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Discussão sobre literatura: linguagem e gênero

DISCUSSÃO SOBRE LITERATURA: LINGUAGEM E GÊNERO

Uma das manifestações artísticas do ser humano, a literatura é chamada de arte das palavras, pois representa comunicação, linguagem e criatividade em prosa e verso. Por intermédio da literatura, a realidade é recriada de modo artístico com o objetivo de proporcionar maior expressividade, subjetividade e sentimentos ao texto.

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“O texto repercute em nós na medida em que revele emoções profundas, coincidentes com as que em nós se abriguem como seres sociais”, conceitua Domício Proença Filho, em seu livro A linguagem literária. *

Mas nem todo texto possui linguagem literária. Uma reportagem, por exemplo, pode contar uma história que provoca reações e reflexões no público. Ela usa, porém, linguagem jornalística e seu conteúdo se limita aos fatos apurados pelo repórter. Ou seja, a função do texto é informativa e não literária.

“O que faz de um texto literatura é o tratamento que a ele se dá”, explicam Cinara Ferreira Pavani e Maria Luíza Bonorino Machado em seu livro Criatividade: atividades de criação literária. ** “Uma mesma frase pode expressar o que suas palavras indicam, literalmente, ou ir além, sugerindo significados que exigem um ato interpretativo por parte do leitor.”

* São Paulo: Ática, 2007, pp. 7-8. ** Porto Alegre: UFRGS Editora, 2003, p. 15.

Como existem vários tipos de produções literárias, os especialistas decidiram agrupá-las de acordo com suas características em comum. São os chamados gêneros literários. Entre eles estão biografia, teatro, poema, novela, história em quadrinhos. Ou seja, um fato pode ser contado sob formas diferentes, dependendo do gênero que se utiliza para contá-lo.

No caso de Fausto 1, trata-se de uma peça de teatro em versos, sendo classificada, portanto, como obra literária. Essa afirmação se fundamenta no fato de que o texto recria uma realidade, fazendo para tanto uso de lirismo e subjetividade, e essa característica pode ser notada logo na parte inicial da obra:

PRÓLOGO NO CÉU Certo dia, cercado de sua corte celestial, Deus conversava com seus três arcanjos, Rafael, Gabriel e Miguel, que elogiavam a obra divina, a Terra e os seus habitantes.

Mefistófeles, o anjo das trevas, conhecido por Mefisto, que também estava ali por perto, era de outra opinião. Dizia que a criação divina não tinha dado certo e que a Terra e os homens não valiam nada. (p. 9)

O clássico de Goethe já foi contado em história em quadrinhos, no livro Fausto: uma tragédia, *** que adaptou o enredo mas utilizou alguns dos diálogos originais do poema e manteve o ritmo das rimas originais.

*** São Paulo: Peirópolis, 2017.

Assim, a obra está classificada no gênero teatro, que pode ser definido como:

Um texto […] encenado em que os diálogos são os que mais bem imitam as situações reais. Neles os personagens conversam entre si para dar ao espectador a sensação de estar dentro da cena. […] A maneira como as coisas são ditas permite ao leitor fazer inferências sobre as características de cada personagem e compreender os conflitos da trama.****

Além disso, esse gênero se caracteriza por apresentar fatos, personagens e enredo dispostos em uma sequência linear (introdução, desenvolvimento, clímax e desfecho) e rubricas com tipografia diferente, diferenciando assim a descrição da cena das falas dos personagens.

Com essa definição em mente, mostraremos a seguir alguns exemplos que justificam a classificação do livro no gênero indicado.

Logo no início da obra, nas páginas 11 a 14, a descrição da cena e das falas do personagem já evidenciam suas características: um homem estudioso, com muito conhecimento mas insatisfeito com a vida:

Dr. Henrique Fausto está sentado em sua poltrona junto à escrivaninha, num quarto pequeno e abafado, entulhado de frascos por todos os lados e de livros corroídos por vermes, cobertos de pó. A parede é forrada, até

**** ROBERTO DA COSTA, S. Dicionário de gêneros textuais. Belo Horizonte: Autêntica, 2008, p. 201.

o topo da cimeira, com papel embolorado. Fausto, sonolento e irrequieto, balbucia, suspira e resmunga sozinho:

Ah, estudei até a exaustão a filosofia, a medicina e a jurisprudência e avidamente também a teologia, tudo com a maior paciência. Mas eis-me aqui, pobre ignorante, não mais sabido do que antes. Sou professor, doutor até. Há dez anos fico atrás dos meus alunos, sem parar. Estudar, estudar e estudar! Mas vi que não é possível saber, e isso dilacera o meu coração. Não temo nem o inferno nem o diabo. Porém, a alegria me foi roubada.

Inconformado com sua impotência e desiludido com a vida que, apesar de todo estudo, não lhe trouxe todo o conhecimento desejado, desabafa: A vida não me deu bens, muito menos dinheiro, nem honra, nem glória nesse mundo.

E mais adiante, nas páginas 47 e 50, o mesmo recurso conta sobre a personagem Margarida:

Completamente embriagado por sua beleza, Fausto fala com ela: Minha bela senhorita, será que posso ousar oferecer o meu braço para te acompanhar?

Margarida responde, encabulada: Não sou senhorita, nem bela, e posso ir para casa sozinha.

Encantado, Fausto segue-a com o olhar e fala para si: Que moça mais linda e formosa, tocou fundo o meu ser, parece tão boa e virtuosa, mas tem um quê de orgulhosa. O vermelho dos lábios, o brilho na face, jamais poderei esquecer. E seu jeito de querer fugir logo, aumenta mais o meu fogo. […] Aquela ali? Acabou de se confessar com o padre. Ele a absolveu de todos os pecados. Passei bem perto para ouvir, ela é pura e inocente. Não tinha por que se confessar. Sobre essa não tenho nenhum poder — diz Mefisto.

Nesses dois exemplos é possível notar também um recurso utilizado ao longo do livro e que caracteriza o gênero: texto em itálico para indicar o que está ocorrendo na cena ou a ação do personagem, e sem grifo para indicar a fala em si.

Ao longo do texto é possível notar descrições detalhadas que nos transportam para a cena, como neste exemplo da página 39:

Saindo do bar, Mefisto leva Fausto para conhecer a cozinha da bruxa. Um enorme caldeirão fumega sobre o fogão aceso. No vapor que sobe, diversas figuras estranhas tomam formas. Uma macaca cuida para que a espuma do caldo não transborde. O macaco e os filhotes estão sentados ao lado para se aquecerem. As paredes e o teto estão abarrotados com utensílios de feitiçaria.

Temos ainda a sequência lógica dos fatos: introdução, desenvolvimento, clímax e desfecho.

A introdução aparece na página 10, quando mostra-se o que a história pretende:

Você conhece Fausto? — Deus indagou.

O doutor? — o Diabo quis saber.

Minha ovelha! — respondeu Deus. Garanto que ele é bom e esforçado. Quando a muda cresce e verdeja, o jardineiro sabe que seus frutos serão bons.

Bons coisa nenhuma! — disse Mefistófeles com ar sarcástico. Pois eu garanto que se deixar o destino de Fausto por minha conta, o levarei para o mau caminho. Quer apostar?

O desenvolvimento ocorre nas páginas seguintes, quando se conta como Mefisto chegou até Fausto, como foi feito o acordo entre eles e a cláusula mais importante:

a alma de Fausto só será levada quando Mefisto criar uma situação de felicidade tão plena que faça com que o doutor deseje a eternidade daquele momento. Após Fausto conhecer Margarida, se apaixonar e começar a se relacionar com ela, surge o clímax da história: será que Fausto finalmente encontrará a felicidade que tanto procurava?

Acompanhado por Mefisto, Fausto, apaixonado, vai até a casa de Margarida. Mefisto começa a tocar cítara para fazer uma serenata e agradá-la.

Mas quem aparece é Valentim, o irmão de Margarida, que retornara da guerra e tinha ouvido falar que Margarida se perdera, que tinha envergonhado o nome da família, se entregando para um homem antes de se casar.

No embate, Fausto mata o irmão de Margarida e foge. Nesse meio-tempo, Margarida deu à luz o filho de Fausto, mas, em seu desespero, não vê alternativa senão matá-lo. É levada à prisão por cometer infanticídio. Fausto então se desespera, como mostra o trecho da página 60:

Ao ficar sabendo do infortúnio de Margarida, Fausto começa a gritar agoniado: É desesperador! Trancada no cárcere como criminosa, sofrendo torturas vis, a meiga, desgraçada criatura! Grita com Mefisto: Você foi longe demais! Espírito traidor, infame.

Acontece então o desfecho da história: Fausto implora a Mefisto que o ajude a salvar Margarida e o diabo decide ajudar o doutor. Ambos vão ao encontro da moça, mas ela se nega a aceitar ajuda, concluindo-se assim a história.

Aqui abre-se um porém: como a obra é dividida em duas partes, a autora achou por bem informar o final da história completa. Então, na página 77, vemos um resumo do segundo volume:

Na segunda parte, Margarida é recompensada por ter resistido ao diabo. Deus manda seus anjos descerem à Terra, tirar Margarida do cárcere e levá-la ao céu. Mas este ainda não é o final da história. Apesar de Fausto a princípio ter de fugir com Mefisto, ao final ele consegue se libertar dele, graças ao seu amor por Guida. No céu, Margarida pediu tanto a Deus que salvasse Fausto, que Deus acabou cedendo e permitiu sua entrada no céu. Os dois acabaram ficando juntos e Mefisto perde a aposta feita com Deus.

Portanto, ao recontar uma antiga lenda, Goethe acabou criando um clássico que trata de um tema universal – a busca do homem pela atribuição de significados à própria vida. Além disso, a contemporaneidade do assunto justifica não só sua fama como sua eternização ao longo do tempo.

Fausto, além de ser a obra simbólica da vida de Goethe, adquire também significado universal por materializar o mito do homem moderno, o homem que busca dar significado à sua vida, que precisa tocar o eterno e compreender o misterioso. Sob este

aspecto, o mito fáustico transforma-se em um “mito vivo”, um relato que confere modelo para a conduta humana.*****

A trama incentiva o leitor a se colocar no lugar do outro, a conhecer seu ponto de vista e suas motivações. Ao trazer ao leitor novos contextos, mundos e realidades por intermédio da leitura, a obra literária proporciona a compreensão das narrativas produzidas ao longo da história a fim de entender e ressignificar o presente, além de estimular a projeção do futuro. Ela incentiva ainda a imaginação e a criatividade e auxilia na ampliação de vocabulário e na construção de conhecimentos de múltiplas áreas do saber.

Há que se notar também a presença de questões atemporais nas entrelinhas da obra, como insatisfações, dúvidas e injustiças, aspecto que fornece elementos para uma reflexão mais do que necessária sobre a atualidade. Afinal, como defendeu o antropólogo e filósofo Edgar Morin, a literatura nos oferece antenas para entrar no mundo.

***** HEISE, E. Fausto: a busca pelo absoluto. In: Cult, disponível em: <https:// revistacult.uol.com.br/home/fausto-a-busca-pelo-absoluto/>. Acesso em: 26 nov. 2020.

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Fausto, o famoso personagem do poema homônimo do autor alemão Johann Wolfgang von Goethe (1749—1832), é um homem que estudou muito na vida e que conheceu muitas coisas. Ainda assim, não se dá por satisfeito e quer saber mais e mais da vida, do amor e da magia. Anseia por transformar-se numa espécie de divindade, igualar-se aos espíritos, e assim ter acesso ilimitado a todas as manifestações da natureza. Para isso, aceita qualquer coisa — até fazer um pacto com Mefistófeles, vulgo diabo, a quem entrega a alma em troca do conhecimento, do rejuvenescimento e do amor. Concluída pelo autor em 1806, a primeira parte do poema é agora especialmente adaptada para o público jovem.

ISBN 978-85-54177-05-8

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