A UNIVERSIDADE VOLTA SEU OLHAR PARA AS IDEIAS, PRODUÇÃO ARTÍSTICA E OS PROJETOS SOCIAIS E EDUCATIVOS REALIZADOS POR MORADORES DAS PERIFERIAS DAS CIDADES BRASILEIRAS
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Foto: Gilvan Barreto
por Letícia Queiroz
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uas da tarde em Vila Isabel, Zona Norte do Rio de Janeiro. A casa rosa na esquina da Rua Ângelo Bittencourt com a Luiz Guimarães começa a receber os ocupantes das próximas três horas. No portão azul, Arlete Rodrigues, coordenadora do espaço, dá as boas-vindas às crianças. “Arlete, pra que sala eu vou?”, pergunta uma menina de cabelos enrolados. “Vai para a sala de jogos, com a professora...”. A menina sai correndo pelas tábuas soltas do assoalho. Os móveis antigos da Casa da Arte de Educar contrastam com a decoração das paredes, que ostentam dezenas de discos de vinil pintados de muitas cores. Criadas pelas crianças na oficina de Artes Plásticas, as peças representam mandalas, círculos que atuam como agentes de concentração de energia e bons fluidos, símbolos da Casa. A mais de 10 quilômetros dali, no campus da Universidade Federal do Rio de Janeiro situado na Praia Vermelha, Zona Sul do Rio, um grupo tão coeso quanto diverso, composto de moradores da periferia e de acadêmicos, chega para os encontros regulares das quintas-feiras. São duas horas da tarde, as cadeiras do Auditório Muniz Aragão começam a ser ocupadas. Logo depois, Cláudia Matos, da UFRJ, apresenta o tema da vez, “O Espírito do Romantismo”. Suas primeiras falas disputam a atenção da plateia com o cafezinho e os biscoitos servidos no fundo do salão. A temática do indianismo, da primeira geração do romantismo, leva o grupo a pensar na questão da identidade cultural e da valorização da própria cultura. A aula faz parte do projeto Universidade das Quebradas (UQ), lançado em meados de 2010. Nos dois extremos da cidade, o esforço é o mesmo: aprender a conversar. Tanto na Casa da Arte de Educar como na Universidade das Quebradas, o indivíduo tem 19
A formação das crianças além das possibilidades oferecidas pela escola é um dos objetivos da Casa da Arte de Educar. Foto: Gilvan Barreto
não só a chance de falar, mas de se fazer ouvir. São espaços que o estimulam a contar suas experiências e falar de sua cultura, o que ele, em geral, não tem a oportunidade de fazer nem nos bancos da escola, nem à mesa de jantar, com a família. Nesse diálogo entre culturas, o conhecimento intelectual entra em contato com a vivência da periferia. As duas pontas da cidade, enfim, se encontram. E se alimentam. A metodologia de conjugar saberes No casarão de Vila Isabel, crianças e adolescentes – separados em grupos de mesma faixa etária – participam de três oficinas diárias, com duração de uma hora cada. Diálogos com a Escola é uma prática que tem como objetivo conhecer melhor cada aluno e entender, por meio da conversa, o que ele pensa. Já a oficina Jogos e Brincadeiras faz um convite à diversão – que é outra forma de encontro. Da oficina de Artes Plásticas saíram as mandalas que decoram as paredes da sala. A conversa interfere na vida e a enriquece. “Vamos fazer uma roda!”, sugere a professora Leandra Laurentino, moradora da comunidade e pós-graduada em biologia. Ela pergunta se alguém recorda qual é o tema proposto para o dia. “As semelhanças na nossa comunidade com os povos da África”, responde a menina de bochechas rosadas. “E o que vocês perceberam?”, indaga a professora. “Todo mundo é preto”, algumas vozes respondem. “Tem certeza de que todo mundo é negro?”, pergunta Leandra. Paira uma dúvida no ar. “Alguém conhece o apartheid?” Silêncio. “O que significa essa palavra?”, continua Leandra. “A maioria?”, chuta um rapaz. “Apartar”, diz uma menina. “Por que 20
vocês acham que as pessoas das favelas sofrem preconceito?”, questiona a professora, experimentando outro caminho. “Porque somos pobres”, responde uma menina de cabelos longos. “Porque o pessoal da favela não se impõe perante a sociedade”, diz outra de cabelo arrepiado. Leandra arregala os olhos e continua a estimular a discussão. É por meio dela que os dois mundos se aproximam. Todo mês ocorrem as Rodonas, em que os alunos trocam experiências pessoais. As crianças também participam de oficinas de música, capoeira, informática e leitura, produzem vídeos e textos. As atividades da Casa permitem que jovens sem perspectiva vislumbrem um futuro promissor. Há sete anos na instituição, José Danilo aprendeu a tocar violão e agora planeja cursar a faculdade de informática. Aparentemente informais, as conversas alimentam o futuro. Na outra ponta da cidade, na Universidade das Quebradas, o debate sobre a identidade cultural continua. “Na Maré tem uma menina que é índia e o pai dela vai buscá-la na escola todo pintado. Eu acho bonito ele permanecer com as características de sua identidade cultural”, diz Renata Freitas, que faz parte do projeto da UFRJ, além de coordenar o programa Salas de Leitura no Complexo da Maré e atuar como educadora no projeto Tear, na Tijuca. Participante das mais ativas na UQ, ela não hesita em sugerir que os alunos produzam pequenos textos com base em suas vivências em aula. A experiência pessoal deve ser registrada. É dela que os alunos devem partir. “Eu topo!”, diz William Santiago, ator da Companhia Rubens Barbot Teatro de Dança e coordenador do fórum
Renata Freitas, na UFRJ: canções em guarani para os garotos da Maré. Foto: Gilvan Barreto
de debates de performance negra. Ele chegou à UQ por curiosidade, e hoje acredita que o curso trará mais elementos para seus projetos pessoais. “Eu acho isso muito difícil”, retruca Luciana Bezerra, diretora do episódio Acenda a Luz, do filme 5x Favela – Agora por Nós Mesmos. Ela que, na semana anterior, tinha ido assistir à première de seu filme em Cannes. “Não existem diretores pobres no cinema. Isso causou uma curiosidade muito grande na imprensa do mundo todo”, conta para a turma. “Minha história é tão forte que eles ficavam perguntando: como você chegou até aqui? Como isso está surgindo no Brasil?” Luciana é a coordenadora do Grupo Nós do Morro, que, em parceria com pessoas da Central Única das Favelas (Cufa) e do Observatório das
Favelas, do Complexo da Maré, produziram um filme que reflete a mudança social no país. Ao fim da conversa, Renata sugere uma síntese estética para o encontro. “Quero ensinar uma canção guarani que aprendi. Vamos fazer uma rodinha aqui?” As cadeiras são arrastadas para os cantos da sala e uma roda se forma em seu centro. Todos começam a andar em círculos, batendo o pé direito a cada dois segundos. Renata puxa o canto e o grupo repete suas palavras: “Moema... croootá paramãe popuãoã taquariporã... eh têitêi eh têitêi moema...” e a cantoria vai diminuindo junto com as batidas dos pés até o som sumir. Explodem os aplausos. 21
Nas oficinas de Artes Plásticas da Casa das Artes de Vila Isabel se produzem objetos de decoração. Foto: Gilvan Barreto
Uma ideia na cabeça e uma mão realizadora Cinco quilômetros separam o Morro dos Macacos, em Vila Isabel, da Mangueira, onde a Casa da Arte de Educar abriu as portas em 1999 para cerca de 200 alunos da comunidade. O objetivo é utilizar a cultura como ferramenta de educação e desenvolvimento social. Atualmente, a casa atende cerca de 500 alunos em horários alternados ao da escola, possibilitando assim uma educação em tempo integral. As mães têm um lugar seguro para deixar os filhos e uma alternativa para afastá-los da violência e das drogas que assolam as comunidades. Todos ganham. Sueli de Lima é pedagoga e, atualmente, cursa doutorado sobre técnicas e didáticas na educação. Seu interesse
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CRIADA NO ÂMBITO DA UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO, A UNIVERSIDADE DA QUEBRADAS DESENVOLVE UMA PEDAGOGIA DA TROCA DE EXPERIÊNCIAS E DO DIÁLOGO
No Complexo da Maré os alunos do Projeto Tear produzem textos baseados em suas vidas. Foto: Gilvan Barreto
pelas técnicas de ensino começou aos 15 anos, quando conheceu as teorias do educador Paulo Freire a respeito da educação dos mais pobres. Em 1963, no Rio Grande do Norte, aplicando os princípios de alfabetização concebidos por Freire, e em apenas 45 dias, ensinou 300 adultos a ler e escrever. Sueli incorporou conceitos que podem ser resumidos em uma frase do educador: “Não há saber mais ou saber menos, há saberes diferentes”. Aos 16 anos, engajou-se em uma ação pedagógica com os professores da Rocinha. Não parou mais. Tempos depois, a empresa Xerox, que realizava ações esportivas na Mangueira, a convidou para organizar um projeto educacional e cultural no morro. Assim nasceu a Casa da Arte de Educar, onde Sueli, aliando-se a um corpo eclético de educadores, vindos tanto das favelas como do meio acadêmico, criou uma metodologia própria, inspirada nos princípios
de Paulo Freire. O programa é financiado pela Secretaria de Educação, com o apoio de grandes empresas privadas. Sim, existe uma tecnologia para o diálogo entre culturas, e ela se sofistica cada vez mais. As técnicas desenvolvidas na Casa da Arte, por exemplo, são levadas para outras regiões do Brasil em parceria com os Ministérios da Educação e da Cultura. “É uma ação de diálogo dos pontos de cultura com as escolas”, explica Sueli. No começo de 2010, o programa Mais Educação tornou-se uma ação nacional. “As nossas duas casas funcionam como um laboratório de metodologias”, ela diz. “Com base em nossa experiência, desenvolvemos conceitos e técnicas que serão aplicados em outras regiões do país.” O reconhecimento desse esforço veio rápido: a Casa da Arte de Educar ganhou o prêmio Itaú-Unicef 2009, concorrendo com 1.917 projetos.
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Da escola para a universidade A Universidade das Quebradas surgiu em abril de 2010, com o objetivo de promover uma troca de conhecimentos entre os profissionais acadêmicos e os produtores culturais vindos das áreas periféricas do Rio de Janeiro, conhecidas como “quebradas”. O programa possui uma metodologia inédita formulada pela doutora, artista e psicanalista Numa Ciro e pela professora, pesquisadora e escritora Heloisa Buarque de Hollanda. A ideia surgiu durante a dissertação de doutorado de Numa. Ouvindo os rappers, logo identificou neles o desejo de voltar a estudar. Heloisa, que era sua orientadora, criou condições para que o projeto surgisse, trazendo-o para a universidade.
PESQUISADORES ACADÊMICOS BUSCAM CONHECER E REFLETIR SOBRE A PRODUÇÃO CULTURAL DAS PERIFERIAS, ESPAÇO URBANO ONDE AS CARÊNCIAS DE FORMAÇÃO EM EDUCAÇÃO SUPERIOR SÃO GRANDES
Assim como os habitantes das periferias têm poucas oportunidades de acesso à formação superior e possuem uma carência de produção intelectual, os acadêmicos sentem falta das informações e saberes culturais construídos fora das salas de aula. Os dois lados têm o que dar e o que receber. Nas Quebradas, DJs, produtores culturais, rappers, artistas, diretores e arte-educadores discutem os caminhos da produção de conhecimento em uma época de diálogo. “Ainda é muito cedo para dizer que algo já surgiu dessa troca”, diz Numa, prudente. “Não sei quando teremos uma resposta”. No final do
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Fotos: Gilvan Barreto
curso cada participante terá que apresentar um projeto relacionado ao campo que pesquisou. Renata Freitas já sabe que quer trabalhar com a memória na comunidade da Maré, onde atua há dez anos. Já William Santiago não enxerga ainda como a UQ vai ajudá-lo. O objetivo final é transformar as conversas em ação. No outro extremo da cidade, os moradores das comunidades começaram a perceber que precisam de uma representação social. Não é por outro motivo que as ONGs e outras instituições nelas se multiplicaram. Sua voz, sua música e seu corpo se impuseram no panorama social, protagonizados por projetos culturais como o AfroReggae, de 1993, e o Grupo Nós do Morro, de 1985. Ambos abriram novos caminhos para os valores das comunidades. Tanto a Universidade das Quebradas como a Casa da Arte de Educar estão atentas a essas mudanças. Apostam na educação como uma metodologia capaz de conectar a cidade consigo mesma. A palavra da periferia Marcus Vinicius Faustini é um mestre na arte de ecoar as vozes periféricas. Está envolvido, no momento, em 15 projetos culturais, sendo um deles a UQ. Em parceria com Heloisa Buarque de Hollanda, criou, em julho de 2010, o Apalpe – A Palavra da Periferia, um estímulo à memória fluminense. Tem como base metodológica o livro Guia Afetivo da Periferia. Memórias Cartográficas de Faustini, publicado pela editora Aeroplano, que Heloisa dirige. O livro faz parte da coleção Tramas Urbanas, que surgiu em 2007 como novo espaço para a literatura marginal. Cada encontro do Apalpe apresenta uma proposta diferente de trabalho, envolvendo experiências audiovisuais, literárias, cênicas etc. Renata e William, da UQ, estão entre os selecionados. Faustini estuda o processo de percepção da obra e propõe uma forma plástica de produzir literatura. O projeto terminou em setembro de 2010. É mais um trunfo a favor do diálogo entre as culturas.
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