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fausto 1 JOHANN W. VONRecontadoGOETHEpor CHRISTINE RÖHRIG a partir da primeira parte do poema de Johann Wolfgang von Goethe, e ilustrado por LÚCIA DE FIGUEIREDO

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fausto 1

JOHANN W. VON GOETHE São Paulo, 2021 recontado por Christine Röhrig a partir da primeira parte do poema dramático de J. W. von Goethe, e ilustrado por Lúcia de Figueiredo

© Texto 2006 Christine Röhrig © Ilustrações 2006 Lúcia de Figueiredo Não é permitida a reprodução desta obra, parcial ou integralmente, sem a autorização expressa da editora, da tradutora e da ilustradora. EDITOR DE ARTE: Marcos Brias ASSISTENTE DE ARTE: Bruna Marchi REVISÃO: Nelson Barbosa e Marina Constantino PRODUTOR GRÁFICO: Lívio Lima de Oliveira 1ª edição – 2021 Domo 72 Via das Samambaias, 102 – sala 04 Jardim Colibri / Cotia – SP – CEP: 06713-280 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Angélica Ilacqua CRB-8/7057 R634f Röhrig, Christine Fausto - 1 / original de Johann Wolfgang von Goethe; tradução e adaptação de Christine Röhrig; ilustrações de Lúcia de Figueiredo. – 1. ed. – São Paulo : Domo 72, 2021. 96 p.: 1.ISBN:il.978-85-54177-05-8Literaturainfantojuvenil brasileira 2. Teatro alemão – Adaptações I. Título II. Goethe, Johann Wolfgang von, 1749-1832 II. Figueiredo, Lúcia de 18-0850 CDD 028.5

Prólogo no céu 9 Noite 11 Em frente ao portal da cidade 18 No gabinete de estudos 22 Na taberna de Auerbach, em Leipzig 34 Cozinha da bruxa 39 Passeio 47 Noite 51 Casa da vizinha 53 Jardim 55 Num caramanchão no jardim 59 Noite – rua em frente à casa de Margarida 62 Noite de Valburga 63 Cárcere 70 Sobre Fausto 1 79 Sobre os autores 79 Contextualização da obra original 80 Contextualização da adaptação 81 Discussão sobre literatura: linguagem e gênero 82 sumário

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.1 para Nina e Oliver

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Mefistófeles, o anjo das trevas, conhecido por Mefisto, que também estava ali por perto, era de outra opinião. Dizia que a criação divina não tinha dado certo e que a Terra e os homens não valiam nada.

prólogo no céu Certo dia, cercado de sua corte celestial, Deus conversava com seus três arcanjos, Rafael, Gabriel e Miguel, que elogiavam a obra divina, a Terra e os seus habitantes.

10 Ao ouvir isso, Deus desabafou: Você não sabe falar outra coisa? Só sabe se queixar? Será que no mundo não há nada justo, exato ou perfeito? Não, Senhor! — respondeu Mefistófeles.

Tudo ali está muito malfeito e a pobre humanidade num eterno sofrer.

Você conhece Fausto? — Deus indagou. O doutor? — o Diabo quis saber. Minha ovelha! — respondeu Deus. Garanto que ele é bom e esforçado. Quando a muda cresce e verdeja, o jardineiro sabe que seus frutos serão bons. Bons coisa nenhuma! — disse Mefistófeles com ar sarcástico. Pois eu garanto que se deixar o destino de Fausto por minha conta, o levarei para o mau caminho. Quer apostar? Deus pensou um pouco e disse: Verdade, a ambição faz o homem errar. Mesmo assim, aceito o desafio.

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Terás liberdade irrestrita. Permito a dura experiência! Vamos ver se consegues afastá-lo da origem divina e conduzi-lo à vertigem. Mefisto então agradeceu a oportunidade de trabalhar com os vivos, e disse: Nunca gostei de me ocupar dos mortos. Aprecio o sangue vivo correndo nas faces. Para os coveiros, nunca estou em casa. Sou como o gato com o rato. Com essas palavras, o céu se fechou, os arcanjos se dispersaram e Mefisto desceu à Terra para encontrar-se com Fausto e tentar aproximar-se dele. † noite Dr. Henrique Fausto está sentado em sua poltrona junto à escrivaninha, num quarto pequeno e abafado, entulhado de fras cos por todos os lados e de livros corroídos por vermes, cobertos de pó. A parede é forrada, até o topo da cimeira, com papel embolorado. Fausto, sonolento e irrequieto, balbucia, suspira e resmunga sozinho:

12 Ah, estudei até a exaustão

13 exaustão a filosofia,

E segue reclamando, enquanto sua irritação só aumenta: Nem mesmo um cão viveria desse jeito! Por isso, entreguei-me à magia, para ver se consigo desvendar alguns mistérios.

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Inconformado, Fausto olha pela janela e pede ajuda à Lua. Depois começa a folhear um livro e, de repente, avista o misterioso sinal do Macrocosmo

Há dez anos fico atrás dos meus alunos, sem parar. Estudar, estudar e estudar! Mas vi que não é possível saber, e isso dilacera o meu coração.

14 a medicina e a jurisprudência e avidamente também a teologia, tudo com a maior paciência. Mas eis-me aqui, pobre ignorante, não mais sabido do que antes. Sou professor, doutor até.

Não temo nem o inferno nem o diabo. Porém, a alegria me foi roubada.

Inconformado com sua impotência e desiludido com a vida que, apesar de todo estudo, não lhe trouxe todo o conhecimento desejado, desabafa: A vida não me deu bens, muito menos dinheiro, nem honra, nem glória nesse mundo.

Que sinal mais belo! — exclama. Ah que encanto flui dessa visão! Como se transforma diante dos meus olhos. Como sobem e descem as forças celestes! Que espetáculo! Mas só espetáculo ainda.

Talvez eu consiga atraí-lo por meio de magia. Continua tentando, e vai se empolgando mais e mais: Já consigo sentir a sua presença. Todos os meus sentidos se agitam! Sinto todo meu coração entregue a ti! Aparece! Aparece! Ainda que me custe a vida! — grita Fausto, que agarra o livro e, com voz de mistério, pro nuncia algumas palavras mágicas.

Mal termina ele de proferir as palavras, uma chama vermelha corisca e, de repente, dela, o Espírito aparece demonstrando desa grado, e lhe diz com voz abafada: Quem me chama? Ao ver o Espírito, Fausto esquiva-se assustado e xinga:

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Aborrecido e desiludido, conclui: Eu consigo ver o sinal, mas não consigo entendê-lo. Segue folheando o livro e vê o signo do Espírito da Terra: Agora sim. Este signo da Terra está mais próximo, provoca um efeito diferente em mim!

Ao ouvir tais palavras, o Espírito solta um riso de escárnio, zomba do atrevimento de Fausto, e responde: Tu te igualas ao espírito que concebes, não a mim! Depois disso, a chama se apaga num estalo e o Espírito desaparece. Nesse mesmo instante, batem à porta. Fausto esbraveja aborrecido: Só pode ser Wagner, meu assistente!

Fausto abre a porta e entra seu assistente Wagner de roupão e touca de dormir, um lampião na mão. Fausto volta-se impaciente. Wagner, que admira muito o culto professor, diz animado:

16 Eca! Mas que semblante repugnante!

Bem agora que eu estava em contato com o Espírito ele tem de interromper!

Não suporto olhar para você!

Como assim? — pergunta o Espírito Primeiro me invocas com toda força, imploras querendo me ver. Atendendo ao teu pedido, cá estou, e agora foges tremendo, feito um verme retorcido pelo medo. Sentindo-se desafiado, Fausto recupera a coragem e diz: Fugir de quem, de ti, vulto em chama? Sou eu, Fausto, teu igual.

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Desculpe incomodar a essa hora!

Frustrado por não conseguir alcançar o mundo dos espíritos, Fausto aproxima a taça com veneno dos lábios, mas para ao ouvir um burburinho vindo da rua

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Irritado, Fausto, que não queria saber de conversa alguma, trata de se livrar de Wagner, mandando-o de volta para a cama. Depois se deixa cair cansado na poltrona e observa a estante cheia de livros e os objetos que se encontram em seu aposento, até mesmo uma caveira.

Ah, como eu gostaria de conhecer o mundo tão bem como o Espírito da Terra! Mas ainda estou aqui, preso nesse quarto, entulhado de coisas, e continuo sendo só um ser humano. Observa uma ânfora de cristal que contém veneno: Ah, se eu pudesse adormecer para sempre, e não acor dar nunca mais!

Ouvi o senhor declamando alto. Decerto lia uma tragédia grega. Se o senhor quiser, posso ficar aqui até o amanhecer para manter elevada conversação. Ou só estava estudando?

O badalar de sinos e o canto de um coro invadem o quarto anunciando a Páscoa. Fausto nem havia se dado conta de que já amanhecera. Olha pela janela e vê muitas pessoas com a roupa de domingo reunidas diante da entrada da cidade para festejar a Páscoa e a chegada da primavera. Não demora muito, e Fausto e Wagner também se juntam aos festejos. O dia está ensolarado, as moças passeiam alegres pelas ruas, entre estudantes, operários e soldados. Um mendigo canta e os transeuntes fazem coro.

Até Fausto, sentindo o coração mais aliviado e alegre, estranha-se: Como ainda há pouco eu estava tão triste e agoniado e agora, de repente, me sinto tão alegre e leve. E, suspirando, continua: Ai, ai, duas almas vivem em meu peito! Uma rude, que me arrasta aos prazeres da terra, e se apega a este mundo; e a outra que aspira à vida eterna e a seus antepassados… Fausto para de repente e Wagner pergunta, preocupado: O que foi? Por que está olhando desse jeito?

18 em frente ao portal da cidade

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Mas Wagner responde admirado: Não vejo nada além de um cão. Ele rosna e vacila, arrasta a barriga no chão, abana o rabo. Faz tudo que é próprio de um cão.

Não vês o cachorro preto ali perambulando? — pergunta Fausto.

Faz tempo que o vi, mas não dei importância — responde Wagner. Olha-o com atenção! Que animal te parece? — retoma Fausto. Para mim, não passa de um vira-lata preto — diz Wagner. Mas para Fausto parece ser mais que isso: Observa-o melhor, como fica rodando em espirais. Parece que se aproxima e se afasta de nós. E onde pisa, não tem um rastro de fogo?

Fausto chama o cão: Vem cá, vem! Wagner observa o cão e diz:

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Esse cão é um loucotanto

Fausto então acende o candeeiro. Como o cão não para de rosnar e de latir, ele diz: Para de latir e de uivar. Não dá para ficar aqui, lamento. A porta está aberta, vá embora. Fora!

Assim que entram, Fausto manda o cão ficar atrás do fogão, e diz: Logo, logo te darei carinho!

O cão não vai embora. E começa a se transformar, a crescer, a mudar de estatura, e Fausto pergunta, assustado: Mas o que está acontecendo? Que espécie de fantasma atraí a esta casa?

Se você fica parado, ele espera; se falamos com ele, avança; se perdermos algo, é capaz de encontrar e de nadar atrás de um pau se você o atirar na água.

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Você está certo — concorda Fausto —, é só um cão, não uma assombração.

O cão continua seguindo-os até a casa e entra atrás de Fausto em seu gabinete de estudos. no gabinete de estudos

Fausto pronuncia palavras mágicas para se defender: Salamandra, deves arder Ondina se torcer Sílfide Coboldodesaparecersofrer!

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Assim que acaba de falar, o cão se transforma em Mefisto, o diabo em pessoa, fantasiado de estudante. Fausto acha graça, e pergunta: Então era você que estava no cão? Estudante andarilho! Como te chamas? Meu nome é Mefistófeles — responde ele. Sou a parcela do além, a força que sempre quer o Mal e sempre cria o Bem! Sou o gênio que nega e destrói. Sou o diabo. Mas, vamos conversar em outra hora. Posso sair agora?

Fausto estranha o diabo pedir-lhe para sair:

Parece um hipopótamo, os olhos em brasa, horrível dentadura! Vou dominar-te, terrível criatura! A chave de Salomão é o melhor dos punhais.

25 Na verdade, não sei o que impedete

Ofereço a janela, a porta e a chaminé. Saia por onde quiser! Ao que lhe responde Mefisto: Não posso, porque esse obstáculo, o pé do feiticeiro que está na entrada, me impede de sair… — apontando para o pentagrama, a forma mais simples de estrela, traçada com uma única linha, chamada de “Laço Infinito”, que está desenhado à soleira da porta da casa de Fausto.

O cão não reparou quando entrou — diz Mefisto

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O pentagrama é a causa do teu pavor? — pergunta Fausto incrédulo. É que está mal feito. Uma das pontas ficou aberta — explica Mefisto. Isso é obra do acaso, algum engano, ao certo. Agora então és meu prisioneiro? — pergunta Fausto.

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E agora a coisa é diferente, o diabo não sai assim tão facilmente. Tem de sair por onde entrou. Sendo assim, podes ficar, não vou te libertar — sentencia Fausto

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Mefisto, porém, não se abala. Pronuncia umas palavras mágicas que fazem surgir, no mesmo instante, uns espíritos que rodeiam Fausto, cantando uma ladainha. Ele cai em sono profundo. Depois Mefisto diz: Oh, rei das ratazanas e dos ratos, das aves, dos sapos e animais daninhos, ordeno que saia do esconderijo para roer este canto do desenho e abrir o meu caminho!

Imediatamente surge uma ratazana enorme, que se põe a roer a ponta do pentagrama. Somente quando acorda é que Fausto per cebe que foi enganado, pois Mefisto já não se encontra mais ali. † Algumas horas depois, Fausto está em seu gabinete de estudos e, ao ouvir batidas na porta, pergunta: Quem bate? Pode entrar. Quem vem me incomodar? Sou eu — responde Mefistófeles. Entra — responde Fausto. Você tem de mandar três vezes — diz Mefisto.

Permita que eu te conduza pelo mundo e mostre os prazeres da vida — diz Mefisto, que se oferece a Fausto como criado, companheiro e o mais fiel dos servos.

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Entra, entra — diz Fausto. Mefisto, agora vestido com trajes de fidalgo, entra e pergunta se Fausto não quer também se vestir elegantemente com sua ajuda.

Não é o traje que vai diminuir o meu tormento — responde Fausto. — A minha existência tornou-se pe sada carga. Desejo logo a morte.

E o que espera como pagamento? Pois sei que o diabo é um egoísta — diz Fausto.

Depois acertamos as contas — responde Mefisto. Quando estivermos do outro lado, deverás servir-me humilde e sereno. Fausto então concorda: O que me importa é a vida agora, o depois e o lá embaixo não me causam temores.

E, entusiasmado, lança a Mefisto um desafio: Se conseguir só uma vez alucinar-me, aceito a aposta!

29 Feito! — concorda Mefisto. E animado: Mas quero um contrato assinado. Bastam duas linhas, e você assina com sangue. Aí, está fechado! — E adverte: Mas pensa bem, pois o diabo tem memória. † Sem pensar, Fausto arregaça a manga do braço esquerdo e Mefistófeles pica-lhe a veia. Fausto molha então a pena no seu sangue e assina com ela o pergaminho que Mefistófeles lhe apresenta. Em seguida, Mefistófeles ouve passos do lado de fora. É um estu dante que há tempo aguarda na antessala do gabinete de Fausto para se aconselhar com o professor. Fausto se recusa a atendê-lo: Não posso, de surpresa, abrir-lhe a porta agora — reclama. Pobre rapaz — diz Mefistófeles —, está aí há tempo.

Empresta-me o chapéu e a capa. Deixe que eu faça o professor, enquanto você se prepara para um bom passeio.

Vestido de Fausto, Mefisto deixa o estudante entrar. Este se apre senta, e diz: Estou aqui há pouco tempo e venho, com total submissão, falar e conhecer

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31 um homem de quem só se fala veneraçãocom

Não estou entendendo completamente — diz o estudante, confuso e assustado Vai melhorar com o tempo, quando aprender a reduzir tudo e a classificar devidamente — assegura Mefisto.

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O filósofo vem para demonstrar que é assim que deve ser. Que o primeiro era assim, o segundo assim, e por isso o terceiro e o quarto são assado. E não fossem o primeiro e o segundo, o terceiro e o quarto não seriam jamais. Os alunos de toda parte louvam isso, mas nunca se tornam tecelões

Mefisto se empenha em confundi-lo, sugerindo inúmeras profissões, e diz: A verdade é que a fábrica do pensamento é tal qual o ofício do tecelão, em que um passo move milhares de fios, as navetas cruzam de um lado a outro, os fios deslizam sem serem vistos e mil nós se formam de uma só vez.

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Mefisto agradece, irônico, e com tom sério, pergunta o que ele quer ser. Inseguro, o estudante explica: Pois é justamente a respeito disso que vim me aconselhar.

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Mefisto pega o álbum, escreve nele e o devolve. O estudante lê: “Eritis sicut Deus, scientes bonum et malum”,* depois se despede com reverência e vai embora atordoado.

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Mefisto fica sozinho e fala satisfeito: Um dia, com certeza, irá afligi-lo a semelhança divina. † Fausto entra e pergunta a Mefisto: Para onde será o passeio? Para um lugar que te agrade muito. Podemos ir para onde quiseres — responde Mefisto. Como vamos sair? Você tem cavalos, criados, carruagens? — pergunta Fausto. Basta abrir o capote e voaremos pelo alto até remotas paragens — responde Mefisto, orgulhoso. * “Serás como Deus, ciente do bem e do mal.” Gênesis 3, 5 citado em latim na edição orginal de Fausto

Isso tudo está me deixando um tanto zonzo, é como se uma roda de moinho girasse na minha cabeça. Já estou com vontade de ir embora — diz o estudante, e pede um registro no álbum.

34 na taberna de auerbach , em leipzig Já é tarde da noite, e não longe dali um grupo de estudantes está reunido numa adega, conhecida como Taberna de Auerbach, be bendo e se divertindo. Alguns já estão embriagados, cantam alto e debocham dos outros. É para lá que Fausto e Mefisto se dirigem em seu primeiro passeio. Sentado com outros ao redor de uma mesa, um estudante lamenta o fora que levou da amada. O outro bate o caneco na mesa e canta: Vivia um rato no porão Era só manteiga e banha na maior mordomia Logo cresceu um barrigão… Apontando para a alegria do grupo, Mefisto diz: Aqui, todo dia é uma festa. Viu como a vida pode ser vivida facilmente? Observa como se comportam. Os dois entram e se sentam. Um dos estudantes cisma com eles e comenta em voz alta: Vestidos desse jeito, mais parecem comediantes. Ao que Mefisto fala em voz baixa para Fausto: Está Nuncavendo?percebem a presença do diabo, por mais perto que esteja.

Provocação vai, provocação vem, Mefisto também resolve cantar uma canção: Era uma vez um rei Que tinha uma pulga de estimação Criada como uma filha Com amor e dedicação… Mas se uma amiga pica Como é que a gente fica? Os estudantes cantam em coro: Como é que a gente fica? Esmaga-se a maldita.

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Todos cantam e, empolgados, continuam bebendo. Não demora para Mefisto iniciar uma de suas diabruras: Esse vinho está com gosto esquisito — reclama, falando alto — Quero oferecer-lhes uma bebida do meu barril. Só preciso de uma ferramenta para furá-lo. Achando graça, um dos estudantes busca a tal ferramenta. Sen tam-se ao redor da mesa, e Mefisto pergunta o que querem beber. A cada pedido, ele perfura a mesa, tampa o furo com cera de vela e fala umas palavras mágicas. Depois, pede que a pessoa ponha o copo debaixo do furo, tire o lacre de cera e desfrute a bebida. Mefisto adverte para tomarem cuidado para não derramar. Mas Siebel, um dos estudantes, está muito bêbado, e, sem cuidado,

36 deixa o vinho escorrer e derramar pelo chão

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Imediatamente

No mesmo instante, os estudantes começam a delirar. Brander segura Siebel pelo nariz, pensando estar colhendo uvas. Os outros fazem o mesmo e levantam os braços com as facas nas mãos. Mefisto pronuncia mais umas palavras e desaparece com Fausto, montados num barril. Quando os estudantes acordam do feitiço, uns segurando os narizes dos outros, ficam enfurecidos ao perceberem que foram enganados. Para onde foram aqueles sujeitos? — pergunta Siebel.

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o vinho derramado transforma-se em fogo. Assustado, ele grita: Socorro! Fogo! Fogo! Alten, outro estudante, diz: Estou ficando com medo. Ele está com o demônio. Feitiço, feitiço — grita.

Os estudantes pegam as facas e avançam sobre Mefistófeles, que pronuncia as palavras mágicas: Palavra e imagem se alternando Sentido e lugar mudando Estejam aqui e lá!

Depois dizem que não se deve acreditar em feitiço, mas eu vi os dois saindo daqui montados num barril, a galope, como se fosse num cavalo — diz Altmayer.

cozinha da bruxa

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Um enorme caldeirão fumega sobre o fogão aceso. No vapor que sobe, diversas figuras estranhas tomam formas. Uma macaca cuida para que a espuma do caldo não transborde. O macaco e os filhotes estão sentados ao lado para se aquecerem. As paredes e o teto estão abarrotados com utensílios de feitiçaria

Fausto, assustado, diz: Tenho horror à feitiçaria. Nesse covil imundo de objetos estranhos prometes que acharei alguma melhoria? Terei de consultar essa velha e essa poção nojenta vai fazer que eu rejuvenesça trinta anos? Mefisto acalma Fausto: Sem dinheiro, esforço ou privação, de todos os que conheço, é este o melhor meio de viver oitenta anos com saúde perfeita. Para isso, devemos à bruxa recorrer! Fausto pergunta: Por que precisamos da velha? Você não sabe preparar a poção?

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Saindo do bar, Mefisto leva Fausto para conhecer a cozinha da bruxa

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Mas para isso não basta só arte e ciência. Antes de tudo é necessário ter paciência.

Só o tempo dá à droga o efeito desejável.

Pode existir alguém tão bela? Vive uma moça assim na Terra? Claro que sim, pois Deus não trabalhou duro durante seis dias? E no sétimo não estava

O diabo ensina a produzir, mas ele mesmo não deve preparar.

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Até que seria um belo passatempo — responde Mefisto.

E os macacos respondem, cantando: Foi comer, deu no pé, saiu pela chaminé

Mefisto pergunta aos macacos: A bruxa não está em casa?

Enquanto Mefisto conversa com os animais e é convidado pelo macaco a jogar uma partidinha de dados, Fausto olha num espe lho e se espanta com o que vê: O que vejo aqui nesse espelho mágico? A imagem de uma linda mulher?

Fausto pergunta: Mas onde está a bruxa?

Fausto não consegue sair da frente do espelho: Pobre de mim agora! O meu peito arde e está em chamas! Vamos sair logo daqui — diz.

Nesse instante, uma enorme labareda de fogo sobe do caldeirão até a chaminé, e, no meio das chamas, despenca a bruxa soltando gritos medonhos: Ai! Ai! Ai! Ai! Animal, sai! Sai daqui, vai! Mas que imbecil! Então não viu? Tem de cuidar! Para não queimar! Ela olha para Fausto e Mefistófeles, e diz: Mas o que é isso? Quem são vocês? Deem o sumiço! Fora daqui! — ameaça ela, enquanto mete a colher no caldeirão e espalha chamas na direção deles.

Eu vou te apresentar um lindo tesourinho desses.

41 felicíssimo com o resultado? — responde Mefistófeles.

Ao presenciar tamanho desaforo, Mefisto é tomado pela fúria e começa a quebrar o que vê pela frente, dizendo: Espatifa! DerramoEspatifa!esseseu caldeirão. Estilhaço o vidro no chão.

42 Quer brincar mais?

43 Ou assim já está bom?

Ao perceber que tinha dado um fora, que quem estava ali era o diabo em pessoa, a bruxa tenta se desculpar: O senhor perdoe o mau jeito.

É que eu não reparei direito. Mas onde estão seus pés de besta? Também não vejo os seus dois corvos! Bem, dessa vez passa, afinal, já faz tempo que não nos vemos — diz Mefistófeles. Cansei dos meus pés de animal, coloquei calcanhares falsos. Mas vamos ao que interessa. Quero que sirvas o caldo rejuvenescedor ao meu amigo.

Com todo prazer — diz a Bruxa. Imediatamente começa a fazer um ritual. Desenha um círculo com gestos amplos e coloca um monte de elementos mágicos no centro. Os copos e os vidros começam a tilintar e as panelas e caçarolas a tocar uma música. Depois traz um enorme livro de bruxarias, faz os macacos servirem de apoio, coloca o livro nas costas deles e manda que segurem umas tochas. Em seguida, pede que Fausto também se coloque no centro, e aí, com grande ênfase, começa a ler a tabuada das bruxas:

Não estás me reconhecendo? Oh, carcaça! Aberração! Sou eu, teu mestre e teu patrão! Devia te cobrir de pancadas e acabar com os teus animais!

A feiticeira recua cheia de espanto e horror, e Mefisto grita:

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45 Pense com Transformerapidez.oumno dez E largue o dois de vez Vá logo para o três Assim fazem os reis A bruxa está mandando O quatro sair voando Pular o cinco e o seis Fazer o sete e o oito E não ser nunca afoito O nove é um O dez nenhum É esta a tabuada. Irritado, Fausto comenta: Essa velha está delirando! Isso é só o começo! Vai declamar o livro todo! Já tentei, mas não tem jeito. É indecifrável aos sábios e imbecis — explica Mefisto. E a bruxa continua: A ÉDapotênciaciênciainvisívelao mundo! Para se acessar Não se pode pensar É só respirar fundo!

Fausto interrompe novamente: Mas que bobagem é essa agora? Minha cabeça está explodindo. Parece que tem um coro dentro dela de dez mil imbecis falando ao mesmo tempo.

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Mefisto se apressa em sair dali com Fausto e não permite que ele olhe mais uma vez no espelho para ver a linda moça. Vem, vamos embora. Logo mais você vai encontrar a mais linda de todas as mulheres.

A bruxa obedece e oferece a poção mágica numa taça. Em segui da, desfaz o círculo.

Mefisto então manda a bruxa parar: Chega! Acaba logo com isso. Dá a poção ao meu amigo. A bebida não fará mal a ele. É fino e graduado. Está habituado.

Completamente embriagado por sua beleza, Fausto fala com ela: Minha bela senhorita, será que posso ousar oferecer o meu braço para te acompanhar?

47 passeio

Margarida responde, encabulada: Não sou senhorita, nem bela, e posso ir para casa sozinha. Encantado, Fausto segue-a com o olhar e fala para si: Que moça mais linda e formosa, tocou fundo o meu ser, parece tão boa e virtuosa, mas tem um quê de orgulhosa. O vermelho dos lábios, o brilho na face, jamais poderei esquecer. E seu jeito de querer fugir logo, aumenta mais o meu fogo.

Desesperado, ele diz para Mefistófeles:

Mal eles colocaram o pé na rua, uma menina chamada Marga rida, parecidíssima com a imagem que Fausto acabara de ver no espelho, passa por eles.

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49 Você tem de dar um jeito de me aproximar dessa moça!

Passou agora mesmo — responde Fausto.

Passei bem perto para ouvir, ela é pura e inocente. Não tinha por que se confessar. Sobre essa não tenho nenhum poder — diz Mefisto. Com ela não dá para ser depressa. De nada adianta força, é preciso astúcia. Mas para que você não fique triste, prometo te levar ainda hoje ao quarto dela.

Aquela ali? Acabou de se confessar com o padre. Ele a absolveu de todos os pecados.

E ela estará lá? — pergunta Fausto animado. Não — responde Mefistófeles —, ela estará na casa de uma Enquantovizinha.issoestarás sozinho com toda a esperança de alegrias futuras. Fausto diz: Vamos então. Mas trata de me arrumar um presente para dar a ela. Mefisto aceita: Estamos combinados!

50 Qual? — Mefisto quer saber.

Impelia-me somente um desejo de prazer e sinto-me derreter em sonho de amor! Seremos nós um joguete de cada pressão do ar?”

Fausto é interrompido por Mefistófeles, que avisa que ela está chegando. Mefistófeles traz consigo uma caixinha de joias, e diz: Tirei esta caixinha de outro lugar. Basta colocá-la aqui neste armário e

Conheço alguns lugares bons e belos Onde há velhos tesouros enterrados.

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Margarida está em seu quarto e trança os cabelos enquanto sonha acordada: Eu daria alguma coisa em troca para saber quem era o senhor que vi hoje. Parecia ser nobre — deu para perceber. Senão ele não seria tão ousado. Depois de arrumada, sai para ir à casa da vizinha. Assim que sai, Fausto e Mefistófeles entram sem fazer barulho.

Fausto pede para ficar sozinho no quarto e, encantado, passa um tempo observando cada detalhe, e começa a pensar: “Será um aroma mágico que me envolve aqui?

É só procurar um pouco — e sai. noite

52 prometo que ela perderá os sentidos.

Pois tem coisas ali dentro para conquistar uma princesa. Ele guarda a caixinha no armário e, assim que saem, chega Margarida com uma lâmpada: Está tão quente e abafado aqui — ela abre as janelas — e não está quente lá fora. Sinto calafrios por todo corpo. Que medrosa que sou. Ela começa a cantar enquanto tira o agasalho. Ao guardá-lo no armário, encontra a caixinha: Como esta caixinha linda veio parar aqui? Tenho certeza que tranquei o armário. Que terá aí dentro? — abre a caixa — Uma joia! Com ela até uma princesa poderia passear no feriado. Coloca o colar e os brincos e vai diante do espelho. Empolgada e temendo ser apanhada com as joias pela mãe, Margarida corre até a casa de Marta, a vizinha

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53 na casa da vizinha Margarida mostra as joias para Marta: Dona Marta, estou com os joelhos tremendo! É que encontrei essa caixinha, está vendo? Cheia de coisas lindas dentro. Marta então previne: Não conte para sua mãe, não; ela entregaria em confissão. Pena que não posso usar, na igreja ou outro lugar — lamenta Margarida. Vem sempre me visitar e aqui poderás usar; dá umas voltinhas na frente do espelho e vamos ter com que nos alegrar — incentiva Marta. Batem à porta. Surge Mefisto, que trata logo de se aproximar da solitária dona Marta, trazendo a notícia da morte de seu marido. Quisera eu não ser portador de notícia tão ingrata! — diz Mefisto e prossegue: — Espero que não queira me Seucastigar.marido está morto e manda lhe saudar. Está morto? Ai, vou morrer de dor — desabafa Marta.

Não desperdiçando a oportunidade de aproximar Fausto de Margarida, Mefisto, de pronto, se dispõe a ajudar, e diz: Duas testemunhas bastam para que se estabeleça a verdade. Tenho um amigo muito distinto, que dará o depoimento diante do juiz. Posso trazê-lo aqui?

Madame, sinto muito — diz Mefisto. Mas ele próprio não dispersou nenhum tostão. Estava muito arrependido dos erros de fato e ainda lamentava seu destino ingrato. Reparando em Margarida, ele diz: Estás pronta para o casamento, tens graça. És digna de ser amada. A viúva pede a Mefisto: Gostaria muito de ter um atestado de morte para poder publicar seu nome no semanário

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Marta quer saber se Mefisto trouxe algo do marido e, ao ouvir que ele nada lhe mandara, desabafa: Nem sequer uma lembrancinha? Um agrado?

Margarida consola a amiga, e Mefisto diz que o último desejo do marido era que mandasse rezar trezentas missas por ele.

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Aquilo que tem na sacola de qualquer coitado, reservado para um dia ser lembrado?

55 Faça isso, sim — responde Marta.

E a moça estará aqui também? — pergunta Mefisto, dirigindo-se a Margarida: É um bom rapaz, muito viajado e trata as senhoritas com muito agrado.

Reconheceste a mim, meu anjinho, logo que pisei no jardim? — pergunta Fausto a Margarida. Então não notaste? Baixei os olhos no mesmo instante — responde ela.

Envergonhada, apanha uma flor bem-me-quer

Ali no jardim, atrás da casa, encontraremos os senhores à tarde — Marta se apressa em dizer jardim No dia seguinte, conforme combinado, todos se encontram no jardim de Marta. Margarida passeia de braço dado com Fausto, e Marta e Mefistófeles caminham juntos de um lado a outro.

56 e desfolha uma pétala após outraa

.

É só uma brincadeira — diz ela enquanto tira as pétalas mur murando a meia voz — bem-me-quer… mal-me-quer… — arranca a última pétala com enorme alegria e grita — Sim,bem-me-quer!minhamenina!

58 O que é isso? Um buquê — Fausto quer saber.

Que essa palavra floral seja a expressão divina: Ele te quer! — declama Fausto enquanto toma-lhe as duas mãos. Estou tremendo — diz Margarida. Não tremas! — diz Fausto, querendo acalmá-la — Deixa que este olhar, que este aperto de mão te diga o impronunciável: a entrega absoluta e o gozo, que deve ser eterno! Margarida aperta as mãos dele, desprende-se e foge. Fausto fica um instante absorto em pensamentos, depois a segue Começa a anoitecer e Marta e Mefistófeles também se despedem.

Marta pergunta: E o nosso casalzinho? Saiu voando, ali atrás dos arbustos. Passarinhos travessos! — responde Mefistófeles. Parece que ele está gostando dela — provoca Marta.

fala de sua casa, do seu irmão, que é soldado e está na guerra. Conversa vai, conversa vem, trocam galanteios, e ela, que é muito devota, pergunta: Diz-me uma coisa, Henrique. Como és com a religião? És um homem amável e bom, mas acho que não tens muita devoção.

59 E ela dele também. Esse é o curso do mundo — retruca Mefistófeles com ar de malícia. num caramanchão no jardim No dia seguinte, Margarida e Fausto se encontram no caraman chão do Apaixonada,jardim.Margarida

Deixa disso, menina — rebate Fausto. Você já sente que sou bom? Você acredita em Deus? — pergunta Guida. Minha menina — diz Fausto —, quem é que pode nomeá-lo? Quem pode declarar, quem ousaria sentir e se expor dizendo: “eu não acredito nele”?

Fausto dá voltas, enrola, até que Margarida, pressentindo algo errado, diz: Ouvindo até que parece razoável, mas tem uma coisa torta. Essa pessoa que anda com você me incomoda. Costumo gostar das pessoas; mas toda vez que tenho vontade de te ver, lá no fundo sinto pavor enorme desse sujeito. Penso que não presta. Que Deus me perdoe se estiver enganada.

60

Dá o nome a ele que quiseres, chama-o de sorte! Coração! Amor! Deus! Eu não tenho nome para isso, sentimento é tudo. Nome é som e fumaça que encobre o ardor celeste.

Fausto acalma-a dizendo: Você é um anjo sensível, mas isso já é antipatia. Mefisto só é meio esquisito, como outros tantos.

Os dois se beijam, trocam juras, e Fausto pergunta: Será que nunca terá jeito de passar ao teu seio uma horinha sossegada?

Margarida concorda, e pergunta: Isso não fará mal a ela, fará?

Fausto então propõe dar umas gotas de sonífero à mãe: Ah, meu anjo, não há perigo.

61

Toma esse frasquinho, bastam três gotinhas em sua bebida para envolvê-la num sono profundo, de agradável natureza.

Seduzida, Margarida responde: Ah, se eu dormisse sozinha Eu bem que deixaria a tramela da porta aberta para ti; mas o sono da minha mãe não é pesado. E se ela nos apanhasse, eu morreria no mesmo instante.

Fausto garante: Se fizesse, eu não te indicaria.

Acontece que, na verdade, Mefisto colocou veneno em vez de sonífero no frasco e, em consequência disso, a mãe de Margarida morre. Margarida sofre e sente-se muito culpada. Além de tudo, percebe que está grávida.

Valentim avança em Fausto, dizendo: Não sairá vivo daqui — desembainha a espada e parte para cima de Fausto. Mefistófeles põe lenha na fogueira, instigando Fausto a lutar, e diz: Doutor, não se esquive! Anda, luta que eu te ajudo a vencer.

Contrariado, Fausto tem de se defender e, diante da força do diabo, Valentim não tem nenhuma chance; logo cai mortalmente ferido no chão, trespassado pela espada de Fausto, que foge às pressas junto com Mefisto.

62 noite – rua em frente à casa de margarid a Acompanhado por Mefisto, Fausto, apaixonado, vai até a casa de Margarida. Mefisto começa a tocar cítara para fazer uma serenata e agradá-la. Mas quem aparece é Valentim, o irmão de Margarida, que retornara da guerra e tinha ouvido falar que Margarida se perdera, que tinha envergonhado o nome da família, se entre gando para um homem antes de se casar.

63 noite de valburga Mefisto transporta Fausto até as montanhas mais distantes, pas sando por pântanos e florestas. É a noite de Valburga. Todos os anos, na noite entre o dia 31 de março e 1º de abril, os demônios e as feiticeiras se reúnem na montanha para namorar, e Mefisto reina entre eles. Fausto e Mefisto chegam à montanha e, de quando em quando, encontram bruxas que cantam em coro e dançam. Estão no meio de uma confusão de luzes, vozes e aparições. Uma das bruxas convida Fausto para dançar e ele escolhe uma moça jovem e linda para ser seu par. Dança todo animado mas, de repente, se afasta. Mefisto se aproxima, e pergunta: Por que você deixou a mocinha, que canta tão alegre enquanto dança? É que, enquanto cantava, um rato vermelho pulou de sua boca — responde Fausto enojado. Mas isso não é motivo! Quem liga para isso na hora do prazer! Só não pode ser de cor cinzenta — responde Mefisto.

Além disso, eu vi

uma criança pálida,

Grita com Mefisto: Você foi longe demais! Espírito traidor, infame. Escondeu isso de mim! Fica aí, fica! Revira teus olhos diabólicos em fúria na tua cabeça! Fica e me provoca com tua presença insuportável! Aprisionada! Na dor irremediável!

Ela não consegue sair do lugar, parece que os pés estão presos numa corrente.

.

66 sozinha, em pé, ali na frente.

Ao ficar sabendo do infortúnio de Margarida, Fausto começa a gritar agoniado: É Trancadadesesperador!nocárcere como criminosa, sofrendo torturas vis, a meiga, desgraçada criatura!

Nesse meio-tempo, Margarida deu à luz o filho de Fausto, mas em seu desespero não vê outra saída senão matá-lo. É levada à prisão por cometer infanticídio.

Qualquer um ali vê a imagem da amada. Você tem razão, agora acho que estou vendo também. Venha, vamos embora daqui — explica Mefisto. †

Deve ser uma miragem!

E ela se parece muito com Margarida — diz Fausto

Nas mãos dos maus espíritos e do ser humano justiceiro e insensível! Enquanto me enchias de alegrias e prazeres, deixavas ela apodrecer indefesa!

67

Maior dos sedutores! — interrompe Mefistófeles provocativo.

Ela não é a primeira! — provoca Mefistófeles sem se abalar.

Estás chegando ao fim da tua anedota, naquele ponto onde os senhores costumam perder a cabeça.

Por que te associas a nós se não tens expediente para negociar? Queres voar e tens vertigem.

Ei! Fomos nós os oferecidos ou foste tu?

Não arreganhe esses dentes famintos para mim, que me dá nojo! — grita Fausto e implora — Salva-a! Depois ameaça: Que a mais terrível maldição caia sobre ti, por milhares de anos. Não posso dissolver o bando de vingadores e libertá-la. Além disso, você não pode aparecer na cidade.

Fausto continua, gritando: Cão! Monstro abominável! Não é a primeira! Eu aqui sofrendo por uma e você ainda se diverte pelo infortúnio de milhares!

68

69 Esqueceu que você é assassino?um

Fausto aproxima-se dela e sussurra:

acaba aceitando ajudar, e diz: Está bem, então.

Vou turvar os sentidos do carcereiro enquanto você pega a chave dele e a tira de lá. Depois vou ficar esperando com os cavalos preparados para a fuga. É o que posso fazer.

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Vamos então! — concorda Fausto. cárcere No meio da noite, Fausto e Mefisto atravessam o campo aberto galopando em cavalos negros.Vão até o cárcere libertar Margarida. Chegando lá, com a ajuda de Mefisto, Fausto consegue abrir a porta de ferro da cela e encontra Margarida sentada no chão, de sesperada, tentando se esconder, delirando.

Ai, ai! Estão chegando! Ó morte amarga! — diz Margarida em seu desespero.

Também isso devo a ti! Assassinato e morte de um mundo sobre ti, monstro! Leva-me até lá, estou dizendo, e liberta-a! — ordena MefistófelesFausto.

Que matou o irmão dela? — diz Mefisto.

Guida, Guida! Sou eu! Quieta! Eu venho para te libertar. Fausto pega as correntes dela para destrancá-las, mas Margarida se defende: Sai! Meia-noite ainda! Carrasco, amanhã de manhã já não basta? Deixa! — diz Fausto, aflito. Margarida, ainda sem reconhecer Fausto, contorce-se diante dele e implora: Tem piedade de mim e deixa-me viver! Sou tão jovem, tão jovem, era bela, sou só uma pobre menina. Olha estas flores, dá uma olhada na grinalda. Tem piedade de mim! O que foi que eu fiz? Nunca te vi. Ela está delirando e eu não consigo evitar — diz Fausto, Masdesesperado.Margarida continua em seu delírio: Vê a criança! Tive de dar de mamar; estava comigo ainda agora! Arrancaram-na de mim e falaram que eu a matei. Não é verdade.

71

72

Fausto agarra-a e diz: Minha amada! Margarida afunda a cabeça em seu colo e se esconde. Levanta, querida! — diz Fausto. Seu assassino será teu libertador. Levanta! — Destranca a corrente de seu braço — Vem, vamos escapar desse terrível destino. Margarida, recostada nele, pede: Beija-me! Fausto tenta apressá-la, mas ela continua pedindo que a beije: Beija-me! Não sabes mais beijar? O quê? És meu Henrique e desaprendeste a beijar? Henrique, beija-me senão beijo-te eu! — abraça-o e beija-o Nossa!. Os teus lábios estão frios! Não respondem!

Fausto atira-se aos pés dela e diz: Guida! Ao ouvir seu nome, Margarida ergue-se e pergunta: Onde está ele? Ouvi o seu chamado, ele chamava: Guida! Ele estava me chamando. Onde está ele?

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Fausto tenta tirá-la dali: Vem, vem! Não estás me sentindo? Não me ouves? Vem! Sou eu, vou te libertar. Lá para fora? — pergunta Margarida.

Liberdade — diz Fausto. Lá para fora? Nem se me derem o mundo — diz ela. A porta está aberta, não demora! — implora Fausto, e tenta levá-la à força. Margarida se nega, dizendo: Eu grito bem alto, tão alto que todos vão acordar!

O dia está clareando. Oh, querida! Querida! — diz Fausto aflito. Mefistófeles aparece à porta e diz: Andem! Ou estarão perdidos. Está amanhecendo! Ao ver Mefisto, Guida diz: Esse aí! Esse! Deixa-o!

74 Manda - o embora daqui!

75 daqui! Não, não!

76 Adeus para todo sempre! Adeus, Henrique! Fausto abraça-a e diz: Não vou te deixar. Ó anjos Estoupreservaisagrados,minhaalma!commedodeti, Henrique — diz Guida. Mefistófeles então sentencia: Ela está condenada! — e chama Fausto para ir embora. Os dois desaparecem, a porta se fecha rangendo, e lá de dentro ouve-se ecoando: Henrique! Henrique! † Assim termina a primeira parte da história.

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Na segunda parte, Margarida é recompensada por ter resistido ao diabo. Deus manda seus anjos descerem à Terra, tirar Margarida do cárcere e levá-la ao céu. Mas este ainda não é o final da his tória. Apesar de Fausto a princípio ter de fugir com Mefisto, ao final ele consegue se libertar dele, graças ao seu amor por Guida. No céu, Margarida pediu tanto a Deus que salvasse Fausto, que Deus acabou cedendo e permitiu sua entrada no céu. Os dois acabaram ficando juntos e Mefisto perde a aposta feita com Deus.

Johann Wolfgang von Goethe nasceu na Alemanha em 1749 e morreu em 1832, aos 82 anos. Além de ser um dos mais importantes nomes da literatura alemã e do Romantismo europeu, Goethe foi cientista, filósofo e botânico. Autor de ampla produção literária, levou vários anos para desenvolver e completar a obra Fausto, que é dividida em duas partes: a primeira e mais celebrada delas foi escrita no ano de 1808; a segunda só foi completada no ano de sua morte. Neste livro, a primeira parte desse clássico da literatura mundial foi recontada de maneira atual e contemporânea por Christine Röhrig e ilustrada por Lúcia de Figueiredo.

SOBRE OS AUTORES

Esta seção tem como finalidade contextualizar o autor, a obra e seu gênero literário. Para isso, apresenta remos uma breve biografia dos autores e suas motivações para escrever a obra. Em seguida, indicaremos o gênero literário do texto, bem como as características que o definem, exemplificando-as para melhor compreensão e aprofundamento.

79 s obre F austo 1

Lúcia de Figueiredo estudou belas-artes e comunicação visual no Brasil, mas em 1980 mudou-se para Frankfurt, na Alemanha, a fim de estudar litografia com Christian Kruck. Atualmente trabalha como artista plástica e já participou de várias exposições coletivas em países como França, Hungria, Egito, Croácia e também Alemanha, onde mora até hoje.

CONTEXTUALIZAÇÃO DA OBRA ORIGINAL

80 Christine Röhrig estudou jornalismo e se especiali zou em tradução de textos de teatro alemão. Há muitos anos coordena edições de livros, tanto infantojuvenis como adultos, e escreve peças de teatro.

A obra conta a história do erudito Professor Doutor Fausto, que faz um pacto de sangue com Mefistófeles – o diabo –, oferecendo sua alma em troca da conquista de suas grandes ambições – conhecimento, juventude e amor. A inspiração de Goethe para criar a obra tomou como base uma lenda medieval, de autor desconhecido, que sempre mobilizou vasta repercussão na Europa. A história circu lou primeiro nas tradições orais da literatura, depois em edições impressas até chegar à peça Tragical History of Doctor Faustus (“História trágica do Doutor Fausto”), do dramaturgo inglês Christopher Marlowe, que foi editada em 1604. O texto de Marlowe foi encenado em teatros amadores na Alemanha e diz-se que tenha sido entre 1768 e 1770 que Goethe entrou em contato com tais encena ções da peça.

Neste Fausto 1, adaptado para o público jovem por Christine Röhrig, o texto se manteve o mais próximo possí vel do original em alemão, por vezes reproduzindo trechos consideráveis da composição de Goethe. A divisão e o título das cenas também são idênticos ao poema de 1808. Tamanha é a relevância de Goethe para a escola român tica alemã que o encerramento do período é marcado pela data de sua morte.

81

CONTEXTUALIZAÇÃO DA ADAPTAÇÃO

Goethe trabalhou durante sessenta anos na obra completa, portanto passou por muitas transformações e influências ao longo desse processo: diversos períodos literários, suas atividades no meio teatral junto ao Estado, seus estudos científicos nas áreas de botânica e mineralo gia, além de seus estudos filosóficos nas áreas de teologia, teosofia e escritos míticos, que se somaram aos seus conhecimentos acerca de mitologias antigas. Todas essas influências marcam presença neste clássico literário que é considerado a obra-prima do autor.

Considerada um dos mais belos e importantes textos literários da modernidade e a obra fundamental do Romantismo alemão, a história original de Fausto, especial mente a primeira parte, eclodiu ao longo dos séculos em adaptações para os mais diversos formatos textuais, audio visuais e musicais, como romances, filmes, quadrinhos, sinfonias e muitos outros desdobramentos artísticos.

82 DISCUSSÃO SOBRE LINGUAGEMLITERATURA:EGÊNERO

“O que faz de um texto literatura é o tratamento que a ele se dá”, explicam Cinara Ferreira Pavani e Maria Luíza Bonorino Machado em seu livro Criatividade: atividades de criação literária.** “Uma mesma frase pode expressar o que suas palavras indicam, literalmente, ou ir além, sugerindo significados que exigem um ato interpretativo por parte do leitor.”

* São Paulo: Ática, 2007, pp. 7-8.

Uma das manifestações artísticas do ser humano, a literatura é chamada de arte das palavras, pois representa comunicação, linguagem e criatividade em prosa e verso. Por intermédio da literatura, a realidade é recriada de modo artístico com o objetivo de proporcionar maior expressivi dade, subjetividade e sentimentos ao texto.

** Porto Alegre: UFRGS Editora, 2003, p. 15.

“O texto repercute em nós na medida em que revele emoções profundas, coincidentes com as que em nós se abriguem como seres sociais”, conceitua Domício Proença Filho, em seu livro A linguagem literária.* Mas nem todo texto possui linguagem literária. Uma reportagem, por exemplo, pode contar uma história que provoca reações e reflexões no público. Ela usa, porém, linguagem jornalística e seu conteúdo se limita aos fatos apurados pelo repórter. Ou seja, a função do texto é infor mativa e não literária.

O clássico de Goethe já foi contado em história em quadrinhos, no livro Fausto: uma tragédia,*** que adaptou o enredo mas utilizou alguns dos diálogos originais do poema e manteve o ritmo das rimas originais.

83

*** São Paulo: Peirópolis, 2017.

Como existem vários tipos de produções literárias, os especialistas decidiram agrupá-las de acordo com suas carac terísticas em comum. São os chamados gêneros literários.

Entre eles estão biografia, teatro, poema, novela, história em quadrinhos. Ou seja, um fato pode ser contado sob formas diferentes, dependendo do gênero que se utiliza para contá-lo.

No caso de Fausto 1, trata-se de uma peça de teatro em versos, sendo classificada, portanto, como obra literá ria. Essa afirmação se fundamenta no fato de que o texto recria uma realidade, fazendo para tanto uso de lirismo e subjetividade, e essa característica pode ser notada logo na parte inicial da PRÓLOGOobra:NO CÉU Certo dia, cercado de sua corte celestial, Deus conversava com seus três arcanjos, Rafael, Gabriel e Miguel, que elogiavam a obra divina, a Terra e os seus Mefistófeles,habitantes.oanjodas trevas, conhecido por Mefisto, que também estava ali por perto, era de outra opinião. Dizia que a criação divina não tinha dado certo e que a Terra e os homens não valiam nada. (p. 9)

A[…]maneira como as coisas são ditas permite ao leitor fazer inferências sobre as características de cada personagem e compreender os conflitos da trama.****

84 Assim, a obra está classificada no gênero teatro, que pode ser definido como: Um texto […] encenado em que os diálogos são os que mais bem imitam as situações reais. Neles os personagens conversam entre si para dar ao espectador a sensação de estar dentro da cena.

Com essa definição em mente, mostraremos a seguir alguns exemplos que justificam a classificação do livro no gêneroLogoindicado.noinício da obra, nas páginas 11 a 14, a descrição da cena e das falas do personagem já evidenciam suas carac terísticas: um homem estudioso, com muito conhecimento mas insatisfeito com a vida: Dr. Henrique Fausto está sentado em sua poltrona junto à escrivaninha, num quarto pequeno e abafado, entulhado de frascos por todos os lados e de livros corroídos por vermes, cobertos de pó. A parede é forrada, até **** ROBERTO DA COSTA, S. Dicionário de gêneros textuais. Belo Horizonte: Autêntica, 2008, p. 201.

Além disso, esse gênero se caracteriza por apresentar fatos, personagens e enredo dispostos em uma sequência linear (introdução, desenvolvimento, clímax e desfecho) e rubricas com tipografia diferente, diferenciando assim a descrição da cena das falas dos personagens.

85 o topo da cimeira, com papel embolorado. Fausto, sonolento e irrequieto, balbucia, suspira e resmunga sozinho: Ah, estudei até a exaustão a filosofia, a medicina e a jurisprudência e avidamente também a teologia, tudo com a maior paciência. Mas eis-me aqui, pobre ignorante, não mais sabido do que antes.

E mais adiante, nas páginas 47 e 50, o mesmo recurso conta sobre a personagem Margarida: Completamente embriagado por sua beleza, Fausto fala com ela: Minha bela senhorita, será que posso ousar oferecer o meu braço para te acompanhar?

Sou professor, doutor até. Há dez anos fico atrás dos meus alunos, sem parar. Estudar, estudar e estudar! Mas vi que não é possível saber, e isso dilacera o meu coração.

Não temo nem o inferno nem o diabo. Porém, a alegria me foi roubada. Inconformado com sua impotência e desiludido com a vida que, apesar de todo estudo, não lhe trouxe todo o conhecimento desejado, desabafa: A vida não me deu bens, muito menos dinheiro, nem honra, nem glória nesse mundo.

O vermelho dos lábios, o brilho na face, jamais poderei esquecer. E seu jeito de querer fugir logo, aumenta mais o meu fogo. Aquela[…]

86

Margarida responde, encabulada: Não sou senhorita, nem bela, e posso ir para casa sozinha.

Encantado, Fausto segue-a com o olhar e fala para si: Que moça mais linda e formosa, tocou fundo o meu ser, parece tão boa e virtuosa, mas tem um quê de orgulhosa.

ali? Acabou de se confessar com o padre. Ele a absolveu de todos os pecados. Passei bem perto para ouvir, ela é pura e inocente. Não tinha por que se confessar. Sobre essa não tenho nenhum poder — diz Mefisto

Nesses dois exemplos é possível notar também um recurso utilizado ao longo do livro e que caracteriza o gênero: texto em itálico para indicar o que está ocorrendo na cena ou a ação do personagem, e sem grifo para indi car a fala em si. Ao longo do texto é possível notar descrições detalhadas que nos transportam para a cena, como neste exemplo da página 39:

Saindo do bar, Mefisto leva Fausto para conhecer a cozinha da bruxa.

Um enorme caldeirão fumega sobre o fogão aceso. No vapor que sobe, diversas figuras estranhas tomam formas. Uma macaca cuida para que a espuma do caldo não transborde. O macaco e os filhotes estão senta dos ao lado para se aquecerem. As paredes e o teto estão abarrotados com utensílios de feitiçaria

.

Temos ainda a sequência lógica dos fatos: introdução, desenvolvimento, clímax e desfecho. A introdução aparece na página 10, quando mostra-se o que a história pretende: Você conhece Fausto? — Deus indagou O doutor? — o Diabo quis saber. Minha ovelha! — respondeu Deus. Garanto que ele é bom e esforçado. Quando a muda cresce e verdeja, o jardineiro sabe que seus frutos serão bons. Bons coisa nenhuma! — disse Mefistófeles com ar sarcástico. Pois eu garanto que se deixar o destino de Fausto por minha conta, o levarei para o mau caminho. Quer apostar? O desenvolvimento ocorre nas páginas seguintes, quando se conta como Mefisto chegou até Fausto, como foi feito o acordo entre eles e a cláusula mais importante:

87

No embate, Fausto mata o irmão de Margarida e foge. Nesse meio-tempo, Margarida deu à luz o filho de Fausto, mas, em seu desespero, não vê alternativa senão matá-lo. É levada à prisão por cometer infanticídio. Fausto então se desespera, como mostra o trecho da página 60: Ao ficar sabendo do infortúnio de Margarida, Fausto começa a gritar agoniado: É Trancadadesesperador!nocárcere como criminosa, sofrendo torturas vis, a meiga, desgraçada criatura! Grita com Mefisto: Você foi longe demais! Espírito traidor, infame.

Acompanhado por Mefisto, Fausto, apaixonado, vai até a casa de Margarida. Mefisto começa a tocar cítara para fazer uma serenata e agradá-la. Mas quem aparece é Valentim, o irmão de Margarida, que retornara da guerra e tinha ouvido falar que Margarida se perdera, que tinha envergonhado o nome da família, se entregando para um homem antes de se casar.

88 a alma de Fausto só será levada quando Mefisto criar uma situação de felicidade tão plena que faça com que o doutor deseje a eternidade daquele momento. Após Fausto conhe cer Margarida, se apaixonar e começar a se relacionar com ela, surge o clímax da história: será que Fausto finalmente encontrará a felicidade que tanto procurava?

89

Acontece então o desfecho da história: Fausto implora a Mefisto que o ajude a salvar Margarida e o diabo decide ajudar o doutor. Ambos vão ao encontro da moça, mas ela se nega a aceitar ajuda, concluindo-se assim a história. Aqui abre-se um porém: como a obra é dividida em duas partes, a autora achou por bem informar o final da história completa. Então, na página 77, vemos um resumo do segundo volume: Na segunda parte, Margarida é recompensada por ter resistido ao diabo. Deus manda seus anjos descerem à Terra, tirar Margarida do cárcere e levá-la ao céu. Mas este ainda não é o final da histó ria. Apesar de Fausto a princípio ter de fugir com Mefisto, ao final ele consegue se libertar dele, graças ao seu amor por Guida. No céu, Margarida pediu tanto a Deus que salvasse Fausto, que Deus acabou cedendo e permitiu sua entrada no céu. Os dois acabaram ficando juntos e Mefisto perde a aposta feita com Deus. Portanto, ao recontar uma antiga lenda, Goethe acabou criando um clássico que trata de um tema universal – a busca do homem pela atribuição de signi ficados à própria vida. Além disso, a contemporaneidade do assunto justifica não só sua fama como sua eterniza ção ao longo do tempo. Fausto, além de ser a obra simbólica da vida de Goethe, adquire também significado universal por materializar o mito do homem moderno, o homem que busca dar significado à sua vida, que precisa tocar o eterno e compreender o misterioso. Sob este

A trama incentiva o leitor a se colocar no lugar do outro, a conhecer seu ponto de vista e suas motivações.

90 aspecto, o mito fáustico transforma-se em um “mito vivo”, um relato que confere modelo para a conduta humana.*****

Ao trazer ao leitor novos contextos, mundos e realida des por intermédio da leitura, a obra literária proporciona a compreensão das narrativas produzidas ao longo da história a fim de entender e ressignificar o presente, além de estimular a projeção do futuro. Ela incentiva ainda a imaginação e a criatividade e auxilia na ampliação de vocabulário e na construção de conhecimentos de múlti plas áreas do saber. Há que se notar também a presença de questões atem porais nas entrelinhas da obra, como insatisfações, dúvidas e injustiças, aspecto que fornece elementos para uma reflexão mais do que necessária sobre a atualidade. Afinal, como defendeu o antropólogo e filósofo Edgar Morin, a literatura nos oferece antenas para entrar no mundo.

***** HEISE, E. Fausto: a busca pelo absoluto. In: Cult, disponível em: <https:// revistacult.uol.com.br/home/fausto-a-busca-pelo-absoluto/>. Acesso em: 26 nov. 2020.

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9 788554 177058 ISBN 978-85-54177-05-8

Fausto, o famoso personagem do poema homônimo do autor alemão Johann Wolfgang von Goethe (1749—1832), é um homem que estudou muito na vida e que conheceu muitas coisas. Ainda assim, não se dá por satisfeito e quer saber mais e mais da vida, do amor e da magia. Anseia por transformar-se numa espécie de divindade, igualar-se aos espíritos, e assim ter acesso ilimitado a todas as manifestações da natureza. Para isso, aceita qualquer coisa — até fazer um pacto com Mefistófeles, vulgo diabo, a quem entrega a alma em troca do conhecimento, do rejuvenescimento e do amor. Concluída pelo autor em 1806, a primeira parte do poema é agora especialmente adaptada para o público jovem.

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