A menina de cutileiro

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menina

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Cutileiro

IADE-U | Marketing e Publicidade | 1Âş ano | A1 | InĂŞs Mendes Bolas Cardoso Ramalho | 2014-0048



“O melhor dos artistas nunca tem um conceito Que um único bloco de mármore não contenha No seu cerne, mas não o alcançará Se a mão não seguir o intelecto.” - Miguel Ângelo



Introdução Neste trabalho pretende-se analisar a peça de João Cutileiro, “Menina Deitada“ que se insere no tema recorrente de “As Meninas”, transversal a toda a produção do artista. O método de abordagem escolhido para a realização deste estudo incluiu uma análise e observação directa da peça, que se encontra em Vila Real, sub-região do Douro, na Casa de Mateus, uma extensa pesquisa bibliográfica na Biblioteca de Arte da Fundação Calouste Gulbenkian, a qual sempre apoiou o artista com os seus estudos e uma entrevista com o mestre na sua casa atelier em Évora, além de consultas na internet a blogues e websites. Preferi que o encontro com o mestre Cutileiro fosse puramente educacional de modo a dar-me algumas luzes e orientações para a concretização deste trabalho. Assim, decidi não impôr qualquer tipo de entrevista formal porque senti que tal não me daria a clarividência acerca do artista e do seu processo criativo que uma conversa informal mas sensível e focada permitiria. Houve três vertentes contributivas para a escolha do tema do trabalho: a razão da escolha de uma escultura, a selecção do escultor e a selecção desta peça em particular. Decidi fazer sobre uma escultura pois sempre achei uma forma prestigiosa de fazer arte e que, a meu ver, não é tão reconhecida ou promovida quanto merece. Despertou um enorme fascínio em mim aperceber-me que uma escultura era feita a partir de um bloco de pedra. O facto de se embelezar, de dar significado e forma, de transformar por completo algo tão maciço e sem graça como um bloco de pedra, cativou-me. Escolhi fazer sobre este escultor em particular pois ele actualmente reside, tem atelier e obras expostas em Évora, cidade da qual sou natural. É sempre bom valorizar o que é nosso e o que traduz de alguma forma as nossas raízes, isto porque o sangue que corre nas veias de Cutileiro é Alentejano. Por último, escolhi esta peça por ser tão bonita e natural, não é pretensiosa, não é artificial. Representa algo puro e simples. É o que é e há muita beleza em apenas ser. Gosto da forma como o corpo se encontra, é cómodo, uma posição de refúgio em modo de descanso. Gosto também especialmente do sítio onde está inserida, ali a menina está em perfeita harmonia.



As Meninas No decurso do desenvolvimento psico-afectivo, compete a todo o ser masculino o construir mentalmente uma imagem do outro sexo. Fenómeno idêntico sucede no ser feminino em relação ao masculino. Na maioria das pessoas, esta imagem, é implícita, fica inconsciente. Só em momentos privilegiados, os sonhos ou fantasias, nas profundas análises do psiquismo, a imagem se revela nos seus contornos essenciais. O fenómeno sucede; porquanto no funcionamento psíquico corrente existe predomínio marcado do pensar racional, ao que chamamos “processo secundário”. Este ofusca e apaga o “processo primário”, cuja origem é afectiva e pulsional. Nos espíritos criativos, sobretudo naqueles da expressão plástica, existe talvez um terceiro processo ao qual chamamos “metaprimario”, e que pelo seu funcionamento permite que os outros dois processos possam ser utilizados sem se excluirem e anularem entre si. Em João Cutileiro este sistema metaprimario aparece com grande evidência, transparecendo particularmente na construção das suas imagens da mulher. Estas imagens da mulher revestem-se sob duas formas diferentes: a erótica e a representativa. A figura feminina, a sua sedução e mística, é predominante na obra de Cutileiro. A carne das figuras é de mármore (branco, creme, rosa, castanho ou cinzento cinza). Os olhos, coloridos e feitos de mármore polido, assemelham-se aos verdadeiros. O cabelo é feito em mármore toscamente trabalhado. Algumas figuras são simples e radiantes; outras são entrelaçadas ou envolvidas por formas da natureza, indistintas e rudimentares; outras são como manequins, feitas de partes separáveis e fáceis de transportar; outras, ainda, são simples fragmentos arrancados a um corpo. Ao preparar uma exposição, em 1966, Cutileiro teve a ideia de colocar triângulos de mármore preto na púbis das figuras pois sentiu a necessidade do impacto cromático que esses triângulos provocavam, assim como o das zonas cor de rosa que passou a aplicar nos mamilos das suas figuras femininas. Este pormenor contribuiu para uma dimensão mais realista das suas peças que representam o corpo humano. Esta aquisição estilística reforçou a tendência já existente para realçar os caracteres sexuais das figuras. Mais tarde, essas mesmas figuras serão protagonistas de cenas eróticas, sendo o espectador convidado a olhá-las através de orifícios abertos em caixas, manifesta cumplicidade “voyeurista” que o artista provoca. É cerca de 1970 que a obra de Cutileiro atinge a sua fase mais erótica. Constrói uma serie de piscinas em que figuras femininas nuas se estendem ou se banham, estudando assim a relação corpo-água e a sensualidade implícita.


Mais tarde, surgem outro tipo de peças. Representam igualmente a figura feminina em momentos íntimos mas sem a conotação sexual e erótica que lhes era empregue anteriormente. Trata-se de uma notável serie de torsos de grande equilíbrio. Nestas obras revela-se uma qualidade clássica, uma serena observação da realidade anatómica dos modelos. Já não se trata apenas de uma boneca despida, ou a protagonizar cenas eróticas, trata-se sim de um corpo tomado como tema de um modo diferente, como por uma necessidade do artista se auto-disciplinar. Revela assim uma característica importante da sua perspectiva do real e da sua vocação classicizante.

Entre as figuras femininas as mais famosas são as chamadas "Meninas" de Cutileiro, personagens criadas e protagonistas de actos que tanto se relacionam com o amor pagão e livre, como funcionam de reflexo de uma moral marcada por grande dose de interdito, reflexo de uma fruição amorosa ligada a um conjunto de regras repressivas e impeditivas do prazer instintivo e, portanto, reflexo de uma sociedade que vive traumatizada. É sobre esses traumas que Cutileiro reflecte, surgindo simultaneamente como feiticeiro e desmistificador dessas situações que o próprio artista condena. Nas meninas há também uma notificação de formas férteis do corpo, onde está implícita a homenagem à mulher, como fonte e receptáculo do prazer e também como fonte de vida. José Saramago descreve melhor que ninguém quando descreveu a forma como o mestre Cutileiro retrata o corpo humano: “Ora, João Cutileiro conhece, do humano corpo, o que nele há, porventura, de mais comovedor: a imperfeição harmoniosa. Todo o erotismo das mulheres que esculpe reside aí, nesse aparente paradoxo. Hoje, uma Vénus que saísse das mãos de Cutileiro teria uma cintura frágil para o volume e o peso dos seios, os braços delgados, os ombros de quase menina, e as coxas densas e inquietas como mercúrio. Diante das figuras de Cutileiro, o prazer do olhar é, de facto, um prazer erótico. Porém, não o desfrute ambíguo e impotente do “voyeur”: aqui, o observador deixou de o ser, transformou-se em agente e é cúmplice e encobridor de si mesmo. Olhando estes nus, perde sentido a conhecida e apaziguadora asserção de que a nudez total é casta. Estas mulheres e homens não se despiram para serem mostrados num templo grego ou num museu moderno: estão nus para o amor. Que é, confessemo-lo, a melhor razão que pode haver para que nos dispamos.” - José Saramago


A menina Identificação Título: “Menina Deitada” Assunto: Estudo do corpo humano, corpo da mulher. Tema: As Meninas. Autor: João Cutileiro. Data de execução: 1981. Técnica: Escultura de mármore. Medidas: (80*50)cm. Localização Actual: Casa de Mateus, Vila Real, Portugal. Origem: A peça foi feita pelo autor como estudo da figura humana para ser exposta na Casa de Mateus em conjunto com outras, numa exposição privada das obras do artista. Foi uma decisão colectiva da equipa da exposição mostrá-la no lago, nos jardins em frente à Casa. Quando a exposição terminou decidiu-se manter a escultura da mulher deitada no lago, pois foi unânime que não haveria melhor lugar para a guardar.

Descrição Iconográfica A menina que escolhi como tema deste estudo encontra-se deitada adormecida no lago da Casa de Mateus em Vila Real. Na visita à casa, uma das guias explicou-me que esta menina era uma Danaide, uma figura da mitologia grega. No âmbito da pesquisa sobre esta figura e a sua história, concluí que esta já fora tema de uma escultura de Rodin. João Cutileiro foi fortemente influenciado pela obra e pensamento de Rodin, embora os torsos de Cutileiro sejam mais marcadamente físicos e eróticos que os de Rodin. Embora esta associação aparentemente fizesse sentido, ao perguntar ao mestre Cutileiro o motivo de ter decidido esculpir uma figura da mitologia grega, ele respondeu-me que não tinha procurado inspiração na mitologia. Na opinião do artista é apenas uma mulher e por norma não se inspira na mitologia ou na história para esculpir. A inspiração para esta escultura diz-me: “foi a Inês e todas as Ineses do mundo”. A inspiração é “o que entre pelos olhos adentro” e neste caso deixa claro que a inspiração foi a mulher. Há também quem diga que esta escultura representa uma ninfa, o que pode ser porventura explicado por se encontrar na água. Mas como já referido na identificação da peça, a menina não foi feita com a finalidade de ser mostrada no lago.


Dos dois tipos de representação da mulher na obra de João Cutileiro, esta menina encontra-se claramente na representação clássica e fiel ao real da figura feminina sem uma conotação sexual explícita, a que homenageia a mulher como fonte de vida. O corpo é o tema assim como o estado é o tema. O estado tranquilo como se encontra repousada em águas paradas. Desinibida, calma, serena, a dormir numa cama de água.

Descrição Formal Materiais usados: Mármore e pedra preta (a pedra preta não foi possível identificar ao certo que tipo de pedra é, o escultor não se recorda exactamente e no museu também não havia qualquer informação). Técnica: Escultura de vulto. Dimensões: (80*50)cm, a base em que se encontra a peça é um paralelepípedo de pedra que está colocado no canto inferior esquerdo do lago com a altura do nível das águas, que é relativamente baixo, será até considerado mais um espelho de água). Envolvência imediata da obra: A obra está exposta no lago em frente à Casa de Mateus em Vila Real, Portugal. O Lago, um espelho de água construído nos anos cinquenta do século XX, reflecte a imagem da fachada principal. A escultura de João Cutileiro, que desde 1981 dorme no Lago, integrou já a imagem da Casa. Existe uma interligação da menina com o lago e especialmente com as águas, o reflexo que se cria evidencia da melhor forma as formas da estátua que fazem jus às da mulher. A menina a repousar no lago faz com que a casa pareça ter um ambiente muito mais histórico e fantástico como se houvesse uma história para ser contada.


Texturas: A textura da peça é predominantemente lisa, embora a pedra preta que faz o cabelo da menina tenha uma textura um pouco mais rugosa. O trabalho na obra de Cutileiro nunca é polido. Para o mestre, polir a pedra é como acabar o trabalho e Cutileiro diz “não gosto de acabar, do conceito de acabar”, “não gosto do perfeito”. Eixos/ Linhas de leitura: Paralelos horizontais. Relação estátua-base: A meu ver a base tem meramente a função de suporte embora seja de facto essencial para a composição do cenário (se não tiver a altura certa, não aparenta estar deitada sobre as águas), desse ponto de vista relaciona-se com a composição. A base não é para ser vista é para fazer ver a peça do modo certo.


Análise Estilística João Cutileiro afirma não se filiar num determinado estilo. Os outros que definam o seu “estilo” pois João Cutileiro diz não ter um, nem o querer ter. “Os críticos que falem da técnica e do estilo.” Estas palavras são proferidas por alguém ressentido pelo seu trabalho e as suas palavras já terem sido mal interpretadas por outros e agora decide que não falar sobre o assunto é a melhor forma de garantir que isso não torna a acontecer. Cutileiro encarna a definição de escultor que Alberti deu no século XV: “homem que, ao remover o supérfluo, revela a figura que se encontrava escondida no interior de um bloco de mármore” tal como na definição, Cutileiro revela a imagem que vê no bloco de pedra, através da remoção do supérfluo. Esse é o seu método de trabalhar a pedra. Desde cedo, João Cutileiro preferiu trabalhar em materiais não plásticos como a pedra e o gesso. A arte de Cutileiro, mais próxima da escultura do que da cerâmica sempre foi pré-determinada não cedendo lugar a improvisações. Não gosta de planear o que vai fazer porque segundo ele, “o desenho da obra passa pela maneira de a fazer e a maneira de a fazer passa por fazê-la no momento”, por isso não faz quaisquer estudos preliminares. Quando contacta com a pedra é o escultor, a máquina e a própria pedra que resolvem como trabalhar. Existem nas duas formas de escultura, com processos bem diferentes: na escultura em pedra parte-se do bloco para a forma acabada, subtraindo matéria ao passo que na escultura modelada em barro nasce uma estrutura (de metal ou madeira) numa espécie de esqueleto sobre o qual se vai depositando o barro, aumentado-se o volume e a matéria, quando a escultura vai crescendo para a forma acabada. 1963 é um ano essencial na obra de Cutileiro pois dá-se uma viragem no seu estilo, relacionada com uma necessidade de afirmação da personalidade própria e que passa por uma profunda modificação ao nível da técnica. É então que se dá a descoberta da técnica que permite ao artista uma realização muito mais rápida do que se trabalhasse com os instrumentos tradicionais do escultor. Ao experimentar utilizar a máquina, o artista verificou que as primeiras semanas de trabalho a escopro e a martelo se podiam conseguir num só dia. Esta descoberta leva o artista a aperfeiçoar o uso da máquina e a assumir a linguagem especifica deste processo. As máquinas de cortar e perfurar, passaram a possibilitar um contacto com a escultura de ordem diferente. Digamos que a pedra se “transformou” em madeira. A dureza, a resistência e a morosidade que o material oferecia, passaram a ser rapidamente ultrapassadas e a pedra “tornouse dúctil”. O trabalho de Cutileiro em pedra é então fiel à definição de Giorgio Vasari de escultura: “uma arte que, pela remoção de tudo o que é supérfluo no material trabalhado, o reduz à forma gravada na mente do artista”. A inspiração vem-lhe daquilo que o rodeio e da interacção entre artista, máquina e pedra. João também não tem uma interpretação elitista da sua arte, afirmando-se antes como um fazedor de peças decorativas.


A partir da observação e análise das suas peças é fácil retirar algumas conclusões acerca do seu “estilo”. O facto de as esculturas nunca terem um aspecto acabado, polido, perfeito. Ficam sempre com um aspecto um tanto ou quanto bruto, que lhe confere a qualidade honesta e verdadeira do corpo da mulher real e não da mulher no sentido perfeito e platónico que muitas vezes os artistas preferem adoptar. Este aspecto mais imperfeito advém do facto do mestre Cutileiro admitir que não gosta do conceito de acabar. Por não gostar do conceito de acabar é que talvez também responde que a sua obra favorita é “a que ainda não fiz”, conferindo à sua obra continuidade. Numa expressão, a obra de Cutileiro caracteriza-se pela continuidade temática e unidade dos processos e pela coerência ao seu labor criativo.


Análise Crítica A menina da Casa de Mateus é um elogio a figura feminina numa abordagem simultaneamente sensual, mística e ingénua . Sendo o feminino um tema recorrente em Cutileiro, aqui ele não se reveste de um cunho erótico. O artista retrata uma mulher-menina e imortaliza-a num momento de abandono e fruição. A menina é uma homenagem a mulher como fonte de vida, de harmonia e de sensualidade. O contraste entre o mármore leitoso e polido do corpo com o mármore cinza e rugoso do cabelo, transmite a perfeição e imperfeição características do ser humano, conferindo maior naturalidade a peca . A sensação de leveza e equilíbrio do conjunto remete-nos para os ideais de perfeição e beleza dos mestres de renascimento, que também fascinaram João Cutileiro. A simplicidade, despojamento e naturalidade com que dorme sobre o espelho de agua contrastam com a riqueza arquitectónica do barroco presente na construção da casa. As dimensões da menina tornam-a real e próxima , permitindo um jogo de sedução e interacção com o espectador e o enquadramento em diferentes espaços. Embora não tenha sido especificamente concebida para a Casa de Mateus , a menina parece ter aqui encontrado o seu espaço cenográfico, tendo-se tornado um ícone da casa.



A casa A Casa de Mateus foi mandada construir na primeira metade do século XVIII por António José Botelho Mourão, 3º Morgado de Mateus. Substituiu-se à casa da família já existente no local em inícios do século XVII. Em 1911 é classificada como Monumento Nacional. A arquitectura barroca, de gosto italiano, é atribuída a Nicolau Nasoni pela coerência do estilo e semelhança com outras obras de sua autoria. Segundo Robert Smith, especialista na sua obra, o arquitecto terá dedicado à construção da Casa, ou pelo menos à sua fachada central e decoração, os anos entre 1739 a 1743. Para além do esplendor barroco da fachada principal e da riqueza da decoração, composta por cimalhas curvas, frontões, pináculos e estatuária, impressiona a racionalidade da planta e o rigor da métrica e da modulação. A planta inscreve-se num rectângulo, e divide-se em dois quadrados vazados ao centro, que criam várias alas e compõem dois pátios ligados entre si por grandes aberturas no piso térreo. O pátio frontal é aberto libertando a vista da fachada principal recuada e voltada a poente, e o posterior é encerrado, e definem através dos grandes vãos do rés-do-chão um eixo central de perspectiva que atravessa toda a construção, e constitui um enfiamento de expressão clássica e grande harmonia. O acesso ao piso nobre faz-se por duplas escadarias que se repetem nas fachadas transversais dos dois pátios, duas a poente e uma a nascente, e acentuam a simetria e o movimento barroco de toda a ornamentação. No 1º andar, entre os pátios e com fachadas sobre ambos, ao centro da construção e definindo a linha de união dos dois quadrados que compõem a planta, localiza-se o Salão de Entrada. Dá acesso a norte e a sul, respectivamente à Biblioteca e ala de quartos, e à Sala do Tijolo e ala das salas. As duas alas são ligadas entre si no topo nascente através de uma ala com quartos que dá acesso ao Coro da Capela. O granito amarelo constrói as paredes duplas e desenha as cantarias, e a madeira de castanho aparente compõe as portadas, a talha que trabalha os tectos de caixotão simples ou abobadado e as sobreportas com motivos da heráldica da família. Completam o conjunto a Capela e a Adega, contribuindo para a monumentalidade da leitura global, com as suas volumetrias de grande harmonia. A partir de 1979 o actual Presidente da Fundação, D. Fernando de Sousa Botelho de Albuquerque, e sua Mulher D. Maria Amélia, adaptam todo o conjunto às actividades culturais de sua iniciativa. No princípio da integração e respeito pelo existente, embora sem prejuízo da introdução de critérios de modernidade são restaurados e reabilitados a Casa e os anexos agrícolas. É criado um circuito expositivo alargado e vários novos núcleos de exposição que integram o espólio da Família e complementam o Museu, que é remodelado. O Barrão da Eira é recuperado para apoio à realização das actividades da Fundação sendo construídos, em anexo, camarins de apoio; a Adega sofre obras de recuperação e é equipada de acordo com as novas exigências técnicas; e o antigo Lagar de Azeite é reabilitado e ampliado para a instalação da Residência de Artistas.


A escultura de João Cutileiro, que desde 1981 dorme no Lago, integrou já a imagem da Casa. A Fundação da Casa de Mateus foi instituída em 3 de Dezembro de 1970 por D. Francisco de Sousa Botelho de Albuquerque, Conde de Mangualde, de Vila Real e de Melo, que doou uma parte substancial do seu património a esta instituição. Os seus objectivos eram claros: garantir a persistência no tempo de um Património e partilhar uma Memória que a Casa de Mateus corporiza e simboliza. Essa preocupação não era exclusivo apanágio do instituidor. Muito tempo antes dele, ao longo de sucessivas gerações, os seus antepassados foram construindo as bases e reunindo os meios que permitiram a salvaguarda do património familiar. D. Francisco soube interpretar este padrão familiar, actualizando-o e criando as condições necessárias para a sua viabilização no século XXI. Os fins estatutários da Fundação da Casa de Mateus são a preservação da Casa, o estudo do seu arquivo e a promoção de actividades culturais, científicas e pedagógicas. Hoje a Fundação é uma organização dinâmica, voltada para a Comunidade e ao promover o conhecimento e a excelência nas suas mais variadas intervenções, ocupa um lugar de destaque no panorama nacional e internacional, para o qual aponta o esforço colectivo e individual da família do instituidor. A Fundação da Casa de Mateus tem por objectivos principais: a conservação do monumento nacional – Casa de Mateus; o restauro e melhoramento da casa, jardins, capela e demais dependências; a catalogação e estudo de todo o arquivo, promovendo a publicação do que de interesse histórico, político, militar, social, económico e artístico nele se encontre; a admissão de estudiosos, à consulta e estudo de todos os documentos e demais elementos de interesse que possua, bem como do público à visita do monumento; a acção cultural e educativa e artística que seja compatível com o monumento e decidida pelos directores; a manutenção do culto na capela anexa, nas condições actuais, mantendo as missas e obrigações instituídas pelos Morgados de Mateus e seus sucessores até ao instituidor desta Fundação.


O mestre João Cutileiro. Escultor. 77 anos. J.C. é, no actual panorama da escultura portuguesa, um caso de indiscutível modernidade e de heroísmo profissional. A capacidade de criar estruturas de trabalho e apoio tecnológico à actividade de escultor é em Cutileiro algo que deve ser considerado raro, senão único. Cutileiro propõe a sua definição profissional nos seguintes termos: “Verifico que não sou artista, mas manufacturante de objectos decorativos para a burguesia intelectual do Ocidente”, burguesia a que o mestre pertence e com a qual estabelece uma troca de serviços. Escultor do erótico e do feminino, o obra de Cutileiro cifra-se em milhares de peças, pois que a sua capacidade de produção situa o artista fora de quaisquer possíveis termos de comparação com casos portugueses, sendo o seu exemplo de profissionalismo olhado como exemplo por toda uma geração de jovens escultores. Cutileiro é sem duvida um artista isolado, quer na sua geração quer na estética que a sua arte introduz. Na obra de JC distinguem-se três tipos: a escultura de pequeno formato que o artista considera “escultura de pastor”, a escultura cujas dimensões estão próximas do tamanho natural da figura humana e a estátua ou figura maior. “todo o homem tem ambição de deixar uma marca da sua passagem pela terra que tenha um pouco mais do que a sua própria dimensão: o megalito é disso um exemplo”. João Cutileiro nasceu 26 de Junho de 1937, segundo filho de José Cutileiro, um médico natural de Évora, onde, enquanto criança, o escultor passou as suas férias. O Alentejo permaneceu sempre tema e fonte inesgotável de materiais, na poética e na técnica do escultor. Desde cedo que João se interessou por escultura, desde sempre soube que queria ser escultor. Lembra-se de muito jovem ao pegar em barro pela primeira vez sentir uma emoção forte “como a primeira vez que se toma cocaína, uma experiência a repetir sem cessar”. A família de Cutileiro era uma família de ideias democráticas e não religiosa, o que, no meio português e na geração de cuitelão, de certo modo era raro. A educação familiar do artista demarcou-o socialmente um pouco portanto. Dos onze aos treze anos, Cutileiro trabalhou no atelier de Jorge Barradas a quem, segundo o artista, ficou devendo o seu exuberante espirito decorativo e gosto pela “assemblage” de elementos de diferente cor. Aos 14 anos, a família de João passa um ano no Afeganistão, o pai do artista trabalhando como medico para a OMS. À ida para esta estadia, a família passa algum tempo na Suíça, e João, sozinho, vai visitar Florença. Esta visita foi importante para o artista, particularmente a impressão colhida do David, de Miguel Angelo. Foi também aos 14 anos que realizou a sua primeira exposição individual de escultura, cerâmica, aguarelas e pintura em Reguengos de Monsaraz. Aqui lê-se de uma crítica de um jornal publicada na altura: “Ainda que as qualidades referidas ressaltem nas varias modalidades tentadas, quer-nos parecer que é na escultura e na cerâmica que está a vocação deste artista ainda menino”. Trata-se de uma critica encorajadora, e em que, justamente, se comenta a apetência de Cutileiro para tratar preferencialmente os problemas da volumetria e da assemblage cromática.


Aos 16 ingressa na Escola de Belas Artes de Lisboa onde permanece apenas 2 anos. Na escola foi aluno de Leopoldo de Almeida, cujos ensinamentos não constituíram um modelo a seguir; segundo declarações do artista, com ele aprendeu sobretudo o que não se devia fazer. Nunca a estatuária oficial, auto-confiante e comemorativa das vitórias portuguesas interessou à estética de Cutileiro. Aos 18 anos parte para Londres onde vai frequentar a Slade School of Art. A ideia de partir para Inglaterra surgiu por necessidade de confronto com a mentalidade anglo-saxónica, mais organizada e disciplinada que a nossa. Na Slade School estudou desenho e escultura tendo principalmente trabalhado com Reg Butler, artista que iria ter decisiva influência na sua obra. Recebe o diploma em 1959 e é convidado por Reg Butler para ser seu assistente de atelier, actividade que apenas durou 6 meses. Os primeiros anos de diplomado passou-os João Cutileiro afirmando a vontade de sobreviver apenas pelo seu trabalho, sem qualquer apoio económico que não fosse obtido exclusivamente através do seu esforço, o que leva o artista a não renovar os pedidos de bolsa à Fundação Calouste Gulbenkian. Mas não apenas como o escultor o artista pode sobreviver. Trabalhou como canalizador, emoldurador, modelo, fotografo, serralheiro e crítico de arte na BBC. Ao longo do desenvolvimento da sua obra expôs por todo o mundo (Portugal, Alemanha, Estados Unidos da América, Macau, Luxemburgo, Bruxelas, entre outros) onde ganhou vários prémios e menções honrosas em concursos e reconhecimento no mundo da escultura e da arte portuguesa. Voltou definitivamente para Portugal em 1970 e decide viver e trabalhar em Lagos, onde constrói a obra mais polémica da sua vida: o “D.Sebastião". Actualmente e desde 1985 vive em Évora, local de nascimento do seu pai e de muitas memórias da sua infância e juventude. É na sua casa que está exposta uma grande parte do seu leque de obras. Durante a minha visita à sua casa, em Janeiro de 2015, conta que vai agora começar a trabalhar numa peça encomendada pelas famílias dos jovens que foram vítimas na tragédia do Meco, como já foi noticiado nos media.


A comparação Já que há quem chame à “Menina Deitada”, ninfa, achei apropriada a comparação desta obra de Cutileiro com uma outra que se encontra no Parque da Nações em Lisboa e que esta sim trata da representação de ninfas. São um conjunto de esculturas de figuras femininas em pedra mármore que evocam as Tágides, figuras míticas Camonianas em torno de uma falua, barco tradicional do Tejo. As tágides de Cutileiro são meninas nuas a brincar na água: soltas, despreocupadas. O escultor chamou-lhes “Tágides” por Camões ter assim denominado também as ninfas que viveriam no rio Tejo e às quais ele pediu inspiração para escrever “Os Lusíadas”. As ninfas, segundo a mitologia, são seres que vivem nas águas dos rios e dos mares (“Os Lusíadas”, Canto I, Estrofes 4 e 5, "Invocação às Tágides”). Além de serem ambas as peças em mármore e se encontrarem expostas na água estas esculturas não tem nada mais em comum. A técnica é completamente diferente sendo que estas são muito menos “tridimensionais”.

Não posso também deixar de fazer uma comparação, esta mais em termos da temática, da técnica e do estilo. João Cutileiro foi claramente influenciado por Reg Butler, o seu professor na Slade School of Art em Londres. Pelos exemplos abaixo, são evidentes as similaridades entre os dois na forma de representar o corpo da mulher, embora seja importante referir que Reg Butler, muito ao contrário de Cutileiro, representa as mulheres em posições muito pouco naturais por vezes até acrobáticas, coisa que não acontece em Cutileiro pois as suas meninas estão sempre bastante relaxadas e também o facto de as obras de Butler serem polidas, estando com aspecto muito mais acabado que as de Cutileiro.


“À solidão ofereces outra. Na dor do mundo cavas a tua. Abres um oco dentro do oco. E nesse nada cabe tudo.” - José Cutileiro


A conclusão João Cutileiro tem uma abordagem marcadamente inovadora em relação à escultura portuguesa do inicio do séc. XX. Ao romper com a estatuária tradicional, afastando-se da escultura equestre e do bronze, inicia um percurso muito próprio a nível de temáticas e de materiais . Joao Cutileiro recusa o herói clássico e prefere abordar temas do quotidiano, como a mulher, as árvores, as flores. As suas peças apresentam uma dimensão mais humana e natural e, em especial, as suas Meninas parecem respirar, viver e conviver connosco em situações do dia-a-dia. O material que escolheu trabalhar - o mármore - permitiu-lhe uma maior plasticidade nas formas, sobretudo na representação das formas femininas, ora sensuais ora exóticas, que são transversais a toda a sua obra. Ao romper com a tradição, João Cutileiro assume-se como um “anti-artista", afirmando que as suas obras não se filiam em quaisquer correntes artísticas ou estilísticas, não passando de meras peças decorativas. Esta forma simplista de encarar a arte tem reflexo numa obra marcadamente naturalista e inspirada no que o rodeia. Em João Cutileiro a arte é inata e uma função vital, tão natural como respirar. Obra de arte ou peça decorativa, a Menina Deitada da Casa de Mateus emociona-nos com a sua pose naturalmente adormecida. E uma coisa é certa "a Casa não é a mesma sem a menina”.


Bibliografia Wohl, Hellmut, Ribeiro, José S., "João Cutileiro - Exposição Ontológica", Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1990. Cardoso, Miguel Esteves, Lopes, Gérard C., "As Lorelei de João Cutileiro", Porto Editora, Porto, 1989. Chicó, Silvia,"João Cutileiro", Catálogo da Exposição de Cutileiro na Galeria 111, Lisboa, 1972. "O corpo na obra de João Cutileiro: algumas esculturas de colecções de médicos", Acta Médica Portuguesa - Revista de Ciências Médicas, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1981. Blogue, Mitologia Grega. Disponível em: http://eventosmitologiagrega.blogspot.pt/2011/02/ocastigo-das-danaides.html. Consultado a 23 de Janeiro de 2015. Blogue, João Cutileiro. Disponível em: http://joaocutileiro.blogspot.pt/. Consultado a 23 Janeiro de 2015. Website, Biografia João Cutileiro. Disponível em: http://www.citi.pt/cultura/artes_plasticas/ escultura/cutileiro/biogr.html. Consultado a 24 de Janeiro de 2015. Website, Biografia João Cutileiro. Disponível em: http://www.portal-earte.com/ desktopdefault.aspx?tabid=1&module=Autores&autorId=19. Consultado a 24 de Janeiro de 2015. Website, João Cutileiro. Disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Jo%C3%A3o_Cutileiro. Consultado a 24 de Janeiro de 2015.


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