pela administração”, sendo todas as atividades feitas de forma remota. Como os demais, salienta as dificuldades técnicas, relacionais e emocionais durante esse período de incertezas. Os professores, em um contexto de normalidade, são vistos como solucionadores, como aqueles que trazem luz e respostas para diversas perguntas que nós, alunos, temos. Seja dentro ou fora da sala de aula, a vida de todos é marcada por algum professor. Seja pela professora da creche, que nos ensinou o abecedário, ou pela professora da nossa disciplina preferida no ensino fundamental, que nos cativou com sua paixão pelo conteúdo lecionado, a ponto de nos inspirar, anos depois, na escolha da nossa profissão. Ou, até mesmo, pelo professor do ensino médio, que nos guiou durante esse período de tantas possibilidades e incertezas. E, por fim, nosso professor acadêmico, que confirma dentro de nós o começo da jornada que os demais mestres que passaram por nossa vida nos ajudaram a trilhar. Todos que tiveram o privilégio de passar pela escola devem gratidão a esses profissionais tão necessários para a sociedade. Por isso, o atual cenário pede que nos atentemos a eles, por estarem sendo diretamente afetados, profissional e emocionalmente.
29
Julho de 2020 Jornal Impressão
DOSSIÊ PANDEMIA
ECONOMIA NACIONAL FICA AINDA MAIS ABALADA COM A PANDEMIA Auxílio emergencial distribui cerca de R$ 120 bilhões aos mais vulneráveis, mas não dá perspectivas positivas para trabalhador brasileiro
Por Thayane Domingos
Anos antes da Covid-19 chegar ao Brasil, a economia nacional já apresentava instabilidade. Ainda em 2011, no governo de Dilma Rousseff, foi adotada uma política rigorosa que elevou a taxa de juros para 12%. O contexto internacional do mesmo ano também afetou o país, com destaque para a surpreendente queda no crescimento da economia chinesa, causada pela alta inflação e pela redução da demanda de importações pela Europa e Estados Unidos. No mesmo ano, o governo brasileiro tentou reduzir outra vez a taxa básica de juros, cortou impostos, mas ampliou o gasto público. Ao final do primeiro governo de Dilma, em 2014, o crescimento da dívida pública, que girava em torno de 57,2% do Produto Interno Bruto - PIB, saltou para 66,2% em 2015. A taxa de juros já estava a 14% e isso prejudicou o pagamento da dívida. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE, o PIB nacional tinha subido, entre 2011 e o primeiro trimestre de 2019, 3,2%. Contudo, o ano passado ainda terminou com apenas 1,1% de crescimento. Para o ano de 2020, a estimativa era o dobro de crescimento, cerca de 2,3%. Apesar da lentidão, as expectativas eram boas. Porém, a chegada do novo coronavírus, em março deste ano, abalou as estruturas. A retração da economia brasileira no ano de 2020 pode marcar o pior desempenho da história. As projeções para o PIB brasileiro, feitas pelo Banco Mundial, apagam o crescimento de 2,3% almejado anteriormente e chegam a uma queda de 5%. Já para o FMI, Fundo Monetário Internacional, a economia brasileira deve retrair cerca de 5,3%. Falando em juros, PIB e contexto internacional, a realidade parece distante da população. Mas, isso se torna mais claro nas consequências relacionadas ao mercado de trabalho.
30
Julho de 2020 Jornal Impressão
DOSSIÊ PANDEMIA FOTO: THAYANE DOMINGOS
Auxílio emergencial é a esperança de centenas de milhares de desempregados no Brasil.
O DESAFIO DO DESEMPREGO
No ano de 2019, a taxa de desemprego estava em 11,9%, segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios - Contínua (Pnad-C). No mesmo ano, os trabalhadores autônomos cresceram, em média, 4,1%, chegando a 24,2 milhões de pessoas. O número de empregados sem carteira assinada subiu 4% na média anual, o que significa mais de 446 mil pessoas nessa situação em 2019. A estimativa de crescimento de postos formais de trabalho, no ano de 2020, era de 1,1%. Mas, infelizmente, essa estimativa já não condiz com a realidade dos impactos causados pela pandemia do novo coronavírus. Com as medidas de isolamento para frear a propagação da doença, houve a suspensão gradual de vários serviços, como escolas, faculdades, shoppings, parques, eventos. Com pouca circulação nas ruas, muitas empresas tiveram que fazer cortes financeiros e, com isso, demitir funcionários. Os chamados trabalhadores informais também perderam sua renda. Só no primeiro trimestre desse ano, 1,2 milhão de pessoas ficaram sem trabalho. Desses, apenas 400 mil tinham carteira assinada e 800 mil eram informais. Entre os informais, está o motorista de aplicativo Jonathas Cesar Netto. “Estava otimista, fazia muitas corridas durante o dia, antes da chegada do vírus no país. Muitos
31
Julho de 2020 Jornal Impressão
DOSSIÊ PANDEMIA
colegas pararam de trabalhar, eu não posso parar, pois é a minha única renda”, conta o motorista autônomo. Jonathas afirma que as chamadas pelo serviço diminuíram e seus planos financeiros foram afetados. “Tive que mudar a minha meta, rever as dívidas e pensar em não fazer mais dívidas. Fiz algumas mudanças, como o uso de máscaras, álcool em gel, para continuar a trabalhar, mesmo com as demandas mais baixas”. Já o estudante Daniel Carlos, de 24 anos, que perdeu o emprego como auxiliar administrativo durante a pandemia, relata o desafio da recolocação no mercado. “Infelizmente, estou com dificuldades para conseguir outro emprego. O dinheiro me ajudava com as minhas despesas pessoais, assim meus pais não tinham a obrigação de me ajudar. Estou à procura de um novo estágio ou até mesmo emprego em outras áreas, mas infelizmente não está fácil, esse período ficou complicado para todo mundo. Não tem uma pessoa que não está reclamando do momento que estamos passando”. Além da procura pelo novo emprego, outro fato que assusta o jovem é a falta de oportunidades para quem nunca trabalhou antes. “Vejo outros amigos na mesma situação que a minha, alguns que já são formados e não conseguem emprego, ou que foram despedidos pelas empresas. O jovem parece ter mais dificuldades para se estabilizar, ainda mais nesses tempos”, completa Daniel. AUXÍLIO EMERGENCIAL
O Governo Federal liberou, desde o dia 9 de abril, um auxílio emergencial de R$600 para ajudar trabalhadores informais, autônomos e inscritos no Cadastro Único. Esse auxílio foi desenhado para durar apenas três meses, mas até o fechamento dessa matéria, no dia 4 de junho, o presidente Jair Bolsonaro já havia dado sinais de que essas parcelas poderiam ser estendidas por mais alguns meses, ainda que com menor valor. De acordo com o Ministério da Economia, essa medida deve custar mais de R$ 100 bilhões aos cofres públicos. O efetivo acesso ao auxílio tem sido alvo constante de críticas, a começar pelo cadastro. Segundo dados da DataPrev, o país registra cerca 46 milhões de pessoas conhecidas como “invisíveis”. Isso quer dizer que os possíveis beneficiados não tinham conta bancária ou CPF ativo no momento do lançamento do programa, por exemplo. O aplicativo criado para o pedido também apresentou falhas de comunicação e pedidos negados mesmo para aqueles que se encaixam nas regras. Um levantamento feito pelo presidente da Caixa Econômica Federal, Pedro Guimarães, em 2 de junho, revelou que 11 milhões de pessoas ainda tinham seus pedidos de auxílio emergencial em análise. Sendo 5,7 milhões de pessoas em primeira análise e outras 5,6 milhões em reanálise. Essa demora aflige trabalhadores que passam por dificuldades e contam com o recurso para necessidades básicas, como é o caso do estudante Daniel Carlos. “Fiz todas as etapas que o aplicativo pedia, mas infelizmente, até hoje não recebi o meu benefício, e esse dinheiro vai ajudar bastante. Fico chateado, por ver pessoas que não precisam e estão ganhando o benefício. E elas nem sequer querem devolver o dinheiro, isso está atrapalhando quem está em uma situação difícil”. Por outro lado, Jonathas Cesar Netto conseguiu receber a ajuda. “Não tive nenhum
32
DOSSIÊ PANDEMIA
Julho de 2020 Jornal Impressão
problema para conseguir o auxílio, eu baixei o aplicativo e na semana seguinte o dinheiro já estava na minha conta. Esse dinheiro, para muitas pessoas, ainda não ajuda nas despesas, algumas estão precisando escolher entre comprar comida, ou pagar as contas”. OPINIÃO SOBRE O CENÁRIO PÓS-PANDEMIA
Com um futuro econômico ainda muito incerto, um estudo da EXAME Research, braço de análise de investimentos da EXAME, prevê que a alta taxa de desemprego no Brasil pode se estender por até 10 anos. Para o economista Rodrigo Alves, o balanço final dos impactos da pandemia na economia brasileira também deve demorar, e a aprovação da carteira de trabalho Verde e Amarela deve prejudicar ainda mais as relações trabalhistas. FOTO: ARQUIVO PESSOAL
Apesar do sorriso, economista Rodrigo Alves projeta lenta recuperação da economia brasileira.
A crise no Brasil estava melhorando, chegou a pandemia e as coisas mudaram, como será o pós-pandemia? O cenário pós-pandemia é muito incerto, as projeções estão indicando uma retração do PIB de 5% a 7%, sendo que essa retração pode ser ainda maior dependendo da revisão desses números. A crise econômica é uma crise tanto de oferta quanto de demanda, o que deixa o cenário ainda mais incerto porque, geralmente, as crises são só de oferta ou só de demanda. A retomada econômica esperada, pelo menos no Brasil, ainda é muita lenta.
Quais as expectativas para empregadores e trabalhadores depois da pandemia? E o desemprego, pode ter uma melhora depois de quanto tempo? O cenário para o empregado e para o empregador não é muito bom, porque a maioria das projeções apontam uma retomada econômica muito lenta. Ainda que o isolamento social acabe amanhã, o Brasil só chegaria em cenário “pré-COVID-19” daqui dois ou três anos. Se isso se confirmar, é muito difícil que todos os empregos pré-crise sejam garantidos novamente de forma ágil. Se a pandemia persistir por mais 3 meses, como será? Acredito que, se a pandemia durar por mais três meses, teremos um cenário econômico ainda mais devastador, com a retração do PIB ainda maior, o número de desempregados saindo da casa dos três milhões que está hoje, podendo ir para quinze ou dezessete milhões, e afetando uma retomada econômica consistente.
33
Julho de 2020 Jornal Impressão
DOSSIÊ PANDEMIA
E o microempreendedor, que foi muito prejudicado, depois da pandemia, conseguirá se restabelecer? Terá que se reinventar para conseguir isso. E quando digo reinventar, é para o caso dele não estar inserido, ainda, no mercado online. Ele deve usar isso para poder alavancar produtos e outros serviços e, eventualmente, ter uma redução nos seus custos, como de aluguel, por exemplo. O que é a chamada Carteira Verde e Amarela? A Carteira Verde e Amarela é um programa do Governo Federal que tem como objetivo incentivar a contratação de jovens trabalhadores, entre 18 a 29 anos, e de idosos acima de 55 anos, que estejam há mais de um ano fora do mercado formal. O objetivo é realizar a desoneração da folha de pagamento e, com isso, ficar mais barato para o empregador contratar essas pessoas. Dessa forma, os jovens podem ser beneficiados com o primeiro emprego ou com a formação de uma carreira profissional, e os idosos terão a oportunidade de voltar para o trabalho. Quais são os benefícios do empregador e do empregado com a Carteira Verde e Amarela? O objetivo do programa é gerar novos postos de trabalho, consequentemente aquecendo a economia, além de, claro, dar uma oportunidade para aqueles que estão fora do mercado de trabalho ou afastados há mais de um ano. Só que, ao mesmo tempo, você está deteriorando as relações de trabalho, visto que o patrão sempre leva vantagem em uma negociação com o empregado. Será muito mais barato para o empresário contratar o trabalhador da Carteira Verde e Amarela e, possivelmente, ele vai querer reduzir bastante os funcionários que estão sob o regime da CLT, que são aqueles que têm mais tempo de casa. Os empresários sempre visam ao lucro e querem reduzir os seus custos nos seus empreendimentos. O que as pessoas vão aprender financeiramente depois que a pandemia passar? As pessoas vão aprender a consumir mais conscientemente após a pandemia. Talvez o consumismo compulsivo ou mais exacerbado dê uma diminuída, porque as pessoas vão tentar ver o ganho real que se tem com aquele produto ou serviço consumido. Então, acho que, talvez, esse seja o maior legado econômico que a pandemia possa deixar. Não acredito que o capitalismo vai romper, porque a gente vai ter uma grande mudança no nosso sistema econômico, como muitas pessoas estão dizendo por aí. Acredito que só o consumismo mais consciente possa ser um legado. Quais dicas você pode dar às pessoas sobre como administrar melhor o dinheiro? A organização dos gastos, seja em uma planilha, uma agenda, ou em um aplicativo. Só com a organização dos gastos, registrando todos eles, seja um café após almoço, ou uma conta de bar, é que você vai ter o real controle financeiro sobre suas despesas. Tendo o controle sobre suas despesas, você vai saber onde cortar e, assim, saber como economizar.
34
Julho de 2020 Jornal Impressão
SEÇÃO
HOME OFFICE E ORGANIZAÇÃO: ALIADOS OU INIMIGOS? Ainda que o trabalho remoto já fosse uma realidade para diversos profissionais, para outros, a adaptação ao regime de forma abrupta pode ser desafiadora Por Beatriz Fernandes
A opção de trabalho estilo home office não é algo que surgiu com o isolamento social, imposto pela pandemia da Covid-19. Segundo dados do IBGE, de 2018, o aumento do número de trabalhadores que aderiram ao regime foi de 21,1%, atingindo 3,8 milhões de brasileiros, seguindo em patamares semelhantes em 2019. Muitas empresas já adotavam esse método de trabalho, além de existir estudos que comprovem a eficiência dele, quando bem implantado. Professores da Harvard, por exemplo, avaliaram profissionais nos Estados Unidos que aderiram ao modelo de trabalho em casa e os resultados indicaram um aumento de 4,4% na produtividade após a implementação do home office. Além disso, uma pesquisa encomendada pela Alelo ao Instituto Ipsos, constatou que, entre 2.333 respondentes, 55% têm o regime de trabalho remoto como “trabalho dos sonhos”. A pesquisa foi desenvolvida em 2019, a fim de analisar os hábitos de trabalho de brasileiros de diversos estados. A designer de interiores Gabriela Fernandes, por exemplo, já trabalhava há três anos e meio no modelo home office. Ela conta que, para sua adaptação ao modelo, desenvolveu mecanismos para otimizar o tempo e o espaço físico, como “deixar a marmitinha pronta e ter um lugar específico com tudo o que necessito perto.” DE OPÇÃO À OBRIGAÇÃO
Entretanto, o cenário atual forçou a adaptação de milhares de trabalhadores, das áreas mais diversas, a esse modelo. A mudança para esse regime, que antes era assegurada pelo artigo 75-C da CLT para que fosse feita de forma consensual entre empregador e empregado, agora, com a Medida Provisória N. 927/2020, pode ser feita independentemente da existência de acordos individuais ou coletivos. Com isso, o que antes era uma opção, se tornou para muitos, a única maneira de manter o exercício da profissão. Dessa maneira, podem surgir desconfortos na rotina adotada de forma abrupta. Um deles pode ser a relação que o empregado precisa desenvolver com o seu novo espaço de trabalho. Isso porque, para muitos, suas casas representavam o tempo livre.
35
Julho de 2020 Jornal Impressão
DOSSIÊ PANDEMIA
FOTO: BEATRIZ FERNANDES
A organização como aliada para a adaptação ao modelo de home office.
Desenvolver um ambiente que o direcione à sensação de se estar em um ambiente de trabalho dentro dessa nova realidade, pode ser desafiador. Em enquete, 10 dos 15 respondentes disseram não ter experiência com o home office antes do isolamento social. Deles, a metade concorda que a organização do espaço físico pode ser um dos principais desafios. Ao marcarem em uma escala de 1 a 5, em que 1 não vê a organização do espaço físico como desafiadora, e 5 a vê como muito desafiadora, o índice mais marcado foi 4. Até mesmo para quem já estava habituado ao home office, o atual cenário se torna peculiar. Gabriela Fernandes contou que, com o isolamento, a produtividade oscila, porque além da casa ser o trabalho, ela também se tornou o lazer. “Aí, acabo não relaxando a mente e querendo estar produtiva o tempo todo”, confessa a designer de interiores. Uma pesquisa recente, realizada pelo jornal Nexo, mostra como essa adaptação foi algo geral no mês de abril e início de maio de 2020. Ela mostra que objetos como cadeira de escritório e aspirador fazem parte dos itens que mais aumentaram em procura por compra na internet. Ambos, desde abril até maio, passaram de -50% em procura para mais de 50%. ORGANIZE-SE
A personal organizer Cristina Dumont, que trabalha com serviço, cursos e produtos de organização, diz que no primeiro momento da pandemia a procura pelo seu serviço diminuiu, mas que atualmente as pessoas voltaram a procurá-la. Ela defende que, “no caso do home office, a importância e o impacto da organização ficou ainda mais evidente. Afinal, as pessoas trabalhando dentro de casa têm que pensar que a vida pessoal e a vida profissional têm que ser conciliadas dentro de um mesmo espaço”. Como dicas práticas para esse processo de adaptação, ela aconselha que se separe um ambiente específico da casa, que será destinado exclusivamente para o trabalho, concentrando ali tudo o que você precisa para seu expediente. Além disso, por mais que você não esteja literalmente saindo de casa para trabalhar, é importante que se estabeleça uma rotina que te dê a sensação de que você está se preparando para o momento de trabalho. Para mais dicas, confira a conversa na íntegra.
36
Julho de 2020 Jornal Impressão
DOSSIÊ PANDEMIA
PALAVRAS QUE ABRAÇAM Entre incertezas, grandes transformações e falta de respostas concretas, encontramos na comunicação um solidário apoio para as nossas relações durante a pandemia da Covid-19
Por Fernanda Freitas e Isabela Beloti
Que mundo é esse onde não abraçar nossos queridos significa cuidado e carinho? Onde é permitido cumprimentos somente a dois metros de distância e o olho no olho se transformou em olho-tela-olho? Sim, habemus novas regras de comportamento para todos. A pandemia do novo coronavírus virou de ponta cabeça a rotina de todas as pessoas ao redor do mundo e transformou as relações sociais de qualquer cultura. Existe uma nova realidade individual e coletiva. As pessoas nunca tiveram que passar tanto tempo em casa. O isolamento nos levou, sem nenhuma preparação, à reflexão, reavaliação… ressignificação. Para nos mantermos de pé, esperançosos e cheios de empatia, precisamos buscar ser mais conscientes, solidários. É tempo de cuidar das nossas tristezas, mas também de fazer ressaltar e aflorar o sentimento de união, de comunidade, abandonando de vez o nosso ego. A doutora em psicologia, Rita Almeida, que é Conselheira Presidenta da Comissão de Orientação e Ética do Conselho Regional de Psicologia de Minas Gerais, explica que, em momentos críticos, as pessoas tendem a entender a importância do pensamento coletivo. De acordo com ela, somos seres gregários, ou seja, pertencemos à coletividade e nos sentimos bem quando estamos em grupo. “Em situação de ameaça, o ser humano pode seguir para dois polos: o de tentar se salvar sozinho ou o de pensar coletivamente nas saídas. Obviamente, a humanidade só se sustentou enquanto espécie porque, em geral, a gente entendeu que, em situações de ameaça, é mais inteligente agirmos de forma solidária e coletiva. Se o ser humano é um ser gregário, então a melhor estratégia é sempre a estratégia coletiva”, exemplificou. Por ironia, a estratégia coletiva para enfrentar a pandemia é justamente o isolamento. E para lidar melhor com a situação, Rita destaca a importância das comunicações alternativas, que encurtam as distâncias virtualmente nesse momento de necessária ausência física. Para ela, a internet tem desempenhado papel “funda-
37
DOSSIÊ PANDEMIA
Julho de 2020 Jornal Impressão
mental para tentar se manter esse contato social mesmo tendo que fazer a separação de corpos. Mas obviamente, por mais que a internet torne possível algum tipo de contato, não é o mesmo tipo de contato pessoal”. Nesse caso, ela serviria para minimizar a falta do contato físico. Especialmente para nós, que temos a identidade brasileira em nosso DNA, o isolamento tem sido ainda mais difícil. Regina Amorim, antropóloga e mestre em sociologia política, explica porque para a nossa nação a mudança de hábitos e rotinas pode ser ainda mais traumática. “Somos um povo muito caloroso, amistoso e também muito receptivo. Sempre que nos relacionamos em nossos grupos sociais, mantemos o contato físico. Nós gostamos muito do abraço, do beijo, do aperto de mão… o contato físico é uma expressão que nos aproxima. Essa é uma maneira muito própria do brasileiro, que gosta de viver em “amontoados”, afirmou. FOTO: BRUNA ARAUJO
Homem na janela
DAQUI PRA FRENTE
“Num domingo qualquer, qualquer hora Ventania em qualquer direção Sei que nada será como antes, amanhã Que notícias me dão dos amigos? Que notícias me dão de você? Sei que nada será como está, amanhã ou depois de amanhã”
Trecho da música Nada Será como Antes, de Milton Nascimento, versão original de 1976
38
Julho de 2020 Jornal Impressão
DOSSIÊ PANDEMIA
Nosso querido Milton já havia dito: toda ventania, turbulência ou crise altera o normal que antes conhecíamos. Sociedades inteiras já tiveram que se adaptar por diversas circunstâncias e passaram pelo processo de construção de novas formas de comunicação - em casa, na rua, nas escolas, universidades e, claro, no trabalho. A comunicadora Mariana Melo, que tem 20 anos de experiência em comunicação empresarial, conversou conosco sobre as mudanças que estão acontecendo na nossa sociedade e que impactam a forma como as empresas se comunicam com seus públicos. Para ela, essa pandemia traz aprendizado para todos. “Ninguém sabia como fazer uma comunicação numa pandemia assim, que não acontecia há muito tempo. Precisamos entender qual é a nova realidade, porque principalmente a comunicação interna, e também a externa, das empresas, só fazem sentido se estiverem alinhadas ao negócio e à realidade do público, das pessoas”, explica. Mariana também apresenta que, além das dificuldades profissionais do trabalho remoto, ou das adaptações do trabalho presencial, existem questões pessoais para cada empregado que podem contribuir para um mal-estar. Por isso, as empresas precisam entender muito bem como é a nova realidade dos empregados no distanciamento social antes de comunicar qualquer coisa. As palavras, mais do que nunca, importam. Para isso, o trabalho conjunto das áreas de apoio, como a comunicação e os recursos humanos, é muito importante nesse momento. ILUSTRAÇÃO: NUBEFY DESIGN FOR ALL
Enviado para a convocação global das Nações Unidas para criativos - ajude a impedir a disseminação do COVID-19.
39
Julho de 2020 Jornal Impressão
DOSSIÊ PANDEMIA
“O ponto principal da comunicação é que ela precisa ser cada vez mais humanizada e empática. Outro dia, uma colega de trabalho contou que está muito difícil para ela conciliar atividades domésticas e de mãe com as atividades do trabalho. Ela faz o dever de casa com os filhos, cozinha para a família, cuida da casa e estuda à noite. Realmente, o trabalho remoto é mais pesado para algumas pessoas e a gente (empresas) tem que ter essa empatia e sensibilidade, sabe? Temos que estar junto dessas pessoas para entender o que está acontecendo nesse momento, e fazer o que puder para diminuir a carga sobre elas”, explica a comunicadora. Prever como serão as coisas daqui pra frente também é tarefa desafiadora e bem difícil. Para Mariana, talvez esse seja o ponto mais alto da ansiedade das pessoas. “Passar por essa crise está sendo um aprendizado, ninguém sabe como vai ser depois. Eu acredito que as possíveis soluções ainda serão experimentadas e testadas. Se derem certo, vão continuar. E o que não der certo vai ter que ser adaptado”, conclui. E a nossa identidade? Corremos o risco de nos tornarmos pessoas completamente diferentes depois de pressionadas e desafiadas? A antropóloga Regina nos acalma. “Imagino que as pessoas vão pensar duas vezes antes do abraço, duas vezes antes do aperto de mão. Isso passará por uma ação mais precavida da coletividade. Mas nós não vamos deixar de ser o povo brasileiro não. A gente continua ainda com essas características que são muito marcantes. Eu diria, sobretudo a alimentação, o desenvolvimento das tradições, das festas comitivas… isso é um legado, e ele não se perde jamais.” FOTO: ALEX GEORGE
Quadros na parede.
40
Julho de 2020 Jornal Impressão
DOSSIÊ PANDEMIA
RESSIGNIFICAÇÃO E FÉ
E em meio a tantas incertezas, o que tem ajudado as pessoas a manterem a calma? Sabe-se que a ciência, ao longo dos anos, comprovou a relação entre crenças espirituais e o bem-estar dos fiéis, como indica um trabalho do instituto Dante Pazzanese, que analisou 250 artigos de diversos países e concluiu que manter uma rotina que inclui atividades religiosas pode reduzir o risco de morte em até 30%, além de aumentar o bem-estar. Não importa a religião, é mais fácil passar por momentos difíceis quando se tem uma esperança em algo superior aos problemas terrenos. Quem tem algum tipo de comunicação com uma força divina, tende a ser mais feliz e costuma viver melhor do que aqueles que não têm. Márcia Macedo, de 44 anos, é católica e nos contou que no início da pandemia sentiu medo e insegurança. Mas, depois de ‘pedir muito à Deus força e serenidade’, ela diz estar mais calma. “Com fé, conseguimos ser mais firmes, colocando Deus em primeiro lugar em tudo que vamos fazer”. Durante o isolamento social ela tem participado de eventos religiosos transmitidos online pelas redes sociais. Patrícia Mara dos Santos, analista de departamento pessoal, também aponta a fé como fator importante para manter-se emocionalmente estável durante o isolamento social. “Quando recebi a notícia da pandemia eu fiquei confusa com tantas informações, me preocupei com meus parentes que são do grupo de risco e me informei para me prevenir e prevenir as pessoas ao meu redor. Mas optei em não ficar ligada demais nos noticiários pra não ficar ansiosa”, ela conta. A analista é cristã e a fé sempre a ajudou em todas as situações, boas ou ruins. Além disso, ela conta que está aproveitando os momentos em casa para se conectar com sua família. “Se antes eu já me dedicava à minha família, agora muito mais. Esse tempo está sendo para mim um momento de reflexão e de mais dedicação aos meus familiares, amigos, colegas de trabalho e irmãos da igreja. Minhas práticas espirituais são as mesmas de antes da pandemia, busco a prática da leitura diária da Bíblia e faço minhas orações e súplicas por mim e por todos. Isso vai passar, eu tenho fé”, concluiu, compartilhando também um texto da Bíblia que a ajudou muito: “A fé é o firme fundamento das coisas que não se vê, mas se espera.” Hebreus 11.
41
Julho de 2020 Jornal Impressão
JORNAL DAQUI(BURITIS E REGIÃO)
AS HISTÓRIAS QUE AS RUAS CONTAM 88,1% das ruas do bairro Buritis são identificadas por nome de pessoas, apenas 17,7% são nomes de mulheres.
CRÉDITOS: GOOGLE EARTH PRO
Por Samilly Melo
Desde 1701, o lugar inicialmente composto pela área rural nomeada de Fazenda do Cercado vem se transformando no bairro que hoje é chamado de Buritis, um dos polos imobiliário e universitário mais importantes da cidade de Belo Horizonte. As denominações de todas as ruas que integram o bairro, assim como todas as outras do Estado, são propostas e protocoladas pela Câmara de Vereadores. Geralmente, os mesmos usam como critério a relevância de tal nome para aquela região. Como estes nomes são sugeridos individualmente pelos vereadores, é comum que ruas tenham nomes de pessoas que, em âmbito estadual, não sejam de grande relevância, mas que proporcionaram grandes feitos em regiões específicas.
42
Julho de 2020 Jornal Impressão
JORNAL DAQUI(BURITIS E REGIÃO)
A população também pode sugerir nomes, que serão analisados pela Câmara. A única regra resguardada pela Lei n° 6.454/77 é a impossibilidade de atribuir nome de pessoas vivas a bens públicos, como neste caso, em logradouros. O bairro Buritis é composto por 109 ruas, sendo 7 dessas classificadas como avenidas. As ruas que compõem o bairro, em sua maioria, são denominadas com nomes de pessoas, , sendo responsáveis por 88,1% dos logradouros do Buritis. Já o segundo bloco que mais se repete, mesmo contendo apenas 7 ruas, são os nomes que possuem origem indígena, como a Rua Igapó, localizada próxima ao Centro Universitário de Belo Horizonte (UniBH). INFOGRÁFICO: MATHEUS ROCHA
Categorias que distribuem as ruas do bairro Buritis - Fonte de dados: Correios Cerca de 22% das ruas que homenageiam pessoas também trazem, ao nome, a profissão ou título que o homenageado conquistou durante a vida. Assim como a Rua Doutor Célio Andrade, outras também são nomeadas por seus títulos, como delegados, doutores, engenheiros, professores e vereadores. IMPORTÂNCIA HISTÓRICA
As ruas possuem valor significativo na vida de quem as frequenta diariamente, mais do que apenas dar nome a uma rua por questões de protocolo, é necessário utilizar destes nomes para proporcionar a população a ideia de representatividade, contribuindo assim para a sensação de pertencimento geográfico. É importante que cada CEP resgate a história do país, que os nomes atribuídos revelem os acontecimentos locais e nacionais, resgatando a memória de membros que contribuíram para a transformação local, aqueles que ajudaram de forma direta a população regional.
43
Julho de 2020 Jornal Impressão
JORNAL DAQUI(BURITIS E REGIÃO)
É comum que, no dia a dia, moradores e visitantes não atribuam significado concreto aos nomes das ruas, e a denominação se transforma apenas em um “nome de rua”, sem analisar exatamente as histórias e vidas que estão por trás de cada uma delas. Viviane Avalone, moradora da Rua Maria Heilbuth Surette, revela que, mesmo morando há 18 anos no bairro, nunca buscou informações sobre quem é a mulher homenageada por sua rua, sendo um detalhe que passa despercebido durante a sua rotina. Já Rafaella Aguilar, moradora há quase três anos da Rua Geraldo Lúcio Vasconcelos, conta que mesmo possuindo curiosidade em saber quem era esta pessoa, nunca encontrou nenhuma informação na internet sobre o mesmo. Segundo o professor e historiador Loque Arcanjo Júnior, não basta apenas atribuir estes nomes a endereços e dar visibilidade a eles por meio de bibliografias, é necessário promover debates na comunidade, estimulando-a a pensar e analisar as histórias. A associação de personalidades ou palavras a logradouros não deve ser separada da necessidade de críticas históricas, é necessário que elas não se reduzam apenas a memórias. “Toda memória está conectada ao esquecimento, por isto a cidade deve ser pensada como espaço de lutas e diferentes significados culturais. É importante pensar as ruas como espaço público que toma sentidos também a partir das diferentes formas de apropriação por parte da população.” - Avenida Professor Mário Werneck Infelizmente, assim como a maior parte das ruas do bairro, pouco se tem de documentos oficiais sobre a vida e conquistas do professor que dá nome ao CEP mais importante do bairro Buritis. Mário Werneck de Alencar Lima nasceu em 1904, foi professor e diretor da Escola de Engenharia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). A antiga Avenida 1 foi renomeada em 1976 para Prof. Mário Werneck. Acredita-se que tal reconhecimento e denominação foi feita a partir de designação de seu amigo Aggeo Pio Sobrinho. No decreto nº 3829, de 1980, que denomina uma das escolas de Belo Horizonte, a Escola Municipal Prof. Mário Werneck, o professor é descrito como uma vida que, durante suas atividades, serviu como exemplo aos jovens que frequentam as escolas da capital. - Rua Itacaiúnas Sendo uma das 7 ruas que possuem nomes de origem indígena, a rua faz referência ao rio Itacaiúnas, localizado no estado do Pará. A bacia do rio foi explorada no século XVI, porém abandonada logo em seguida. Já em 1892, cerca de 300 anos depois da passagem dos colonizadores pelo rio, alguns exploradores franceses se encantaram pelo local, farto de castanhais, e na possibilidade de venda através da extração de castanhas-do-pará. Dando início ao povoamento do leito do rio onde hoje se localiza, por exemplo, a cidade de Marabá. A palavra de origem indígena, E-tucai-uma, significa o lugar da castanha preta, produto muito presente no local.
44
Julho de 2020 Jornal Impressão
JORNAL DAQUI(BURITIS E REGIÃO)
- Professora Bartira Mourão Bartira de Miranda Mourão foi professora da escola pública mais antiga de Minas Gerais, a Escola Estadual Milton Campos. A professora dedicou-se ao ensino, promovendo aos seus alunos ensinamentos e valores através da educação. Bartira foi homenageada em 1985, com a mudança de nomenclatura da Rua 46 para Rua Professora Bartira Mourão. - Rua Moisés Kalil O imigrante sírio Moisés Kalil foi casado com Amélia Salum Kalil, com quem teve 5 filhos, sendo um deles Elias Kalil. Elias foi presidente do Clube atlético Mineiro de 1980 a 1985, sendo também um dos responsáveis pela construção da Cidade do Galo. Além disso, Moisés Kalil é também avô do atual prefeito de Belo Horizonte, eleito em 2016, Alexandre Kalil (PSD). - Rua Silvio Menicucci A rua leva o nome do médico e deputado estadual de Minas Gerais em exercício durante os anos de 1963 a 1967. Meneccuci, filho de imigrantes italianos, também foi prefeito da cidade de Lavras, onde lutou ao lado do político Tancredo Neves pela federalização da Escola Superior de Agricultura de Lavras (Esal). O médico faleceu em 1982, aos 68 anos, após passar mal depois de discursar em um palanque, em busca da eleição de seu genro Célio de Oliveira para a prefeitura da cidade. Sua família ainda possui grande influência na política da cidade. FALTA DE VISIBILIDADE FEMININA INFOGRÁFICO: MATHEUS ROCHA
Distribuição de nomes femininos e masculinos nas ruas do bairro Buritis. Fonte de dados: Correios.
45
Julho de 2020 Jornal Impressão
JORNAL DAQUI(BURITIS E REGIÃO)
Apesar de muitos movimentos que buscam o empoderamento feminino estarem em constante crescimento no país, a falta de representatividade feminina é um problema histórico e ainda atual. Esta invisibilidade também se faz presente em locais públicos. Segundo uma pesquisa feita pela organização Gênero e Número, em Belo Horizonte, as ruas com nomes femininos representam apenas 17,30%, enquanto os endereços com nomes masculinos representam 46,9% do total de ruas da capital mineira. O bairro Buritis não se destoa das estatísticas, das 96 ruas do bairro que levam nomes de pessoas, apenas 17 delas possuem nomes de mulheres, representando assim apenas 17,7% do total de ruas batizadas com nomes próprios. A partir deste dado, é notório a percepção de que as ruas do bairro ainda não representam a sua população, pois segundo o último censo demográfico do IBGE (2010), as mulheres representavam mais da metade da população do Buritis, cerca de 52%. Tal fato é reflexo de toda trajetória de nossa civilização, mulheres ainda enfrentam dificuldades para se tornarem relevantes e conquistar espaços predominantemente masculinos. Ainda segundo o professor do Centro Universitário de Belo Horizonte e doutor em história, Loque Arcanjo Júnior, a menor representação feminina nos logradouros do bairro reflete a sociedade machista do país. “As ações de mulheres que lutam diariamente e que apropriam destes espaços da cidade não estão presentes em “homenagens” cedidas pelo poder público.”, ressalta o historiador.