Mão na Lata: Larisse Paiva - Programa Convida

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Enquanto nรฃo posso assistir o mundo lรก fora, eu observo o que existe e o que deixou de existir dentro de casa.

LARISSE PAIVA


Recebi uma notícia que esperava não receber. Uma senhora

as filhas não. Será que as filhas não têm consciência do

que fez parte da minha infância, quase uma vó para mim,

perigo que estão colocando a sua própria mãe? Acho que a

faleceu. Enterro com poucos familiares. Caixão lacrado.

maior demonstração de amor que um filho poderia dar para

É difícil pensar em voltar a normalidade. Irão existir

sua mãe hoje é manter distância física.

vestígios deixados pela pandemia que não poderão ser

Nenhuma situação é tão ruim que não possa piorar,

esquecidos. É feriado, mas não parece. Pelo menos não para

principalmente nesse desgoverno que a gente vive

mim. Mas alguns vizinhos aproveitam para fazer uma pequena

atualmente. Viver no Brasil com esse governo é um desafio

festa em suas portas, ignorando o que está acontecendo

maior do que a própria covid-19. Assistir o jornal hoje

fora da pequena bolha deles. É estranho pensar que as

definitivamente foi um erro. À noite tentei pegar um ar

coisas que pareciam pequenas e que a gente negligenciava,

no portão, de um lado tinha um silêncio que não é muito

agora fazem muita falta. A gente vê em filmes situações

comum na favela, do outro lado um pequeno grupo tomava

que eram do nosso cotidiano e hoje parecem estranhas.

sua cerveja como num final de dia qualquer. Eu ouvi uma

Até um simples abraço parece ser algo que não faz parte

pessoa falando que não existe quarentena nas favelas.

da nossa realidade. Eu já nem lembro quando foi a última

Mas por que só falar da favela, sendo que tem gente nas

vez em que eu abracei alguém. Hoje é dia das mães. Talvez

praias de Copacabana? A covid-19 tem impactos maiores

tenha sido o feriado mais estranho que eu vivi, desde o

sobre as periferias e não existe nenhum plano para elas,

primeiro dia das mães sem a minha vó. À tarde eu vi uma

a população pobre é deixada à própria sorte. Até o

senhora com suas duas filhas, a senhora usava máscara, mas

isolamento social por aqui é uma questão de privilégio.



Tento começar a assistir uma série nova, mas o estresse

trazer uma sensação de segurança, pelo menos para mim,

causado pelas notícias me faz perder o foco. Todas as

não funcionou. Se assustar ao ter uma “pistola” apontada

cores das cenas não são o suficiente para me distrair.

para sua testa é inevitável. É difícil não imaginar

Perdi o sono. Por volta das 6 horas da manhã fui deitar

quantas pessoas na favela já tiveram uma arma apontada

no sofá para observar o dia clareando. Em meio ao

para sua cabeça. Enquanto escolhia alguns tomates na

silêncio da manhã, a voz da minha vizinha ecoava até

feira escutei tiros. Pela distância parecia ter sido

invadir a minha casa. Ela falava para a outra vizinha

na ponte. Quando você mora na favela acaba tendo que

que o pastor da igreja havia dito que não existia motivo

desenvolver a habilidade de saber de onde vêm os tiros

para ter medo. Tem dias que é difícil ter esperança de

pelo som, para nossa própria segurança. Uma vez quando

que tudo vai melhorar. Os dias passam e vem uma sensação

eu vinha da faculdade à noite, escutei tiros enquanto

de angústia e incerteza sobre o futuro. Em alguns dias

atravessava a passarela. Guiei-me pelo som para ir pelas

a única coisa que eu quero é ficar embaixo do edredom,

ruas que pareciam mais seguras naquele momento. Entender

ignorando todo o caos que ocorre do lado de fora, em

o som das balas pode salvar nossa vida por mais um dia.

outros, eu tento aprender algo diferente. Aqui em casa só está permitido quebrar a quarentena para fazer compras. Quando cheguei ao mercado, um dos funcionários estava na entrada medindo a temperatura dos clientes antes de entrarem. Se essa medida é para




O tempo virou no Rio de Janeiro. Chove bastante lá fora e a sensação do barulho que a chuva traz é reconfortante.

sinto saudades do bolinho de feijão verde que minha vó fazia para mim.

Fico sentada perto da janela durante o almoço, aproveito

Minha mãe é costureira, mas com a pandemia ela não

o som e o cheirinho de terra molhada que invadem a casa,

faz mais consertos, agora está focada na produção de

enquanto desfruto do meu prato de feijão verde com frango.

máscaras caseiras. Normalmente ela passa a maior parte

Vou no quintal olhar o céu e acabo me molhando. Minha mãe

do tempo ocupada, e com isso eu tenho mais chances de

diz que não se pode tomar banho de chuva depois de comer

me aventurar na cozinha. Cozinhar é uma terapia de

feijão verde, porque é perigoso. Minha vó adorava falar

sobrevivência nesse momento caótico. Eu nunca tinha

essas coisas. Quando você é criança e escuta uma pessoa

passado tanto tempo dentro de casa, em alguns momentos

mais velha falar que você pode morrer se for tomar banho

eu me sinto sufocada por estar nessa situação. Tento

depois de um prato de feijão verde, pode ser um pouco

aproveitar o enorme tempo livre para fazer exercício

assustador. Eu me considero uma pessoa de sorte por ter

físico. Cuidar da saúde física e mental durante o

nascido numa família nordestina, pois nada me deixa

isolamento social é bem difícil, mas eu tento encontrar

mais feliz do que as comidas paraibanas: feijão verde

maneiras de me manter um pouquinho sã nesse período.

com galinha caipira, mocotó e a minha favorita, rabada

Algumas vezes acordo sem vontade de fazer nada, além de

com agrião. Esses pratos sempre estiveram presentes

deitar no sofá e assistir qualquer coisa que estiver

nos almoços de família, que agora estão temporariamente

passando na TV.

cancelados. Sinto falta da mesa cheia, e principalmente



Hoje observei alguns objetos ao redor. Numa das

dia, a intenção dela era fazer com que começássemos a

paredes tem a foto do meu aniversário de 8 anos e ao

questionar as autoridades e lutar por nossos direitos.

lado tem um porta-chaves que nunca foi usado. Algumas

Até hoje, sempre que escuto essa música a lembrança

fotos foram substituídas por um espaço vazio. Um relógio

desse dia vem na minha cabeça, acho que foi a primeira

antigo, que já não trabalhava mais, foi substituído

vez que eu me senti livre dentro de uma sala de aula.

por um calendário. Outras marcas na parede me lembram

A live de uma professora da faculdade só aumentou a

que ali haviam fotos de algumas bandas e de séries que

saudade que sinto do Fundão. Sinto falta dos dias em que

eu assistia há alguns anos atrás. Enquanto não posso

sentava naquela velha carteira e escutava os professores

assistir o mundo lá fora, eu observo o que existe e o

falando sobre os assuntos que me interessavam, ou de

que deixou de existir dentro de casa. Além das histórias

quando eu ia parar em outro lugar enquanto olhava pela

que estão escritas nas paredes, tem as que a rua traz

janela. Sinto falta de contar os minutos para a aula

para dentro de casa. Durante a noite um vizinho escutava

acabar, só para poder ir no bandejão, torcendo para que

Another brick in the wall do Pink Floyd. Anos atrás,

a fila não estivesse muito grande. Sinto falta de sentar

numa aula de inglês no meu primeiro ano do ensino

no gramado da Letras e ver o sol se pondo lentamente

médio, a professora nos passou a tarefa de analisar

no céu. A quarentena me fez sentir saudades até dos

a letra dessa música. Eu tinha 15 anos, e foi um dos

momentos que eu pensava que nunca sentiria falta.

primeiros momentos em que comecei a questionar o sistema educacional. A língua ficou em segundo plano naquele




Recebi um e-mail da UFRJ com a grade de matérias

Ontem fui procurar uma receita de brigadeirão. Minha

ofertadas para o período letivo excepcional. Eu odeio

mãe falou que tinha anotado num antigo caderninho

a ideia de ter aulas a distância. Vários estudantes,

esquecido no rack da sala. Esse caderno foi um presente

como eu, não tem uma boa conexão de internet e nem

de dia das mães que eu fiz durante o ensino fundamental.

estrutura para ter um ensino a distância. Como posso

Ele não guarda só receitas que escrevi com uma caligrafia

ter um bom rendimento se minha internet cair em algum

infantil, guarda memórias da minha infância, como uma

momento? Ensino a distância no Brasil é uma questão de

cartinha que eu fiz pra minha mãe quando eu era pequena.

privilégio. Eu até me considero um pouco privilegiada

Uma vez ela saiu e demorou para voltar. Enquanto as horas

por ter acesso à tecnologia, mas infelizmente, nem

passavam e ela não voltava eu ia ficando preocupada. Em

todo mundo tem essa mesma chance. EAD escancara a

um momento eu peguei essa cartinha e comecei a chorar,

desigualdade social. Se aqui na favela não chega nem

me bateu um medo enorme de que ela não voltasse mais.

atendimento à saúde, imagina se vamos ter internet

Ela voltou e eu corri para abraçá-la assim que ouvi o

de qualidade. Além disso, tem os ruídos que insistem

barulho do portão. A memória desse caderninho me fez

invadir a casa todos os dias. O gospel que a vizinha

perceber que com o passar dos anos,

escuta no último volume, a conversa dos vizinhos da

praticamente só conversávamos pelo WhatsApp, através

frente, que é tão alta que às vezes parece que estão

de pequenas mensagens onde ela me perguntava se eu já

brigando, e ainda tem as brigas de verdade que acontecem

havia chegado no estágio ou na faculdade. Nós moramos

numa frequência assustadora.

na mesma casa a vida toda, mas às vezes parece que não.

eu e minha mãe


Agora quase todos os dias eu aprendo alguma coisa nova sobre a minha mãe, sobre as histórias da época em que vivia na Paraíba. Ela contou que quando era criança ainda, ia bem cedinho com a minha vó ordenhar a vaca e acabava tomando o leite ali mesmo, e que o sabor nem se compara com o leite de caixa. Além do leite de vaca, ela também tomava o leite de cabra, que segundo ela era o favorito da minha tia. Contei para minha mãe que no antigo Egito o leite de cabra era um artigo de luxo e que era usado nos famosos banhos de Cleópatra.



Hoje é dia 7 de julho, mas poderia ser dia 28 de

Estou vivendo um momento bastante nostálgico. Não

março ou até mesmo dia 2 de junho. Não importa na verdade,

tem como evitar isso depois de tantas semanas dentro

porque a maioria dos dias parece o mesmo. Minha mente

de casa. O pensamento nos leva às memórias, acho que é

tem pregado peças em mim diariamente. Eu virei a

uma forma de aliviar a carência afetiva que só aumenta

personificação da frase “não lembra nem o que comeu

com o passar desses dias. Procuro algum papel em branco

ontem”. A verdade é que eu tenho lembrado de muitas

em meio a uma pilha de papéis velhos para começar a

coisas, principalmente quando vejo algumas situações

escrever sobre o meu dia. Encontro vários papéis de

no presente que me levam imediatamente ao passado. Como

cadernos antigos no meio de provas e trabalhos do ensino

a cena da minha mãe sentada na varanda pegando sol.

fundamental. Coisas da época em que eu acordava às 6h

Ela sempre colocava minha vó sentada na varanda pelas

da manhã para ir para a escola. Sentava no sofá ainda

manhãs. Ela ficava sentada ali, observando tudo com um

sonolenta, enquanto minha mãe preparava o meu café da

olhar curioso. Ao mesmo tempo que trazia calmaria, seu

manhã. Lembro que assistia Tom & Jerry, mas eu nunca

silêncio me deixava curiosa. O que será que a minha vó

conseguia terminar o episódio porque precisava ir tomar

pensava naqueles momentos? Essa é só mais uma pergunta

banho e me arrumar. Naquela época nós não tínhamos

que ficou sem resposta. É meio doido estar vivendo

chuveiro quente e eu odiava tomar banho frio. Minha

nesse looping de dias iguais durante a quarentena,

mãe esquentava água e misturava no balde para “quebrar

enquanto eu vejo todo mundo ao meu redor vivendo suas

a frieza”, como ela dizia. Muitas coisas mudaram nos

vidas normalmente.

últimos anos, hoje eu faço meu próprio café da manhã,


Tom & Jerry passa num horário diferente, o chuveiro

Do sofá escuto o barulho da rua que invade minha casa

quente funciona, mas o que não mudou é o fato de ainda

sem pedir licença. Há alguns meses atrás eu odiava isso,

odiar tomar banho frio pela manhã.

mas não é algo que se pode evitar na Maré. Nos momentos

Sento-me em frente ao computador para escrever, parece

mais inconvenientes, algum vizinho vai colocar música

que não vai sair nada, até que noto na parede atrás do

alta e o bar do lado vai entrar na disputa, para ver

monitor algumas formigas saindo de uma pequena brecha.

qual deles tem o som mais potente. Mas depois de tantos

Quando eu era pequena decidi que iria criar formigas,

dias dentro de casa, o som da rua acabou se tornando um

naquela época eu não podia ter gato ainda. Eu coloquei

visitante inesperado durante a quarentena. Músicas dos

algumas formigas dentro de um porta-tazos que vinha no

mais variados gêneros musicais tocando ao mesmo tempo.

biscoito e guardei num canto. Mas quando fui abrir para

Agora mesmo um dos vizinhos escuta Bohemian rhapsody,

“brincar” com elas, estavam todas mortas. Chorei por

enquanto o bar do lado toca um forró que eu nunca tinha

várias horas enquanto minha mãe tentava me consolar.

ouvido antes. Até quando a música para, o som das pessoas

Tenho levantado cedo para pegar sol com meus gatos.

vivendo do lado de fora continua. Os sons da favela vêm

Momo e Kim adoram pegar um solzinho na varanda pela manhã.

ganhando novas camadas a cada semana que passa, e eu me

Enquanto brincava com os dois vi um rabisco na parede

tornei uma ouvinte assídua.

escrito RBD em tinta preta, adorava essa novela. Quando eu era pequena tinha mania de escrever sobre as coisas que eu gostava por todos os cantos, até nas paredes.





Larisse Paiva Faz graduação em Biblioteconomia na UFRJ. Participa do Mão na Lata desde 2011, publicou o livro Cada dia Meu Pensamento é Diferente e participou da realização do curta Caio. Participou de diversas exposições, entre elas destaca-se o 35º panorama da arte brasileira MAM-SP. Tem fotografias pertencentes ao acervo do Museu de Arte do Rio – MAR.

Fotos e textos Larisse Paiva curadoria, diagramação e edição de imagens Tatiana Altberg edição de textos e revisão Raquel Tamaio

Os ensaios aqui apresentados foram compostos a partir de um extenso material produzido ao longo de quatro meses, entre abril e agosto de 2020. Jailton Nunes, Fagner França, Larisse Paiva, Juliana de Oliveira, Jonas Willame e Christine Jones, jovens moradores da Maré e integrantes do Mão na Lata, fotografaram e escreveram diariamente sobre seus cotidianos na quarentena. Periodicamente toda essa produção foi publicada no site www.amaredecasa.org.br, como parte de uma ação apoiada pela Redes da Maré e a organização Peoples Palace Projects, dentro da pesquisa Construindo Pontes, que estuda os níveis de bem-estar e saúde mental da população da Maré. Para o Programa Convida do IMS, apresentamos os ensaios, re-escrituras imagéticas e textuais da experiência vivida. Olhamos o que se passou como um contínuo processo de reelaboração do presente, na intenção de projetar um futuro outro.


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