6 minute read

No gabinete de estudos

Next Article
Noite

Noite

Se você fica parado, ele espera; se falamos com ele, avança; se perdermos algo, é capaz de encontrar e de nadar atrás de um pau se você o atirar na água.

Você está certo — concorda Fausto —, é só um cão, não uma assombração.

Advertisement

O cão continua seguindo-os até a casa e entra atrás de Fausto em seu gabinete de estudos.

no gabinete de estudos

Assim que entram, Fausto manda o cão ficar atrás do fogão, e diz:

Logo, logo te darei carinho!

Fausto então acende o candeeiro. Como o cão não para de rosnar e de latir, ele diz:

Para de latir e de uivar.

Não dá para ficar aqui, lamento.

A porta está aberta, vá embora. Fora!

O cão não vai embora. E começa a se transformar, a crescer, a mudar de estatura, e Fausto pergunta, assustado:

Mas o que está acontecendo?

Que espécie de fantasma atraí a esta casa?

Parece um hipopótamo, os olhos em brasa, horrível dentadura! Vou dominar-te, terrível criatura! A chave de Salomão é o melhor dos punhais.

Fausto pronuncia palavras mágicas para se defender:

Salamandra, deves arder

Ondina se torcer

Sílfide desaparecer

Coboldo sofrer!

Assim que acaba de falar, o cão se transforma em Mefisto, o diabo em pessoa, fantasiado de estudante.

Fausto acha graça, e pergunta:

Então era você que estava no cão?

Estudante andarilho! Como te chamas?

Meu nome é Mefistófeles — responde ele. Sou a parcela do além, a força que sempre quer o Mal e sempre cria o Bem! Sou o gênio que nega e destrói. Sou o diabo. Mas, vamos conversar em outra hora. Posso sair agora?

Fausto estranha o diabo pedir-lhe para sair:

Na verdade, não sei o que te impede

Ofereço a janela, a porta e a chaminé. Saia por onde quiser!

Ao que lhe responde Mefisto:

Não posso, porque esse obstáculo, o pé do feiticeiro que está na entrada, me impede de sair… — apontando para o pentagrama, a forma mais simples de estrela, traçada com uma única linha, chamada de “Laço Infinito”, que está desenhado à soleira da porta da casa de Fausto.

O pentagrama é a causa do teu pavor? — pergunta Fausto incrédulo.

É que está mal feito. Uma das pontas ficou aberta — explica Mefisto.

Isso é obra do acaso, algum engano, ao certo. Agora então és meu prisioneiro? — pergunta Fausto.

O cão não reparou quando entrou — diz Mefisto. E agora a coisa é diferente, o diabo não sai assim tão facilmente. Tem de sair por onde entrou.

Sendo assim, podes ficar, não vou te libertar — sentencia Fausto.

Mefisto, porém, não se abala. Pronuncia umas palavras mágicas que fazem surgir, no mesmo instante, uns espíritos que rodeiam Fausto, cantando uma ladainha. Ele cai em sono profundo. Depois Mefisto diz:

Oh, rei das ratazanas e dos ratos, das aves, dos sapos e animais daninhos, ordeno que saia do esconderijo para roer este canto do desenho e abrir o meu caminho!

Imediatamente surge uma ratazana enorme, que se põe a roer a ponta do pentagrama. Somente quando acorda é que Fausto percebe que foi enganado, pois Mefisto já não se encontra mais ali.

Algumas horas depois, Fausto está em seu gabinete de estudos e, ao ouvir batidas na porta, pergunta:

Quem bate? Pode entrar.

Quem vem me incomodar?

Sou eu — responde Mefistófeles.

Entra — responde Fausto.

Você tem de mandar três vezes — diz Mefisto.

Entra, entra — diz Fausto.

Mefisto, agora vestido com trajes de fidalgo, entra e pergunta se Fausto não quer também se vestir elegantemente com sua ajuda.

Não é o traje que vai diminuir o meu tormento — responde Fausto. — A minha existência tornou-se pesada carga. Desejo logo a morte.

Permita que eu te conduza pelo mundo e mostre os prazeres da vida — diz Mefisto, que se oferece a Fausto como criado, companheiro e o mais fiel dos servos.

E o que espera como pagamento? Pois sei que o diabo é um egoísta — diz Fausto.

Depois acertamos as contas — responde Mefisto. Quando estivermos do outro lado, deverás servir-me humilde e sereno.

Fausto então concorda:

O que me importa é a vida agora, o depois e o lá embaixo não me causam temores.

E, entusiasmado, lança a Mefisto um desafio:

Se conseguir só uma vez alucinar-me, aceito a aposta!

Feito! — concorda Mefisto. E animado: Mas quero um contrato assinado. Bastam duas linhas, e você assina com sangue. Aí, está fechado! — E adverte: Mas pensa bem, pois o diabo tem memória.

Sem pensar, Fausto arregaça a manga do braço esquerdo e Mefistófeles pica-lhe a veia. Fausto molha então a pena no seu sangue e assina com ela o pergaminho que Mefistófeles lhe apresenta. Em seguida, Mefistófeles ouve passos do lado de fora. É um estudante que há tempo aguarda na antessala do gabinete de Fausto para se aconselhar com o professor. Fausto se recusa a atendê-lo:

Não posso, de surpresa, abrir-lhe a porta agora — reclama.

Pobre rapaz — diz Mefistófeles —, está aí há tempo. Empresta-me o chapéu e a capa. Deixe que eu faça o professor, enquanto você se prepara para um bom passeio.

Vestido de Fausto, Mefisto deixa o estudante entrar. Este se apresenta, e diz:

Estou aqui há pouco tempo e venho, com total submissão, falar e conhecer

30

um homem

de quem só se fala com veneração

Mefisto agradece, irônico, e com tom sério, pergunta o que ele quer ser. Inseguro, o estudante explica:

Pois é justamente a respeito disso que vim me aconselhar.

Mefisto se empenha em confundi-lo, sugerindo inúmeras profissões, e diz:

A verdade é que a fábrica do pensamento é tal qual o ofício do tecelão, em que um passo move milhares de fios, as navetas cruzam de um lado a outro, os fios deslizam sem serem vistos e mil nós se formam de uma só vez.

O filósofo vem para demonstrar que é assim que deve ser.

Que o primeiro era assim, o segundo assim, e por isso o terceiro e o quarto são assado.

E não fossem o primeiro e o segundo, o terceiro e o quarto não seriam jamais.

Os alunos de toda parte louvam isso, mas nunca se tornam tecelões.

Não estou entendendo completamente — diz o estudante, confuso e assustado.

Vai melhorar com o tempo, quando aprender a reduzir tudo e a classificar devidamente — assegura Mefisto.

Isso tudo está me deixando um tanto zonzo, é como se uma roda de moinho girasse na minha cabeça. Já estou com vontade de ir embora — diz o estudante, e pede um registro no álbum.

Mefisto pega o álbum, escreve nele e o devolve. O estudante lê: “Eritis sicut Deus, scientes bonum et malum”,* depois se despede com reverência e vai embora atordoado.

Mefisto fica sozinho e fala satisfeito:

Um dia, com certeza, irá afligi-lo a semelhança divina.

Fausto entra e pergunta a Mefisto: Para onde será o passeio?

Para um lugar que te agrade muito. Podemos ir para onde quiseres — responde Mefisto.

Como vamos sair? Você tem cavalos, criados, carruagens? — pergunta Fausto.

Basta abrir o capote e voaremos pelo alto até remotas paragens — responde Mefisto, orgulhoso.

* “Serás como Deus, ciente do bem e do mal.” Gênesis 3, 5 citado em latim na edição orginal de Fausto.

This article is from: