Revista Férula nº2 Dezembro 2012

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Revista nº2 Dezembro

O Institutionum Disciplinae: uma proposta de análise comparada

Controvérsias sobre a Causa do Prior do Crato

Roteiro Histórico do Egipto Breve Resenha Histórica do Fundamentalismo, Fanatismo e Radicalismo

Outras Conversas com Pedro Estácio


Editorial

Índice

Saber que o Presente vive das memórias do Passado é uma permissa fulcral para tentarmos No entanto, as novas elites políticas europeias têm descurado a importancia das humanidades e letras e apostado fortemente naquilo que compreendemos por Ciências Exactas (casos da Matemática e Álgebra, entre outras). Não incluo a Economia ou as Finanças como ciências exactas porque não o são. Dependem de um factor único para a sua sobrevivência: as pessoas se assim quisermos chamar. Contudo, as Disciplinas como a História, a Literatura e as Línguas têm sido colocadas num patamar inferior. Não pode haver erro maior nesta política. O desequilíbrio entre ciências só pode levar a uma má formação de sociedades, que aos poucos se esquecem das relações pessoais, da cultura e da comunicação. Mais que tudo, quem estuda as disciplinas do mundo das humanidades e das letras tem de colocar a seguinte questão: porque devemos insistir neste caminho? A resposta é tão mais simples como isto: temos e devemos instruir a sociedade do que foi o seu passado e da importância da cultura na vida do cidadão. A História e quem a estuda é em períodos de crise um problema grave para alguem que a tenta esconder. O caso português actual é uma demonstração dessa situação. É sem dúvida um problema quando a sociedade portuguesa é tratada como se tivesse baixos níveis quer de cultura, quer de consciência histórica. Esquece-se quem governa que foi Portugal uma das primeiras nações europeias a existir como país (1179 com a Bula Manifestis Probatum) e um dos primeiros povos a viajar e a conquistar os “sete mares”. Somos um país Portugal, marcámos a história mundial, rompemos barreiras, tivemos um dos maiores impérios mundiais, contactámos com outras culturas. Contudo, à chegada da 2ª década do Séc. XXI, temos todo esse passado rechaçado e atirado para um pequeno canto. São poucos os historiadores que aindam têm vontade de lembrar à sociedade portuguesa o seu passado glorioso – poderiam haver muitos mais, mas o “ataque” à História e outras disciplinas humanistas no ensino obrigatório tem levado à perda de interesse por parte das pessoas. Claro que não podemos nem devemos viver só do passado, mas devemos olhar para ele para perceber o seu exemplo, os seus erros, os seus momentos marcantes e construir um presente e um futuro que seja no mínimo brilhante e ilustratório do nosso passado. Relembrar os homens dinâmica é imperativo. Necessitamos mais que tudo que quem nos governa reponha urgentemente o equilibro no ensino obrigatório e repense na necessidade de todas as disciplinas coexistirem sob o mesmo telhado, não o das ciências exactas, mas sim do espírito humanista. O meu obrigado, de um colega e amigo,

Agenda Cultural do Instituto Agenda Cultural Externa

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Breve Resenha Histórica do Fanatismo, Fundamentalismo e Radicalismo Controvérsias sobre a causa do Prior do Crato

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27 Cícero traduzido: notas acerca do Infante D. Pedro e Damião de Góis 35 O Institutionum Disciplinae: uma proposta de análise comparada

Comentário Crítico ao Filme O SÉTIMO SELO (DER SJUNDE INSEGLET), 1957 Outras Conversas com Pedro Estácio

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47 Roteiro do Egito 49 Museum collections

Uma visita ao Museu São João de Deus - História e Psiquiatria Amon, Ré e a Legitimação faraónica no Vale do Nilo

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Director da Publicação Francisco Isaac Redactora Chefe Catarina Almeida Conselho de Redacção João Camacho, Amanda Coelho, Catarina Almeida, António Teixeira e Ricardo Martins. Edição Laura Saldanha

Francisco Isaac Lembrando o Passado, Pensando o Futuro

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Laura Saldanha e Gonçalo Ribeiro Não nos pertencem quaisquer direitos de uso da imagem.

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Agenda Cultural do Instituto até agora...

...a não perder!

Dia 29 de Setembro de 2012 – Encontro de História: Território, Quotidiano e Sociabilidades

Novembro/Dezembro – Iniciação às Culturas: Coreana, Indiana, Egípcia e Árabe

O Instituto PAEHI em associação com a Câmara de Sobral de Monte Agraço realizou o encontro de História: Território, Quotidiano e Sociabilidades integrado na linha de História Local e Nacional do Instituto PAEHI. O colóquio contou com a presença dos sócios honorários Prof. Doutor André Simões, Profª. Doutora Manuela Santos Silva, Profª. Doutora Isabel Drumond Braga e a Profª. Doutora Ana Leal de Faria. Com uma audiência agradável o encontro decorreu bastante com a presença de algumas personalidades. De salientar o trabalho realizado por parte do coordenador do Encontro, António Filipe, que permitiu levar as ideias e projectos até Sobral de Monte Agraço. Como última nota destacamos a presença entre os comunicantes de D. Manuel Clemente, o Bispo do Porto.

Durante os meses de Novembro e Dezembro o Instituto PAEHI vai organizar o workshop Iniciação às Culturas: Coreana, Indiana, Egípcia e Árabe na sua sede. Pretende-se com este workshop divulgar e dar algumas noções básicas de cada uma das culturas escolhidas. As sessões serão administradas por João Camacho (Cultura Egípcia), Amanda Coelho (Cultura Árabe), Catarina Almeida (Cultura Coreana) e Ricardo Martins (Cultura Indiana). Para participar nestas sessões deve aceder ao site do Instituto e seleccionar Viagens e Cursos, Eventos e Cursos do Instituto. Aí preencha a ficha de Inscrição disponibilizada e envie para o endereço de correio electrónico que consta no convite.

Dia 30 de Outubro de 2012 – Novas Investigações na História Interdisciplinar: Problemáticas da Investigação Realizou-se na Sociedade de Geografia de Lisboa o Colóquio Novas Investigações na História Interdisciplinar: Problemáticas da Investigação com o inicio marcado para as 09:30. O colóquio foi dividido em duas partes, a primeira serviu para apresentar diversas teses de mestrado e doutoramento explicando o processo de investigação e reflexão na construção de uma dissertação. A segunda parte foi dedicada a um debate entre os diversos intervenientes moderado pelo Professor João Abel da Fonseca. O encontro sobretudo interessante para os jovens estudantes em licenciatura que marcaram presença na sessão. Por último queremos expressar os nossos agradecimentos à Sociedade de Geografia de Lisboa, em particular ao seu Presidente, o Professor Doutor Luís Aires-Barros, que tem apoiado as diversas iniciativas do Instituto PAEHI.

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20 de Novembro de 2012 – O local no Nacional A Importância do Baixo-Vale do Tejo na Construção de Portugal - desde 1147 até 2010 A Sociedade de Geografia de Lisboa, o Instituto de Cultura Europeia e Atlântica e o Instituto PAEHI associam-se para realizar o Colóquio O Local no Nacional - “A Importância do Baixo-Vale do Tejo na Construção de Portugal - desde 1147 até 2010” a acontecer no dia 20 de Novembro na Sociedade de Geografia de Lisboa. O colóquio tem hora marcada para as 09:30 com a presença de diversos intervenientes como Prof. Doutor Pedro Gomes Barbosa, Prof. Doutor Diogo de Abreu, Almirante José Bastos de Saldanha entre outros. Para todos os interessados em História de Portugal, os Problemas Geográficos e Recursos Energéticos este colóquio terá substancial importância pela sua novidade. Para realizar a inscrição basta aceder ao site do Instituto e seleccionar Viagens e Cursos, Eventos e Cursos do Instituto.

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Agenda Cultural Externa

Museu da Música Evocação de Júlia d’Almendra 4 de Outubro de 2012 a 5 de Janeiro de 2013 Entrada Livre para os sócios Centro Ward de Lisboa A exposição pretende, sobretudo, dar a conhecer ao público aspectos relevantes da importante acção de Júlia d’Almendra no universo da Música Sacra em Portugal a partir da década de cinquenta.

30 de Setembro a 30 de Dezembro de 2012 Padrão dos Descobrimentos, Lisboa De 3.ª a Domingos, das 10h às 18h30

Ilustrada com documentação rica e variada do seu espólio musical, é constituída por três núcleos que documentam temas distintos, mas complementares, da acção pioneira de Júlia d’Almendra: o movimento gregoriano, o movimento organístico e o movimento a favor do Método Ward para o ensino da Música a crianças em idade escolar e pré-escolar.

O Padrão dos Descobrimentos apresenta o Álbum de Memórias. Índia Portuguesa 1954-62, assinalando os 50 anos do regresso do último contingente militar da Índia Portuguesa. Criado a partir de fotografias, documentação e recordações dos militares portugueses, espólio recolhido por Fernanda Paraíso, com o apoio da Associação Nacional de Prisioneiros de Guerra (ANPG), retrata a vida dos militares, prisioneiros de guerra na sequência da ocupação indiana dos territórios portugueses na Índia, em Dezembro de 1961, até ao momento do seu repatriamento. À presente exposição, comissariada por Fernanda Paraíso, une-se o contributo do Observatório Político que introduz o enquadramento complementar para a compreensão do quadro histórico e político de meados do século XX, no qual se inscrevem os acontecimentos narrados.

Em complemento à exposição, decorrerá até Janeiro um ciclo de eventos, nomeadamente concertos, conferências e demonstrações Ward (para crianças do pré-escolar e primeiro ciclo mediante marcação prévia).

O Minho de Camilo C. Branco Visita Cultural a S. Miguel de Seide (V. N. Famalicão) 27 de Outubro de 2012 Uma visita que assinala os 150 anos da publicação de “Amor de Perdição” da autoria de Camilo Castelo Branco. O preço é de 35 euros (inclui transportes, almoço e ingresso nos museus), e a inscrição deve ser feita junto da Divisão de Ação Cultural, à Casa Municipal da Cultura (limitadas e pagas no acto de inscrição. Programa: Até 31 de Março O Cardeal D. Henrique nas memórias municipais do seu mecenato | Arquivo Municipal Évora (Rua de D. Isabel) Dias úteis, das 9:00-12:30|14:00-17:30

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Esta exposição pretende sublinhar o papel e a importância do Cardeal na cidade de Évora enquanto regente e rei. Exposição esta patente no Arquivo Municipal, comemorativa do 5º centenário do nascimento do Cardeal D. Henrique. Para mais informações: 266 777 000 (Ext. 1356) | cmevora@ mail.evora.net

07h45 | Saída da Casa Municipal da Cultura 11h00 | Visita à Casa de Camilo (S. Miguel de Seide) 13h00 | Almoço (S. Miguel de Seide) 15h30 | Visita ao Museu Bernardino Machado (Vila Nova de Famalicão) 17h30 | Regresso a Coimbra Para mais informações telefone para: 239702630

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ca e histórica da escritura. Contudo entre os teólogos muçulmanos não existe qualquer aproximação liberal ou modernista ao alcorão, e assim todos os muçulmanos podem ser vistos como fundamentalistas. No entanto o que difere dos verdadeiros fundamentalistas islâmicos e os outros (…) é na diferença da sua escolástica e ideais. Esses baseiam-se não só no Corão, mas também nas tradições do Profeta, e no corpo de leis teológicas e legais. 6” São diversas as opiniões sobre o termo fundamentalismo aplicado mais comummente ao

Breve Resenha Histórica do Fanatismo, Fundamentalismo e Radicalismo Francisco Isaac

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Investigador do Instituto PAEHI – Associação para Estudos Históricos Interdisciplinares/ Investigador do Instituto Alexandre Herculano, Estudos Regionais e Autárquicos

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É algo problemática em atribuir esta frase a W. Churchill pois mesmo tendo sido dita pelo ex-primeiro ministro inglês, a sua origem pode ser & Wisdom of Winston Churchill, 1999, p. 4

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Making of a Radical, Boletim da Associação Americana de Professores Universitários, vol. 41, nº2, 1955, pp. 299-309

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Ver Malise Ruthven,

Meaning”. Oxford: Oxford University Press, 2005

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Ver Dicionário Inglês, Oxford University, p. 110

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O fanatismo, o fundamentalismo e o radicalismo tomaram conta do Mundo à “entrada” para a segunda década do séc. XXI. É verdade que sempre existiram nas “ entranhas ” das diferentes sociedades, no entanto, assistimos agora a um aumento da incompreensão entre religiões, sociedades, culturas e sobretudo ideias. São diversos os momentos na História nos quais podemos observar o aspecto do radicalismo, fanatismo e fundamental ismo, lembrando que estes são aspectos e características das sociedades. Pretendo neste artigo explorar alguns momentos fracturantes da História onde as particularidades dos aspectos atrás referidos “forçaram” a uma mudança ou mutação do “planeta”.

sendo que o lado que usa o terrorismo, o discurso agressivo e de combate ao inimigo, seja cristão ou seja o muçulmano que não aceita o comum, deve ser entendido como um movimento revolucionário7. Passemos então à problemática histórica das correntes radicais, fanáticas e fundamentalistas. As Cruzadas são observadas hoje em dia mais como uma guerra da religião e pela religião que, pelas supostas e contínuas atrocidades cometidas, causaram diversos problemas entre diferentes culturas. Se ouvirmos a opinião geral do público8 contemporânea, vêem as investidas ocidentais sobre o mundo islâmico como uma demanda da Cristandade pela conversão e no processo terá causado o massacre e destruição de cidades e comunidades árabes e islâmicas. Contudo se nos ocuparmos um pouco melhor sobre o tema, veremos que a realidade actual ou as considerações actuais estão desajustadas com os motivos e resultados da época do acontecimento da primeira cruzada.

“O uso do termo [fundamentalismo] é aceite, no entanto permanece desenquadrado e pode até enganar. “Fundamentalismo” é um termo cristão (…) particularmente aplicase áqueles que mantêm o estudo literal da origem divina da Bíblia. Desta forma opõe-se contra o método dos teólogos modernos, que tendem a apresentar uma visão mais críti-

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Em caso de interesse consultar as obras de John Esposito ou Anthony Dennis ambos politólogos americanos que têm discutido amplamente o problema do fundamentalismo islâmico. O primeiro com a obra A Ameaça Islâmica: Mito ou Realidade? Publicado pela Oxford University, e do segundo O Erguer do Império Islâmico e a ameaça para o Ocidente publicado por Wyndham Hall Press 2008 O elemento da Opinião Pública é fundamental para compreender o senso comum de uma sociedade. Se por vezes o caminho escolhido por uma determinada sociedade é o errado, é só observado por aqueles que possuem um estado de espírito equilibrado e que procuram fundamentalmente estudar os assuntos até à raiz. O senso comum de uma sociedade, ou de uma senso ou um bom juízo a uma situação, ideia, acontecimento ou princípio.

Radicalismo por sua vez provém da palavra radicalis (pelas raízes, cheio, completo) e eno ou mesmo drástica – isto se já estivermos a estudar o termo do ponto de vista ideológico.

ores, terá tido o seu nascimento no séc. XIX com uma escola de teólogos presbiterianos em Princeton4 princípios fundamentais de um corpo de leis, ideias ou cânones” 5, sendo que para cristãos e islâmicos tem mais interpretações. Enquanto os primeiros defendem que o fundamentalismo cristão é acreditar nas palavras da Bíblia como divinas e verdadeiras sendo a Bíblia a principal e única lei do mundo, já os segundos defendem que o al-Corão e a Sharia são os verdadeiros e único caminho do verdadeiro Islão. Ambas as ideias não permitem mente negado. Bernard Lewis um dos maiores arabistas da idade contemporânea expõe algumas ideias sobre o fundamentalismo:

Ver Bernard Lewis, A Linguagem Política do Islão, Colibri, 2007, pp. 116-117

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damentalismo para uma melhor compreensão dos termos e de como ele se aplica na realidade. O primeiro provém da palavra latina fanaticus (inspiração, entusiasmo) sendo que hoje fanatismo é entusiasmo/apoio ou total dedicação/entrega a uma religião, partido ou guia mudar de opinião nem de tema de conversa” 2.

membro do parlamento inglês invocou diversas vezes que a Grã-Bretanha tinha de sofrer “uma reforma radical” em relação às leis coloniais 3.

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Fig. 1 : Arqueiro Seljúcida Séc. XI-XII. Fonte: Osprey

“Pregada” em 10959 pelo Papa Urbano II, levou a que diversos nobres e guerreiros “europeus” se deslocassem até à Terra Santa para a libertar da opressão “turca” de então. Ao analisarmos bem este motivo da primeira cruzada – que não é o principal mas é o mais atacado e apontado como símbolo da intolerância cristã – podemos constatar que a guerra não foi contra o Islão propriamente dito. Foi sim contra a dinastia Seljúcida 10, força esta, aterrorizante para com os peregrinos que se deslocavam até Jerusalém em peregrinação. Mais, a guerra contra esta dinastia “turca” era bem vista pelas populações árabes que viam idas 11. Ora, poucos sabem desse dado e mesmo os poucos que têm conhecimento não o referem porque não serve para alimentar os seus interesses e principalmente o discurso do Síndrome de Culpa do Ocidente. Regressando aos motivos da primeira cruzada, o principal terá sido, sem dúvida, o aumento de violência entre as populações europeias cristianizadas e a necessidade de deslocar guerreiros para outras regiões de forma a obterem o seu espaço. As constantes guerras privadas quer entre gentes da mesma fé quer entre famílias, suscitaram um certo desassossego no papado que observava com atenção a chegada de duas

Ela já teria sido pregada antes em 1085 por Alexis Comneno quando Constantinopla pediu auxilio perante a ameaça Seljúcida que a 1071 obtiveram uma vitória importantíssima contra o Império Bizantino, à qual se apelidou Batalha de Mazikert. Ver Tom Holland, Millennium, Abacus, pp. 352-353 10

Dinastia que proveio do actual Uzbequistão teve quase dois séculos de existência como força militar e política no mundo árabe. O nome provém ao que se pensa do primeiro grande líder Seljuk. Para aprofundar mais este tema ver Carter Finley, “Os turcos no Mundo”, Oxford, Oxford University Press, 2005, p. 50-80 11

Ver René Grousset, A Epopeia das Cruzadas, “A 1ª Cruzada: Godofredo de Bulhão, Raimundo de Saint-Gilles e Boemundo” pp. 34-38

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forças islâmicas – radicais e fanáticas – como os Almorávidas na Península Ibérica e, no Corredor Sírio-Palestiniano, os Seljúcidas como uma ameaça à Cristandade. Vamos deternos brevemente pelo factor dos Almorávidas. Dinastia berber do Norte de África,em 1085 invadiu a Península Ibérica iniciando o processo de retracção da expansão cristã vinda do norte. Para Afonso VI, imperador de Leão e Castela, a Batalha de Zalaka em 1086, terá sido a primeira derrota frente a muçulmanos. Ora esta dinastia berber foi chamada a intervir por diversos reis de Taifa 12 que temiam cair sob o poderio territorial de Afonso VI (politicamente já viviam sob o poder do Im perador pagando avultados impostos para manterem a sua autonomia). Este “grito” de auxílio foi em tudo negativo para estes reis, já que com a chegada dos Almorávidas foram considerados como traidores da fé por terem abandonado o verdadeiro caminho do Islão (algumas acusações terão caído com o consumo do vinho andaluz ou por conviverem com as gentes cristãs 13). Ora este fanatismo e radicalismo islâmico distorce o próprio alcorão e as palavras de Maomé, o último profeta do Islão, que concebeu o al - Corão ( livro onde Maomé transcreve as palavras de Allah).

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Taifa é um Reino Islâmico Independente que tem a sua capital e

sobretudo quando um Califado caía.

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Um dos maiores líderes de Taifa

que pediu auxilio aos Almorávidas acabou destituído dos seus pertences, para Aghmat em Marrocos onde morreu. Ver Adalberto Alves, Ecos de Um Passado Árabe, Instituto Camões 14

Ver Al-Corão, Capítulo 2 versículo 190. 15 16

Vamo-nos agora debruçar sobre um dos temas mais delicados do alcorão. O elemento que pretendo analisar é a guerra no contexto islâmico. São vários os lideres extremistas islâmicos que incitam ao ataque e massacre citando as palavras do profeta Maomé numa tentativa de arranjar argumentação divina para as suas ordens. Contudo a mensagem que encontramos no alcorão não é a “pregada” por esses líderes, “Combate pela causa de Allah contra aqueles que te atacam, mas não agridas. Allah não ama os agressores” 14 ou se quisermos indagar um pouco mais sobre o assunto “Se eles recorrerem à paz, também 15 . Por vezes os invasores como os almorávidas ou almóadas – por exemplo- não respeitaram estas Ordens divinas, não se coíbindo de matar crianças e mulheres, algo que, é proibido pelo alcorão. A guerra deve ser feita contra aqueles que estão armados, os que combatem, só esses são passíveis de ser combatidos. Contudo para estes novos convertidos a distorção das palavras de um código religioso é uma situação normal e uma regra pré-estabelecida. A imposição do Império Almorávida na Península Ibérica voltou a causar um mau estar entre as lides religiosas cristãs que viam o seu espaço de influência em perigo. Esta ameaça levou o papado a incitar a uma política de campanhas militares para repelir a pressão islâmica sob a Europa. Abordando ,

Idem Ibidem, 8:61

Ver em Foucher de Chartes, 1ª Cruzada, Lisboa, Inquérito, 2001,pp. 157-158

e germânicas•, estes considerados os mais radicais do contingente cruzado. O relato de Foucher de Chartes, clérigo que acompanhou a primeira cruzada, explicita: “Depois os nossos penetraram todos na cidade e apropriaram-se de tudo o que encontraram de algum valor nas casas ou nos esconderijos. Onde quer que encontrassem um inimigo, homem ou mulher, matavam-no. Não havia um único canto da cidade que não tivesse cadáveres sarracenos, e mal se podia caminhar nas ruas da 16 cidade sem . pisar corpos”. Ora esta descrição entra perfeitamente no complemento do fanatismo. Aos olhos da sociedade é compreendido como um comportamento fanático e radical. Mas se analisarmos do ponte de vista da guerra, a situação pode suscitar divergências de opinião. Que este comportamento levou a que as populações árabes temessem e resistissem aos cruzados, sem dúvida. Mas mais interessante é perceber que este comportamento, levado a cabo principalmente por flamengos e germânicos, era quase que uma “obrigação”. Durante as cruzadas, os guerreiros que permaneceram quer na Baviera quer na Flandres levaram a cabo perseguições especialmente a judeus. Foram várias as vezes que na zona da actual Alemanha guerreiros e civis perseguiram judeus – em 1096 na sequência da primeira cruzada foram destruídas várias localidades judaicas assim como foram mortos judeus em grande número17. Na Alemanha de Hitler na procura de um inimigo comum ao povo alemão a figura do judeu foi a escolhida. Mas antes de analisarmos os focos de radicalismo do séc. XX pretendo terminar a questão medieval. Ao observarmos bem e sem assumirmos um fervor especial por qualquer dos lados, deparamo-nos com massacres e atropelamentos a diferentes culturas por ambos os lados. Tanto cristãos como islâmicos conviveram em paz como combateram na guerra. O fervor religioso foi usado como arma de arremesso por ambos os lados, que muitas vezes não compreendendo as reais palavras quer na Bíblia quer no Al-Corão estabeleciam a sua própria verdade distorcendo regras e ordens espirituais e, em consequência, aplicando na sociedade civil, sem sequer realizar o exercício de reflexão. No entanto, ainda continuamos longe do fundamentalismo islâmico ou do radicalismo neoliberal.

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Ver em Foucher de Chartes, 1ª Cruzada, Lisboa, Inquérito, 2001,pp. 157-158 17

Ver Kenneth Setton ed., History of the Crusades, Madison, 1969-1989

Parece-me oportuno – não dominando este tema particularmente – analisar a Inquisição Espanhola. A Inquisição é hoje em dia observada, uma vez mais pela opinião pública, como a bandeira do fanatismo da Cristandade. Momento particularmente interessante pelo radicalismo religioso imposto por certos lideres religiosos, vale a pena realizar uma

Fig. 2 : Conquista de Jerusalém pelos Cruzados numa iluminura do séc. XIII. Fonte: Wikipedia

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os árabes e os invasores cristãos. O massacre em Jerusalém onde as diversas descrições quase tomam vida, permite-nos uma vez m a i s analisar o radicalismo de uma acção ou comportamento mas também de uma componente social. Jerusalém foi conquistada sobretudo por tropas flamengas

Fig. 3 : Processo Inquisitorial em Espanha. Auto da Fé por Francisco Ricci. Fonte: Museu do Prado Online

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breve análise. A Inquisição Espanhola iniciada em 1478 durante o reinado dos Reis Católicos levou a que judeus, e não só, fossem mortos e expulsos do território Ibérico. Torquemada, a figura principal da Inquisição Espanhola, ficou para sempre associado a uma época de “caça às bruxas” e de fanatismo religioso. É interessante verificar que o surgimento da Inquisição Moderna (há que considerar que durante a época medieval os inquéritos e perseguições feitos aos cátaros e templários podem-se considerar inquisições de espírito e ideologia aproximados à Inquisição Moderna18 faltando a estrutura e a dimensão desta) não foi só para atacar e condenar judeus e mouros, mas também para julgar os heréticos cristãos como os Luteranos ou os protestantes ingleses, isto a partir de inícios do séc. XVI. As guerras religiosas, agora no seio da Europa, levaram a atitudes radicais e a comportamentos fanáticos que promoveram a morte de diversas pessoas, não às mãos da religião, mas de homens que a distorciam chamando a si toda a atenção. É sobretudo interessante que enquanto na Europa se lutava contra o herético, a expansão marítima levou a aniquilação de outras civilizações – isto sobretudo no caso espanhol. Os conquistadores espanhóis durante o séc. XV e principalmente no séc. XVI encetaram uma “campanha” de destruição de outras culturas. As civilizações azeteca e maia desapareceram da história com a invasão espanhola. O radicalismo tomado por parte das hostes conquistadoras ainda hoje é fortemente discutido e analisado. Teriam sido motivados pela fé que levaram a liquidar essas sociedades? Ou foi a forma de reclamar o território, ocupando-o e apropriando-se de todos os bens materiais que encontraram?

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Para saber de mais dados sobre a Inquisição Espanhola e Europeia, and Historical Study of the Coercive Power, of the Church, Forgotten Books, 2012 19

Ver em De la Torre y del Cerro, A.; Alsina, E., Testamentaría de Isabel la Católica, Barcelona, 1974. Consulte também em http://www.ub.edu/ duoda/diferencia/html/es/primario16. html

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Ver Richard Rhodes, Masters of death: the SS-Einsatzgruppen and the invention of the Holocaust, Nova Iorque, 2002, pp. 130-132

Hérnan Cortés chega em 1519 ao golfo do México, onde a operação militar foi de tal forma eficaz e incisiva que em dois anos consegue derrotar e conquistar o Império Azeteca. Apesar da ampla discussão, se os conquistadores respeitaram estas gentes, observamos que rapidamente a sociedade azeteca foi diluída e destituída dos seus privilégios. No entanto, Espanha não assume qualquer Síndrome de Culpa por este efeito. Pelo contrário, tem mantido relações de grande proximidade quer com o México, Peru ou outros países outrora territórios do Império Espanhol. Que o radicalismo mais uma vez levou a uma mudança de paradigmas e arrancou à história mundial outra civilização/sociedade e cultura é a mais pura das verdades. Mas nem Espanha nem os seus conquistadores parece que tenham parado para pensar e reflectir, continuando o seu processo de colonização. Para terminar este pensamento gostaria de indicar algumas das palavras do testamento da Rainha Católica, Isabel I de Castela:

O exército jugoslavo foi acusado pelo gabinete de Bill Clinton em 1999 de liderar uma série de acções de limpeza étnica com a morte de milhares de albaneses em solo jugoslavo. Existem diversas opiniões sobre a intervenção americana no Kosovo, sendo que uns afirmam que foi a forma de afastar o público dos escândalos do então presidente americano, contudo, parece-me que a acção norte-americana tenha sido bem fundamentada. De acordo com alguns analistas forenses que estiveram no terreno, o número de civis mortos pelas forças jugoslavas terão sido à volta de 10,000, isto no entanto sem terem descoberto a maioria dos corpos21. Se tomarmos em conta o relatório do Tribunal Internacional de Haia sobre Mortes e fluxo de refugiados no Kosovo Março a Junho de 1999 este menciona: “A análise é consistente com a hipótese que as autoridades jugoslavas conduziram uma campanha de mortes e expulsões. O cessar-fogo durante a Páscoa Ortodoxa coincide exactamente com a redução drástica de mortes e de fluxo de refugiados, sendo que esta análise reforça a ideia da hipótese estabelecida por este relatório. Cada um destes dados é consistente com os testemunhos da situação no Kosovo durante esse período de tempo, reportado por diversas organizações não governamentais. A coerência entre fases, a relação próxima entre número de mortos e de refugiado e o número de pessoas que passaram fronteiras suporta a ideia de que houve um ataque coordenado contra as gentes de etnia albanesa durante o período de Março a Junho de 1999.” 22

Se as épocas medieval e moderna tiveram os seus momentos de facções e acções radicais e de fanatismo puro, a época contemporânea não escapa aos mesmos problemas. Ao observar o período da Alemanha Nazi, vimos o surgir de uma ideia política que, entre outras, promoveu uma vez mais o ódio contra os judeus e não só, já que as gentes de etnia cigana e eslava sofreram o mesmo tipo de ataques). Ao assassínio de mais de cerca de vinte e poucos milhões de pessoas20 por parte da facção nazi foi chamado de Holocausto. Este acontecimento perturba ainda hoje a humanidade, ou pelo menos, o mundo civilizado – continuam acontecer holocaustos pelo globo fora de menor dimensão mas com o mesmo propósito. Os motivos da eliminação destes grupos étnicos prendem-se com a limpeza de sangue não puro onde a propaganda nazi apontava estes como o inimigo comum de todos os “verdadeiros” alemães, os arianos.

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Entre outros ver http://www.state. gov/www/global/human_rights/ kosovoii/homepage.html. Uma compilação de noticias em relação à guerra do Kosovo http://www.pilates.0rg. pl/?pilates=Kosovo_War 22

Patrick Ball, Wendy Betts, Fritz Scheuren, (…),Killings and Refugee Flow in Kosovo March - June 1999 A Report to the International Criminal Tribunal for the Former Yugoslavia, 3 de Janeiro, Haia, pp. 14-15

“Por quanto tempo que nos for concedidas pela Santa Sé as ilhas e terras do mar Oceano, descobertas e por descobrir, a nossa intenção principal foi de procurar levar aos povos dessas [ilhas e terras] a nossa fé, ensinando e convertendo-os à nossa Fé Católica (…) e as Doutrinas sendo que suplico ao Rei, meu senhor (…) que assim o faça, e coloquem diligências e não consintam nem dêem lugar a crimes nem causem agravos contra aos índios e seus vizinhos, e que sejam bem tratados.” 19

É curioso que no início, H. Cortés e as suas tropas permitiram essa reeducação aos conquistados astecas, mas em pouco o tempo os trataram como gente inferior causando assim o fim da civilização meso-americana.

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O período hitleriano ficou marcado para a História não só com a 2ª Grande Guerra mas também pelo genocídio, em grande escala, de inocentes. Se para os líderes nazis como Adolf Hitler, Heinrich Himmler ou Hermann Göring esta acção foi vista como necessária na afirmação da ideia da raça pura, para a opinião pública foi e é vista como um crime hediondo. Se encontramos particularidades fanáticas como anteriormente nos deparámos com as cruzadas ou a inquisição? A resposta é afirmativa. Não estamos a querer julgar o período, a acção ou os homens que tiveram a ideia, mas sim através de uma análise equilibrada é facilmente perceptível a acção radicalista, pela simples ideia de limpeza de sangue ou de extermínio de uma raça inferior, como afirmavam as lides nazis. Ora, anos mais tarde, na Guerra do Kosovo encontramos o mesmo tipo de acções.

Fig. 4 : Guerra do Kosovo. Fonte: News of the World

Com o final da guerra do Kosovo, Slobodan Milosevic e Milan Milutinovic, este último posteriormente absolvido (houve mais mas estes dois teriam sido os responsáveis máximos pelas acçõesde assassínio de 10,000 civis) foram indiciados por crimes contra a humanidade. Só SlobodanMilosevic foi condenado a prisão, no qual viria a falecer em 2006. É possível sem dúvida afirmar que houve um ataque fanático e radical sobre gentes de outra etnia como acontecera antes e durante a Alemanha Nazi. Por fim, o último caso que pretendo desenvolver é a questão das organizações terroristas principalmente a da al-Qaeda. O final do séc. XX e o início do século XXI marca um dos períodos mais radicais da história da humanidade. O nascimento da al-Qaeda marca uma época negra para o Islão e não só, já que esta organização deseja mais que tudo subjugar o seu grande inimigo, o ocidente, e a cristandade (que já não existe como corpo político e perdeu em parte a sua força na sociedade).

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Esta organização terrorista levou o Al-Corão ao extremo, radicalizando diversas ideias e ordens com a intenção de manipular os crentes islâmicos a seguirem o seu caminho. O fundamentalismo religioso impera neste tipo de organizações que não vêm limites ou fronteiras que imponham um fim à sua acção, fazendo uso de um sistema de guerra na qual o mundo Ocidental não estava preparado. O 11 de Setembro é símbolo dessa má preparação para com uma realidade brutal e que mudou os paradigmas da confiança entre sociedades, culturas e religiões. O ataque aos Estados Unidos da América no fatídico dia 11 de Setembro de 2001 demonstrou sinais de fraqueza por parte do ocidente, abrindo possibilidades para al-Qaeda ganhar novos recrutas e nova força. A guerra no Afeganistão e no Iraque abriu lacunas de poder político local, resultando em baixas drásticas para os Estados Unidos da América e para os aliados, em termos de de mortes de efectivos militares e gastos financeiros. A ideia de “invasão” – e digo aqui invasão porque o apoio aéreo aos supostos rebeldes líbios pode ser entendido como forma de invasão - da Líbia em 2012 só veio complicar ainda mais a questão do radicalismo islâmico e do ganho de poder do fundamentalismo religioso por parte da al-Qaeda. Se observarmos bem os diversos momentos de grande radicalismo e fanatismo acontecem quando há omissão de um poder político bem estruturado. A Alemanha pós primeira Grande Guerra viu-se num estado de extrema pobreza, sem força estatal que pudesse auxiliar o seu país. Adolf Hitler e o seu partido nacionalista durante a década de 30 do século passado obtiveram uma resposta positiva por parte do povo, porque os identificava como a solução para o desemprego e para o fim da fome e miséria, assim como da restituição da dignidade e glória alemã.

23

Em 2005 os dados da CIA revelavam 20% no entanto a suposta Primavera Árabe e a retirada de Mubarak de líder do Egipto aumentou ainda mais o fosso da pobreza. Ver https:// www.cia.gov/library/publications/theworld-factbook/geos/eg.html 24

Muslim Brotherhood and Egypt’s

eralisation and Reform in the Middle East I. B. Tauris 25

Ver http://www.reuters.com/ article/2012/02/13/us-usa-budgetforeign-idUSTRE81C1C920120213 26

Ver http://www.reuters.com/ article/2012/02/13/us-usa-budgetforeign-idUSTRE81C1C920120213

13

Na Líbia pode vir a ser o mesmo caso. A morte de Khadafi e a ausência de um governo sólido e equilibrado tem levado de dia para dia a um aumento da instabilidade e complicação da situação dos civis líbios. Também no país vizinho, o Egipto, o caso pode ser exacta23 mente igual. Num país onde a pobreza atinge os 40% a instabilidade política tem permitido um acentuar da pobreza e miséria dessa população. Ora células como a al-Qaeda podem – e é se já não estão – fazer uso dessa situação para incrementar o seu contingente. Não é preciso muito para influenciar uma pessoa no desespero a encetar por um caminho mais radical, basta que lhes dêem as condições mínimas de vida, uma razão para viver. As 24 eleições de 2012 levaram a que a Irmandade Muçulmana obtivesse o poder no Egipto. Ora esta organização política é contra qualquer intervenção do ocidente – mas estranhamente aceitam a possível doação de mais de 800 milhões de dólares por parte dos Estados Unidos da América25- voltando a seguir o Al-Corão e o caminho do Profeta, claro sob a sua liderança, tutela e orientação.

Por outro lado, o radicalismo islâmico promovido por esta célula levou ao aumento de acções xenófobas e fanáticas por parte de grupos de extrema-esquerda e extremadireita na Europa. Se na Ucrânia sempre houve um problema latente de racismo, já em França ou Espanha o problema tem vindo a ganhar força. Quer o 11 de Março de 2004 ou os atentados promovidos por Mohamed Merah em Tolouse em 2012 levaram a um incremento de manifestações contra a presença de islâmicos na Europa. É natural que nos dias de hoje – como sempre aconteceu em menor número mas foi sempre um factor normal das sociedades – que as migrações entre Europa e Médio Oriente aumentem27, na busca quer de melhores condições de vida quer de novo cenário. Contudo, este incremento tem suscitado, como já dissemos, diversas opiniões minirelevo. Fala-se sobretudo de intolerância para com o grupo islâmico a viver em solo europeu. O caso da Alemanha com a troca de acusações entre o primeiro ministro turco e o governo alemão em 2009 por não ser permitido colocar nas escolas públicas a língua turca como opção28 ou o “combate” pela proibição do véu islâmico a ser usado em público em 2008 levando a problemas entre a comunidade islâmica e o governo de Sarkozy 29. O que para uns é visto como política normal para outros pode ser visto como uma questão radical. A não permissão ou mesmo a retirada de elementos do quotidiano e da lei islâmica promove nos mais fundamentalistas motivos de ódio, exclamando que os estados europeus são radicais e anti-islâmicos. 27

Ver Mapping the Global Muslim Population – A Report on the Size and Distribution of the world Muslim Forum On Religion & Public Life, Outubro 2009. 28

Ver http://expresso.sapo.pt/ alemanha-comunidade-turca-exigeque-partidos-adoptem-codigo-deontologico-contra-xenofobia=f255126 29

Ver http://www.tvi24.iol.pt/internacional/veu-muculmano-proibirburka-franca-tvi24--/1163848-4073. html

Mais que tudo é uma organização política fundamentalista que quer obrigar os islâmicos a seguirem a sua perspectiva e as suas ordens e, na realidade, os seus interesses. No Egipto já obtiveram o poder e já iniciaram um processo de ataque àqueles que não seguem o seu estilo de vida, considerados por estes, o estilo verdadeiro de um islâmico. O tumulto no norte de África está, sem dúvida, a ser aproveitado por células radicais e fanáticas para penetrarem em cada um destes países e assim fazer uso quer dos recursos humanos, quer económicos ou geográficos. Mais que tudo para quem dizia que a al-Qaeda estava a perder força26no dia 11 de Setembro de 2012 deixaram uma lembrança da sua vitalidade, com o assassínio do embaixador norte-americano da Líbia.

Fig. 5 : Os Diversos Lideres e Liderados da célula terrorista al-Qaeda. Fonte: Global Jihad

O aumento de instabilidade entre os dois blocos e, mais que tudo, o crescimento e a força que os fundamentalistas islâmicos obtêm cada dia, permite-nos dizer que vivemos num mundo cada vez mais radical e de nuances fanáticas. ceiras da Europa, que têm vindo a aumentar o descontentamento entre a relação Estado e sociedade. 14


AHMED, Akbar, S., “O que é o Islão”, O Islão, Lisboa, Europa-América, 1999, pp. 26-37 ALVES, Adalberto, Ecos de Um Passado Árabe, Instituto Camões Post¸ 2012

Entre as políticas de austeridade movidas pela crise mundial, que assola principal mente a Europa, desponta um novo tipo de ideias e de situações algo radicais.

BALL, Patrick, BRETTS, Wendy, SCHEUREN, Fritz, (…),Killings and Refugee Flow in Kosovo March - June 1999 A Report to the International Criminal Tribunal for the Former Yugoslavia, 3 de Janeiro, Haia, pp. 14-15 CERRO, De la Torre y del, ALSINA A., Testamentaría de Isabel la Católica, Barcelona, 1974

O neo-liberalismo tem vindo a ganhar alguma força na 2ª década do séc. XXI. A não compreensão do estado de pobreza, ou de situações de fome em alguns países europeus, pode levar a novas comoções. Mais que tudo, o discurso algo radical não só de governantes mas também de analistas permite um escalonamento da insatisfação da opinião pública. Estas políticas de austeridade têm vindo a levantar problemas na organização civil. Se quisermos analisar o caso português, podemos observar que no último mês de Setembro foram diversos os desacatos promovidos por cidadãos insatisfeitos e mais que tudo desesperados com a sua situação. Podemos se, quisermos chamar, de atitudes radicais a acções que visam o vandalismo e a violência sob uma certa pessoa, 30

30

Ver http://www.publico.pt/ Pol%C3%ADtica/ministro-daeconomia-insultado-e-cercado-nacovilha--1552630

. Estes espectros movem uma época de radicalismo total das sociedades, onde se vê o crescimento quer das organizações fundamentalistas quer dos partidos de extremadireita e extrema-esquerda, que aproveitam a insatisfação da sociedade para se instalarem na opinião pública como uma solução ao problema. Talvez a solução para que o comum cidadão não caísse na armadilha dos comportamentos radicais e das ideias fanáticas fosse pela leitura da História como tentei aqui expor por diversos acontecimentos. Digo leitura, com o objectivo de compreender e

KENNEDY, Hugh, “Os Muçulmanos na Península Ibérica – História Política do Al-Andalus”, Lisboa, Europa-América, 1999 GROUSSET, René, A Epopeia das Cruzadas, “A 1ª Cruzada: Godofredo de Bulhão, Raimundo de Saint-Gilles e Boemundo” pp. 34-38 HAYNAL, A., MOLNAR, M. and de Puymege, G. Fanaticism. A Historical and Psychoanalytical Study. Schoken Books. New York, 1987 HOLLAND, Tom, Millennium, Abacus, pp. 352-353 LEWIS, Bernard, “A Civilização islâmica”, Os Árabes na História, Lisboa, Editorial Estampa, 1983 p.149-161 LOPES, Margarida Santos, Novo Dicionário do Islão, Lisboa, Casa das Letras, 2010 RUTHVEN, Malise, “Fundamentalism: The Search for Meaning”. Oxford: Oxford University Press, 2005 SETTON, Kenneth ed., History of the Crusades, Madison, 1969-1989 VAC, E., The Inquisition a Critical and Historical Study of the Coercive Power, of the Church, Forgotten Books, 2012 fessores Universitários, vol. 41, nº2, 1955, pp. 299-309

-

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http://www.dicio.com.br/fanatismo/ Fontes

15

Al-Corão, Lisboa, [s.n.], 1998 Foucher de Chartes, 1ª Cruzada, Lisboa, Inquérito, 2001,pp. 157-158

http://www.jstor.org/discover/10.2307/40221088?uid=3738880&uid=2129&uid=2&uid =70&uid=4&sid=21101047558843 http://dictionary.reference.com/browse/fundamentalism http://dictionary.reference.com/browse/radical http://archives.nd.edu/latgramm.htm

16


Controvérsias sobre a causa do Prior do Crato António P. Santos Teixeira1 1

Investigador do Instituto PAEHI. Revisão Científica de Ana Maria Leal de Faria, Sócio Honorário do Instituto PAEHI e Professora Auxiliar da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, a quem o autor presta um público agradecimento. 2

BETHENCOURT, Francisco, “D. Henrique”, História de Portugal. Direcção de José Mattoso, vol. III. Lisboa, Círculo de Leitores, 1993, p. 546. 3

MACEDO, Jorge Borges de, “Absolutismo”, Dicionário de História de Portugal, Direcção de Joel Serrão, vol. I. Lisboa, Iniciativas Editoriais, 1971, pp. 8/14 4

IA.N.T.T., Aclamações e Cortes, Cortes, maço 6, nº 2. 5

SERRÃO, Joaquim Veríssimo, “Anexo”, O Reinado de D. António, Prior do Crato , Coimbra, Instituto de Alta Cultura, 1956. 6

PINTO, António Guimarães, “D. Jerónimo Osório e D. Filipe I – A propósito de uma carta inédita e a sucessão da coroa de Portugal”. Revista da Faculdade de Direito de Lisboa. Nº49, Nº1/2. Direção de Jorge Miranda. Lisboa, Faculdade de Direito de Lisboa, 2008, pp. 244-255. 7

SERRAO, Joaquim Veríssimo, O reinado de D. António Prior do Crato , Coimbra, Instituto de Alta Cultura, 1956, p. XXI. 8

CUNHA, Mafalda Soares da, “A questão jurídica na crise dinástica”, História de Portugal. Direcção de José Mattoso, vol. III. Lisboa, Círculo de Leitores, 1993, p. 558.

17

Este artigo visa questionar o papel de D. António, Prior do Crato, na crise dinástica de Avis, entre 1578 e 1580. O período referido é determinante na compreensão da evolução política e institucional do reino, levando-o ao interregno da Perda de Independência2, e, por fim, à Monarquia Dual3. Ao estudo destas questões preside a análise e hermenêutica de documentação afecta às reuniões das Cortes de Lisboa, em 1579 e de Almeirim, em 15804, assim como do Memorial de Pero Roiz Soares, relato relativamente contemporâneo da efeméride. A obra do cronista remete para a realidade histórica portuguesa entre 1565 e 1625, sendo registada em período filipino tardio. Também é considerada a correspondência entre Cristóvão de Moura e Filipe II, tradutora da visão do partido oponente à causa de D. António5. As fontes narram as pretensões sucessórias de uma pluralidade de candidatos à coroa, tanto no domínio dos factos políticos como no plano do debate ideológico. À História cabe testemunhar a estratégia política do Prior do Crato no foro interno, o seu relacionamento com o monarca incumbente, seu tio; a defesa da sua condição legítima ao trono e, após a aclamação, a gestão do seu breve reinado até à batalha de Alcântara, em Agosto de 1580. Estado da Arte O balanço da legitimidade política de D. António encontra eco no contributo historiográfico contemporâneo. José Queirós Veloso e Joaquim Veríssimo Serrão abordam esta realeza como um ímpeto de causa nacionalista que se conforma com o espírito da Historiografia da época. Ao primeiro, deve-se o tratamento dum reinado que se substancia como tal e o retrato dum pretendente que surge como representante do interesse duma nacionalidade. Ao segundo, uma sistematização dos propósitos ideológicos que suportam tal solução política. A análise das fontes é fiel a estas posições. Ainda que o princípio da união de coroas não seja estranho nem antipático a alguns sectores da sociedade portuguesa6, é possível testemunhar a emergência de uma bolsa de resistência a este projecto, marcadamente nacionalista e apegada a um rol de características intrinsecamente lusas que dão corpo, neste período, a um sentimento de nacionalidade. Neste sentido, é assinalável uma analogia à crise dinástica de 1383/85. A legitimidade do Mestre de Avis, ainda que profundamente ferida no plano teórico quanto ao berço, está espelhada no princípio da eleição régia, no apoio popular e na consolidação nacional que se constrói com a emergência dum projecto expansionista É relevante constatar que a defesa da causa nacional irá sobreviver na imagética política da Monarquia Dual, sendo o cerne da defesa da legitimidade política da casa de Bragança, no golpe de 1 de Dezembro e no movimento da Restauração. À 4ª Dinastia se deve a desconsideração política e histórica do legado do Prior do Crato, dado que durante a crise se encontram em posições antagónicas. Borges de Macedo afirma, coerentemente, a legitimidade de

D. Catarina de Bragança, em 1580. A Restauração de 1640 seria assim uma manifestação de legitimidade tardia, adiada por 60 anos de usurpação do poder. Todavia, este último contributo afasta-se do tratamento da manifestação de nacionalidade, em 1580, preferindo abordá-lo apenas no contexto da Restauração. Os ideólogos de 1640 manterão de pé a legitimidade do monarca por deliberação em Cortes, necessária ao fundamento legal do poder de D. João IV. Negam, no entanto, as pretensões de D. António, devido à sua condição bastarda7. Mais recentemente, Francisco Bettencourt menciona a inconsistência da defesa da legitimidade do nascimento do Prior do Crato. Para Mafalda Soares da Cunha, a questão eleitoral permanece sólida no debate da sucessão, liberta das questões de berço, não só como perene manifestação da vontade dos povos mas também como via processual de resolução do impasse político a que D. Sebastião votou o reino em Alcácer-Quibir8. A Legitimidade Política de D. António O relevo da figura política do Prior do Crato, antes de Alcácer-Quibir, é ainda hoje discutido pela historiografia. Filho natural do Infante D. Luís e neto de D. Manuel, é possível remetê-lo para um papel relativamente secundário na Corte portuguesa e na administração do Reino. D. António (1531-1595) cresce e forma-se longe da Corte, estigmatizado pela sua pretensa origem bastarda. A sua educação eclesiástica é marcada pelos ideais humanistas da época, nomeadamente sob a influência de D. Jerónimo Osório. É consensualmente aceite o seu estrito relacionamento com a baixa aristocracia e com dignitários concelhios9. Os historiadores concluem o descontentamento desta figura política, afastada do centro decisório nacional e ambiciosa de mercês mais elevadas do que as que aufere10. Alguma documentação histórica fundamenta uma progressiva aproximação de D. António à Corte, durante a menoridade de D. Sebastião, ainda que tenha contado com a manifesta antipatia de seu tio, D. Henrique, segundo regente do monarca (15631568)11. D. António havia assumido, muito novo, o Priorado da Ordem do Hospital no Crato (1555), destacando-se como entusiasta da expansão marroquina. Esta questão parece fulcral no percurso político do protagonista. O Prior do Crato apoia o Rei na empreitada africana, originando forte contestação nos meandros da Corte. Acompanha mesmo D. Sebastião a Alcácer-Quibir e aqui é feito cativo, sendo mais tarde libertado mediante pagamento de resgate. A morte do Rei e a fragilidade do reinado de D. Henrique perspectiva-se, desde já, numa pretensão sucessória de seus sobrinhos. O Memorial narra a antipatia do velho monarca por D. António, antevendo-se algum temor pela força da sua candidatura e uma clara preferência por Filipe de Castela12. A ascensão de D. António tem a sua aurora material na convocação de Cortes em Lisboa para Março de 1579. D. Henrique pretende informar os convocados do seu pedido de dispensa papal para contrair matrimónio, mas a questão principal que preside à convocatória é a designação do herdeiro da coroa13. Para tal, o monarca exorta os candidatos a defenderem as suas pretensões e direitos no âmbito jurídico, julgados em foro próprio, mas dependente de ratificação régia. Os pretendentes são devidamente mencionados no Memorial: Filipe de Castela, neto de D. Manuel por via feminina visto que é filho da princesa D. Isabel; Rainúncio Farnese, neto do infante D. Duarte e bisneto de D. Manuel; Emanuel Filisberto, príncipe de Piemonte e duque de Sabóia, filho da infanta D. Beatriz, e igualmente neto de D. Manuel; D. António, Prior do Crato e D. Catarina de Bragança, também neta de D. Manuel por via masculina, filha de D. Duarte. Por motivos de ordem política, a escolha do sucessor desenvolver-se-ia em torno de apenas três dos candidatos presentes. Rainúncio Farnese persiste como proposta secundária, mas ced-

7

SERRAO, Joaquim Veríssimo, O reinado de D. António Prior do Crato , Coimbra, Instituto de Alta Cultura, 1956, p. XXI. 8

CUNHA, Mafalda Soares da, “A questão jurídica na crise dinástica”, História de Portugal. Direcção de José Mattoso, vol. III. Lisboa, Círculo de Leitores, 1993, p. 558.

9

SERRÃO, Joaquim Veríssimo, O reinado de D. António Prior do Crato , Coimbra, Instituto de Alta Cultura, 1956, pp. I-III.

10

CUNHA, Mafalda Soares da, 8

Op. Cit., p. 559. CUNHA, Mafalda Soares da, “A questão jurídica na crise dinástica”, História de Portugal. Direcção de José Mattoso, vol. III. Lisboa, Círculo de Leitores, 1993, p. 558. 11

BETHENCOURT, Francisco, Op. Cit., pp. 550-551. 12

SOARES, Pero Roíz, Memorial de Pedro Roíz Soares. Estudo e leitura de M. Lopes de Almeida. Coimbra, Universidade de Coimbra, 1953, p. 106. 13

BETHENCOURT, Francisco, Op. Cit., p. 549.

18


erá nas suas pretensões a favor de sua tia, D. Catarina de Bragança. O duque de Sabóia encontra-se politicamente limitado como vassalo de seu primo Filipe. Num plano menor surge a candidatura de Catarina de Médicis, esposa do falecido rei de França, Henrique II de Valois, mãe de Henrique III. Manifesta-se descendente sanguínea de Matilde, primeira esposa de D. Afonso III, ainda que seja admissível que esta proposta não tenha sido avalizada em termos institucionais.

14

SERRÃO, Joaquim Veríssimo, O reinado de D. António Prior do Crato , Coimbra, Instituto de Alta Cultura, 1956, p. XVI. 15

SOARES, Pero Roíz, Op. Cit., pp. 123-125.

19

Fig. 1 : D. António na árvore genealógica da sua ascendência. Gravura de Jodoco Hondio dedicada a el-rei em 1592. In SERRÃO, Joaquim Veríssimo, História de Portugal, vol. IV, Lisboa, Verbo, 1978, pp.16/17.

A candidatura de D. António estabelecer-se-á em dois planos muito distintos14. Um primeiro, na procura de legitimidade como filho do Infante D. Luís, invocando um matrimónio deste com sua mãe, Violante Gomes. Um segundo aspecto atende à defesa do princípio de eleição do monarca em Cortes, com fundamento prudencial nas Cortes de Coimbra e respectiva legitimidade do Mestre de Avis. Neste sentido relevam os contributos teóricos de Álvaro Pais e João das Regras, de base tomista. Sendo a premissa ideológica o princípio da origem divina do Poder, este seria outorgado aos povos para que o delegassem no monarca. O fundamento político da sua causa encontraria assim eco na legitimidade duma dinastia cessante, em moldes algo similares, visto que as Cortes de Coimbra de 1385 decidem nesse sentido. A realeza de D. António não se fundaria na sequência dinástica de Avis, mas surgiria como manifestação de ruptura, num projecto em torno da causa da independência nacional. O primeiro aspecto encontra-se amplamente discutido no Memorial. A Historiografia contemporânea avalia uma certa inconsistência jurídica da candidatura de D. António neste plano, já que a presunção da sua ilegitimidade dificilmente seria ilidível. O Papa delega na figura do Rei a autoridade de avaliar a legalidade dos moldes do matrimónio de D. Luís, que apresenta testemunhas do consórcio15. O Prior do Crato vê declarada a sua legitimidade numa sentença de 13 de Maio de 1579 assinada por Frei Manuel de Melo, freire da ordem de Malta, no contexto da decorrência das Cortes. O Rei intervém no processo e determina a invalidade desta sentença benigna, alegando que as testemunhas são parte interessada no processo ou se encontram corrompidas. A retaliação do monarca pela audácia do sobrinho faz-se sentir na animosidade que culminará na pena de desterro da Corte, determinando o desequilíbrio estratégico da causa antonina face às duas candidaturas concorrentes. A acção de D. Henrique pode comprometer uma clara oposição à figura do sobrinho, que por demérito de berço ou comportamental não lhe merece o afecto e a consideração. É peremptória a acção politíca do velho soberano contra os protagonistas da aventura africana, sendo exemplo a prisão de Luís da Silva, relevante entusiasta da causa. O Cardeal teme também o perigo de emergência duma causa nacional em torno do Prior do Crato, galvanizando a desconfiança castel-

hana. Apesar dos esforços de D. António para provar a sua legitimidade, o testamento de seu pai cita-o como filho natural. É nesta última condição formal que o Prior e os seus apoiantes enfrentam a reunião de Cortes em Lisboa, e mais tarde, em Almeirim. É, talvez, no segundo aspecto da defesa da legitimidade de D. António que se estrutura a solidez da sua proposta política e do seu consequente alcance social. A documentação afecta à reunião de Cortes de Lisboa, em Março de 1578, testemunha a convocatória de representantes das três ordens sociais, em três ajuntamentos: o dos procuradores e povo de todo o Reino, o dos fidalgos e nobres, e o dos arcebispos, bispos e prelados16. O método procura reproduzir a organização social da época, de tradição medieval, e assim representar o todo social e o seu envolvimento num processo que se reconhece de jure na esfera jurídico-política do Rei. A convocação das Cortes é, nestes moldes, uma responsabilização do reino, cabalmente remetida para a concepção antropomórfica da sociedade. Todo o corpo dependerá da acção do monarca, a cabeça que providenciará o bem comum e a felicidade dos povos17. O carácter deliberativo das Cortes apresenta costumeiramente uma vertente consultiva, sendo o cunho vinculativo uma excepção no plano político e institucional do reino. As teses da eleição vinculativa, defendidas pelos partidários do Prior do Crato, seriam habilmente contornadas pelo monarca até ao fim de sua vida, sem nunca este último ter optado definitivamente por qualquer dos candidatos. Salvaguardando uma prorrogativa de nomeação, o Cardeal nomeia uma junta provisória de 5 governadores à qual incumbe a escolha do seu sucessor, no caso de não o poder fazer em vida. É possível adiantar que o espírito dos decisores políticos, em 1579/80, não acolhe a solução eleitoral que fundamentou a ascensão dos Avis à coroa. É significativa a segunda derrota política do Prior do Crato neste domínio. A tese da eleição do Rei pelas Cortes é muito cara à causa do Prior do Crato e em particular aos procuradores de Lisboa. É entre estes que se encontram os principais defensores e letrados antoninos, é na consciência autónoma desta cidade que mais tarde o candidato irá suportar um curto mas efectivo dominium. Estes representantes lembram, na magna reunião, que o povo se levantou contra as intenções de João I de Castela após a morte de D. Fernando, contra o que estava acordado, tomando por governador e defensor o Mestre de Avis. Também a regência, na menoridade de D. Afonso V, havia sido decidida em Cortes, optando-se pelo duque de Coimbra, o Infante D. Pedro, em detrimento da Rainha D. Leonor de Aragão. A câmara de Lisboa alerta as juntas das várias ordens para o perigo de novos intentos castelhanos, numa perspectiva que se debruça claramente sobre a consciência nacional, invocando a liberdade assegurada pela manutenção dum rei natural, dum rei português18. Esta preocupação gera um juramento político dos procuradores da cidade, a que se junta D. António e o duque de Bragança, em Junho de 1579. O acto será alvo de represálias políticas por parte do Rei, que afasta os fidalgos da Corte. O monarca replica que o exemplo de Coimbra, em 1385, remete para uma situação de vazio de poder, dado que o trono estaria materialmente vago desde a data da morte de D. Fernando. Estando o Rei vivo e capaz, caberia a este a decisão de nomear sucessor. No mesmo sentido argumentou a casa de Bragança, em 1579, nas suas Allegações19. O Memorial trata de forma detalhada os esforços do Prior do Crato para agradar à figura régia. D. António é notificado para abandonar a Corte depois de se associar à proposta de Lisboa e escreve a seu tio defendendo o seu direito à coroa. Manifesta convicção na necessidade dum julgamento plural nesta matéria, em clara referência à soberania popular, e pede para regressar para melhor se poder defender. O Rei irá persistir na sanção, reforçado pelos argumentos de invalidade da prova de casamento dos progenitores do Prior. A sentença de D. Henrique é clara neste sentido e é necessário destacar o apoio concedido por D. Catarina ao Cardeal, sobrinha legítima que tende a distanciarse da pretensão antonina. As diferenças nítidas entre as duas candidaturas atendem a características políticas diversas, mas é possível conceber a causa de D. António como um fenómeno marginal no plano ideológico e social, suportada maioritariamente por procuradores dos concelhos, ordens militares e minoritariamente entre as ordens privilegiadas20. Em Novembro de 1579, as Cortes são novamente convocadas para Almeirim, onde se encontrava o Rei. A Peste em Lisboa assim o exigia e parece relevante apontar esta efeméride como marco literário e imagético dum prenúncio de tragédia nacional. O Memo-

16

SOARES, Pero Roíz, Op. Cit., pp. 109-119. 17

GRAES, Isabel, Contributo para um Estudo Histórico-Jurídico das Cortes Portuguesas entre 1481-1641, Coimbra, Almedina, 2005. 18

SOARES, Pero Roíz, Op. Cit., pp.113-117. 19

CUNHA, Mafalda Soares da, Op. Cit., pp.557-558. 20

SERRÃO, Joaquim Veríssimo, O reinado de D. António Prior do Crato , Coimbra, Instituto de Alta Cultura, 1956, pp. I-LI.

20


21

SOARES, Pero Roíz, Op. Cit., pp. 126-131.

22

SOARES, Pero Roíz, Op. Cit., pp. 132-141. 23

BETHENCOURT, Francisco, Op. Cit., pp. 550-551.

24

VELOSO, Queirós, O interregno dos governadores e o breve reinado de D. António, Lisboa, Academia Portuguesa de História, 1953, p. 35.

25

SOARES, Pero Roíz, Op. Cit., pp. 147-149.

26

VELOSO, Queirós, Op. Cit., p. 4.

21

rial menciona a sentença de D. Henrique contra o seu sobrinho, sublinhando a falha de carácter do Prior no suborno de testemunhas. Dando por provada a ilegitimidade de D. António e afastando-o do debate das pretensões à coroa, o Rei manda chamar o sobrinho à reunião de Cortes. A ausência deste último levou à promulgação dos Éditos de 13 de Novembro, nos quais se coage a presença de D. António em forma de ultimato político. O Prior responde numa carta em que exorta o respeito e o valor que a casa Real sempre lhe havia nutrido. Justifica o desprezo régio, fundado por más influências, em clara alusão aos procuradores partidários da causa filipina, como é exemplo Cristóvão de Moura. Por outro lado, D. António lamenta também a ausência ou escassez de procuradores seus nas Cortes, o degredo a que foi votado pela sentença anterior, desejando que a questão da legitimidade se esclareça, que o monarca veja a verdade e lhe faça justiça. Em resposta D. Henrique emite uma segunda sentença, a propósito do incumprimento da primeira. O Rei regista as movimentações de seu sobrinho fora dum perímetro de locomoção que lhe havia sido delimitado, em busca de apoios na fidalguia e junto de procuradores do povo. Assim sendo, D. António ficaria privado de todas as rendas e privilégios e outras mercês concedidas até então, sendo expulso do reino e desnaturado assim como todos aqueles que o ajudassem ou seguissem21. A historiografia encontra nesta segunda sentença um marco relevante quanto à opção henriquina. A hostilidade régia em muito dificultará a causa do Prior do Crato em termos logísticos e políticos. O debate nas Cortes de Almeirim prende-se com questões de procedimentos políticos e instrumentais. Os procuradores da câmara de Lisboa irão insistir na tese da eleição, denotando-se sempre uma certa animosidade à proximidade da causa castelhana. D. António vai somando apoios marginais, como o dos procuradores de Coimbra, presos devido a uma revolta na cidade. O bispo de Leiria, D. António Pinheiro, irá defender o papel régio na definição do seu sucessor, em oposição às teses de ampla eleição do povo, em função de prévios acordos encetados com a candidatura de Filipe II de Castela. As contestações da câmara de Lisboa sempre se mantiveram no limiar da moderação, nomeadamente através de Febo Moniz e Manuel de Sousa.22 Até à morte de D. Henrique, seria difícil contestar a vontade régia, mesmo porque esta nunca se torna legalmente manifesta. Esta constatação é uma das principais críticas que os historiadores tecem ao Cardeal23. As contingências da debilidade física do Rei perpassam no relato de Pero Roiz Soares. A posição política das várias candidaturas pressiona o monarca para que este designe um sucessor, mas os adiamentos de D. Henrique parecem intransponíveis, pela dificuldade jurídica ou por opção política. Como sintetiza D. António Pinheiro, a problemática desenvolve-se na escolha entre Filipe de Castela e a duquesa de Bragança, sendo o primeiro o mais legítimo24. Ainda assim, o debate do conclave do reino é narrado como palco de divisões acentuadas nas preferências dos procuradores. O partido anti-castelhano invoca mesmo o afastamento legal dos reis castelhanos, na conformidade dos acordos que encerram a Guerra que se segue à crise de 1383/8525. A deliberação das Cortes de Almeirim nunca terá um término legal. Sendo o voto determinado por Ordem, a nobreza e o clero haviam optado pelo compromisso com o Rei católico. Em muito pesou a frágil situação económica do reino, marcada pelos custos dos resgates de Alcácer-Quibir e acentuada pela recessão de 1571-1580, com especial impacto na agricultura26. O envolvimento de D. António no episódio marroquino em nada o favorece aos olhos duma certa nobreza de toga, fruto do crescimento burocrático do Estado, cujos rendimentos dependem da vontade da administração régia. Tendo como horizonte o exponencial rendimento líquido do Estado vizinho, maior potência da época, o alinhamento a um projecto ibérico parece vantajoso a estes interesses socioeconómicos. Só os representantes do povo se mantêm relutantes à solução filipina, estando concentrados em Santarém à data da morte de D. Henrique, a 31 de Janeiro de 1580.

O Período dos Governadores A morte do Rei e a ausência duma solução leva à posse da Junta dos 5 Governadores previamente designada. Formada por D. Jorge de Almeida, arcebispo de Lisboa; D. João Mascarenhas, vedor da Fazenda; Francisco de Sá e Meneses, camareiro-mor de D. Henrique; Diogo Lopes de Sousa, governador da Casa do Cível e D. João Telo de Meneses, antigo embaixador em Roma. Da constituição da Junta é possível aferir a sua tendência castelhana. Os poderes deste órgão são limitados, mas entre as competências que lhes são atribuídas encontra-se a designação do sucessor do reino. Encerram as Cortes, temendo as sublevações face à contrariedade do princípio de eleição popular. É manifesta a tentativa de unidade nacional em torno da resolução da crise, apelando os novos governantes à serenidade do povo. Porém, o braço popular mostra-se algo céptico em relação à imparcialidade destes últimos. D. António encontra-se em Santarém aquando da morte do Cardeal. A popularidade do pretendente é apontada como motivo para a sua impunidade face às sentenças do Rei falecido. Ainda assim, há hostilidades latentes, como a de Fernão de Pina Marecos, que o impede de entrar em Lisboa. O Prior procura revogar a prova de ilegitimidade de berço a que D. Henrique o havia votado. Através dum breve de Gregório XIII, apresentado à Junta dos Procuradores do Povo, reunidos em Santarém, esta nova inflexão no plano teórico dá novo fôlego à causa do Prior do Crato, testemunhada no receio das autoridades civis e seus opositores. Cristóvão de Moura descreve o percurso de D. António até Santarém acompanhado por um séquito que lhe confere dignidade real. A adversidade da Junta de procuradores do Povo, face à concretização da ameaça estrangeira, é proporcional aos anseios dos governadores que temem a popularidade de D. António. Cedo este último se disponibiliza ao serviço dos populares, agregando o descontentamento nacional em torno da sua causa. A correspondência entre Filipe II e os seus partidários identifica de forma clarividente subornos e promessas de lugares na administração, em estratégia ofensiva mediante a informação dos seus fiéis, e o receio do ódio popular face a um sentimento de traição nacional. Filipe desenvolverá diligências para ganhar o apoio de procuradores do povo, mas em vão. A prática de subornos e corrupção é persistentemente mencionada nas fontes. A crítica surge como argumento enfático da ilegitimidade filipina, só assim se justificando tais práticas aos olhos do povo. Os desejos de apoio popular são para Filipe um imperativo de ordem política, já que não reconhece competência de juízo sucessório à Junta de Governadores. A morte do Cardeal é determinante na acção deste monarca, ignorando os procedimentos institucionais agendados por seu tio e preparando uma invasão militar27. A casa de Bragança teme a assertividade de Filipe e contribui para a organização dum exército de serviço à Pátria, matéria do pedido de auxílio externo. O receio de união ibérica e o leque de candidaturas em presença, inclina as casas reais europeias a reconhecer D. Catarina, com quem D. Henrique havia falado antes de falecer. A relativa instabilidade do projecto brigantino, que se aproxima de Filipe, levará a ulterior preferência externa por D. António. Isabel I de Inglaterra e Henrique III de França temem o poder de Filipe II, o príncipe de Orange, em confronto com a Monarquia Habsburgo nos Países Baixos, encontra no Prior do Crato um aliado conjuntural. Depreende-se assim que a questão sucessória sofre uma evolução de plano de debate. Após a morte do Rei, os candidatos afastam para segundo plano a discussão teórica da legitimidade da coroa, preferindo empregar tácticas no terreno para alcançar apoios eficazes. Filipe terá enviado uma carta a D. António afirmando os seus direitos à coroa, como referencia o Memorial28. O papel da Junta de Governadores, ainda que agraciado com a missão sucessória pelo cardeal, é obsoleto no plano determinante da resolução da crise, sendo encarado este órgão como mero instrumento da vontade castelhana, que prefere assumir a dianteira das suas reivindicações. A estratégia política do Prior do Crato, neste período imediatamente posterior à morte de D. Henrique, é abordada entre duas vertentes. Uma primeira, que o retrata

27 28

VELOSO, Queirós, Op. Cit., p. 34.

SOARES, Pero Roíz, Op. Cit., pp. 151-153.

22


29

VELOSO, Queirós, Op. Cit., pp. 30-32.

30

VELOSO, Queirós, Op. Cit., pp. 41-44.

31

SOARES, Pero Roíz, Op. Cit., p. 156

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como pretendente intransigente que reivindica a coroa pela imposição da sua facção, e uma segunda, que o perspectiva como agente mais moderado, procurando dar voz ao sentimento anti-castelhano, ainda que dentro da conformidade institucional. Para esta segunda perspectiva contribui uma carta de D. António a António Matos de Noronha, de Março de 1580, em que os historiadores se secundam. A causa antonina apresenta diálogos de putativo compromisso com D. Catarina de Bragança, para afastar Filipe de Castela e unir as duas facções em torno dum projecto de cunho nacional. Os dividendos políticos da recusa do duque de Bragança, que prefere optar pela proximidade filipina não tardarão. A inflexão política das casas reais europeias teria nessa atitude o seu principal receio, mas a falta de unidade política em torno dum projecto anti-castelhano afastaria a hipótese de intervenção externa29. A reacção popular iria necessariamente radicalizar-se, condenando D. António a surgir como um candidato de menor prestígio, mais afastado dos centros de poder. Será difícil estabelecer uma analogia com a crise de 1383/85 mediante tal recusa. A progressiva neutralidade dos Bragança é um dado relevante neste contexto e dificultaria certamente a imposição política da resistência anti-castelhana. Ainda que os populares tenham persistido na observância das formalidades acordadas, Filipe II viria a invadir Portugal. Rejeitando o envio de embaixadas, senão na condição de vassalos, teme também sentença favorável à legitimidade de D. António, decisão avocada pelo papa Gregório XIII30. Filipe não deseja entrar em conflito com a Santa Sé, que reage no engodo de reservar para si o papel decisor na questão sucessória e reforçar laços de dependência com o reino português. D. João Telo, representante dos interesses nacionais na Junta, dá voz ao descontentamento popular. Filipe promete privilégios e regalias às três ordens ainda reunidas em Cortes, com o intuito de ser bem recebido em Almeirim e seduzir as restantes candidaturas, principalmente a de D. Catarina. O conclave seria ilegalmente dissolvido, a 15 de Março. O Prior do Crato escuda-se na defesa da manutenção institucional desta magna reunião, argumentando que o seu fim ontológico não havia sido alcançado – a designação do sucessor. Nega, assim, a legitimidade da Junta para este efeito, observando-se uma dualidade de competências teóricas quanto a este desiderato. Os partidários da causa nacional persistem na supremacia da eleição em Cortes, enquanto os procuradores de Filipe II suportam a Junta por alegada estratégia política, visto que desta não depende realmente a concretização da vontade política castelhana. O Período dos Governadores é considerado decisivo na evolução posterior. A observância dos factos parece concluir que nenhuma das três candidaturas desistiu da hipotética sucessão. Discretamente, D. Catarina mantém-se terceira candidata no plano de apoios internos, vincando a sua legitimidade política pela pena de António Ribeiro e Francisco Correia, juízes na querela. Filipe de Castela insiste na sua legitimidade, sem a sujeitar ainda a fiscalização ou prova jurídica concludente, proclamando-a como afirmação de princípio. D. António ainda tenta negociar com o seu primo castelhano, mediante envio de embaixadas, como é exemplo a comitiva do Padre Fernão da Silva. Porém as contrariedades entre partidos são latentes, pois o Rei castelhano nunca poderia aceitar as condições que D. António lhe propõe. A escalada subsequente seria marcada pelo gradual retrocesso da Junta de Governadores, que convoca novas Cortes, em Leiria com fim eleitoral, devido à peste em Lisboa31. O passo em questão provoca uma clivagem com Filipe, que se sente forçado a invadir o reino, enquanto o comportamento da Junta de Governadores parece minado por uma débil autoridade política. É neste período que surge a figura incontornável de D. Francisco de Portugal, conde de Vimioso, na defesa da causa antonina. Este movimento representa também o afastamento progressivo de D. Catarina, como candidata da causa do Reino. A peste e a fragilidade política de Almeirim leva à deslocação do Governo para Setúbal. Antes da invasão, Filipe ainda tentará refutar a legitimidade de nascimento do Prior do Crato. Cristóvão de Moura encontrará documentação comprovativa da bastardia do filho de D. Luís no espólio de D. Henrique, em meados de Maio de 1580. Como

réplica, D. António intima as Cortes a debater o mérito da coroa perante a sua prova de legitimidade, fundando-se no parecer favorável do Papa. A ameaça antonina faz-se sentir, em Junho de 1580, nas cartas de Moura a Filipe de Castela, alvo contínuo da hostilidade da Junta de Procuradores, que lhe é manifestamente desfavorável. A desconfiança de Filipe em relação à Junta não é menor, visto que esta tenciona forçá-lo a respeitar os ditames institucionais. Filipe protesta junto dos governadores e dos seus adversários a sua legitimidade e concentra o seu exército em Elvas. Um parecer da Universidade de Alcalá de Henares manifesta-se favorável às pretensões do Rei católico, mas não parece, aos olhos dos estudiosos deste período, que a legitimidade surja como busílis da questão. A vitória seria jogada no plano militar por determinação de invasão armada, votada a legalidade ao descrédito e imperativo de Razão de Estado32. O enquadramento da invasão castelhana é necessário à compreensão da reacção antonina, tónica determinante da resistência que se prolongará, primeiro na detenção dum poder parcial no Reino e depois no exílio, mas indiscutivelmente neste primeiro momento da aclamação de D. António em Santarém. Aclamação em Santarém O avanço militar de Filipe II, ainda que mal recebido pela opinião pública portuguesa, não calibra uma resposta imediata. A historiografia pesa esta fraca adesão como factor de debilidade da posição portuguesa face ao temor pela proximidade das forças do duque de Alba. Gorada uma aliança de cariz nacional, mediante a recusa da casa de Bragança, os procuradores proclamam D. António defensor do Reino. O partido nacional encontrava-se sem exército capaz, imagem da sociedade passiva e conformada, face ao avanço duma invasão armada e a um governo, que secundando a voz do reino, cede à ilegalidade processual filipina. As pretensões de dignidade régia fundamentam a aclamação de D. António. A resistência à invasão encerra, na figura do Prior do Crato, a única hipótese de contrariedade castelhana. Curiosamente, esta aclamação não se faria nos moldes eleitorais em Cortes, sendo uma determinação parcial de uma facção do braço secular. Ainda que seja aclamado, é notória a ausência do clero e da nobreza nesta consagração. É possível avançar neste plano que a urgência face ao receio castelhano secundou os propósitos teóricos da candidatura do Prior do Crato. Mais do que uma opção antonina, este movimento pode ser encarado como reflexo da fobia castelhana. O difícil consenso em torno da realeza de D. António antecipa, em parte, as dificuldades da sua implantação e o seu término na batalha de Alcântara. As contrariedades começam na própria vila de Santarém, na pessoa do seu alcaide, D. Pedro Coutinho. Mas é relevante observar que a formalidade da aclamação reserva ao Prior do Crato apenas o papel de Defensor do Reino, nítido nas suas palavras perante a multidão33. O apego popular e a radicalidade do acto elegem-no Rei, sendo esta a data que alguns historiadores fixam para o início do seu reinado. Neste sentido importa referir que o Prior obedece ao ritual da praxis, entrando no convento de S. Domingos como soberano, e deslocando-se aos Paços do Concelho para prestar juramento às leis do reino. O novo soberano admite mesmo esta dignidade assumindose como monarca ao escrever às cidades e vilas sobre a sua investidura34. O Memorial enfatiza o apoio popular à causa antonina no momento da aclamação. Os louvores, os cartazes e os escritos nas igrejas assim o testemunham. O cronista atribui de forma peremptória à invasão castelhana um papel catalisador na aclamação do Prior do Crato35. A proclamação de D. António, ainda que temida pelos Governadores, pouco impacto teve até à tomada de Lisboa, que data de 23 de Junho. D. João Telo e outros oponentes a Filipe de Castela adoptam uma atitude renitente para com o crescendo popular, por imperativo de ordem estratégica. Estes factos confirmam alguma expectativa do partido anti-castelhano quanto à solução antonina. A linha política do Prior do Crato irá poupar alguns dos seus oponentes mais moderados, futuros desertores face à concretização de ameaça filipina, mas o novo monarca centra as suas hostilidades para com os governa-

32

VELOSO, Queirós, Op. Cit., pp. 144-145.

33

SOARES, Pero Roíz, Op. Cit., p. 166

34

VELOSO, Queirós, Op. Cit., p. 156.

35

SOARES, Pero Roíz, Op. Cit., p. 165

24


dores, acusando-os de traidores ao reino. Nomeia novos vereadores, estabelece contactos com algumas instituições na cidade, como a Casa da Índia, a Alfândega e os Arsenais. É novamente aclamado soberano, e como Rei visita a Sé da cidade e jura novamente as leis do reino. A aristocracia portuguesa não confiou nesta realeza efémera, esperando as promessas do rei de Castela. O Prior do Crato desenvolve alguma actividade administrativa e nomeia governadores nas regiões que lhe são favoráveis36. Cristóvão de Moura dá conta a Filipe II do receio das autoridades da realeza antonina, procurando encontrar neste seio uma confirmação de hipotética debilidade nos seus propósitos. Ainda hoje os historiadores reflectem sobre a natureza patriótica do apoio a D. António, se vítima do advento militar em oposição a uma fraqueza estrutural, se mera conjuntura de oposição a Castela. A aclamação de D. António trará, mesmo assim, importantes mutações na ordem política interna. A adversidade definitiva da casa de Bragança, que em nenhuma circunstância reconhecerá a legitimidade do Prior, a definitiva assunção de posição unionista por parte da Junta de Governadores, ainda em Setúbal, que afasta ilegalmente D. João Telo, que por sua vez deixará a cena política nacional. As preocupações de D. António em poupar a Junta de Governadores distanciam-no, deveras, da facção radical contra o partido castelhano, talvez a que se afirma circunstancialmente mais devota. O Memorial ilustra-o através da narrativa da adesão popular na

36

SERRÃO, Joaquim Veríssimo, História de Portugal, vol. IV, Lisboa, Verbo, 1983, pp. 11-32.

37

SOARES, Pero Roíz, Op. Cit., p. 167

38

SERRÃO, Joaquim Veríssimo, “Anexo”, O Reinado de D. António, Prior do Crato , Coimbra, Instituto de Alta Cultura, 1956, pp. 559-563.

39

VELOSO, Queirós, Op. Cit., pp. 175-179.

40

SOARES, Pero Roíz, Op. Cit., p. 168.

41

SERRÃO, Joaquim Veríssimo, “Anexo”, O Reinado de D. António, Prior do Crato , Coimbra, Instituto de Alta Cultura, 1956, pp. 491-492.

25

Fig. 2 : - Batalha de Vila Franca do Campo, em 25 de Julho de 1582. Gravura holandesa da época. In SERRÃO, Joaquim Veríssimo, História de Portugal, vol. IV, Lisboa, Verbo, 1978, pp.32/33. 37

formação dum exército de defesa do reino . Esta escalada afasta, no entanto, as elites mais moderadas e prudentes, que continuam a preferir Filipe. O Prior do Crato e os seus apoiantes virão a perder paulatinamente a dinâmica de vitória. A fuga dos Governadores é um sinal de possível inversão do jogo de forças, exilando-se estes em território castelhano. Assim, irão finalmente reconhecer os direitos sucessórios de Filipe de Castela, nos moldes e termos da vontade do futuro invasor, num decreto em que condena a atitude de D. António38. O documento em questão poderá ultimar a questão da legitimidade sucessória aos olhos da causa filipina. Tendo sempre rejeitado o princípio da eleição do soberano, o decreto dos Governadores atribui a legitimidade ao Rei de Castela que o permite agir com algum crivo de legalidade. No corpo do texto, o governo reitera a invalidade da prova da legitimidade de berço de D. António, a sentença pela qual o cardeal o havia desnaturado e a conformação de D. Catarina com a escolha de Filipe. As perturbações nas reuniões de Cortes e a agitação constante do braço popular são fenómenos imputados a D. António, declarado inimigo da Pátria pelos Governadores, por todos os obstáculos que levantou à justa aclamação de seu primo39. O entusiasmo e a adesão dos partidários nacionalistas de D. António não conseguem evitar a gradual capitulação da resistência a Castela40. Após a passagem da fronteira, a 28 de Junho41, as fontes citam a tomada de importantes localidades como Santarém, Setúbal, a 18 de Julho, e Palmela. Parece relevante referir que se depreende a fragilidade desta solução política pela constante traição de apoiantes da causa antonina, ou falta de recursos financeiros. Os fiéis persistem numa atitude radical, que cerra fileiras e que defende a capital, núcleo final do governo do Prior do Crato. O Memorial refere-se mesmo

ao reinado de D. António como uma dezaventura tanto pelo fracasso em que consiste como pelo carácter depreciativo da sua sucessão42. A ocupação e invasão castelhana são relatadas como fenómeno cruel e violento. A 24 de Agosto, a Batalha de Alcântara porá termo formal ao reinado continental de D. António e após a capitulação da ilha Terceira, em 1583, este só poderá persistir no seu direito teórico à coroa no exílio. Conclusão É possível definir assim dois movimentos diversos neste processo: um primeiro, encabeçado pela pretensão de D. António, que encara o princípio eleitoral como parte duma estratégia de sucessão, goradas as tentativas de reconhecimento legítimo; e um segundo, que encontra na eleição em Cortes um eco da vontade popular, crente do seu poder político outorgado por Deus e ciente da sua primazia institucional quanto à determinação da sucessão no trono. É fácil concluir que o peso consuetudinário da assembleia de 1385 não vingou. Mas este movimento, de cunho nacionalista e anti-castelhano, vê em D. António em 1580, o timoneiro das suas aspirações, principalmente pela dinâmica política que o estadista representa. Toda a documentação o testemunha, com especial foco na aclamação em Santarém, definindo-se dois planos diversos de ambição política, onde nem sempre a forma é coincidente, e cujo equilíbrio se revelou estar votado ao fracasso, pelos motivos expostos. Parece-nos relevante apresentar provas incontornáveis deste aspecto. Se a causa pessoal de D. António não lhe sobreviverá, a causa nacional encontrará uma pluralidade de meios e agentes para se suster43. O mito político do sebastianismo, nos primeiros anos do reinado de D. Filipe I, jurado nas cortes de Tomar, manter-se-á como parte da consciência nacional. A nostalgia sebastianina, de feição cultural e literária, é assim prova dum movimento independente que em parte se autonomiza do seu protagonista. O suporte jurídico e ideológico que justifica o golpe de 1 de Dezembro de 1640, em moldes semelhantes à pretensa legitimidade de D. António, acompanha esta asserção. É curioso que sessenta anos depois seja a casa de Bragança a protagonizar o movimento que D. António se propôs liderar, sem êxito. D. Henrique terá compreendido os dividendos políticos que o Prior do Crato retiraria da defesa desta causa nacional. O monarca teria pretendido associá-la a D. Catarina de Bragança, em 1580, opondo-se por inércia à observação dum princípio eleitoral, que se encontra ironicamente como base de legitimidade política da sua própria dinastia.

42

SSOARES, Pero Roíz, Op. Cit., pp. 169-174.

43

GODINHO, Vitorino Magalhães, “Restauração”, Dicionário de História de Portugal, Direcção de Joel Serrão, vol. IV. Lisboa, Iniciativas Editoriais, 1971, pp. 609-627.

Fontes Fontes Manuscritas A.N.T.T., Aclamações e Cortes, Cortes, maço 6, nº 2. A.N.T.T., Corpo Cronológico, Parte I, maço 111, nºs 33, 36-38, 42-43, 45, 47-48. Fontes Impressas SERRÃO, Joaquim Veríssimo, “Anexo”, O Reinado de D. António, Prior do Crato , Coimbra, Instituto de Alta Cultura, 1956. SOARES, Pero Roíz, Memorial de Pero Roíz Soares. Estudo e leitura de M. Lopes de Almeida. Coimbra, Universidade de Coimbra, 1953. Bibliografia Obras Gerais SERRÃO, Joaquim Veríssimo, História de Portugal, vols III, IV, Lisboa, Verbo, 1978-1983. SERRÃO, Joel (Dir.), Dicionário de História de Portugal, 4 Vols., Lisboa, Iniciativas Editoriais, 1963-1971. Estudos BOUZA ALVAREZ, Fernando, D. Filipe I, Mem Martins, Círculo de Leitores, 2005. GRAES, Isabel, Contributo para um Estudo Histórico-Jurídico das Cortes Portuguesas entre 1481-1641, Coimbra, Almedina, 2005. POLONIA, Amélia, D. Henrique, Mem Martins, Círculo de Leitores, 2006. SERRÃO, Joaquim Veríssimo, O reinado de D. António Prior do Crato , Coimbra, Instituto de Alta Cultura, 1956. VELOSO, Queirós, A Perda da Independência, vol. 1, O reinado do cardeal D. Henrique. Lisboa, Empresa Nacional de Publicidade, 1946. VELOSO, Queirós, O interregno dos governadores e o breve reinado de D. António, Lisboa, Academia Portuguesa de História, 1953.

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O Institutionum Disciplinae:

uma proposta de análise comparada

Rodrigo dos Santos Rainha1

Resumo:

1

Mestre em História Medieval, doutorando em História Medieval pela Universidade Federal do Rio de Janeiro 2

MARTÍNEZ GÁZQUEZ. Sobre el origen hispano-visigodo de las Institutionum disciplinae. Faventia,

A educação no reino visigodo tem sido um tema recorrente em nossa pesquisa, para tanto, temos dialogado com as formas mais diversas de entendimento deste processo, entendendo educação como um conceito que extrapola os espaços escolares. Neste sentido, observamos que as bases das relações episcopais reside em um habitus que necessariamente dialoga com elementos presentes na ideia de educação no período, em especial as relações entre mestres e discípulos. Quando nos defrontamos com a historiografia sobre a educação no reino visigodo, nos defrontamos com muitos trabalhos que abordam um documento encontrado de maneira relativamente recente e que mudou a forma de ver a educação no período: Institutionum Disciplinae. Este documento, polêmico, possui uma dúvida intrínseca em sua análise pela dúvida de qual momento de sua produção e a autoria. Em suas duas versões encontradas, as autorias eram indicadas para Isidoro de Sevilha e Agostinho de Hipona. A partir daí, uma série de trabalhos começaram a abordar este documento, seja pelo caráter filológico, epigráfico e histórico. Como pesquisador da temática, em específico do momento teórico de sua produção, o século VII, opto por participar desta discussão por um caminho diverso do explicitado até então: uma leitura comparada do documento, buscando as proposições presentes no epistolário de Bráulio de Saragoça, um dos principais discípulos de Isidoro de Sevilha e organizador de um de suas obras mais conhecidas: as Etimologias. O Institutionum Disciplinae: uma proposta de análise comparada Rodrigo dos Santos Rainha

A educação no reino visigodo tem sido um tema recorrente em nossa pesquisa, para tanto, temos dialogado com as formas mais diversas de entendimento deste processo, entendendo educação como um conceito que extrapola os espaços escolares. Neste sentido, observamos que as bases das relações episcopais reside em um habitus que necessariamente dialoga com elementos presentes na ideia de educação no período, em especial as relações entre mestres e discípulos.

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Quando nos defrontamos com a historiografia sobre a educação no reino visigodo, nos defrontamos com muitos trabalhos que abordam um documento encontrado de maneira relativamente recente e que mudou a forma de ver a educação no período: Institutionum Disciplinae. Este documento, polêmico, possui uma dúvida intrínseca em sua análise pela dúvida de qual momento de sua produção e a autoria. Em suas duas versões encontradas as autorias eram indicadas para Isidoro de Sevilha e Agostinho de Hipona. A partir daí, uma série de trabalhos começaram a abordar este documento, seja pelo caráter filológico, epigráfico e histórico. Como pesquisador da temática, em específico do momento teórico de sua produção, o século VII, opto por participar desta discussão por um caminho diverso do explicitado até então: uma leitura comparada do documento, buscando as proposições presentes no epistolário de Bráulio de Saragoça, um dos principais discípulos de Isidoro de Sevilha e organizador de um de suas obras mais conhecidas: as Etimologias. Nossa contribuição a esta discussão será por meio de um caminho comparativo. Dentro do campo da história e baseado em nossas proposições, nosso objetivo neste artigo é uma comparação sobre a idéia de educação presente nos fragmentos de cartas escolhidos no epistolário Brauliano. Nossa contribuição a esta discussão será por meio de um caminho comparativo. Dentro do campo da história e baseado em nossas proposições, nosso objetivo neste artigo é uma comparação sobre a idéia de educação presente nos fragmentos de cartas escolhidos no epistolário Brauliano. Para estabelecermos esta comparação adotaremos o método proposto por Jurgen Kocka, conhecido como comparação cruzada. Estabeleceremos dois campos de análise, um para cada documento, a partir de uma seleção de temáticas, após a organização deste dois quadros cruzaremos suas visões explicitando semelhanças e diferenças. Esperamos obter, a partir desta leitura temática as linhas que aproximam o documento das visões presentes na intelectualidade visigoda, aqui representada por Bráulio e o documento.

2

MARTÍNEZ GÁZQUEZ. Sobre el origen hispano-visigodo de las Institutionum disciplinae. Faventia, Barcelona, n.1,p. 35-46, 1979.

O Institutionum disciplinae Este material foi encontrado e catalogado apenas no início do século passado e já teve inúmeras e fundamentadas discussões sobre sua origem. Hoje é aceite que seja visigótica, no entanto, sem um autor específico, apesar de muitos defenderem que é de Isidoro de Sevilha. O documento Institutionum Discipliane foi encontrado no início do último século em dois manuscritos da Parisinus lat. 2994 A e Cód. Lat. Monacensis 6384, o primeiro atribui sua origem a Isidoro de Sevilha e o segundo a Agostinho de Hipona. Vamos apresentar as visões de Fontaine e Riché sobre o documento, além de alguns materiais produzidos com base neste documento, como: Diaz y Diaz, Gázquez, Martin Hernandez e Dominguez Del Val. Não pretendemos adentrar em searas que foram intensamente vistas, como a filologia e influência para construção do documento, claramente em Plínio Jovem. Sem dúvida, quando A. E. Anspach teve a oportunidade de encontrar o Institutionum disciplinae, preparando a edição das obras de Isidoro para o Corpus scripitorum ecclesiaticorum Latinorum, e publicou sua descoberta pela primeira vez na revista Rheinisches Museum 67, 1912, p. 558 – 568, deu-se um novo impulso aos estudos de educação no reino visigodo 2. A proposição de Anspach, de que o material seria o achado perdido de Isidoro de Se-

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3

BEESON, CH. Isidore’s Institutionum Disciplinae and Pliny the Younger. Classical Philology, Chicago, v. 8, n. 1, p. 93 - 98, 1913. 4

Cf.: RICHÉ, P. “L´education a l´epoque wisigothique: les “institutionum disciplinae.” Anales Toledanos III, 1971, p. 172.; RUCQUOI, A. Éducation et Société dans Péninsule ibérique médiévale. Histoire de l´’éducation. Paris, n. 69, p. 1 - 34, 1996.

5

Cf.: DIAZ Y DIAZ, M. Introducion. In: ISIDORO DE SEVILHA. Etimologias. Madrid: Bac, 1982. p. 70 – 94; ___. La obra literaria de los obispos visigóticos toledanos: Supuestos y circunstancias. In: La Patrologia Toledano-Visigoda: XXVII Semana Española de Teologia. Madrid: CSIC, 1970. p. 45 – 63; ___. Problemas culturales en la Hispania tardorromana y visigoda. In: De la Antiguedad al Medievo. Siglos IV – VIII. III Congresso de Estudios Medievales. [s.l]: fundacion Sanchez-Albarnoz, 1993. p. 9 -32. e ___. Aspectos de la Cultura Literaria en la España Visigótica. Anales Toledanos, Toledo, v. 3, p. 33 - 58, 1971.

6

Cf.: DIAZ Y DIAZ, M. Introdución... Op. cit.

7

Cf.: MARTIN HERNANDEZ, F. Escuelas de Formación del Clero en la España Visigoda. In: La Patrologia Toledano-Visigoda: XXVII Semana Española de Teologia. Madrid: CSIC, 1970. p. 66 – 100.; DOMINGUEZ DEL VAL, Ursino. Características de la Patrísitica Hispana en Siglo VII. In: La Patrologia Toledana – Visigoda: XXVII semana española de teologia. Madrid: CSIC, 1970. 8

J. FONTAINE, “Quelques observations sur les ‘Institutionum disciplinae’ pseudo-Isidoriennes”, La Ciudad de Dios, 161,1968.

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vilha, foi discutido já no ano seguinte por Charles H. Beeson 3, no qual o autor discute que quem produziu o documento era de fato um leitor de Plínio o Jovem, mas que a qualidade do latim apresentado já demonstra ser um documento medieval, questionando até mesmo a possibilidade de ter sido escrito por Isidoro, apesar de reconhecer repetições das ideias ali representadas em obras como as Etimologias e o De Officis do sevilhano. Pierre Riché e Adeline Roquoi, dos que mais contribuíram para o estudo da educação nos reinos germânicos. No caso Visigodo, foi ele a dar um dos mais importantes paços para o reconhecimento do documento como parte da obras educacionais visigodas, não necessariamente de Isidoro de Sevilha 4. Ambos destacam que o direcionamento para uma educação voltada aos jovens era uma preocupação recorrente no reino visigodo, e que a reprodução deste documento é concernente a temática. Riché ainda faz uma importante ressalva, que dificilmente o documento seria isidoriano, uma vez que as obras do autor foram catalogadas por um de seus principais discípulos Bráulio de Saragoça no conjunto chamado Renotatio Libri Isidori, e lá não há nenhuma menção a um documento deste tipo. Entre os espanhóis devemos destacar Manuel Diaz y Diaz, que acerca deste tema contabilizamos do autor pelo menos quatro obras de referência 5. Em todas, o autor utiliza a referência do Institutionum disciplinae sem preocupação com uma discussão direta de seu pertencimento, dando como certo o pertencimento ao conjunto de obras escritos por Isidoro de Sevilha. Suas concepções desta forma influenciaram os autores que tratam da questão. Diaz y Diaz utiliza a idéia de eclipse das letras, que só começariam a retornar pelo trabalho de grandes varões, como Isidoro, por isso a recuperação de um modelo educacional romano, como o apresentado no documento 6. Textos sobre educação de outros autores como Dominguez Del Val e Francisco Martin Hernandez também merecem menção. O primeiro realiza um estudo em que pretende caracterizar o episcopado visigodo no século VII. Para tal explicita que a cultura escolar é de origem romana. Já Hernandez tem um estudo centrado no funcionamento escolar, classificando as escolas de formadora do clero 7. Os trabalhos de Del Val e Martin Hernandez são bastante próximos, diria até complementares, uma vez que utilizam praticamente os mesmos documentos para pensar o tema no período. Ambos também tratam educação como sinônimo de escola. O primeiro enfoca as escolas catedralícias ou episcopais e sua função de garantir os quadros eclesiásticos, e Martin Hernandez aborda a importância das escolas paroquiais e principalmente as monacais, e em suas argumentações apesar de sinalizarem a dificuldade de datação ou a autoria isidoriana ao documento, apenas em nota Hernandez sinaliza a controvérsia da questão, mas que a historiografia tem aceitado o documento como visigótico. O argumento de ambos, ao tratar o documento, é sinalizar a existência de escolas laicas no reino visigodo. Fontaine não poderia deixar de participar desta discussão, uma vez sendo um dos principais especialistas em Isidoro de Sevilha. Em uma obra em que discute especificamente o que é o Institutionum Disciplinae, em que expõe questões variadas, como o latim utilizado, o modelo de escrita isidoriana, o local em que o documento foi encontrado, Fontaine tem como sua principal conclusão que o documento não pode ter procedência especificada, podendo ter origem em qualquer reino do século VI e VII na Europa ocidental 8. Martinez Gasquez recentemente voltou a temática e trouxe uma ideia um pouco diferente, apesar de ser influenciado pelos demais trabalhos. O autor trabalha o sentido da presença do documento na biblioteca de Paris, por conta do que ele chama de “diáspora visigótica”, tanto que este não é o único documento visigótico em parisinus. Outra linha que utiliza para identificar o documento como visigótico é notícia dada

por Valério de Bierzo em seu Replicatio Sermona. O autor apresenta, então, a hipótese que fonte representa a preocupação em associar a religião e pátria visigótica. O sentido é que o Institutionum apresenta em si o fundamento da “Patriae ac gens gothorum.” As Cartas de Bráulio de Saragoça No sentido de buscar uma nova leitura para esta análise, como sinalizamos no início do trabalho, buscaremos dialogar em como observamos a educação nas cartas escritas por Bráulio de Saragoça e, por fim, comparar estas proposições ao apresentado no Institutionum. Sobre as cartas do bispo de Saragoça, temos dos fatores relevantes: o tipo de documento é rico para notarmos seu aspecto relacional, o diálogo com outras lideranças visigóticas; e pala sua atuação destacada na organização do episcopado visigodo. A formação do bispo é um bom indicio sobre sua atuação. Sua participação no meio intelectual eclesiástico pode ser apreendida pela intensa troca de livros, obras de sua autoria, além de uma escola episcopal que este manteve em Saragoça em que formou importantes bispos do período 9. Bráulio foi iniciado nos estudos no núcleo familiar, sendo membro de tradicional família hispano-romanas, foi educado primeiramente por seus irmãos mais velhos e pelo auxiliar de seu pai no bispado de Osma, Nonito. Ainda bastante novo, foi enviado a Sevilha para continuar seus estudos em outra famosa escola do período, mantida pelo bispo Isidoro 10. Este destaca-se pela grande produção de escritos que serão referencia por toda a Idade Média. As cartas no período são um excelente instrumento de análise pelo seu duplo caráter, se por um lado elas trazem uma linguagem que se refere ao aspecto pessoal, e dialogam com os interlocutores sobre questões do cotidiano eclesiástico e sua relação com o reino, por outro elas trazem uma estrutura formal e nos permitem apreender determinados ensinamentos escolares que se repetem e são tidos como fundamentais, como por exemplo a ênfase na retórica 11. Buscaremos agora explicitar algumas características que este tipo de instituição assume no reino visigodo. Basearemos nossas explicações nas principais características que podem ser apreendidas em nossas fontes de pesquisa. A educação no reino visigodo já figurava como uma preocupação no século VI, o que poder ser observado pela recomendação dadas aos bispos no III concilio de Toledo, instruía a seus bispos a manterem núcleos episcopais de ensino. As características das escolas godas devemos destacar não possuímos nenhum registro de escolas laicas no reino, a não ser a controversa sobre o Institutionum Disciplinae. Mas são destacados dois tipos de colégios eclesiásticos: os monásticas, organizados para manter educados os monges e preparar os futuros clérigos, moradores dos mosteiros e provavelmente, aos filhos das elites políticas próximas; e as escolas episcopais, organizadas na casa dos próprios bispos e com objetivo maior de formar os grandes quadros eclesiásticos. As matérias estudadas nestas escolas reproduziam a educação greco-romana clássica. Os principais conteúdos giravam em torno do Trivium e Quadrivium 12, seguindo, não por acaso, os referenciais romanos. No entanto, uma preocupação específica chama atenção: O foco sobre a retórica. Nas cartas, a presença de instrumentos retóricos como a base das disputas e solicitações eclesiásticas. Um exemplo do exposto acima é a carta XI do epistolário. Esta é uma resposta de Bráulio a seu aluno e discípulo, que estava em missão entre as paróquias do reino Tajon 13. Nela, Bráulio reclama da insolência de seu discípulo, alegando que a retórica, apresentada pelo discípulo é frágil, e comete erros nas citações e na forma. Bráulio

9

Eugenio II bispo de Toledo e Tajon Bispo de Saragoça por exemplo.

10

A escola mantida por Isidoro de Sevilha é uma das mais conhecidas e comentadas do período. Ela provavelmente foi fundada anteriormente por seu irmão, Leandro. Durante o período que Isidoro esteve a frente alguns de seus alunos ganharam notoriedade no reino, como Bráulio que se torna bispo de Saragoça, Idelfonso de Toledo e o monarca Sisebuto. 11

Vale destacar que as cartas apesar de apresentarem um modelo de linguagem que insinua ser um documento privado, uma análise mais atenta nos permite perceber que não refletem apenas um posicionamento pessoal, mas revelam disputas de grupos diversos, assim como aproximações que estabelecem determinadas regras para sua escrita. Cf.: TIN, E. (org.) Arte de Escrever Cartas. Campinas: Unicamp, 2005. p. 24.

12

Este conjunto é de inspiração greco-romana, e vai permanecer como base da educação durante toda a Idade Média. São consideradas as sete artes mestras. O Trivium é voltado os estudos filosóficos e o Quadrivium as matérias práticas.

13

Infelizmente a carta enviada por Tajon não consta no Epistolário e nem sobreviveu ao tempo.

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14

Segundo Charles Barlow é pouco provável que Bráulio tenha lido um original, mas sim um escrito de Teertuliano em que Against the Valentinians 12 (CSEL 47.191), em que o autor usa Gragulum Aesopi, exatamente a mesma forma que Bráulio faz na carta. Confr. BRAULIO, Epistolário. In: The Fathers of The Church: Iberian Fathers Braulio of Saragossa ; Fructuosus of Braga. Tradução de Claude W. Barlow. Washington: The Catholic University of América Press, 1969.

15

Epistolário de S. Braulio. Cartas XXVI e XXVII. Sobre a relação do abade com o monarca, confr: Lynch, C. H. e GALINDO, P. San Braulio Obispo de Zaragoza (631 – 651): Su vida y sus obras. Madrid: Instituto Enrique Florez, 1920. 16

Provavelmente mosteiro da região de La Rioja. SANTIAGO CASTELLANOS. Poder Social, Aristocracias y Hombre Santo en la Hispania Visigoda. La Vita Aemiliani de Braulio de Zaragoza. Logroño: Universidade de La Rioja, 1998. p. 40 - 52.

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utiliza uma fábula do grego Esopo, para indicar o mal que faz um aluno em não seguir os ensinamentos e seu mestre. 14 Este fato e as colocações com citação dos autores, coisa incomum no período, remete-nos que este tipo de carta fazia parte do processo educacional, quer dizer com o crescimento e amadurecimento dos alunos, a educação não cessava, mas transformava-se continuando em alguns casos mesmo a distância. Nas cartas de Bráulio temos um bom exemplo de como esta educação dada pelas escolas monásticas se faz presente é o caso de Emiliano. Este abade foi o provável tutor do monarca Suintila, e ao se relacionar com Bráulio de Saragoça, faz o papel de interlocutor do monarca.15 Um outro evento que ratifica esta hipótese é, após o ano de 650, o bispado de Toledo ter uma grande presença de bispos, assumindo provenientes do bispado de Egara. Um dos motivos destacados como possibilidade é, justamente, a proximidade com os monarcas dos membros deste mosteiros. Essa proximidade pode ter entre outros traços, justamente, a educação empreendida pelos mesmo junto a nobreza Toledana. A educação parte integrante no processo de fortalecimento da Igreja no reino, catequização das populações e continuidade do clero. Os membros do Episcopado, tradicionalmente com uma idade mais avançada, longo tempo no interior da Igreja e extremamente familiarizados no crescimento da participação da instituição, fomentaram a organização escolar como forma de difundir e afirmar uma cultura com características específicas e de inspiração religiosa, que permite que o reino os reconheça, e mais do que isso, adotem a sua forma de agir, pensar e ver o mundo. Desta forma destacamos claramente um triplo papel da educação na estrutura eclesiástica da igreja católica visigoda. São eles: garantir ao corpo eclesiástico uma identificação própria afastando dos referenciais anteriores; a possibilidade da interação com outros campos de poder da sociedade, permitindo a atuação política, com auxilio da influência obtido junto aos monarcas; e por fim, funcionou como um modelo para o todo social, como uma espécie de ação catequizante por parte do clero, indicando idéia de que para que fosse alcançado o caminho da glória e salvação junto a Deus eram necessários maestros, a Igreja teve o Cristo e os membros da patrística, os clérigos seus mestres nas escolas, e o povo tem a Igreja para lhe guiar. Comparação Da mesma forma que Gasquez buscou um argumento político para sua afirmação de pertencimento visigótico do Institutionum, na construção de um olhar sobre o entendimento da educação, notamos também alguns diálogos que destacaremos daqui em diante. O documento em si é pequeno, contendo uma série de instruções sobre como deve ser educado um jovem, passando pelas fases de educação e dialogando entre a necessidade de associar a alimentação do corpo com a do “espírito,” em outras palavras sua instrução deve ter paralelamente atividades físicas e atividades intelectuais. O momento de início desta educação é o mesmo que o apresentado no IV Concílio de Toledo e por Isidoro de Sevilha nas etimologias, a infância e com o mesmo foco de preocupação, o menino deve ser direcionado antes da fase das “paixões” período em que seria impossível direcioná-lo. Ainda sobre as proximidades, chama atenção a indicação de que as primeiras letras sejam necessariamente passada pelos mais velhos, tanto nos escritos braulianos, como no Institutionum, a responsabilidade do idoso é necessariamente estabelecer-se como a figura do mestre, aquele que deverá conduzir o discípulo. A questão dos cânticos é outro elemento que chama a nossa atenção. Ao longo do epistolário, sempre que solicitado sobre as explicações litúrgicas, ou sobre a forma de pregar, Bráulio sinaliza a necessidade de cantar, pois é uma forma de alcançar mais facilmente aos discípulos. Na carta enviada a seu irmão Frunimiano, abade, 16 em que o bispo envia a hagiografia sobre Emiliano, explica que deve ser cantado um hino pois facilitaria para que houvesse uma melhor compreensão do texto. Os cantos também fazem parte do Institutionum disciplinae, no entanto, eles são uma preocupação, pois é necessário que se fuja dos “cantos eróticos e vergonho-

sos”, o que Menendez Pidal compreendeu como uma prova de que era para educação dos visigodos, pois era de sua tradição militar os cânticos de guerra. Não concordamos com o argumento apresentado, uma vez que só este elemento, ainda mais se observado que é uma construção que também aparece na obra de Plínio o jovem, como destaca Benson. Na comparação um dos aspectos mais ricos é a valorização do orador. Orador deve ser transparente e claro; ter conversação diáfana; opinião equilibrada; sem dificuldade de ouvir e sem tardar a responder. 17 Anspach e Riché destacam que esta passagem é muito parecida com a proposta por Isidoro de Sevilha nas etimologias ao destacar o papel do orador. Mas um outro aspecto chama atenção. Na carta de Bráulio a um de seus discípulos, Tajon de Saragoça, 18 o autor apresenta argumentos clássicos, com citações explícitas ao seu conhecimento, pode ser entendida como um carta raivosa, Bráulio não aceita os argumento do clérigo enviado anteriormente, e no penúltimo antes do último parágrafo, faz uma referência sobre o orador bastante próxima ao do Institutionum, alegando que a carta recebida era um testamento, que perdeu sua objetividade e causou descontentamento pois o bispo que deveria responder com objetividade teve que fazer uma carta “quase longa.” Um dos pontos centrais da instrução sobre a educação é a referência ao corpo, mas com uma analogia interessante, a virtude aparece como o mestre e a indolência como algo a ser combatido. Não encontramos paralelos sobre esta questão pois as referências ao corpo em Bráulio aparecem sempre ligado a doença ou a uma metáfora social. No documento que analisamos o controle do corpo é um dos elementos centrais do ensino, uma vez que ele deve ser treinado para as armas, cavalaria, corrida e lutas. Deve-se dar vazão ao disputatio como forma de vencer a sexualidade que aflora nos jovens. Para a Idade adulta o Institutionum Disciplinae sublinha a necessidade de aprender sobre a prudência; justiça, fortaleza e temperança. Este ponto é utilizado como formado de uma educação nobre, e o elemento argumentativo que Hernández, Diaz y Diaz e Dominguez Del Val utilizam para tratar de uma escola de formação laica. De fato, o que vemos é uma reconstrução clássica, no sentido de romana em especial. Chama atenção na comparação com as cartas de Bráulio de Saragoça aos reis visigodos, sempre muito adjetivadas, no entanto, nenhum dos ensinamentos sinalizados aparecem quando tratamos de Chindasvinto, já quando falamos de seu filho, provavelmente educado no seio da Igreja as qualidades que lhe são atribuídas são justiça, fortaleza, temperança, além de afirmá-lo como bom orador.

17

A influência do De Oratore de Cícero é bastante clara neste trecho. GAINES, Robert N. (2002) , «Cicero’s Partitiones Oratoriae and Topica: Rhetorical Philosophy and Philosophical Rhetoric», in J. May (ed.), Brill’s Companion to Cicero: Oratory and Rhetoric, Leiden, Brill: 445-480.

18

A carta é a de número XI do epistolário, p. 82-85. BRAULIO, Epistolário, ed. L Riesco Terrero, Epistolario de San Braulio: Introducción, edición crítica y traducción. Sevilia: [s.n], 1975.

Considerações finais Este estudo não tem intenção em determinar a procedência do documento, o que aliás, com toda a observação que tratamos até então, este elemento não foi nosso ponto central. Tal qual proposto no início, buscamos observar a proximidade que tal documento apresenta das discussões episcopais presentes no reino visigodo. Notamos, então, que há consonância das propostas educacionais, em especial a valorização mestre-discipular não em um sentido divino, como apresenta Agostinho, nem tão pouco com respeitando e seguindo uma lei natural como o proposto em Cícero, mas sim uma linha que fala de condutores, de educadores que tivessem mais enraizados na estrutura eclesiástica, em uma relação próxima a que encontramos nas cartas de Bráulio de Saragoça. Não somos, no entanto, categóricos em propor que o documento explicite um modelo de educação laica, organizada e difundida na sociedade visigótica, mas sim mais um indício de recuperação de elementos de um campo erudito romano, reconhecido e difundido entre os membros do episcopado visigodos, entre outros.

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7

Que a leitura das obras clássicas teve influência na formação dos humanistas portugueses, parece não gerar muitas dúvidas. Na Europa dos séculos XV e XVI, a circulação e a recolha de obras clássicas tornou-se muito frequente. Um autor antigo que cujas obras foram recuperadas e lidas foi precisamente Cícero. De facto, Marco Túlio Cícero (106-43 a. C) é uma das personagens mais conhecidas da política, sociedade e cultura romanas do século I a. C. O conhecimento das suas obras era um dado adquirido até ao século XIV, quando Francesco Petrarca (1304-1374) descobriu e copiou a correspondência de Cícero a Ático, a Bruto, ao seu irmão Quinto e o seu discurso Pro Archia Poeta. Poggio (1380-1459) descobriu os discursos Pro Murena e Pro Caecina2. Sabemos que esta actividade motivou conhecimentos mais específicos por parte dos humanistas europeus. Thomas More (1478-1535), autor da Utopia, expunha, numa carta não datada ao seu editor em Antuérpia, Pedro Gilles (1486-1533), que existiam humanistas que “conhecem o latim menos bem do que o grego”3. Perante a conjuntura cultural europeia deste período, é natural que também no reino de Portugal existisse uma tradição de leitura e tradução das obras clássicas, sendo que nestas, o tratamento e recepção filológica era nas línguas românicas no seu estado antigo. Desde o seu início que a dinastia de Avis nunca descurou a cultura. A leitura de obras antigas, a Universidade e o estudo eclesiástico começou a ter influência cultural onde a literatura de fundo ético, na qual as obras de Cícero ocupavam parte importante, orientava o culto dos ideais, do corpo e do espírito. O grande apego à cultura por parte desta dinastia é visível na boa formação que D. João I tinha e que este transmitiu aos seus filhos4. É com alguma naturalidade que analisamos o que se segue.

de Fórmias, precisamente quando se vivia toda a agitação em torno do homicídio de Júlio César. De Officiis é um tratado ético, acerca de ser um bom cidadão, que Cícero dedicou ao seu filho, Marco. Julgamos então que a primeira obra de um autor clássico a ser traduzida para português tenha sido o Livro dos Ofícios de Marco Túlio Ciceram, o qual tornou em linguagem o Infante D. Pedro7, tradução que o Infante terá efectuado entre 1433 e 1438, precisamente durante o reinado do seu irmão, o Rei D. Duarte. O documento que, efectivamente, nos oferece mais informações acerca desta tradução de Cícero pelo Infante D. Pedro é a carta - dedicatória que o próprio Infante escreveu ao Rei8. Nela se pode constatar, não só o que o Infante sabia sobre as obras de Cícero e a filosofia nela inserida, mas também a compreensão da língua latina e o esforço necessário para a tradução do tratado ciceroniano. Para o infante, foi com a tradução do De Officiis que traduziu os seus mais “fremosos latiis” e que esta obra de Cícero lhe pareceu “a melhor ditada”. O Infante afirma que “cam pouco eu entendo do latim”9 chegou para traduzir o tratado ciceroniano. A edição que o Infante possuía pertencia ao Infante D. Fernando, “assaz dannos ha”, irmão de ambos, e o Infante acabou por reconhecer que o seu conhecimento linguístico não era suficiente para o “seu mui notavel estillo”. A compreensão das obras de Cícero em Portugal estava a construir--se. No parecer do Infante, que mostra ter um conhecimento amplo das obras de Cícero, considera o tratado De Officiis o mais útil e bem escrito, mas considera: “O terceiro achey muito scuro, por que reconta estorias e exemplos, e parece que screvia quem as sabia”10. Apesar destas considerações, poucas são as informações acerca da real formação do Infante em relação às letras, exceptuando o conhecimento das obras de Cícero já referido. Mas neste tratado, o conhecimento da História é susceptível de ser notado. De facto, em todo o tratado, Cícero recorre a exemplos históricos para expor as suas ideias11. Para além de traduzir este tratado de Cícero, o Infante D. Pedro incentivou outros fidalgos do reino, que também eram dedicados às letras, que traduzissem tratados deste autor. Foi o que viria a acontecer com Vasco Fernandes de Lucena, que traduziu De Senectute e cuja tradução comunicou ao Infante12. Parece que o conhecimento das obras ciceronianas era comum no Portugal do século XV. No século XVI, a actividade dos humanistas europeus, e por consequência também os portugueses, intensificou-se. A leitura de obras e traduções de vários humanistas ia passando pelas várias gerações. Pensa-se, inclusive, que as várias traduções de Cícero feitas em Portugal inspiraram outros humanistas mais jovens a proceder a novas traduções. Tal parece ser o caso de Damião de Góis. O século XVI, que é também o de Damião de Góis, viu já conseguidos muitos avanços tecnológicos, muitas obras de arte produzidas, muitas obras literárias pensadas, escritas inspiradas no saber dos autores clássicos e muitas conquistas de possessões coloniais. Ainda assim, houve algo que culturalmente permaneceu. Neste caso, podemos pensar na influência da tradição de tradução de obras ciceronianas transmitida pelo Infante D. Pedro e por Vasco Fernandes de Lucena a outros humanistas13. O que iremos analisar de seguida está separado no tempo em cerca de cem anos, mas a sua pertinência é inequívoca.

Cícero traduzido:

1

Investigador do Instituto PAEHI – Associação para Estudos Históricos Interdisciplinares/ Mestrando em História Antiga pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa

notas acerca do Infante D. Pedro e Damião de Góis

2

Operações estas sumariadas por Maria Helena da Rocha Pereira em Estudos de História da Cultura Clássica I Volume – Cultura Grega, 10ª edição – revista e actualizada, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2006, p.26

Mauro Costa1

3

Carta esta incluída em Tomás Morus, A Utopia, 13ª edição, Lisboa, Guimarães Editores, 2003

4

Vide Serrão, Joaquim Veríssimo, História de Portugal, Volume II, 3ª edição revista, Editorial Verbo, 1980, p.309 5

Datação oferecida por Maria Helena da Rocha Pereira em Nas origens do humanismo ocidental: os tratados filosóficos ciceronianos in Revista da Faculdade de Letras. Línguas e Literaturas (Porto), 2ª série, nº2, 1985, p.25. Oliveira Martins (1845-1894) em Os Filhos de D. João I (originalmente publicado em 1891) afirma que o Infante viajou pela Europa entre 1428-1439 e terá sido neste período que traduziu De Officiis de Cícero e De Re Militari de Vegécio. Vide Oliveira Martins, Os Filhos de D. João I, Porto, Lello e Irmãos, 1983, p.121

6

A redacção do Livro da Virtuosa Benfeitoria pelo Infante D. Pedro é controversa. Pensa-se, por um lado, que seria uma adaptação do tratado De Beneficiis de Séneca. Cf. Mattoso, José (dir.), História de Portugal, Volume II, Lisboa, Círculo dos Leitores, 1993, p.503. Por outro lado, pensa-se que foi Frei João Verba, confessor do Infante, que terá sido o verdadeiro autor do tratado. Cf. Serrão, Joaquim Veríssimo, História de Portugal, Volume II, 3ª edição revista, Editorial Verbo, 1980, p.310. Porém, Oliveira Martins em Os Filhos de D. João I afirma que Frei João Verba completou a autoria do tratado com citações morais de Séneca. Vide Oliveira Martins, Os Filhos de D. João I, Porto, Lello e Irmãos, 1983, p.129

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1.1O Infante D. Pedro e a tradução do De Officiis

Poderíamos afirmar que o Infante D. Pedro (1392-1449), pertencente à Ínclita Geração, recebeu formação de estadista, apesar de não ser propriamente herdeiro do trono. Não obstante estes seus condicionamentos biográficos, o Infante D. Pedro mostrou-se verdadeiramente dedicado às letras. Sabemos que entre 1418 e 1438 5, o Infante viajou pela Europa e dedicou-se ao estudo das letras, tendo escrito o Livro da Virtuosa Benfeitoria, no qual se sentia a influência de Séneca6. Perante tudo o que sabemos, foi neste período que o Infante D. Pedro terá procedido à tradução do tratado De Officiis de Cícero. Cícero escreveu este tratado em 44 a. C, aquando do seu exilio da cidade de Roma, na sua uilla

1.2 Damião de Góis e a tradução do De Senectute

Poderíamos dizer, à primeira vista, que temos mais informação acerca das traduções que Damião de Góis (1502-1574) fez das obras de Cícero, da qual a única de que temos conhecimento é a do tratado De Senectute14. Mas a relação de Damião de Góis com o corpus ciceroniano é mais profunda. A partir de 1522, Damião de Góis inicia uma longa viagem pela Europa, com destaque para os anos que passou a estudar em Pádua (1534-1538). Antes, tinha conhecido Erasmo de Roterdão (1466-1536) em Basileia. Na verdade, irão ser as ideias de Erasmo que inspirariam Damião de Góis nos seus escritos. A escola erasmiana tomava já assento nas universidades europeias. É importante

Do qual analisamos a versão editada por Joseph Piel (ed.), Livro dos Ofícios de Marco Túlio Ciceram, o qual tornou em linguagem o Infante D. Pedro, Coimbra, Universidade de Coimbra, 1948. Vide também Rocha Pereira, Maria Helena, Nas origens do humanismo ocidental: os tratados filosóficos ciceronianos in Revista da Faculdade de Letras. Línguas e Literaturas (Porto), 2ª série, nº2, 1985, p.24

8

Publicada pela primeira vez em 1910 por José Pereira de Sampaio (Sampaio Bruno) na sua edição do Livro da Virtuosa Benfeitoria e incluída também na edição de Joseph Piel, de 1948, acima referida.

9

Apesar de Rui de Pina afirmar no capítulo 125 da sua Crónica de D. Afonso V que o Infante D. Pedro é “bem latynado”. Vide Rocha Pereira, Maria Helena, Nas origens do humanismo ocidental: os tratados filosóficos ciceronianos in Revista da Faculdade de Letras. Línguas e Literaturas (Porto), 2ª série, nº2, 1985, p.24, 26

10

Aqui o Infante referia-se ao terceiro livro de De Officiis. 11

Para um sumário destas informações uide Rocha Pereira, Maria Helena, Nas origens do humanismo ocidental: os tratados filosóficos ciceronianos in Revista da Faculdade de Letras. Línguas e Literaturas (Porto), 2ª série, nº2, 1985, p.24 12

LCom um prólogo que Joseph Piel incluiu na introdução à tradução do De Officiis do Infante D. Pedro. Vide Piel, Joseph (ed.), Livro dos Ofícios de Marco Túlio Ciceram, o qual tornou em linguagem o Infante D. Pedro, Coimbra, Universidade de Coimbra, 1948, pp. XLIII-XLVI e também Rocha Pereira, Maria Helena, Nas origens do humanismo ocidental: os tratados filosóficos ciceronianos in Revista da Faculdade de Letras. Línguas e Literaturas (Porto), 2ª série, nº2, 1985, p.26 13

Vide Nascimento, Aires A., Damião de Góis, tradutor: perspectivas para uma integração cultural in Congresso Internacional Damião de Góis, na Europa do Renascimento, Braga, Publicações da Faculdade de Filosofia, 2003, p.243 14

Vide Nascimento, Aires A., Damião de Góis, tradutor: perspectivas para uma integração cultural in Congresso Internacional Damião de Góis, na Europa do Renascimento, Braga, Publicações da Faculdade de Filosofia, 2003, p.234

36


15

Vide Barreto, Luís Filipe, Damião de Goes. Os caminhos de um Humanista, [s. l], CTT, 2002, p.37

16

Vide Barreto, Luís Filipe, Damião de Goes. Os caminhos de um Humanista, [s. l], CTT, 2002, p.38 17

Vide Hirsch, Elisabeth Feist, Damião de Góis, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1987, p.128. Erasmo terá escrito a Damião de Góis que Cícero era um autor pagão, de maneira que nem todas as teorias humanistas podiam ser aplicadas à sua obra.

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Exceptuando Cícero e Horácio, Damião de Góis também se tornou conhecedor de outros autores clássicos latinos como Tito Lívio, Valério Máximo e Frontino. Era a partir destes que Damião de Góis tinha conhecimento de outras obras mais antigas como a Ilíada e a Odisseia. Vide Espírito Santo, Arnaldo, A mãe da eterna memória: leitura e reminiscência dos clássicos em Damião de Góis, referências directas in Congresso Internacional Damião de Góis, na Europa do Renascimento, Braga, Publicações da Faculdade de Filosofia, 2003, pp.349363 e Idem, Damião de Góis Leitor dos Clássicos in Reis, Maria de Fátima (coord.), Rumos e Escrita da História. Estudos de Homenagem a A. A. Marques de Almeida, Lisboa, Edições Colibri, 2006, pp.85-106 19

Acerca desta questão uide Hirsch, Elisabeth Feist, Damião de Góis, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1987, pp.137-138 e Nascimento, Aires A., Damião de Góis, tradutor: perspectivas para uma integração cultural in Congresso Internacional Damião de Góis, na Europa do Renascimento, Braga, Publicações da Faculdade de Filosofia, 2003, pp.236-242 RUSSELL, op.cit., p.22. ory of a Medieval Mistress, London, Sutton Publishing, p.113. 20

Para estas informações uide Barreto, Luís Filipe, Damião de Goes. Os caminhos de um Humanista, [s. l], CTT, 2002, p.68, 130

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realçarmos estes elementos na formação de Damião de Góis no estrangeiro. Damião de Góis começou a estudar latim em Antuérpia com Cornélio Grafeu, poeta humanista de índole erasmiana15. É com Cornélio Grafeu que Damião de Góis aprofunda os estudos de retórica latina e conhece as obras de Cícero. No caso de Damião de Góis, podemos afirmar que o conhecimento da língua latina não conferia só erudição, mas também facilidade de comunicação com os outros humanistas europeus16. É nestas circunstâncias que a leitura das obras de Cícero se torna importante. A filosofia moral contida nos tratados de Cícero era importante para a compreensão dos humanistas. Aqui entra a tradução do De Senectute. Apesar de ter sido uma fase passageira na sua formação, a tradução deste tratado de Cícero criou em Damião de Góis uma verdadeira admiração pelo autor romano. O seu mestre Erasmo chegou a preveni-lo das vicissitudes do texto ciceroniano17. Não obstante, Damião de Góis prosseguiu não só com o estudo do corpus ciceroniano, mas também da obra de Horácio, entre outros, durante a sua estadia na Universidade de Pádua18. Analisemos melhor a tradução de Damião de Góis. As circunstâncias da escrita de De Senectute são semelhantes às de De Officiis. Escrito em 44 a. C, Cícero dedicou De Senectute ao seu amigo Tito Pompónio Ático. O tratado é um diálogo entre Catão – o – Antigo, Caio Lélio e Cipião Emiliano, passado em 150 a. C, na casa de Catão. O tema do tratado é simples: como encara o homem e cidadão romano a velhice. Este tratado mostra a preponderância ciceroniana para buscar exemplos do passado para compreender o presente. As três personagens intervenientes no tratado/diálogo são personagens bem conhecidas da vida política romana do século II a. C. Damião de Góis iniciou a sua tradução no final de 1536. Correspondeu-se com o seu amigo Nicolau Clenardo, durante o ano de 1537, não só acerca dos problemas da tradução, mas também da interpretação de Cícero no seu contexto geral. Acontece que De Senectute tem uma linguagem filosófica muito própria. De facto, a tradução não foi fácil. Durante a tradução, Damião de Góis substituiu nomes de alguns cônsules, de acordo com a cronologia certa numa passagem mutilada. Clenardo tinha-o questionado a esse respeito, uma vez que estava em causa a veracidade do texto ciceroniano19. A tradução ficaria pronta em 1538, na cidade de Veneza, com o título Livro de Marco Tullio Ciçeram, chamado Catam maior ou da Velhice. O editor foi Estevão Sábio e a edição de Góis continha uma dedicatória ao conde de Vimioso20. Viria a ser a primeira obra em português em Itália e a primeira tradução portuguesa impressa de Cícero.

Conclusão

Concluímos esta síntese dizendo que a tradução de obras clássicas no humanismo português foi uma constante. Os exemplos do Infante D. Pedro e de Damião de Góis ilustram este facto bastante bem. Estas noções estavam bem assimiladas no tempo destes dois homens. Compreender as obras clássicas e proceder à sua tradução para as línguas faladas no espaço europeu daquele tempo era essencial para a formação intelectual do humanismo renascentista. Sabemos o que a cultura europeia ganhou com o esforço intelectual destes homens. Mas a cultura portuguesa ficaria muito mais ligada à compreensão dos clássicos que haveriam de inspirar, posteriormente, obras como Os Lusíadas, poema épico composto por Luís de Camões, ou os relatos da História Trágicomarítima, compilados por Bernardo Gomes de Brito, já para não falar da Monarquia Lusitana, escrita por Frei Bernardo de Brito. Estamos em posição de dizer que a tradição clássica está bem vincada na cultura portuguesa.

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Comentário Crítico ao Filme

O SÉTIMO SELO (DER SJUNDE INSEGLET), 1957 Por João Camacho 1

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Investigador do Instituto PAEHI – Associação par Estudos Históricos Interdisciplinares. Mestrando na área de História Antiga pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa

Século XI: no seguimento das pressões militares seljúcidas, o imperador bizantino Aleixo I Comneno solicita aos católicos ocidentais auxílio para combater os turcos que, por altura do sínodo, haviam já conquistado territórios na Anatólia e, principalmente, a cidade de Jerusalém. Na sequência dessas transformações, fica decidido, pelo Papa Urbano II no Concílio de Clermont-Ferrand (1095), a atribuição de benefícios a todos os que decidissem ir ao Oriente defender os peregrinos e combater os muçulmanos. Entre outras coisas, era prometido o bem supremo, a «Salvação a todos os mortos em combate contra os infiéis». Com esta exortação, o Papa não só desviou a atenção dos nobres belicosos e problemáticos para um “inimigo comum” a toda a Cristandade, como deu início a um evento (Cruzadas) que atravessou toda a Baixa Idade Média, marcando profundamente a História das (difíceis) relações entre as duas religiões monoteístas. É no regresso de uma dessas viagens, pela aurora, que vamos encontrar Antonius Block (Max von Sydow) e o seu escudeiro Jons (Gunnar Bjornstrand) nas margens atlânticas da Suécia Medieval. O cavaleiro ergue-se, soturno, perscruta o horizonte e, como em tantos outros dias, ajoelha-se para a sua oração matinal. Mas este momento é curto. O seu olhar glacial revela uma perturbação que o impede de prosseguir, de procurar e encontrar o alento desejado. Ingmar Bergman nasceu em 1918, em Uppsala. Depois de ultrapassar uma «morte anunciada» e diversas doenças «inexplicáveis», o futuro dramaturgo e realizador pôde viver uma infância muito marcada pela austeridade e pela disciplina rigorosa, administrada pelo seu pai Erik Bergman, um pastor luterano (que chegou a ser capelão do Rei da Suécia) e sua mãe Karin. «Toda a educação que eu e os meus irmãos recebemos estava praticamente baseada em conceitos relacionados com pecado, confissão, castigo, perdão, indulgência, conceitos comuns nas relações entre pais e filhos e para com Deus». Como personagens modelares a que a sua actividade os remetia, ambos «começavam a ceder à absurda pressão a que estavam sujeitos. Fanáticos da perfeição, não tinham qualquer limite quanto a horas de trabalho, a vida matrimonial deles não era fácil e impunham-se a uma auto-disciplina de ferro», escreveria mais tarde na sua autobiografia Lanterna Mágica. As suas experiências pessoais cruzam-se em toda a sua obra, formando um “universo bergmaniano” indelevelmente marcado por temas como a relação do Homem com Deus, a vida e, sobretudo, a morte: «um medo sem solução, não porque cause dor, mas porque está cheia de sonhos horríveis dos quais não conseguimos despertar».

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Talvez tenha sido num desses sonhos que surgiu a encarnação da Morte (Bengt Ekerot), figura simbólica em torno da qual (da ideia de morte) se desenrola toda a acção. De resto, o jogo de xadrez que ambos encetam (e para cuja figuração o próprio realizador confessou ter-se inspirado numa pintura do séc. XV, existente numa igreja perto de Estocolmo) tornou-se no componente iconográfico de maior relevo da sua filmografia, permanecendo no imaginário contemporâneo e invocando-se amiúde nos mais diversos domínios. «Quando Ele abriu o sétimo selo, fez-se no céu um silêncio de cerca de meia hora» (Ap. 8:1). A passagem bíblica dá o mote para o problema e justifica o próprio título. A “revelação” (do grego apokalypsis), a resposta à crise de fé e ao medo do protagonista, confessados à desleal Morte («is it so terribly inconceivable to comprehend God with one’s senses? Why does He hide in a cloud of half-promisses and unseen miracles? Why is He despite all, a mocking reality I can’t be rid of?»), reafirma o silêncio divino que inexoravelmente pauta a Sua relação com o crente. São Tomás de Aquino define (e restringe) a fé como um «acto do intelecto que assente à verdade divina, sob a influência da vontade movida por Deus mediante a graça». Antonius Block passara dez anos na Terra Santa, partiu movido pela fé (pela “boa fé” transmitida pelo clérigo que o convencera), mas regressou com mais dúvidas do que quando saiu. No Oriente conviveu com a morte e esta acompanhou-o durante a sua viagem de regresso à sua terra-mátria. Aqui, a devastação pestífera, a enfatização clerical e a opressão monopolista exercida sobre o temente por parte da Igreja, faziam incidir, na (curta) vida, todas as projecções do que se passaria depois da morte. Esta é consequência do pecado: «Por isso, tal como por um só homem entrou o pecado no mundo e, pelo pecado, a morte, assim a morte atingiu todos os homens, uma vez que todos pecaram…» (Rm 6:12), como tal, num mundo cruamente e obsessivamente virado para o fim da vida, a remissão dos pecados tem grande importância no imaginário colectivo (o grupo de suplicantes auto-penitentes, ou a impressionante «dança da morte»). O próprio Bergman admitiu o “efeito terapêutico” resultante da realização do filme. Anos mais tarde declarou: «tinha medo daquele enorme vazio, mas a minha opinião pessoal é que quando morremos, morremos, e passamos de um estado de existência para um estado de absoluto nada; e não acredito nem por um segundo que haja alguma coisa acima ou para além, ou como se queira dizer; e isso enche-me de segurança». Talvez a asserção

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resulte de anos de reflexão pois, na mesma cena da confissão, qual alter-ego de Ingmar, quando invocada a possibilidade da inexistência de Deus, o cavaleiro desabafa «then life is a preposterous horror»!

Jons, o escudeiro, partilha da mesma desilusão. Apesar de crente, a sua experiência no Oriente e a sua (porventura menos desenvolvida) sensibilidade espiritual convenceram-no que Deus está distante dos homens, tão distante que estes devem procurar as suas respostas na esfera mundana, ou abdicar delas caso provenham de excessivas e “estúpidas idealizações”. De resto, é ele quem lida com (e castiga, simbolicamente) Raval, o seminarista que, dez anos antes, se esforçou por glorificar a campanha, mas que, passado esse tempo, se dedicava a roubar bens de mortos e a explorar feal e cruelmente o seu semelhante. Desta perspectiva, é interessante notar as associações que Bergman faz com as personagens clericais: estas surgem sempre a reclamar autoridade física e psicológica sobre a morte. Contudo, a Morte desconhece se existe algo para além do que lhe está incumbido executar. Nem a rapariga (Gunnel Lindblom), condenada à fogueira por ser a causadora da epidemia, revela ao protagonista nada mais que o mesmo desamparo que o aflige, a ele, ao cavaleiro, ao pintor, a todos os homens. Do céu, imagem que marca o início e o fim do filme, provém apenas silêncio. É o silêncio que antecede e sucede a vida. Então, qual a solução? A resposta começa a ser compreendida pela personagem de von Sydow no final da cena do confessionário, depois de revelada a estratégia xadrezista que lhe custou a vitória (ou seja, depois da sentenciada a partida): «this is my hand, I can move it…my blood gushes in it. The Sun is still high in the sky, and I…I, Antonius Block…am playing chess with the Devil». Esta cena obscura contrasta com o soalheiro encontro entre o cavaleiro, o casal de actores saltimbancos e o seu pequeno filho, Jof (Niels Poppe) e Mia (Bibi Andersson), nomes que claramente aludem a José e Maria. É na serenidade e na alegria feliz da partilha transmitidas pela família que Block recorda o seu próprio “lado solar”, o amor e as saudades de casa. A vida é efémera, os momentos que a compõem são tão frágeis que devem ser vividos e guardados na memória «tão cuidadosamente como se pega numa taça cheia de leite fresco». Os temores da fé são aqui interrompidos permitindo a difícil abnegação da morte por alguém que sabe, com mais certeza que os outros pelo menos, estar condenado a desaparecer. A vida, o amor, a descendência, o alimento, constituem parte substancial da mensagem veiculada neste filme, que, tal como em muitos outros filmes de Ingmar Bergman, coloca a família, as relações pessoais aqui existentes e daqui derivadas no centro da acção. Mas a mensagem não se esgota aqui. O Sétimo Selo contem elementos riquíssimos que constituem temas para variados debates de carácter religioso, filosófico ou histórico, ainda que a preocupação de rigor historicista não tenha sido a ideia principal do seu realizador.

BIBLIOGRAFIA: BERGMAN, Ingmar, Lanterna Mágica, Lisboa: Caravela, 1987. BÉNARD da COSTA, João (et. al.), Ingmar Bergman, Lisboa: Cinemateca Portuguesa, 2008.

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Outras Histórias com...

Pedro Estácio Por Catarina Almeida

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Chefe de Divisão da Biblioteca da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa desde 2007, Pedro Estácio merece destaque não apenas pela excelência do trabalho por si desenvolvido nesta Biblioteca em tão curto espaço de tempo, mas também por um percurso académico e profissional que desde cedo moldaram tanto a sua paixão por ciências da documentação, como a sua capacidade de gestão e liderança de equipas de trabalho. É em 1991 que inicia tanto a sua vida profissional como académica. Com 20 anos inicia o seu trabalho em ocupação de tempos livres pelo IPJ durante o Verão, em parceria com a Câmara do Seixal, ao mesmo tempo que inicia o seu percurso na Faculdade de Letras como estudante do curso de História. Dentro do seu trabalho toma interesse por um programa de museus desenvolvido pela Câmara, interesse que foi desde cedo nutrido por influência de sua avó materna e de uma amiga da sua mãe. Participa também, nesse mesmo ano, num trabalho de inventariação de peças arqueológicas no sítio arqueológico da Quinta do Rouxinol, trabalho que, segundo diz, lhe permitiu alargar o espectro na área da catalogação. Em 1992 alarga o seu período de permanência no programa para dois meses, e trabalha na divisão de Património Histórico e Natural no Ecomuseu Municipal do Seixal. É também deste ano que data o interesse pelo mundo das bibliotecas e da documentação por influência da Professora Maria de Fátima Reis e da sua disciplina de Métodos em História. Os anos de 1993 a 1995 revelam-se decisivos no seu crescimento profissional e pessoal: assume a responsabilidade por toda a componente administrativa e de secretariado de um projecto na Câmara do Seixal, através da candidatura ao Programa Caleidoscópio da União Europeia, que compreendia uma rede de investigação integrada por cinco países: Noruega, Espanha, França, Grécia e Portugal, que liderava o projecto, e cuja temática seria o pão na história. De nome “Terra Mãe, Terra Pão”, envolvia não só académicos e instituições universitárias, mas também profissionais da área da panificação. A exposição, composta pelos primeiros vestígios relacionados com a moagem, desde as sociedades primitivas até ao século XX, decorreu no Moinho de Maré de Corroios, adquirido e recuperado pela Câmara do Seixal. Em 1996/97 conclui a licenciatura e inicia a Pós-Graduação em Ciências Documentais, apesar dos dois anos curriculares não conferirem grau, e assume a coordenação do Centro de Documentação do Ecomuseu. Entre 1996 e 2005 manteve-se na coordenação do Centro de Documentação, período que considera marcado por grande aprendizagem, sobretudo de liderança e de gestão de equipas. Durante esse período o serviço cresceu exponencialmente, tanto em termos de documentação e colecções, como em termos humanos. Foi sobretudo para alargar horizontes que saiu em 2005, “precisava de me por à prova, sair da minha zona de conforto”, diz; saber se conseguiria ter sucesso fora da casa onde cresceu pessoal e profissionalmente. Destes catorze anos de trabalho na Câmara considera a maior aprendizagem a “partilha de saber sem qualquer reserva, sem receio de ser ultrapassado por outros”, considera-se privilegiado por ter sido parte do melhor

conceito de serviço público que se pode experienciar neste país, e por ter tido oportunidade, desde que ingressou no mundo profissional, de trabalhar numa área de que gosta e pela qual consegue sentir paixão. De 1998/99 foi convidado para dar aulas na Universidade Autónoma de Lisboa, onde leccionou até 2008. Aqui teria realizado a sua Pós-Graduação, pois entendeu que o deveria fazer numa estrutura que garantisse uma formação moderna, com melhores materiais tecnológicos, e com um estágio profissional integrado. Considera a sua experiência como docente enriquecedora – sobretudo a interacção com os alunos – apesar de exigente. É com orgulho que considera ter contribuído para uma nova geração de bibliotecários, com uma nova leitura de bibliotecas e novos métodos, encarando os processos de mudança como fundamentais, bem como a permanente adaptação das equipas e dos sistemas. Por sua parte também aprendeu com alunos, uma vez que muitos já trabalhavam área, o que em lhe deu uma visão geral da situação das bibliotecas em Portugal. Percorreu o país de Norte a Sul em visitas de estudo, conhecendo diversas bibliotecas e os seus serviços. Acrescenta ainda que os projectos que mais o motivaram foram, a Norte, o da Biblioteca Municipal de Santa Maria da Feira, e a Sul, o da Biblioteca Municipal de Beja. Dentro do universo das bibliotecas universitárias considerou a Biblioteca da Universidade de Aveiro a mais estimulante. Em 2000/01 realiza uma Pós-Graduação em Gestão da Informação, realizando estudos de caso, nomeadamente sobre a Biblioteca da Universidade do Minho, a Biblioteca da Faculdade de Ciências e Tecnologias da Universidade Nova de Lisboa e a Biblioteca do Instituto Superior de Psicologia Aplicada, estudos que considera absolutamente fundamentais no seu percurso académico e profissional. Deu ainda várias formações, entre 2004 e 2010, na Associação Portuguesa de Bibliotecários e Arquivistas, para preparação de assistentes profissionais. Temáticas como a “Pesquisa e Recuperação, Avaliação e Selecção de Informação na Deep-Web” e “Serviços de Referência” eram frequentes. Em 2005, com 34 anos, concorre para o Instituto Politécnico de Setúbal, escolhendo propositadamente uma Biblioteca Universitária que nada tinha a ver com a sua área de formação base, História. Considerou esta a melhor maneira de se pôr à prova, afastando-se ao máximo da sua zona de conforto. Considera o trabalho na Mediateca da Escola Superior de Setúbal um dos maiores desafios profissionais da sua carreira, dois anos de uma experiência tão rica e tão forte que equivale aos catorze que trabalhou na Câmara do Seixal. Foram portanto os anos de 2005 a 2007 que colocaram verdadeiramente à prova as suas capacidades enquanto profissional, líder e gestor de equipas. Diz que ao momento da sua chegada não se podia encontrar algo que se assemelhasse a uma equipa, estava tudo por fazer: o sistema de empréstimos não estava automatizado, e tinha sobre si a responsabilidade acrescida de ser um único com formação na área da documentação. O espirito de equipa não existia, as pessoas não interagiam, chegando

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a ser intensas as dificuldades com que se deparou ao tentar construir uma equipa com aquele grupo de pessoas. “Foi duro por um lado e fascinante por outro, obrigou-me a encontrar soluções criativas” para conseguir constituir uma equipa sólida, coesa e competente, com uma visão de serviço definida. Acrescia a tudo o facto de o espaço ser recém-remodelado, processou que apanhou quando chegou. Não havia um plano para a orientação do espaço após a remodelação, e por isso participou, assim que assumiu o cargo, na recriação e refundação do serviço, com pouco tempo para resolver estes problemas. Havia sobretudo urgência em planificar a transferência de materiais do espaço anterior para o novo. No ano de 2007 sai de Setúbal com o processo estabilizado, com o qual se considera satisfeito. “Nunca saí zangado com ninguém, embora me possam considerar rude e duro por vezes. Mantenho relações de amizade em todos os serviços por onde passei, com os quais mantenho contactos”. Mais uma vez motivado por desafios maiores – no fundo, por ambição – assume o cargo que actualmente ocupa na Biblioteca da Faculdade de Letras nesse mesmo ano. Por esta altura existiam apenas duas bases de dados disponíveis na Faculdade – a base colectiva da Universidade de Lisboa e outra de periódicos e revistas científicas. Em 2008 é lançado o projecto da página e é reestruturado todo o serviço – as unidades só existiam no papel, não na prática. Foi dado o impulso na criação de serviços fundamentais, sendo um destes o serviço de formação de utilizadores. A equipa estava constituída, mas não estava alinhada, existiam diferentes formas de prestar o serviço – funcionava, no fundo, na base do bom senso. “O sistema de trabalho era do século XIX, cada um fazia apenas algo”, queria-se apostar numa polivalência dos funcionários, na capacidade de assumir várias funções, adquirindo novos conhecimentos de outras áreas de trabalho e uma melhor ideia de conjunto da própria Biblioteca. “Era também importante abolir a ideia de chefe que manda e ordena, e assumir antes uma de líder que orienta e dá pistas, traça em linhas gerais o caminho”, tendo os seus colaboradores que assumir um papel activo, bem como assumir a sua quota de responsabilidade nos processos que correm bem e nos que correm mal. Considera um dos seus maiores sucessos poder falar e discutir com os seus colegas, que lidera, sem receios e restrições, e quanto a falhas do serviço refere que boa parte das falhas se devem a terceiros, regra geral problemas a nível informático. Considerando a sua situação profissional estabilizada, decidiu inscrever-se no mestrado de Relações Internacionais, Relações Diplomáticas e Cooperação, no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa. Qualquer mestrado dentro da área das ciências documentais neste momento “seria redundante”. Quanto à temática do seu mestrado, diz ser uma paixão velha, relacionada com “outros percursos pessoais e familiares”. Cresceu numa casa muito politizada, por via do seu pai. Política, interna ou externa, era discutida desde cedo, bem como o interesse por outras culturas e o hábito de viajar, interessando-se “pelo outro”, procurando amizades em vários cantos do mundo. Assim, o grau académico acaba por ser uma junção do útil ao agradável. Revela um certo carinho pelo Líbano, considerando-o um caso especial e interessante, pela quantidade de vezes que foi destruído e reconstruído. “Viveu-se intensamente a guerra do Líbano na minha casa, ainda estão vívidos na minha memória os bombardeamentos a Beirute pela aviação Israelita”. Acha fascinante como o país subsiste baseado numa agregação cultural e religiosa e não tanto numa nação, e que mantém o Líbano vivo apesar das fracas estruturas estatais. Não será, por isso, estranho saber que pretende desenvolver uma tese sob o tema “A Construção do Estado do Líbano”. Por fim, conclui partilhando o que considera ser o maior desafio da sua profissão nos dias de hoje – conseguir orientar os utilizadores para a informação pretendida, e pertinente, numa actualidade caracterizada pelo excesso de informação. “A biblioteca é, hoje em dia, um mediador”.

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Recensão ao

Colóquio Internacional: Actual approaches on Egyptology: from fieldwork to Museum collections Por João Camachco – Investigador do Instituto PAEHI – Associação para Estudos Históricos Interdisciplinares Fig. 1 : - Da esquerda para a direita, de cima para baixo: drª Maria H. T. Lopes, Doutor Pascal Vernus, Doutor Juan C. M. Garcia, Doutora Victoria A. Amoros, Doutor José C. Sales, Doutor Ronaldo G. Pereira e Doutora Hélène Guichard.

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Decorreu na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, nos dias 27 e 28 de Setembro, o colóquio internacional «Actual approaches on Egyptology: from fieldwork to Museum collections», que contou com alguns nomes de prestígio no campo da egiptologia, como o Doutor Pascal Vernus da École Pratique des Hautes Études, ou Doutora Hélène Guichard do Departamento das Antiguidades Egípcias do Museu do Louvre. As vesperais sessões seguiram a orientação do próprio título, começando com uma revisitação aos dez anos de escavação, guiada pela sua directora, a Profª. Doutora Maria Helena Trindade Lopes. Após uma breve resenha dos anteriores trabalhos desenvolvidos no local e da evolução dos métodos arqueológicos que os acompanharam, pudemos compreender a organização e os objectivos das campanhas, a obrigatória presença multidisciplinar no terreno e outros pormenores da própria experiência que vieram colorir a descrição. O Doutor Pascal Vernus apresentou uma comunicação com o tema “The importance of the Egyptian hieroglyphic system in the world history of writing”. Durante cerca de 50 minutos, o egiptólogo francês versou sobre distinção entre discurso linguístico e escrita, a ancestral capacidade simbólica do ser humano que permitiu o desenvolvimento de sistema gráficos de reprodução de discursos orais e a originalidade da escrita hieroglífica (que residiu no seu cariz ideológico), no contexto das seis origens diferentes e independentes da Escrita no mundo. Sobre a relação da escrita egípcia relativamente ao sistema surgido na Mesopotâmia, Vernus alinha na opinião dominante de que foram fenómenos autónomos, sem relação estrutural directa, ainda que a própria ideia possa ter vindo da região suméria. O primeiro dia terminou com a apresentação do Doutor Juan Carlos Moreno García, do Centre de Recherches Egyptologiques de la Sorbonne, sobre novas perspectivas de análise na história social e económica e da paisagem. Perante uma plateia quase cheia e maioritariamente constituída por estudantes, o investigador chamou a atenção para a importância dos dois Períodos Intermediários no que diz respeito ao surgimento de novas estruturas que vieram romper com a continuidade centenária das respectivas fases anteriores. Nesses contextos, relevou o significado dos “objectos de prestígio” (estátuas, mastabas) como prova, não só da pulverização do Poder, mas também da ascensão social de novos grupos como os Djehuti (uma espécie de pequenos proprietários rurais), que surgem pela primeira vez referidos nos textos. De seguida, alertou para relativa volatilidade de elementos paisagísticos, nomeadamente para o curso do rio Nilo que se terá modificado várias vezes ao longo da história faraónica, com repercussões importantes a nível urbano/populacional e agrícola. O segundo dia começou com a interessante comunicação da Doutora Victoria Asensi Amoros, da International Union of Forest Research Organizations: “Del arbol al objeto, Egipto al microscopio”. Com uma formação avançada em biologia e, mais especificamente, em xilologia e antracologia, a investigadora deu a conhecer aos presentes uma forma de estudar o antigo Egipto partindo de uma sede diferente. Longe vão os tempos em que a história se fazia apenas com a escrita! O seu trabalho permite, entre outras coisas, identificar géneros e

espécies de árvores, contextualizando-os cronologicamente e permitindo o reconhecimento das suas origens, usos e comércio, ou mesmo contribuir para restauros esculturais mais adequados. O egiptólogo português Doutor José das Candeias Sales, da Universidade Aberta, discursou sobre um dos temas da sua preferência: “Quando a arte e a ideologia se cruzam – as cenas de massacre ritual dos inimigos nos templos ptolomaico-romanos”. Autor de importantes trabalhos egiptológicos, o investigador expôs a importância política das cenas de massacres rituais (partindo dos exemplos de quatro templos das referidas fases), representações conhecidas desde o pré-histórico túmulo 100 de Hieracômpolis até ao Período Romano, consistindo numa “gramática simbólica” de primeira importância para governantes autóctenes e alóctenes. O Doutor Ronaldo Gurgel Pereira, do Instituto Oriental da F.C.S.H., na senda das apresentações anteriores, veio reforçar a importância da interdisciplinaridade para a ciência egiptológica, mais especificamente nos estudos dos períodos Ptolomaico e Romano. Alguns erros ortográficos na sua apresentação em Powerpoint contrastaram com a total pertinência da mensagem. Por fim, a Doutora Hélène Guichard dissertou sobre “Las colecciones egípcias: un campo de investigaciones multiples en los museos”. Fazendo uma comparação com os antigos métodos museológicos de estudo e conservação das peças egípcias, a conservadora pôs em relevo a complexidade e, uma vez mais, a multidisciplinaridade, que as tarefas relativas a inventários, processos científicos, análises de materiais, datações, restaurações e outras de cariz antropobiológico, necessitam imperativamente. De uma forma geral a organização revelou-se competente, decorrendo as sessões num saudável clima de proximidade entre oradores e público. Quedou-se apenas uma pequena dúvida quanto ao sentido do termo “Actual approaches” presente no título do colóquio: terá sido escolhido pelo seu significado de abordagens “reais”, “verdadeiras”, ou, algo erroneamente, para exprimir a ideia de “novas” e “actuais”? Tal como foi justamente assinalado pelo Doutor José das Candeias Sales, devem os alunos de egiptologia, de história, e apreciadores da cultura em geral, agradecer aos organizadores do evento o esforço de juntar tão meritórios oradores, que forneceram tantos e tão valiosos conhecimentos e perspectivas a quem teve a oportunidade de estar presente, aguardando-se naturalmente que possa daqui resultar a publicação das respectivas actas.

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ROTEIRO DO EGITO Luís Manuel de Araújo Faculdade de Letras de Lisboa (Instituto Oriental)

São muito diversificados os roteiros que se podem estabelecer para uma viagem ao Egito, onde a quantidade e a qualidade dos monumentos constituem hoje um impressionante testemunho de uma brilhante civilização. Os fatores que inspiram a elaboração de um roteiro para uma viagem no país do Nilo dependem do tempo de duração previsto, da época do ano, de questões de ordem económica, e também da enfatização que se pretende conferir a essa viagem, a qual pode ter um aspeto mais lúdico ou mais cultural – ou então fundindo harmoniosamente estas duas motivações, sendo a solução que em geral é a adotada pelas agências de viagem. O percurso escolhido depende ainda da entidade que organiza a viagem: o habitual é o viajante aceitar a programa que lhe é proposto pelas agências, o qual oscila entre sete e quinze dias, variando naturalmente os preços em função da duração da viagem e dos locais históricos selecionados para visitar. Para responder à solicitação de redigir um texto sobre um roteiro de viagem ao Egito a experiência recomenda que me fundamente nas viagens que o Instituto Oriental da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa organiza ao país dos faraós desde o ano 2000. De facto, já lá vão catorze anos desde que o Instituto Oriental, na altura dirigido pelo Professor José Nunes Carreira, agora professor catedrático jubilado, teve a ideia de organizar visitas de estudo ao Egito, a fim de proporcionar aos alunos do curso de História em particular e aos alunos de outros cursos em geral a oportunidade de conhecer ao vivo os monumentos que nas aulas eram amiúde mencionados. E se a ideia contemplava basicamente os programas das cadeiras obrigatórias de História da Antiguidade Pré-Clássica, de Arte Pré-Clássica e de História da Cultura Pré-Clássica, parecia ser mais consentâneo com os programas das cadeiras opcionais de Introdução à Egiptologia e de Escrita Hieroglífica, que então existiam e que continuam a ser oferecidas no Departamento de História da Faculdade de Letras de Lisboa. Por isso, desde o princípio que os roteiros elaborados pelo Instituto Oriental têm tido um cariz eminentemente de visita de estudo, fundamentados em critérios de ordem académica onde a vertente pedagógico-didática assume preponderante relevo. Um passo importante será a escolha da agência que irá organizar o percurso de acordo com as normas profissionais e éticas que regem a sua atividade. Daí que seja imprescindível o estabelecimento de relações cordatas e essencialmente práticas e funcionais entre a entidade idealizadora e a agência que organizará os pormenores técnicos do percurso. Os roteiros sempre foram estabelecidos, nas suas linhas gerais, pelo Instituto Oriental, e depois têm sido adaptados aos conceitos próprios de uma agência de viagem. Para

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o efeito tem sido seguido o critério de anualmente abrir um concurso para que as agências interessadas possam apresentar as suas propostas tomando por base o roteiro estabelecido, sendo escolhida aquela que se comprometa a seguir esse roteiro e que apresente um preço mais em conta. Esse roteiro tem variado em número de dias de viagem e quanto aos locais a visitar: em 2000 foram nove dias e ultimamente a duração tem oscilado entre os doze e os catorze dias, pormenor que obviamente se reflete nos preços. A verdade é que com uma duração mais alongada tem sido possível visitar novos locais históricos evocativos do Egito faraónico, e assim os grupos do Instituto Oriental têm estado em sítios monumentais onde habitualmente outros grupos não se deslocam – é o caso dos templos de Kalabcha, de Abido e de Dendera. Infelizmente, e devido à conhecida situação de «crise» que nos últimos anos temos vivido, o número de alunos participantes nas visitas de estudo ao Egito tem vindo a diminuir, o que acaba por desvirtuar a inicial ideia gizada em 1999 e concretizada com regularidade a partir do ano seguinte. Um aspeto positivo e aliciante do projeto tem sido a organização de parcerias com diferentes entidades que pretendam associar-se ao Instituto Oriental para que o número de participantes na viagem possa crescer. Desde a primeira iniciativa as instituições associadas têm sido várias: o Grupo de Amigos do Museu Nacional de Arqueologia, o Centro de História da Faculdade de Letras de Lisboa, a Confraria Queirosiana, o Instituto de História da Arte da Faculdade de Letras de Lisboa, a Associação dos Arqueólogos Portugueses, o Rotary Clube de Lisboa e o Grupo de Amigos dos Castelos. Note-se entretanto que cerca de uma semana antes da partida se realiza na Faculdade de Letras de Lisboa um encontro de preparação onde se descrevem sumariamente os locais que irão ser visitados com projeção de imagens e sucintos comentários alusivos a elas, sendo também nessa ocasião distribuídos pela agência os materiais relacionados com a viagem, a começar pelos bilhetes das passagens aéreas. Enfim, depois de tudo preparado resta partir... Como exemplo de um dos vários roteiros possíveis aqui se deixa o que tem sido feito nos últimos três anos pelos grupos do Instituto Oriental em visitas de estudo levadas a efeito com notável profissionalismo pela Tui Viagens. O primeiro dia no Egito contempla a visita à região funerária de Sakara. É verdade que o planalto de Guiza, com as suas famosas pirâmides da IV dinastia, fica mais perto da cidade do Cairo onde os viajantes se instalam (e sempre, convém sublinhar, em hotéis de luxo), mas para compreender melhor a gigantesca obra que foi feita em Guiza é de vital importância que se possam ver primeiro os seus antecedentes. Daí a visita prévia a Sakara para estarmos no complexo funerário de Djoser, seguindo-se a visita à pirâmide do rei Teti com os seus «Textos das Pirâmides», e depois às mastabas (túmulos privados de funcionários) de Mereruka, de Ptah-hotep e de Ti, onde Eça de Queirós esteve em 1869, durante a sua viagem para a inauguração do canal de Suez. Sakara é uma vasta necrópole onde se encontram túmulos de todas as épocas da longa história do Egito, desde as tumbas pré-dinásticas e as mastabas de altos funcionários da I dinastia (que para alguns são túmulos reais), até às sepulturas da Época Greco-romana, sítios inacessíveis aos grupos turísticos. O mais notável complexo funerário de Sakara é sem dúvida o que foi construído por Imhotep para o Hórus Netjerikhet Djoser (III dinastia),

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sendo de mencionar os complexos muito destruídos dos reis Unas (V dinastia) e Teti (VI dinastia), entre outros. Há uns anos a pirâmide de Unas, que foi o primeiro a mandar inscrever no interior do seu túmulo os «Textos das Pirâmides», era visitável, mas ultimamente tem estado aberta a de Teti, que também exibe esses característicos textos. Existem grandes mastabas privadas como a de Mereruka e a de Ti, entre muitas outras, merecendo destaque, para épocas posteriores, os túmulos de Maia e Horemheb (este último nunca ocupado dado que o seu proprietário se tornou faraó), mas estes não estão acessíveis, tal como as necrópoles para animais sagrados, como o Anubium (para as múmias de cães sagrados de Anúbis), o Bubasteum (com as múmias de gatos que evocavam a deusa Bastet) e o Serapeum (grandes catacumbas dos bois Ápis, animais sagrados do deus Ptah). A manhã conclui-se com a excursão até à zona onde foi a cidade de Mênfis, uma das mais ricas em vestígios de todas as épocas e de todos os tipos. Ali podem ser vistas algumas estátuas de diferentes épocas históricas que evocam o deus local, o criador Ptah, além de outras divindades e vários faraós, merecendo destaque a estátua colossal de Ramsés II que se expõe num museu construído no local e onde se encontram outros materiais líticos. Depois do almoço num restaurante local, a tarde é dedicada ao planalto de Guiza, com visita às pirâmides de Khufu, de Khafré (incluída entrada no interior) e de Menkauré, e depois a famosa Esfinge e o templo do vale de Khafré com o seu impressionante megalitismo sóbrio. A entrada no Museu da Barca Solar, existente no lado sul da Grande Pirâmide de Khufu, é opcional e não está incluída, mas quem quiser pode fazê-lo adquirindo o necessário bilhete para apreciar a enorme barca real com cerca de quarenta metros de comprimento construída com madeira de cedro importada do Líbano.

Há ainda outras necrópoles reais na região, a começar pela mais setentrional que fica em Abu Roach, com o túmulo feito para Radjedef ou Djedefré (IV dinastia), e com vestígios de sepultamentos das duas primeiras dinastias, para além da menos conhecida zona de Zauiet el-Arian, um pouco para sul, onde existem as ruínas de duas pirâmides, uma atribuída a Khaba (III dinastia) e outra a um obscuro monarca da IV dinastia, mas nenhum grupo se desloca a estes remotos locais.

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O segundo dia no Cairo pode ser aproveitado para visitas na cidade, começando pela Cidadela com a grande mesquita de Mohammed Ali, seguindose o Bairro Copta, no Cairo Antigo, com entrada na Igreja de S. Sérgio ou Igreja da Sagrada Família (com a cripta onde, segundo a lenda, a Sagrada Família se refugiou), e depois a Sinagoga de Ben Ezra. Desta forma podem os viajantes ter numa manhã uma perceção ecuménica e tolerante da presença de símbolos de três religiões. Após o almoço em restaurante local, continuam as visitas, desta vez ao Museu Egípcio do Cairo, que alberga riquezas artísticas que, em geral, são bem conhecidas através de livros e documentários televisivos. A entrada na Sala das Múmias do museu é opcional e não está incluída, mas o interesse pelos venerandos corpos lá expostos (a começar pelo de Ramsés II), leva algumas pessoas a adquirir um bilhete especial para lá entrar. No final da tarde é possível uma visita ao típico bazar de Khan el-Khalili. A manifesta falta de tempo impede uma visita à zona de Abusir que foi escolhida pelos monarcas da V dinastia para aí erigirem as suas pirâmides (à excepção de Userkaf e Unas, que preferiram Sakara Norte). Entre os muitos túmulos privados existentes nas proximidades o de Ptahchepsés é o maior: trata-se de uma grande mastaba que esse alto funcionário, membro da família real, fez para si e para a sua família. Ali perto fica Dahchur, o local de duas pirâmides de Seneferu, conhecidas pelas designações de «pirâmide romboidal» e «pirâmide vermelha». Também lá se podem ver pirâmides da XII dinastia feitas para Amenemhat II (de pedra e com um recinto rectangular à moda da III dinastia), e para Senuseret III e Amenemhat III (ambas de tijolo). Rodeiam estes complexos os túmulos de membros da família real e funcionários. Mas a Abusir e a Dahchur poucos grupos se deslocam, tal como acontece em Licht, a zona funerária da antiga capital da XII dinastia (Iti-taui, de localização desconhecida). Se o roteiro incluísse esta região os viajantes poderiam ver as pirâmides de Amenemhat I e de Senuseret I, envolvidas pelas sepulturas de familiares e funcionários da época, em forma de mastaba, além de muitos túmulos modestos. Perto fica a necrópole de Meidum, com uma pirâmide muito arruinada (começada por Huni e continuada por Seneferu) e túmulos de funcionários da IV dinastia, dos quais se destacam os de Rahotep e sua esposa Nefert (bem conhecidos pelas estátuas que lá foram achadas e que agora estão no Museu Egípcio do Cairo) e o do vizir Nefermaet. Também a fértil região do Faium, que tem várias necrópoles, nomeadamente em Kom Rukaia, raras vezes é visitada por grupos excursionistas estrangeiros, porque senão podiam ser vistos os túmulos cavados na rocha (XII dinastia), Seila (pequena pirâmide da III dinastia) e sobretudo Hauara (pirâmide de Amenemhat III com as ruínas do Labirinto e muitos túmulos que vão do Império Médio à Época Greco-romana). Poucos quilómetros para leste fica El-Lahun, com a pirâmide de Senuseret II e túmulos de membros da família real e ainda com cemitérios de todas as épocas históricas do Egito. Mas a vasta região do Faium mereceria um programa à parte, para se poder estar nas ruínas da antiga Heracleópolis Magna (que nos tempos faraónicos tinha o nome de Henen-nesut e hoje é Ihnasseia el-Medina), onde agora escava uma equipa do Museu Arqueológico Nacional de Espanha, e se conservam túmulos de várias épocas, com natural relevo para o Primeiro Período Intermediário, quando a cidade foi a capital das IX e X dinastias. A uns 7 km a sudoeste encontra-se a necrópole de Sedment, com sepulturas do Império

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Antigo à Época Greco-romana. Mais a sul fica Oxirinco (hoje El-Bahnasa e nos tempos faraónicos Per-Medjed), onde hoje escava uma equipa da Universidade de Barcelona. Um programa mais alargado podia incluir Beni Hassan onde existem túmulos cavados na rocha que pertenceram aos governadores da 16.ª província do Alto Egipto datados da XII dinastia, ao lado de outros que remontam ao Império Antigo. A poucos quilómetros a sul fica a antiga Antinópolis, da Época Greco-romana, fundada pelo imperador Adriano, contendo túmulos dessa época. O sítio de Tuna el-Guebel estende-se por uns 3 km com túmulos de diferentes períodos, sendo de salientar o de Petosíris (período ptolemaico) e as vastas catacumbas de íbis e babuínos, animais sagrados do deus Tot que era particularmente venerado na região. Depois seria emotivo estar em Amarna, ou Tell el-Amarna, a antiga e efémera cidade de Akhetaton, que foi a sede do poder de Akhenaton, o qual mandou preparar o seu túmulo na montanha a leste da cidade. Dos vários túmulos do período amarniano merece destaque o do alto funcionário Ai (mais tarde faraó), que tem a particularidade de exibir a versão mais desenvolvida do «Hino ao Sol», composto pelo rei. O terceiro dia poderia ser aproveitado para uma visita à cidade de Alexandria, e de facto o habitual roteiro anual do Instituto Oriental incluía a visita a essa cidade nas margens do mar Mediterrâneo, mas últimos dois anos esse percurso no Norte foi anulado devido aos acontecimentos político-sociais ocorridos no Egito, por vezes com mortífera violência. Concluiu-se que a viagem pelo Delta (o Baixo Egito) não é por enquanto recomendável até que a situação fique estabilizada e a segurança se reponha. Mas se os tempos se revelarem promissores regressaremos à cosmopolita Alexandria, uma velha cidade grega fundada por Alexandre, e que o nosso Eça de Queirós bem conheceu na sua viagem de 1869 para a inauguração do canal de Suez. Mas além de Alexandria outras zonas mereciam ser visitadas não fosse a escassez do tempo e também, verdade se diga, o estado em que se encontram muitos dos vestígios dos tempos faraónicos do Delta, devido à diferente topografia dessa área. Seria bom, por exemplo, ir ao que resta de Bubástis, onde foram encontrados túmulos de diferentes épocas, desde o Império Antigo, e com relevo para o Império Novo e o Terceiro Período Intermediário, com destaque para os grandes cemitérios de gatos, o que se compreende porque Bubástis era um local de veneração da deusa Bastet, cujo animal sagrado era o gato. Os túmulos reais de Tânis (San el-Hagar), descobertos entre 1939-1945 por Pierre Montet, são a exceção que no Delta confirma a regra do desaparecimento de muitas necrópoles. A preservação do cemitério real da XXI e da XXII dinastias deve-se ao facto de ele ter sido construído dentro do recinto do templo de Amon, o que não era habitual. São raríssimas as visitas de grupos organizados, até porque as escavações ainda decorrem no local. Em Tell el-Iahudeia, quase na zona de transição entre o Delta e o vale do Nilo, existe uma vasta necrópole a leste da localidade com vestígios a partir do Império Médio, e mais a sul em Heliópolis (onde em grande parte fica o imenso aeroporto do Cairo), foram achados os túmulos de sumos sacerdotes do deus Ré datados do Império Antigo. Na zona vizinha de Matareia, onde alguns peregrinos podem ver a chamada «árvore da Virgem» (local lendário onde supostamente a Sagrada Família terá descansado fugindo ao sádico Herodes) há várias

necrópoles do Império Novo e da Época Baixa, e a poucos quilómetros para nordeste, em Arab el-Tauil, ficam as tumbas dos bois Mnévis (ou Meruer, animais sagrados do deus Ré). Assim, e gorada por agora a ida a Alexandria, no terceiro dia temos ido de avião para o Sul num voo com destino a Abu Simbel, para no fresco da manhã visitar os templos rupestres de Ramsés II e de Nefertari, donde regressamos cerca das 10 horas antes que o calor comece a fustigar. Nova viagem aérea deixa os excursionistas em Assuão, e após a instalação no hotel previsto dá-se a saída para visita à Barragem de Assuão e ao templo de Kalabcha, que data do reinado do imperador Augusto e é dedicado a várias divindades a começar pelo deus núbio Mandulis. No final do dia há a possibilidade para uma entrada opcional ao Museu Núbio de Assuão, de construção recente. O quarto dia tem o seu momento alto com a visita de barco ao templo de Ísis na ilha de Filae, onde se podem ver outros monumentos como o pavilhão de Augusto e Trajano, para no regresso fazer uma passagem pela zona das antigas pedreiras onde se pode admirar o Obelisco Inacabado, um gigantesco monólito que não chegou a ser arrancado do sítio original devido a problemas de ordem técnica. Segue-se a instalação a bordo de um barco nilótico de cruzeiro que é um autêntico hotel flutuante (e os grupos do Instituto Oriental ficam sempre num barco de luxo). De tarde é proporcionado um passeio de feluca (embarcação tradicional egípcia) no rio Nilo, circundando a antiga ilha de Elefantina (Abu), onde se venerava o deus Khnum, com a possibilidade de uma excursão opcional à Aldeia Núbia. Nessa mesma noite o barco começa a navegar para norte, descendo suavemente o Nilo, e no quinto dia pela manhã estaremos em Kom Ombo, onde existe um templo dedicado aos deuses Horuer e Sobek, que data da Época Greco-romana, sendo também visitado um novo museu recentemente inaugurado que mostra vários crocodilos enormes embalsamados além de peças onde o deus Sobek é invocado. Depois do almoço a bordo, tomado em viagem, chegamos a Edfu para uma saída de caleche em direção ao templo de Hórus, que data da dinastia ptolemaica, e que é um dos mais bem conservados do antigo Egito, com toda a gente a querer ser fotografada junto da célebre estátua do deus Hórus em forma de falcão, repetindo o momento em que nesse mesmo sítio o grande mecenas e colecionador Calouste Gulbenkian se deixou fotografar em 1934. A navegação rumo a norte prossegue e é tradicional fazer-se a bordo uma festa típica onde todos se vestem com trajes mais ou menos típicos que se usam durante o jantar e nos folguedos que a seguir têm lugar no salão do barco. No sexto dia há a passagem pela comporta de Esna, e aproveitando a breve paragem do barco para passar a comporta, é possível fazer uma visita ao templo de Khnum, o qual data sobretudo do período romano. Mas pouco tempo o barco lá fica, e por isso não é possível ver os vestígios históricos que ficam na região, como El-Kab, alguns quilómetros para sul, onde se encontram túmulos cavados na rocha que vão do Império Médio até ao Império Novo, nomeadamente o de Ahmés, filho de Abana, onde figura o texto que narra a luta contra os Hicsos (inícios da XVIII dinastia). El-Kab é a moderna designação que abrange as egípcias Nekheb, na margem oriental, e Nekhen, na margem ocidental, que remontam à Época Pré-Dinástica. A navegação prossegue para Lucsor, onde os viajantes acordam na manhã seguinte depois de um cruzeiro que, além das

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paragens nos locais históricos, proporcionou momentos de descanso e de lazer no convés fruindo da brisa do norte e apreciando o pôr do sol, Na manhã do sétimo dia, saem os viajantes para a margem ocidental, para visitar o Vale dos Reis (com direito a entrada em três túmulos reais), o templo funerário de Hatchepsut em Deir el-Bahari e os chamados «Colossos de Memnon», que é o que resta do grande templo funerário de Amen-hotep III. A imagem do templo de Deir el-Bahari, adossado à montanha tebana, é uma das que melhor fica gravada na memória de quem percorre os sítios históricos do antigo Egito. Depois do almoço a bordo sai-se à tarde de regresso à margem ocidental do Nilo para visitar o Vale das Rainhas, com entrada em três túmulos que incluem as moradas eternas de príncipes reais que foram lá sepultados e não chegaram a reinar (como os de Amenherkhopechef e de Khaemuaset), e ao templo funerário de Ramsés III, em Medinet Habu, onde alguns relevos pintados estão em bom estado de conservação, sendo no entanto de lamentar que a maior parte da grande sala hipostila do templo tenha desaparecido. A noite será passada num hotel de Lucsor previamente escolhido. Quem quiser pode começar de madrugada o oitavo dia com uma excursão de balão opcional para ver o nascer do sol e sobrevoar a vasta zonas de túmulos e templos funerários de Lucsor Ocidental. Depois é a saída mais uma vez para a margem ocidental, para visitar a vila operária de Deir el-Medina, onde residiam os trabalhadores que preparavam os túmulos reais no vizinho Vale dos Reis, sendo também apreciados alguns túmulos do chamado «Vale dos Nobres». Nos últimos três anos os túmulos postos à disposição dos visitantes têm sido os do vizir Rekhmiré, os dos altos funcionários Sennefer e Menna, e, na área de Deir el-Medina, os dos funcionários da necrópole e artesãos Sennedjem, Inherkha e Khabekhet, entre outros. Após o almoço num restaurante local segue-se a visita ao Museu de Lucsor, com um circuito museológico muito agradável e com peças notáveis em exposição. O resto da tarde livre para visita ao Museu da Mumificação (opcional) e ao bazar local. Ainda na região tebana ficam Ermant (a antiga Iuni), Guebelein (a antiga Per-Hathor) e Moalla (antiga Hefat), todas com túmulos de várias épocas. Merecem saliência o Bukheum de Ermant, o local de inumação dos bois sagrados de Montu (Bekh) e o das vacas mães dos bois de Montu, e ainda os diversos túmulos cavados na rocha em Moalla (Primeiro Período Intermediário), entre outros sítios interessantes mas que ficam fora dos roteiros turísticos. O nono dia é dedicado à margem oriental da antiga Tebas, começando pelo grande templo de Amon em Karnak, um gigantesco complexo sacerdotal que levou cerca de dois mil anos a ser construído e que nunca chegou a ser acabado. Geralmente os grupos de visitantes estão no templo cerca de uma hora, mas os grupos do Instituto Oriental têm demorado mais de duas horas para apreciar devidamente o templo que os antigos Egípcios conheciam como Ipet-sut («O mais seleto dos lugares»). Depois do almoço no hotel ou em restaurante local, a tarde é dedicada à visita do harmonioso templo de Lucsor, também erguido para o deus Amon, uma grande construção que se deve sobretudo a dois faraós: Amen-hotep III (a zona situada a sul) e Ramsés II (a área posteriormente acrescentada, que fica a norte). Trata-se de uma construção impressionante a que nos tempos faraónicos se dava o nome de Ipet-resi («O harém do sul»), sendo de notar que à entrada encontra-se apenas um obelisco porque o seu par foi levado para Paris, onde hoje se ergue na Place de la Concorde. No décimo dia é a partida bem cedo de autocarro para Abido, célebre pelo seu grande templo feito para o deus Osíris, além de muitos outros monumentos dedicados ao senhor da eternidade. Mas Abido é sobretudo uma vasta necró-

pole que abarca quase todas as épocas da longa história do Egipto e mesmo da pré e proto-história. São importantes para se conhecer a emergência da nação unificada os túmulos de soberanos da I dinastia e da chamada «dinastia 0». Há ainda catacumbas de cães, íbis e falcões. Mais para sul está Hiu, e a leste da localidade ficam cemitérios de várias épocas entre os quais túmulos de animais sagrados (cães, íbis e falcões). Se houvesse mais tempo dava-se um salto até às vastas necrópoles de Akhmim, a antiga Ipu ou Khentmin, onde se venerava o deus Min, e que nunca foram sistematicamente escavadas, existindo ali túmulos cavados na rocha desde o Império Antigo à Época Greco-romana. A visita ao templo de Abido, onde poucos grupos vão, é um dos momentos altos da viagem, podendo ser apreciados os belos baixos-relevos, muitos deles ainda com as cores originais, que mostram várias divindades do panteão egíp

cio, nomeadamente Osíris, Ísis e Hórus, além dos grandes deuses protetores da monarquia como Amon, Ré e Ptah, estando igualmente presente em múltiplas representações o rei Seti I, a quem se deve o essencial das obras feitas em Abido (a faraónica Abdu). A excursão continua para Dendera, que é conhecida, antes de mais, pelo seu templo dedicado à deusa Hathor, mas a região tem vários cemitérios que vão da Época Arcaica à Época Greco-romana, sendo os mais importantes os túmulos dos finais do Império Antigo e do Primeiro Período Intermediário. Também há na região catacumbas com teto abobadado de tijolo onde se inumaram as vacas sagradas (animal ligado ao culto de Hathor), e ainda aves e cães. Depois, e se houvesse tempo poderia ser vista Nagada, com os seus vastos cemitérios situados a norte, entre Tukh e El-Ballas, com túmulos da Época Pré-Dinástica e do Império Antigo, sendo menos importantes os de fases posteriores. Há ainda necrópoles em Copto, Kus e Medamud. Mas o que interessa é sobretudo o templo da deusa Hathor, que nos últimos anos tem sido alvo de um notável trabalho de restauro sendo reabilitada muito da sua cor original, sendo o único templo entre os vários visitados ao longo do percurso cultural em que se pode subir ao telhado, por uma longa escadaria interna de paredes decoradas com relevos, para lá em cima se poder ver algumas salas com uma rica iconografia.

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Uma visita ao Museu São João de Deus - História e Psiquiatria Sérgio Tenreiro Gomes1

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Licenciado em Enfermagem. Investigador do Instituto PAEHI- Associação para Estudos Históricos Interdisciplinares.

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Natália Correia Guedes, Museu São João de Deus - Psiquiatria e História, Lisboa, Editorial Hospitalidade, 2009, pág. 15-16 3

José Augusto Louro, Museu São João de Deus - Psiquiatria e História, Direcção de Natália Guedes, pág. 7- 8

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Natália Correia Guedes, ibidem, pág. 15-16

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Inaugurado a 8 de Março de 2009, o Museu São João de Deus – Psiquiatria e História, surge como sucessor do Museu da Loucura, localizado na Casa de Saúde do Telhal de 1920 até 1983. Os objectivos que impulsionaram o Director Clínico, Dr. Luís Cebola, à constituição daquele pequeno núcleo museológico no início do séc. XX ainda hoje, quase um século depois, se mantêm actuais. Deste modo, para além de preservar como memória histórica a produção artística dos doentes, sensibilizar os visitantes e estimular uma educação de índole estética e cultural, este novo museu procura uma abordagem mais abrangente e pluridisciplinar, onde a história da Ordem Hospitaleira em Portugal se cruza com a história da psiquiatria, da medicina e da enfermagem. Num sentido mais lato pretende-se, com o intuito de diminuir o estigma associado ao doente e à patologia mental, esclarecer a sociedade em geral e envolvê-la na adaptação e recuperação sociocultural dos doentes2. Para albergar este espaço cultural foi recuperado e convertido o edifício que havia sido construído em 1937 destinado à Escola Apostólica da Província Portuguesa, na Casa de Saúde do Telhal. Assim, este renovado imóvel, provido de um forte sentido emblemático para os Irmãos de São João de Deus, encontra-se hoje perfeitamente integrado na paisagem envolvente e dotado de singulares condições que permitem cumprir na íntegra a sua nova função3. Com a extinção, em 1834, das Ordens Religiosas em Portugal, o património artístico e museológico da Província Portuguesa da Ordem Hospitaleira de São João de Deus, ficou disperso por entre particulares e instituições públicas e privadas. O intuito de reunir e preservar esse mesmo património materializa-se na galeria de exposições permanente. O museu dispõe ainda de uma galeria de exibições temporárias que albergou, aquando da sua inauguração, uma mostra dedicada à vida e obra de São João de Deus. Actualmente encontra-se em preparação uma exposição que incidirá sobre diversas manifestações artísticas, desde a pintura à escultura, passando pelas pirogravuras e maquetas, que têm como denominador comum a autoria de artistas que, em algum momento da sua vida, se encontraram institucionalizados num dos diversos Centros Assistenciais da Ordem Hospitaleira presentes em Portugal4. A evocar o passado formativo da instituição, encontramos um espaço que recria uma antiga sala de aulas. Foi em 1937 que o actual edifício começou a funcionar como Escola Apostólica, inicialmente com 12 candidatos. Mais tarde, em 1944, vê reconhecido oficialmente o seu currículo ao nível da instrução primária e 4 anos depois ao nível dos

estudos secundários. Paralelamente aos ensinos Apostólicos, que versavam uma formação humana, cultural e espiritual, é organizado, em 1936, o primeiro curso de enfermagem. Este capacita 16 alunos para o exercício legal da profissão, ratificado por provas na Escola de Enfermagem Artur Ravara, em Lisboa. Posteriormente, em 1939, o Ministério da Educação aprova dois cursos de Enfermagem na então denominada Escola de Enfermagem dos Irmãos de São João de Deus, um geral e o outro especializado em psiquiatria. Acompanhando as tendências da época, em 1952, com a reforma do ensino da enfermagem em Portugal a exigir estágios prestados num hospital geral, é construída no Telhal uma Clínica Cirúrgica com capacidade para 20 camas que estaria em funcionamento até meados da década de 70. Assim, após um período áureo na década de 60, quando o número de alunos nas diversas valências chegou a atingir os 900 estudantes, assiste-se a uma redução gradual até ao seu encerramento em 1976, quando novas teorias educativas e ideológicas condenavam os então frequentes regimes de internato 5. A colecção museológica, em si, abarca quatro domínios distintos, onde a história da psiquiatria, enfermagem e farmácia se entrelaça com a obra de São João de Deus, perpetuada pelos seus seguidores. Encontramos então um núcleo de arte sacra, espaços dedicados à história da psiquiatria, medicina, farmácia e uma importante exposição de obras realizadas em contexto ergoterápico. A génese religiosa desta Ordem Hospitaleira justifica a presença de um importante núcleo de arte sacra, que se encontra exposto, na sua maioria, no interior da renovada capela. Para além da diversa estatuária e paramentos de diversas épocas cronológicas, destaca-se ainda uma pintura de grandes dimensões, da autoria de Domingos Rebelo, que ilustra vários momentos da vida de São João de Deus. No entanto, um pouco por todo o museu, podemos encontrar representações do mesmo Santo em diversas pinturas e esculturas expostas. Prosseguindo a visita, deparamo-nos com um espaço dedicado ao restaurador da Província Portuguesa da Ordem Hospitaleira, o Padre Bento Menni. Este, em 1893, adquire a Quinta do Telhal, local onde se situa este museu e reactiva, em Portugal, a Ordem da qual fazia parte. Renascem deste modo os ideais dos seguidores de São João de Deus, expulsos em 1834 com a extinção das Ordens Religiosas. Este último movimento foi patrocinado por Joaquim António de Aguiar, que havia de ficar eternizado pelo povo como o “mata-frades”. Podemos aqui admirar uma cadeira de braços do séc. XIX onde o Padre Bento Menni, em 1910, se deixou fotografar durante da sua última visita ao Telhal. Junto da mesma encontra-se ainda uma fotografia que perpetua esse momento6. Posteriormente a esta homenagem ao agora Santo Bento Menni começa-se a desenhar o núcleo dedicado à história da psiquiatria. Aí encontramos uma série de objectos, instrumentos, aparelhos, livros e fotografias que ilustram a evolução, nos vários domínios, da assistência aos doentes mentais. Pelo local de destaque que ocupam no museu, vou fazer incidir este artigo em alguns desses instrumentos utilizados nas diversas formas de tratamento, outrora usadas em psiquiatria. Num local privilegiado podemos observar uma banheira que evoca técnicas de hidroterapia, muito utilizada em Portugal desde o final do séc. XIX até meados do séc. XX. Sendo uma terapia cujo uso se intensificou desde a abertura do balneário do manicómio de Rilhafoles, em 1853, foi também um dos métodos privilegiados pelos Irmãos de São João de Deus. Estes banhos eram administrados aos doentes em momentos de maior excitação sendo, considerados produtores de consideráveis efeitos calmantes 7. Como terapêutica sedativa, era frequente a utilização dos banhos de imersão, onde o doente era deitado numa banheira, semelhante à exposta, contido a uma lona fixa à parte superior da banheira, mantendo apenas a cabeça de fora. A temperatura da água do banho deveria situar-se entre os 37 e os 38 graus Célsius. Para melhor ilustrar este procedimento, encontra-se exposta uma fotografia que expõe esta técnica, podendo

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Augusto Vieira Gonçalves, Museu São João de Deus - Psiquiatria e História, pág. 174-175 6

Manuel Ferreira da Silva, Hospitalidade com S. João de Deus no coração da história, Lisboa, Coedição da Editorial Hospitalidade e Rei dos Livros, 1994, pág. 38

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LAVAJO, Joaquim Chorão, Ordem Hospitaleira de S. João de Deus em Portugal, Lisboa, Editorial Hospitalidade, 2003, pág. 198-199

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LAVAJO, Joaquim Chorão, Ordem Hospitaleira de S. João de Deus em Portugal, pág. 198-199

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Idem, ibidem, pág. 201

10

João Lobo Antunes, Museu São João de Deus - Psiquiatria e História, pág. 217-219

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o visitante mais facilmente visualizar o ambiente que a rodeava. Encontramos também um registo fotográfico de outra das formas de hidroterapia, que maior expressão teve nos centros assistenciais da Ordem: o duche escocês. Neste procedimento, o doente era imobilizado numa estrutura de ferro e posteriormente atingido por fortes jactos de água, alternadamente fria e quente. Menos expressão tiveram tratamentos como os banhos de chuva, o duche de pressão, o duche circular e o banho de assento 8. Antes do advento dos psicofármacos, na década de 50 do séc. XX, a agitação e agressividade dos doentes era travada com métodos, que embora a comunidade científica actual os considere desadequados, eram prática comum em toda a Europa e representavam muitas vezes a única forma de conter o doente. A metodologia utilizada pressupunha o desvio do seu foco de atenção, ou seja, a agressividade contra terceiros seria substituída pela necessidade de o doente se centrar no seu próprio sofrimento físico, infligido através da injecção de substâncias no corpo do indivíduo. Uma das mais frequentes era o leite, que sendo administrado por via intramuscular, provocava febres altas bem como estados de desidratação e prostração. Também a terebentina, por via subcutânea profunda, provocava uma forte irritação, seguida de um abcesso, que causava grande sofrimento físico. Com o mesmo objectivo utilizava-se na década de 30 a denominada malarioterapia, que consistia na propositada contaminação do doente com malária originando fortes febres e processos de desidratação, ocorrendo deste modo a fixação do doente no seu sofrimento físico e uma consequente diminuição dos comportamentos agressivos9. Ainda que frequentes, estes métodos eram apenas utilizados quando se esgotavam as tentativas menos invasivas de conter a agitação do doente. Para recordar estes procedimentos, encontramos exposto um colete-de-forças, bem como luvas de contenção, que tinham como principal objectivo restringir os movimentos dos doentes. Nesta linha, é possível ver a recriação de um quarto preparado para imobilizar fisicamente os doentes mais agitados. Aqui podemos observar uma cama destinada a esse efeito, contendo os respectivos dispositivos de imobilização. É ainda de referir a existência de uma porta reforçada, bem como de grades nas janelas. Progredindo na visita encontramos vários aparelhos antigos de electroconvulsivoterapia, mais conhecida por electrochoques. Inicialmente utilizada em Roma em 1938, no ano seguinte a sua utilização era já rotineira na Casa de Saúde do Telhal, traduzindo a modernização da Ordem no acompanhamento da Ciência Psiquiátrica da época. Este procedimento encontra-se também ilustrado numa fotografia, dos anos 50, que retrata os Irmãos a aplicar eletrochoques num doente. No núcleo dedicado à evolução da enfermagem, encontramos vários instrumentos utilizados pelos enfermeiros de então, como seringas em aço inoxidável, agulhas, cuvetes reniformes, esfignomanómetros, entre outros. Neste espaço pode-se observar ainda um carrinho de enfermagem, contendo o material mais frequentemente utilizado nos meados do séc. XX por estes profissionais. Um carrinho semelhante é representado no registo fotográfico exposto, figurando os Irmãos numa enfermaria na década de 40. Embora com uma vocação assistencial centrada inicialmente no doente mental, ao longo do séc. XX a Ordem Hospitaleira segue também os caminhos da medicina cirúrgica. Deparamo-nos com diversos instrumentos utilizados em áreas tão distintas como a ortopedia, neurologia, odontologia e obstetrícia. Dos muitos clínicos que exerceram funções nos vários Centros Assistenciais da Ordem, refira-se o papel de Egas Moniz, vencedor do Prémio Nobel da Medicina em 1949. Esta distinção teve por base os seus métodos inovadores na área da Neurocirurgia, realizando em conjunto com o Dr. Almeida Lima as denominadas leucotomias. Estas consistiam em seccionar, na substância branca do cérebro, feixes de associações com centros afectivos diencefálicos. Tendo realizado a primeira cirurgia do género em 1935, um ano depois já havia intervencionado 9 doentes no Telhal nos mesmos moldes. A sua memória é recordada através de uma fotografia aí exposta10. Com o evoluir da quimioterapia, iniciada na década de 50, assiste-se a uma revolução no tratamento psiquiátrico que teve importantes repercussões nos centros assistenciais da Ordem. É no núcleo de história da farmácia onde essas transformações ganham maior visibilidade. Encontramos expostos vários exemplos bibliográficos de farmacopeias do séc. XVIII e XIX, assim como instrumentos utilizados no manuseamento de terapêuticas

medicamentosas (tabuleiros e caixas para medicamentos, frascos, provetas, balanças, entre outros). Estes testemunham a crescente importância das terapêuticas medicamentosas no tratamento das diversas patologias do foro mental. Da exposição permanente do museu faz ainda parte um espaço dedicado à ergoterapia, onde se podem observar várias obras, de diferentes quadrantes artísticos, realizadas por doentes dos centros assistenciais. Desde sempre que a Ordem Hospitaleira mostrou consciência de que a ocupação estruturada através do trabalho tinha um importante contributo no processo terapêutico dos doentes. Apesar de nem sempre se tratar de um assunto consensual, continua a acreditar-se na existência de um importante papel da ocupação estruturada na manutenção do equilíbrio psíquico das pessoas com problemas de saúde mental. A institucionalização de um doente não o destitui de todas as suas capacidades produtivas e muitos continuaram a produzir obras de arte, em variados domínios, durante o tempo que se encontraram nos centros assistenciais da Ordem Hospitaleira11. Desses trabalhos desenvolvidos, ganham destaque as obras de Stuart de Carvalhais, autor da primeira banda desenhada e do primeiro filme cómico realizado em Portugal. Durante os períodos em que esteve internato na Casa de Saúde do Telhal, na década de XX, foi autor de variadas aquarelas, algumas das quais fazem parte da colecção permanente do museu. Encontramos também obras de Simões Costa, em madeira recortada e policromada, representando caricaturas de diversos personagens da cena política e social europeia12. A testemunhar a importância deste núcleo está a nova exposição temporária, a inaugurar brevemente, onde vão ser reunidos no mesmo espaço vários trabalhos realizados por doentes, trabalho esses que se encontram actualmente dispersos em colecções privadas. De referir ainda o vasto e rico espólio bibliográfico que o museu possui, que pode ser consultado no seu centro documental. Este constitui um espaço de excelência para qualquer investigador que se interesse pela história das práticas assistenciais em medicina e psiquiatria, bem como pela história de São João de Deus e da Ordem Hospitaleira fundada pelos seus seguidores. As visitas guiadas que o museu proporciona, associadas à existência de um catálogo da exposição bastante completo, permitem ao visitante a obtenção de um vasto conjunto de informações, não só sobre as peças expostas, mas também dos factos mais marcantes da história da Ordem Hospitaleira de São João de Deus, desde a sua fundação no séc. XVI até aos dias de hoje. Por último, mas não menos importante, fica o agradecimento ao Padre Álvaro Lavarinhas, coordenador do Museu, bem como à Dr.ª Estela Rodrigues, pela disponibilidade e apoio prestado.

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Margarida Cordo, , Museu São João de Deus - Psiquiatria e História, pág. 223 -225 12

Idem, ibidem, pág. 228

Bibliografia GUEDES, Correia Natália (coord.), Museu São João de Deus - Psiquiatria e História, Lisboa, Editorial Hospitalidade, 2009 LAVAJO, Joaquim Chorão, Ordem Hospitaleira de S. João de Deus em Portugal, Lisboa, Editorial Hospitalidade, 2003 SILVA, Manuel Ferreira da, Hospitalidade com S. João de Deus no coração da história, Lisboa, Co-edição de editorial Hospitalidade e Rei dos Livros, 1994

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Amon, Ré e a legitimação faraónica no vale do Nilo Por João Camacho Investigador do Instituto PAEHI – Associação par Estudos Históricos Interdisciplinares. Mestrando na área de História Antiga pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa

A presente síntese partiu da vontade de tentar identificar elementos naturais e psicológicos associados às divindades de Amon e de Ré e de perceber como é que, numa dialéctica entre realidade e mito, estes contribuíram para a legitimação política no antigo Egipto. Posteriormente, com base na reconhecida e quase permanente influência egípcia sobre a Núbia, tentar comparar essas construções com aquelas que foram desenvolvidas pelos seus seculares vizinhos meridionais, sobretudo no período da XXV dinastia e, mais especificamente, na atenção prestada à montanha sagrada de Guebel Barkal. EGIPTO E NÚBIA, RELAÇÕES CULTURAIS O antigo Egipto foi um território político edificado no continente africano, que partilhou com a Núbia uma base demográfica comum. A redução de caudal de uma espécie de lago interior existente no actual Sara, motivada por um progressivo aquecimento climático, levou à formação do vale do Nilo e à aridez dos terrenos circundantes, fazendo com que a cooperação social ganhasse um maior relevo pela necessidade constante de distribuição de água pelas margens fluviais. A divisão política, que teve em conta a fertilidade dos territórios e a navegabilidade do rio, (características bastante mais descontínuas para sul de Assuão), ocorre no período de Nagada II, mas já em c. de 4000 a.C. (Nagada I) se verificavam acentuadas dissemelhanças culturais nas estruturas funerárias e no universo simbólico representado, exprimindo uma complexidade de tal modo inusitada, que levou o arqueólogo Flinders Petrie (e não obstante o particularismo de certas ideias dominantes na sua época), a sugerir a chegada de uma «great new race», algo que, à luz dos avanços posteriores, não tinha fundamento. A nova formação política gerou um compromisso de um povo com um espaço, levando a que a propaganda/simbolismo ganhasse um relevo diferente, capaz de se sobrepor aos particularismos regionais e de criar esse sentimento unitário, que Ian Shaw designou como «ideologia faraónica». Apesar da distinção, a presença egípcia na Núbia foi bastante regular, sobretudo devido às riquezas mineralógicas de alguns locais, como do Uadi Allaki (ouro), Buhen (cobre) e aos produtos comerciais vindos de zonas africanas mais meridionais. Diversos elementos atestam a presença mais ou menos permanente de Egípcios em Uauat e Kuch, desde inscrições reais, grafitos, fortalezas (Buhen, Mirgissa, Kumna, Semna) e outras construções, até à reformulação administrativa do Império Novo, que torna a região num “vice-reinado”. A uma submissão muito baseada em tributos, sucede um período de franca aculturação da Núbia, que também se fez sentir em sentido inverso, embora num grau bastante inferior. Três séculos depois do final do referido período da história egípcia, os soberanos de Napata irrompem pelas fronteiras meridionais e, durante quase cem anos e cinco faraonatos, impõem-se como governantes de ambos os territórios. 1 O nome de Amon é referido nos «Textos das Pirâmides», sendo aí evidenciadas as suas características aéreas e ventosas. 2 Tobin, p. 83.

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INSTRUMENTOS DE UM DOMÍNIO POLÍTICO ATRAVÉS DA RELIGIÃO O domínio político das Duas Terras concretizou-se, fundamentalmente, e tanto por autóctenes como por alóctenes, por duas vias: a religiosa e a militar. Neste contexto releva-se a função de Amon-Ré. O deus Amon foi uma das divindades mais importantes e prestigiadas do Egipto antigo. Parece hoje consensual afirmar que o culto a Amon surgiu na zona tebana (em Uaset segundo François Daumas, em Iunu Montu, ou Ermant, segundo Luís M. de Araújo), num indeterminado momento anterior à VI dinastia, altura em que o seu nome 1 aparece pela primeira vez na História . Tal como o seu local de origem, Amon tinha uma importância bastante modesta, o seu próprio nome significava «O Oculto/O Escondido/O Misterioso/O Incognoscível» (a forma onomástica pode ter derivado da palavra líbia para 2 «água»). Segundo um mito, o seu nome era desconhecido e, quando escrito, não era infrequente surgir sem determinativo. Amon era um deus ligado ao ar e às brisas e conotado com o elemento primordial a partir do qual se formou o Nun, massa caótica, informe e deificada,

que representava o nada. Estas características algo enigmáticas sobre a sua essência facilitaram a identificação com outras deidades, sobretudo com Ré, deus-Sol, em cuja forma sincrética reúne duas das características mais antagónicas das divindades: o revelado e o escondido. Foi a partir do Império Médio que Amon começa a adquirir mais importância, sendo-lhe atribuídas, progressivamente, e através de elaboradas composições teológicas, diversas qualidades que acentuaram os seus traços universalistas e criadores. Mais a norte, perto do local arqueológico de Amarna, existia a cidade de Tot (Hermópolis Magna), cidade da Hehu (Ogdóade), uma cosmogonia que, ao contrário da mais individualizada Pesedjet (Enéade) de Iunu (Heliópolis), dependia do conjunto das (oito) divindades para expressar a sua força criadora, pois cada uma delas, ou melhor, cada um dos quatro casais divinos, representava diferentes aspectos do caos primordial: Nun e Naunet o «caos líquido original», Amon e Amonet o «dinamismo escondido das origens», Heh e Hehet o «espaço infinito primordial» e Kek e Keket a «obscuridade primígena»3 , todos sob a protecção de Tot. Para a composição desta cosmovisão deve ter contribuído a colina (o tell) que se encontrava na zona sul do sítio onde hoje está a localidade de el-Achmunein, já que, segundo a lenda, foi no meio das águas primordiais que surgiu uma ilha (Ilha das Chamas ou Ilha do Fogo), numa associação aos pântanos nilóticos onde surgiam, com o recuar das águas, ou com as mudanças no curso fluvial, pequenos montículos. Nesse local, numa das versões do mito, foi colocado e chocado pela íbis de Tot o ovo primordial, do qual nasceram as oito divindades. Como em diversos outros mitos, foram elaboradas várias versões do mesmo, em diferentes épocas e com consequentes disparidades nas necessidades políticas e religiosas. Um dos pontos onde podemos observar essas variâncias é na origem do ovo cósmico: se por vezes é resultado da acção conjunta dos oito, mais tarde é referido como produto de uma gansa, «A Grande Grasnadora». O ovo pode simbolizar a fertilidade e a potência criadora. Para Hermann Baumann, a relevância da simbologia oval, comum a várias áreas (como o Egipto, Índia ou Polinésia), pode exprimir um avanço na resolução dos antagonismos sexuais colocados por outras construções mitológicas, remetendo para uma realidade andrógina supra-humana e supra-parental que, de um determinado ponto de vista, resultará no abstraccionismo da divindade. Ilustra também uma fase anterior a todo o tempo, num momento onde ainda não existia o dualismo dia/noite e, no caso egípcio, anterior ao caos aquoso e túmido (contexto ambiental onde é visível o surgimento de jovens serpentes e girinos, animais que vão representar os elementos femininos e masculinos, respectivamente, da Ogdóade), caracterizado pela perfeição (das linhas ovoides, da superfície zigotal). Da associação com a gansa se mantiveram as duas longas plumas como um dos símbolos amonianos mais habituais. François Daumas defende que, nem Amon, nem Amonet, faziam parte da constituição original da Ogdóade de Khemunu («A dos Oito»), considerada por alguns autores como o mais antigo mito de criação do Egipto antigo. Estes teriam sido incluídos numa fase posterior, eventualmente na sequência do aumento da importância dos deuses locais verificado durante o Primeiro Período Intermediário. O sucesso político da XII dinastia, como mais tarde acontecerá com a XVIII dinastia, dita a ascensão de Amon de um «obscuro deus local» a deus mais importante de Uaset (suplantando o bélico deus Montu) e a patrono do faraonato e de todo o duplo país. Na sequência dos favorecimentos políticos dos faraós da XII dinastia, os sacerdotes amonianos lavram variadas composições teológicas que promovem Amon, do seio da cosmogonia, a «criador da Ogdóade», através do aproveitamento do seu dinamismo demiúrgico, sub-alternizando Tot, tornando-o, assim como aos restantes, numa mera manifestação da sua existência enquanto o verdadeiro deus criador. No percurso da divindade com vista à sua afirmação enquanto deus “nacional”, ou mais devidamente, como «Rei dos deuses» (nesu-netjeru), era inevitável a sua associação com o Sol. A importância deste astro está atestada na maioria das civilizações antigas, e o seu relevo no Egipto era notável. Como Bruce Trigger explica, a construção do mundo egípcio seguia dois eixos: de Sul para Norte, como o rio Nilo (que foi também a direcção que tomaram todos os movimentos de unificação nacional, incluindo o que foi difundido na

3 Ver Sales, As Divindades Egípcias, p. 69.

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4 Trigger, Early Civilizations, p. 37. 5 Bram, p. 133. 6 Carreira, p. 788. 7 P. 199.

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XXV dinastia), e de Este para Oeste, seguindo a movimentação do astro solar . Sol e Nilo providenciavam à população a satisfação das suas necessidades materiais. A adoração do astro (ré), e a sua associação com aspectos favoráveis da vida, é um processo comum praticamente a toda a humanidade, sobretudo nos povos da Antiguidade. A intensidade sensorial do dia, os aspectos benéficos dela derivados (parte dos quais oriundos do domínio extra-sensorial e da vertente metafórica), contrasta com a da noite, que por sua vez é associada a sentimentos mais nefastos e/ou misteriosos, marcando uma dicotomia que se exprime entre vida e morte 5 e levando a uma cristalização dessas experiências ao plano do religioso. Ré é por isso reconhecido como o criador universal, senhor do mundo e patrono do faraonato desde as primeiras dinastias tanitas. A inclusão teofórica da divindade na onomástica real (nome de «Filho de Ré», ou S3 R’, sempre devidamente protegido pela cartela linheira) foi um fenómeno comum, procurando a instituição real beneficiar do seu poder estabilizador, benéfico e reparador, relacionado directamente com a cheia anual do Nilo, na medida em que associaram o início da inundação nilótica com o levantamento helíaco de Sotis (a divinizada Sopdit), a «Estrela-Cão» da constelação de Oríon que despontava no horizonte depois de setenta dias oculta. Essa confiança não evitava que os Egípcios temessem pela existência, ou sobrevivência, da estrela solar, após o ocaso, elaborando diferentes mitos para tentar descrever os eventos e o trajecto do astro pela noite, até ao seu regresso matinal. Importa salientar a importância e inevitabilidade político-religiosa da associação de Amon com Ré, inserindo-se num processo de «conciliação da unidade do divino com a 6 pluralidade das suas formas » , o sincretismo do qual Amon-Ré é apenas um de muitos exemplos. Segundo José das Candeias Sales, «in-habitação» de um deus noutro, «traço característico da religiosidade dos antigos Egípcios», significa, neste contexto, a criação de outra divindade distinta. Amon-Ré é, assim, uma nova entidade na qual o primeiro recebe a potência do segundo, existindo autonomamente de Amon e de Ré. As relações entre divindades podiam adquirir várias formas, que por sua vez exprimiam, até certo ponto, a configuração política do país num determinado momento, ou um enquadramento político e/ou social que se pretendia ordenado (como no caso da inclusão de Amon na tríade tebana, com a sua esposa Mut e seu filho Khonsu). Por outro lado, os deuses egípcios eram fortemente impessoais e a sua força e presença eram apreensíveis através dos sentidos, fossem associados a animais, plantas ou astros. Amon e o seu clero cresceram em importância no Império Novo, num enquadramento político, interno e externo, distinto dos anteriores (e que alguns autores designam como “imperialismo egípcio”). A crescente autonomização do Templo de Karnak relativamente ao poder central, permitiu e suportou um exponencial crescimento da divindade, traduzindo-se em renovadas criações hinológicas a Amon-Ré e à concentração, nesta entidade, de diferentes funções, ilustrando, por um lado, o momento efectivamente mais militarista do país e, por outro, a tendência centralizadora do poder, paralela ao aumento de recursos. Para administrar uma máquina governativa tão sedenta de meios, aumentaram as exigências materiais e humanas ao “vice-reinado”, em marfim, ébano, animais exóticos, produtos agrícolas, um incomum tráfico de escravos e, sobretudo, o tão apreciado ouro. A guerra, tal como todas as esferas existentes «numa cultura arcaica, está fundamentada religiosamente e não se pode separar rigidamente o religioso do profano» (José Nunes Carreira). A figura central de toda a cosmovisão egípcia continuava a ser o faraó, filho de Amon-Ré, legitimado como tal desde a sua nomeação, acto funcional e determinador do tipo de existência do seu possuidor. A dimensão simbólica é de importância primordial para a comunicação religiosa. Para James W. Heisig «Symbolism is the very life's breath of religion 7» e, inversamente, a religião preenche da forma mais cabal todas as potencialidades do simbolismo. Na sua essência, um símbolo consiste num objecto concreto e particular, ao qual é atribuído uma representatividade de significados mais abstractos e generalizáveis, que por sua vez vão fazer despertar, no observador, emoções e pensamentos comuns

à maioria dos outros observadores. Mircea Eliade afirma que, no que diz respeito a símbolos religiosos, existe, indubitavelmente, um ponto de chegada, uma dimensão última totalmente distinta das associações profanas que a antecedem, no trajecto de compreensibilidade do símbolo pelo observador, a qual ele designa como a dimensão do sagrado. Por outro lado, Carl G. Jung considerou que o universo simbólico fornece as imagens que servem de comunicação entre a psique, as diferentes dimensões desta, e a realidade, concepção onde podemos inscrever a importância da Escrita. O faraó é filho de Amon-Ré, possui uma natureza divina, portanto, determinadas insígnias como os ceptros w3s (vida longa), h 3t (governo) e ne 3 3 (justiça), o colar mnit (força viril), o pilar d (estabilidade), a coroa p3 s mty e, ilustrando a fertilidade através do sincretismo com Min, a sua representação antropomorfa itifálica, remetem para a sua figura, para o poder que ele representa (com as especificidades inerentes a cada símbolo) e para a sua descendência, pois ele era o «campeão de Amon-Ré», uma figura sustentada pelas variadas formas de propaganda. Esta nova dimensão da religiosidade amoniana levou Vincent Tobin a afirmar que «the magnitude of Amun-Re's spiritual and political power helped transform ancient Egypt into a theocracy». DEUS AMON EM GUEBEL BARKAL Quando falámos de reino de Kuch, referimo-nos ao período que vai desde o séc. XI a.C. ao séc. III d.C. e que inclui as fases culturais de Napata e de Meroé, fases que, na realidade, apresentam um continuum cultural fundamental, distinguindo-se, essencialmente, pela localização geográfica das suas capitais e respectivas necrópoles 8: a cidade de Napata e seus cemitérios de el-Kurru e Nuri, perto da 4ª catarata do Nilo, e a cidade de Méroe com o seu homónimo sepulcrário, centenas de quilómetros para Sul, entre a 5ª e a 6ª cataratas fluminenses. A compreensão da religião kuchita depende, essencialmente, da arqueologia, já que as informações escritas em egípcio são pontuais. Esta tem de ser complementada com a interpretação de túmulos, oferendas rituais ou baixos-relevos de templos e de suas estruturas, sendo estes elementos, mesmo assim, bastante parcelares no que diz respeito ao espectro social da população. A maior dificuldade reside, portanto, na incapacidade de leitura do meroítico. Como salienta N. B. Millet «Without the evidence of the still unintelligible written documents, we find ourselves in the awkward position of making inferences about meroitic religion from cultural behavior, rather than, as most historians can, drawing conclusions about cultural values from religion.9 » . A sociedade napatense era dominada por uma monarquia e aristocracia estáveis, subentendendo por isso uma estreita ligação dos membros da família à administração. O controlo era individual e exercido pelo monarca, existindo um sistema eventualmente similar à divisão em nomos do Egipto, pelo menos a partir do reinado de Taharka (690-664 a.C.). No entanto, há uma grande imparidade nas informações conhecidas (sobretudo relativas às zonas meridionais), sendo possível que tenham existido variâncias no decorrer do período apresentado. Apesar de reconhecer que a ligação entre a instituição real e o exército possa ter sido muito importante, Derek Welsby salienta que não são conhecidos muitos casos de reis-militares. Na verdade, em mais de 1000 anos de sociedade núbia, apenas os Egípcios chegaram a dominar o território, pois nem na sequência das derrotas contra Assírios e Romanos os Napatenses perderam a sua autonomia10. Clyde Winters realça, na religiosidade meroítica, uma vontade de demonstrar generosidade e uma grande piedade para com os deuses, traduzidas, sobretudo, em oferendas rituais. Tal como os seus vizinhos do Norte possuíam uma grande preocupação com a vida 11 após a morte: literatura funerária , bens materiais12 e baixos-relevos com ilustrações do 13 «Livro dos Mortos » eram depositados e\ou esculpidos nos túmulos. Vários deuses egípcios foram objecto de culto: Usire, Ísis, Anupu e sua mãe Néftis, Bes e, principalmente, Amon. Este era adorado nas regiões setentrionais da Núbia provavelmente desde o período 14 de Kerma , mas o culto só pode ser demonstrado a partir do reinado de Tutmés III. É do reinado do “Napoleão do Egipto” que data o primeiro documento histórico do local onde

8 Welsby, p. 8. 9 Millet, p. 112. 10 Para tal deve ter contribuído, também, a aridez do clima. Por exemplo, a região que se estende por 160 quilómetros para sul, de Assuão a Batn el-Hagar (“Barriga rochosa”), só proporciona pequenas bolsas de terra fértil nas margens do Nilo. Outro factor, já referido como tendo sido levado em consideração na altura de definição de fronteiras, no Egipto, é a existência de algumas cataratas que, ao contrário do que o nome indica, tratam-se de desníveis rochosos, com rápidos, e que interrompem a navegabilidade, formando autênticas barreiras naturais. 11 No túmulo Beg. S. 10, por exemplo, por cima da porta de entrada existe um disco solar alado. 12 Prática conhecida desde tempos pré-egípcios. Foram descobertos, sobretudo, vestígios de cerâmica funerária e quotidiana. 13 Em algumas capelas funerárias de Begarawyia existem versões da «confissão negativa». 14 Principal localidade do reino de Kuch, na fase contemporânea do Império Médio, no Egipto.

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as «mais vívidas provas» do estreito relacionamento entre o Egipto do Império Novo e Napata: Guebel Barkal.

Vários faraós promoveram construções neste local, a começar por Tutmés III, que ordenou 15 a construção do Templo de Amon (B 500) . De Tutmés IV a Ramsés II, foram diversos os monarcas que deixaram o seu nome no local, fosse pela deposição de estátuas ou estelas, fosse pela construção e\ou reconstrução de santuários, como o Templo B 600 do referido soberano da XVIII dinastia, ou as (primeiras) reconstruções no B 500 encetadas por ordem de Horemheb. A montanha de Guebel Barkal foi reconhecida como a primeira residência de Amon, em todas as suas formas. O formato da elevação, a abóboda existente a sul e, princi16 palmente, um pináculo fálico , contribuíram para uma dialéctica associativa que gerou diferentes e sincréticas interpretações. O monte faz recordar, inequivocamente, as representações do monte primordial, erigido a partir do Nun. Amon, o não revelado, conforme a sua própria natureza, surgiu aí, e nesse mesmo local, em concordância com as narrativas da criação do mundo pela masturbação, gerou o universo. Esta divindade, ou a teologia tebana, havia incorporado nas suas formulações todas as características dos deuses criadores cronologicamente anteriores (a cosmogonia hermopolitana não era a única).

15 Para Timothy Kendall, os pilares de fundação do B 500 (sub), objecto de algumas reconstruções em anos posteriores, datam do reinado deste faraó. 16 Nas palavras de Kendall: «Incredible as it may seem, Amun’s strange polyphormic nature was ascribed and transferred directly and absolutely to the Guebel Barkal pinnacle. This strange statue-like rock early came to be conceived as a colossus of Amun in all his forms and became the ultimate “pantheistic” effigy.».

Esta isolada montanha de arenito situa-se a dois quilómetros da margem direita do rio Nilo, mais ou menos a meio do “grande S” descrito pelo curso fluvial, a Ocidente da actual cidade de Karima e a trezentos e sessenta e cinco quilómetros a Norte-Nordeste de Cartum.

No aplanado terreno circundante à depressão pouco relevante do vale do Nilo, surge o imponente e destacado bloco de grés, com cerca de duzentos metros de extensão e um penhasco de cento e quatro metros de altura, a sul. Foram encontrados vestígios de cultos praticados no local desde o Neolítico até períodos pré-islâmicos. De resto, o simbolismo das montanhas é conhecido em diversos locais, seja como centro sagrado do mundo, locais de revelações ou de visões, ou como residência divina, entre outros. Quando os Egípcios decidem prestar mais atenção ao outeiro, chamam-no de Diu-uab, (Montanha Pura ou Montanha das Águas Puras), passando a gozar de uma especial protecção real.

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Em Guebel Barkal passou-se o mesmo. Contudo, vários elementos combinaram-se de uma forma única, apresentando uma tangibilidade e uma riqueza de significado muito particular. Por um lado, o pináculo fálico, prova visível da potência e da fertilidade criadora de Amon (Amon-Min), fixado num dos extremos e antecedendo um santuário interior, sugerindo que essa continuava a ser a morada do deus. Enquanto este se ocultava, anichado no âmago da montanha, fazia ostentar, no exterior, os seus símbolos de poder que, de resto,

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corroboravam as suas manifestações, os seus «segredos» no Duplo País.

17 Acúrcio, p. 782. 18 Ver Kendall. O autor vai mais longe, ao afirmar que o Templo de Lucsor seria um substituto simbólico do Templo de Amon em Barkal, no Festival de Opet. Aqui, em vez de da estátua de Amon percorrer as centenas de quilómetros que separavam Barkal, a sua verdadeira morada, de Karnak, com as consequentes dificuldades logísticas, fazia-o a partir do «Templo do Sul». Kendall baseia a ideia em algumas referências a esse «Templo do Sul» que, apesar de entendidas como referências a Lucsor, tal não seria possível, por exemplo, durante os primeiros anos de Hatchepsut, já que por esta altura o Templo de Lucsor não estava ainda construído. 19 Ainda que se desconheça com exactidão o plano do local. Na verdade, esta construção está demonstrada pela abundância de talalats desse período. Kendall chama a atenção para o facto de, tanto Akhenaton como Seti I, terem ordenado a construção simultânea de santuários em Karnak e em Barkal, esperando retirar do acto benéficos dividendos político-religiosos. 20 Welsby, p. 73.

A sua forma criocéfala adquire uma especial importância pela conexão à ideia de fertilidade. O mesmo monólito era associado à serpente, «o animal representado na arte egípcia com mais frequência»17, pois, visto de um determinado ângulo, recordava precisamente a iaret, ou «A que se ergue» (termo do qual parece ter derivado o mais popularizado termo latino uraeus), nome que alude à posição de ataque da serpente (Naja nigricollis) que punha as suas nefastas qualidades ao serviço do faraonato, atacando os inimigos do rei com o seu veneno paralisante e destrutivo.

Assim, lá estava o divino ofídeo a guardar o lar amoniano, tal como, iconograficamente, fazia com Ré, rodeando e protegendo-o. Por outro lado, representava Amonet, a consorte de cabeça de serpente de Amon, na cosmogonia hermopolitana. O jogo de significados não se esgotava por aqui. A verticalidade aguda remetia para a pedra Benben, designação que deriva do verbo wbn (brilhar, erguer) e que, na sua forma cónica era uma manifestação do primordial deus Atum, divindade de Heliópolis, e igualmente uma manifestação pétrea dos raios solares. São conhecidas referências textuais a Guebel Barkal (e a Karnak) como Iwnw Sm‛w, as «He18 liópolis do Sul» . Terá sido na tentativa de aproveitar este simbolismo que Akhenaton mandou erigir um templo solar no local 19. Sublinhe-se a grande afinidade entre Uaset e Guebel Barkal no Império Novo, sugerindo que tais relações tinham igualmente funções económicas, funcionado o Templo de Amon da Núbia como uma espécie de entreposto 20 comercial para o Templo egípcio . Ainda durante a XX dinastia, nota-se uma aproximação dos costumes funerários de ambas as regiões. O fim do Império Novo no Egipto, numa altura em que o “vice-reinado” tinha já poucas obrigações para com os antigos conquistadores, acentuou o isolamento do território que, progressivamente, resulta num abandono das práticas cultuais destacadamente egípcias, incluindo as praticadas nos santuários de

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Guebel Barkal. Segundo Timothy Kendall, Amon cai no esquecimento durante cerca de três séculos: os vestígios arqueológicos não demonstram qualquer tipo de oferendas rituais a divindades egípcias, a escrita egípcia é abandonada e não é substituída, a técnica artística conhece um retrocesso e desconhece--se qualquer tentativa de governo sob a forma faraónica. O mesmo se passa nos templos e locais das redondezas. Porém, passadas essas centúrias o culto é reavivado. Sem sabermos ainda como, o soberano Pié (segundo uma estela de Taharka, já um antecessor de Pié, Alara, seria um abnegado seguidor de Amon) arregimenta apoios suficientes para descer o Nilo e (re)conquistar o país, tornando-se o primeiro faraó da XXV dinastia com os nomes Seneferré («O que torna Ré belo») Menkheperré («Estável é a forma de Ré») Usermaetré («Poderosa é a maet de Ré») Pié. Em Barkal, Pié promove diversas reconstruções em templos e palácios: arranjos em colunas, alargamento e construção de um pátio no B 500, reorganização da estatuária danificada. Dos seus sucessores Chabaka e Chabataka não são conhecidas movimentações semelhantes, mas, com Taharka, as construções no local são reactivadas, sendo conhecidos, neste período, pelo menos dois templos dedicados a Amon. Taharka ordena ainda a construção do Templo de Hathor (B 200), do Templo de Mut (B 300) e da fixação de um painel escrito no cume do pináculo, com um pequeno nicho conendo uma estátua de Amon, por baixo.

Escultura de Taharka, oferecendo a Hémen vasos de vinho e reavivando a antiga tradição de procurar o benefício da divindade através de presentes. Coroado em Mênfis, o faraó kuchita apresenta a coroa núbia com um duplo uraeus. Proveniente de um santuário em Hefat, encontra-se actualmente no Museu do Louvre.

A XXV dinastia impôs-se no Egipto invocando o nome de Amon, sendo por isso naturalmente apoiada pelo Templo de Karnak. O seu governo possuiu uma feição reconhecidamente arcaizante e Amon surgia numa posição proeminente. A promoção da divindade neste período napatense inaugurou uma fase de cultuação ininterrupta até ao fim do reino meroítico. Apesar das causas do ressurgimento do culto serem desconhecidas, após tantos anos de esquecimento, compreende-se o efeito pretendido: o reaparecimento de Amon veio conferir a legitimidade kuchita sobre o trono de Napata e do Egipto. É isso que é dito por Pié, na sua estela do ano 3: «Amun of Napata granted me to be ruler of every foreign country(…) Amun in Thebes granted me to be ruler of the Black Land (Kmt)»21.

21 Tradução de Timothy Kendall.

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CONCLUSÃO 22

22 Como na Escrita Hieroglífica: as formas gráficas adoptadas representam quase todos os elementos da cosmovisão egípcia. 23 P. 15.

De uma forma geral, a religião egípcia prestou atenção a todos os elementos do seu mundo. Elementos naturais, fauna, conceitos ou estados de existência foram deificados, divinizados, ou de certa forma associados a qualidades etéreas de determinadas entidades. Alguns factores contribuíram para que certos aspectos fossem mais cardeais que outros. Nos casos de Amon e de Ré, salientamos o ocultismo da essência e da forma, a importância do astro, a localização geográfica dos principais centros de adoração de ambos e a flexibilidade de significados permitida, que consentiu a identificação com certos animais com características temíveis e\ou respeitadas. No plano político, essas concepções foram utilizadas para criar, fortalecer, estender a legitimidade do ser humano aos elementos do seu universo. Numa inevitável dialéctica, todos esses elementos passaram a fazer parte do mundo mais “secular”, tornando-se símbolos e veículos de representação de poder, numa apropriação que justifica a mencionada ideia de José Nunes Carreira 23 .

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http://www.facebook.com/#!/pages/VUESTRA-EXPERIENCIA-EN-EGIPTO/124142124270094

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