Dossiê Metaverso Anexos
sumário
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DOSSIÊ METAVERSO
A
promessa de transparência da tecnologia blockchain permite revolucionar o modo de produzir e consumir conteúdo; o tema foi debatido em seminário promovido pelo Itaú Cultural em parceria com a Folha de S.Paulo em julho de 2022
Primeiro vieram os e-mails. Nos anos 1990, estar on-line significava ter um endereço digital, e seu acesso à rede se dava por meio de uma conexão discada, com os dados transmitidos da mesma forma que a voz nas chamadas telefônicas pré-smartphone. A navegação atravessava páginas estáticas semelhantes a arquivos digitalizados. Não era possível publicar conteúdo, tampouco assistir a vídeos, exibidos apenas em plugins como Quicktime e Realplayer.
O século 21 chegou sob a ameaça do “bug do milênio”, superado por uma série de avanços
em sites com layouts complexos e interativos, que interligavam texto, imagem e vídeo através de links. Ao mesmo tempo, foram desenvolvidas ferramentas para que cada usuário compartilhasse sua própria opinião em caixas de comentários ou páginas de blogs.
A verdadeira mudança, no entanto, ocorreu em 2004, quando a estreia mundial do Orkut abriu um portal para o que viria a ser a era das redes sociais. No ano seguinte, o Google chegou ao Brasil, seguido por Facebook, YouTube (ambos em 2007), Twitter (2008) e Instagram (2012), numa transformação que revolucionou não só a comunicação, mas também o comportamento do planeta, tornando obsoleto tudo o que veio antes.
Para quem acompanhou essa vertiginosa caminhada da humanidade rumo à evolução, no universo da tecnologia, essa fase inicial é chamada de Web 1.0, enquanto a seguinte, marcada pela ascensão de big techs como Google e Meta, representa a Web 2.0, atualmente em convergência com a versão 3.0.
“Na Web 1.0, a internet tinha uma estrutura de upload e funcionava como um repositório de temas, que ainda não eram indexados”, explica a pesquisadora de narrativas emergentes Luciana Bazanella, cofundadora da agência de tendências White Rabbit, durante a mesa “Limites e Possibilidades da Web 3.0”. Naquela
época, a especialista lembra que algoritmos e conceitos como engajamento eram termos “etéreos”, e as primeiras tentativas de criar um index temático eram feitas pelos próprios usuários, com as primeiras hashtags em posts no antigo Twitter (hoje X).
“Ao mesmo tempo que a lógica da participação e do engajamento foram se consolidando, houve uma centralização de poder por grandes empresas”, diz a especialista. “A Web 3.0, por sua vez, é essencialmente descentralizada: ela não depende da Meta ou do Google para o conteúdo performar”, afirma Luciana. “Essa descentralização está no cupcake vegano que compramos pelo Instagram, no influencer, no nanoinfluencer, na maneira como a gente se informa e vê a realidade. Por isso, é impossível falar de Web 3.0 sem tratar desse movimento social, que gera rupturas e disrupções em nossas interações.”
Para compreender o raciocínio por trás da Web 3.0 é preciso conhecer os mecanismos que autorizam essa descentralização, e o principal deles é a blockchain . Utilizada por plataformas como Ethereum e Bitcoin (serviço financeiro de criptomoedas), a blockchain é um banco de dados avançado que permite o compartilhamento de informações e transações de maneira segura e transparente.
Em seu funcionamento, a blockchain armazena dados em blocos interligados numa
REGRAS PRÓPRIAS
cadeia, conectados entre si por meio de hashes criptográficos que criam um registro imutável e inviolável de todas as transações. Na prática, quando ocorre uma negociação, ela é agrupada a outras em um bloco, que será adicionado à cadeia existente, formando um registro contínuo e cronológico. Cada uma dessas partes contém um identificador exclusivo – o hash criptográfico –, gerado pela aplicação de um algoritmo matemático aos dados contidos no bloco, que serve como uma impressão digital, garantindo sua integridade e impedindo modificações não autorizadas.
Uma das perspectivas de descentralização da Web 3.0 é a possibilidade de o criador não precisar mais trabalhar para atender a métricas de alcance, visibilidade, engajamento para acumular curtidas e seguidores em aplicativos como Instagram ou TikTok. Essa mudança de paradigma daria mais liberdade à produção de conteúdo. Nessa nova configuração, explica Luciana, as DAOs, sigla para Decentralized Autonomous Organizations (organizações autônomas descentralizadas), substituem as big techs utilizando as diretrizes de ”contratos inteligentes” (protocolos executados em computadores que definem regras e consequências).
Somada à radical transparência de dados da blockchain , basta as pessoas se adaptarem
às regras dessas organizações autônomas para ter visibilidade, deixando de ser reféns das mudanças nos algoritmos das big techs –que visam interesses políticos e comerciais particulares. “As relações na Web 3.0 têm sua própria instância de legitimação, com decisões tomadas em grupo, e não por uma grande empresa, seguindo os critérios do ambiente ou da comunidade. Trata-se mesmo de uma outra lógica”, explica a pesquisadora.
Entre os exemplos de DAOs, há iniciativas como MyBFF, comunidade desenvolvida para ajudar mulheres e pessoas não-binárias a “se educarem e aproveitarem as oportunidades de serem pioneiras em tecnologias emergentes”.
INFINITAS POSSIBILIDADES
No Brasil, há empreendimentos como AlmaDAO, que “conecta criadores, empreendedores, visionários, desenvolvedores, investidores e entusiastas da Web 3.0”, a Kanna, empresa de ESG com foco em negócios da cannabis, e a Eve DAO, focada em promover a inserção de mulheres latino-americanas no mercado digital. São infinitas as possibilidades de explorar os recursos da Web 3.0, com projetos que vão desde criação em moda à formação em medicina, incluindo ações sociais e de fomento à arte.
Focada em proporcionar experiências imersivas na área da saúde, a Medroom desenvolveu um laboratório de anatomia em 3D, no qual es-
A QUESTÃO ÉTICA
tudantes de medicina podem interagir com modelos tridimensionais que têm sistemas e órgãos do corpo humano. A empresa também faz parcerias com entidades como o Instituto do Coração (InCor), de São Paulo, e criou réplicas digitais de gêmeas siamesas unidas pelo tórax, usadas por cirurgiões para estudar a separação, por meio de realidade aumentada.
Empreendimentos que nasceram para suprir demandas do isolamento social também mostraram-se viáveis no pós-pandemia, como o Studio Acci, companhia de moda digital que desenvolve roupas, calçados e acessórios, além de desfiles, editoriais, cenários e fashion films em realidade aumentada e virtual; ou a SocialCrypto, galeria de arte que comercializa trabalhos artísticos em NFTs para arrecadar valores que são destinados a projetos sociais no Morro Santo Amaro, no Rio de Janeiro. Um vislumbre do que será esse novo modo de relacionamento ocorre em ambientes imersivos como o dos games, no qual é possível vivenciar uma existência paralela por meio de avatares. Não há, no entanto, uma chave que irá desligar a Web 2.0 e avançar à fase seguinte. Como na passagem da idade da pedra da internet ao momento atual, essas etapas coexistem, com as big techs investindo em tecnologias como a do metaverso, Inteligência Artificial e afins, em contraponto
a experiências da Web 3.0, que viabilizam trabalhar em escritórios virtuais, estudar, se vestir, vender obras de arte, assistir a espetáculos e até fazer tratamentos médicos. Por ora, há ainda de se considerar desafios como o que Luciana Bazanella chama de interoperabilidade. “Todas as grandes empresas operam em silos. O Facebook, por exemplo, quer vender anúncios e te manter dentro de um ecossistema que inclui o Instagram, WhatsApp, sem sair dali para ir ao Google. Por isso, cada uma delas está criando seu próprio metaverso”, explica a especialista. Esse formato, cujo acesso se dá por perfis específicos, torna-se ainda mais questionável quando se trata de avatares.
“Com a Web 3.0, estamos falando de uma economia em desconexão com o mundo físico. Como fica essa interoperabilidade? Teremos avatares diferentes para trabalhar, interagir socialmente, paquerar?”, questiona Luciana. “Do ponto de vista da experiência do usuário, quero poder transitar entre ambientes com segurança e transparência. Essa é uma grande questão, porque envolve uma mudança no modelo de negócio dessas empresas.”
Outras questões éticas envolvem a disseminação de fake news e o uso de ferramentas imersivas para cometer violências, falsear a realidade e aprofundar ainda mais a polariza-
ção. “As mídias sociais da Web 2.0 foram implementadas para captar nossa atenção, sem que houvesse discussões sobre isso”, lembra ela. “Estamos pensando nas implicações éticas agora? Ou estamos importando todos os vieses de racismo e exclusão do algoritmo para o metaverso?”. Para a especialista, à medida que testemunhamos investimentos de bilhões de dólares no metaverso, temos de considerar os problemas “reais da humanidade”, que passam por questões como a crise climática, a desigualdade econômica, a epidemia de saúde mental, além de questionar por quem essa tecnologia está sendo desenvolvida, para que e por que ela importa para nós hoje. a
DOSSIÊ METAVERSO
Seminário apresenta NFTs e vivências imersivas entre as possibilidades para experimentar novos formatos e conquistar mercados
em ascensão
Em plena Times Square, no coração de Nova York, um dos concorridos telões de LED da região, o do hotel Marriott Marquis, foi ocupado pela projeção de uma árvore cujos galhos, quase sem folhas, formavam uma composição onírica com uma nuvem emergindo atrás do tronco. Batizada de Cloud Tree, a árvore de nuvens fotografada pela multiartista Lívia Elektra em Valinhos, no interior de São Paulo, foi selecionada pelo presidente da revista Time, Keith A. Grossman, entre mais de quatro mil trabalhos de artistas de diversos países para compor a mostra de NFTs numa das mais badaladas vias turísticas do planeta.
“O NFT mudou minha vida”, afirma Lívia, uma das pioneiras no mercado de arte NFT – do inglês non-fungible token, ou token não fungível – no Brasil. “Comecei a fazer NFT em 2021 e me apaixonei não só pela possibilidade de mostrar meus trabalhos para colecionadores do mundo inteiro, mas também porque a comunidade é incrível. Todas as pessoas envolvidas – colecionadores e outros artistas – se apoiam. Consegui muitas oportunidades”, diz ela.
Ex-vocalista da banda Fake Numbers e fotógrafa com um portfólio de campanhas de grifes famosas (Nike e Calvin Klein entre elas) e editoriais com estrelas como Claudia Leitte, Lexa e Luisa Sonza, Lívia tem 19 anos de carreira, mas foi graças às NFTs que seu trabalho se tornou referência. Após Cloud Tree – comprada por um colecionador de NFTs – ser exibida nos Estados Unidos em 2022, fotos de sua autoria circularam por mais de 20 aeroportos da Europa, Ásia, entre outros continentes, junto com outras 22 artistas, numa ação do Dia Internacional da Mulher promovida pela comunidade NFT World of Women em parceria com a Code Green e a Vinci Airports.
Entusiasta de inovações tecnológicas, Lívia investia em criptomoedas quando decidiu estudar as NFTs durante a pandemia. “Depois dos cancelamentos de diversos trabalhos [devido ao isolamento], no período pós, os cachês
[ para fotografar] baixaram muito. As pessoas queriam pagar menos de 400 reais por uma diária, enquanto com NFT, tenho fotografias vendidas por até 22 mil dólares. É uma diferença gritante”, diz ela.
Em mãos e mentes criativas de artistas como Lívia, a descentralização da Web 3.0 é uma chance de explorar novos mercados para além do circuito tradicional da arte, numa relação mais justa e com regras claras. Enquanto empresas como Spotify e Amazon acumulam reclamações sobre a falta de transparência de seus algoritmos e suas vendas, os “contratos inteligentes” permitem que os criadores não só negociem como acompanhem a distribuição da própria obra.
“Quando coloco uma fotografia para vender em NFT, ela é atrelada a um contrato inteligente da blockchain , o que permite ao colecionador ter certeza de que se trata de uma obra autêntica. É como ir a um museu e comprar a Mona Lisa : você pode encontrar várias cópias dela por aí, mas aquela pintura [que está no Louvre] é única”, compara Lívia. “A autoria continua sendo minha. Posso vender a obra, mas não o direito de propriedade dela.” No caso da fotógrafa, o “contrato inteligente”, um conjunto de regras criado no ambiente digital, garante que, a cada vez que Cloud Tree for negociada, Lívia receba uma notificação e uma porcentagem do valor.
CAMPO DE EXPERIMENTAÇÃO
A experiência de Lívia Elektra com as NFTs foi tão inspiradora que ela se juntou a um grupo de investidoras para criar a EVE NFT, uma DAO (organização autônoma descentralizada) cujo objetivo é educar mulheres em como se apropriar da Web 3.0.
Em expansão vertiginosa nessa nova fase da internet, a produção em realidade virtual já rendeu prêmios ao Brasil, caso da animação A Linha (The Line), narrativa interativa assinada pelo cineasta Ricardo Laganaro, que ganhou o prêmio de Melhor
Experiência Interativa no Festival Internacional de Cinema de Veneza em 2019. Com narração de Rodrigo Santoro, a animação em 3D ambientada na São Paulo de 1940 conta a singela história de amor do entregador de jornais Pedro e da florista Rosa.
Com o sucesso no evento italiano, a Oculus VR , companhia que desenvolveu óculos de realidade virtual adquiridos pela Meta, pediu para a empresa de Laganaro, a Arvore – dedicada a experiências imersivas e games – fazer uma versão de A Linha para uma tecnologia de hand tracking (um tipo de reconhecimento de gestos), que permitiu aos usuários interagir na narrativa sem o uso de joystick, usando apenas as próprias mãos. O lançamento, um dos quatro feitos pela Oculus no mundo, levou A Linha a ganhar o
Emmy em 2020 na categoria Inovação Extraordinária em Programação Interativa – tornando Arvore o primeiro estúdio brasileiro a levar a láurea nesse gênero.
“Trazer o Leão [de Ouro], do festival de cinema, e o prêmio da academia de TV [Emmy] mostra que estamos conseguindo entender como criar uma história, uma linguagem e um produto artístico que pode concorrer em qualquer lugar do mundo, de igual para igual, pois [essa tecnologia] está começando para todos ao mesmo tempo”, acredita Laganaro.
Com mais de uma década de atuação no cinema, o diretor afirma que a migração para a produção em realidade virtual agregou ao estúdio profissionais de outras áreas, como programadores, designers de game, arquitetos e até dançarinos. “São pessoas que estudam como desenvolver interações para engajar e criar emoções movimentando o corpo – e ninguém entende mais disso do que dançarinos”, diz ele. “É um time multidisciplinar, que inclui a experiência narrativa do cinema, desenvolvimento de softwares e videogames e da construção de espaços.”
O fato de as experiências imersivas serem um campo de testes em plena ascensão está entre as vantagens que Laganaro destaca. “Por se tratar do início de uma indústria mundial, todos estamos no mesmo nível, ao contrário do cinema ou dos
games, por exemplo”, acredita. “Mesmo não existindo ainda muitos espaços para exibir no Brasil, há pouca gente executando bons conteúdos nesse formato. Isso garante que, se você o fizer, ele será visto e reconhecido”, afirma – numa referência às premiações inéditas da Arvore.
Laganaro defende também que estar entre os pioneiros possibilita conceber projetos mais diversos, com temáticas menos óbvias, como a São Paulo do início do século XX , ambiente de A Linha , ou o cotidiano de cidades em países do continente africano. “O mundo está mais plural: por que vamos contar outra história de amor que se passa em Nova York ou Los Angeles? Por que um filme brasileiro tem de mostrar o Rio, a floresta ou o futebol? Nosso cenário precisa ser naturalizado”, defende.
Por trás do sucesso da Arvore, Laganaro afirma existir um pool de investidores, que aproximam a concepção da empresa à de uma startup. “Como estamos falando de tecnologia e inovação, é um modelo de negócio mais propício, pois temos um prazo maior para pesquisa. A publicidade não tem espaço para errar, né? Agências e clientes precisam ser educados para entrar nisso com um pensamento de longo prazo.”
Dos setores mais efervescentes da economia na Web 3.0, a moda está entre os que mais apresentam inovações em NFTs –com roupas e acessórios inclusive de
grifes de luxo–, tecidos tecnológicos (os smart fabrics) e investimentos em experiências no metaverso e em games.
Idealizadora da primeira semana de moda imersiva da América Latina, a Brazil Immersive Fashion Week, Olivia Merquior foi responsável, junto ao estilista Lucas Leão, pelo inédito desfile inteiramente em 3D que ocorreu na São Paulo Fashion Week de 2020, quando o evento fez uma edição on-line, com projeções, vídeos e lives, em razão das medidas de isolamento da pandemia de covid-19.
Com longa trajetória no ofício, Olivia teve sua atenção despertada para as novas tecnologias em 2017, ao conhecer o Projeto Jacquard, do Google, durante o festival de inovação SXSW em Austin, no Texas. A proposta era a de uma jaqueta com circuitos e coletores eletrônicos que transformam a peça numa roupa inteligente, cujos sensores se conectam ao smartphone e permitem receber instruções de navegação, recusar ou receber chamadas de áudio e vídeo ou retroceder e avançar a reprodução de uma música.
Inspirada por essa e outras invenções, Olivia fez da BRIFW uma plataforma para aproximar marcas de criadores e promover cursos para simplificar a Web 3.0. “Há muitos termos técnicos que afastam e criam um misticismo em torno do tema”, acredita ela. “Com seu po-
der de construção de identidade, de como a gente se coloca no mundo, a moda pode aproximar as pessoas desse universo.”
Os artistas e criadores citados neste artigo participaram da mesa Arte e Cultura: caminhos na Web 3.0 e no metaverso durante o seminário Web 3.0 e Metaverso, promovido pelo Itaú Cultural e pelo jornal Folha de S.Paulo em julho de 2022. a
DOSSIÊ METAVERSO
REALIDADE EXPANDIDA NAS ARTES: EXPERIÊNCIAS E RELATOS DE UM
FORMATIVO
Curso promovido pelo Itaú Cultural em parceria com Insper reuniu artistas de diversas áreas em uma imersão sobre tecnologia aplicada às artes
Quais são os recursos que a realidade virtual (RV) e a realidade aumentada (RA) oferecem no contexto das artes? Como criar experiências virtuais utilizando esses recursos em um ambiente de metaverso? Essas foram algumas das questões que guiaram o curso de especialização Realidade Expandida nas Artes, uma parceria entre o Itaú Cultural e o Insper. Realizado entre outubro e dezembro de 2022, o curso teve a participação de 24 participantes com as mais diversas formações e de diferentes regiões do país.
Coordenado por Rejane Cantoni, artista e pesquisadora da área, e Luciano Soares, engenheiro professor do Insper, o curso combi-
1
Non-fungible token (token não fungível, em português), tokens digitais de propriedade, geralmente negociados em criptomoedas e vinculados a imagens ou vídeos.
nou formação teórica, conceitual e histórica sobre a relação entre arte e tecnologia com conhecimentos técnicos sobre modelagem 3D, sistemas RV, criação e design de metaespaço, computação gráfica, entre outros temas. “O principal objetivo era capacitar os estudantes a desenvolver conteúdos em realidade virtual, realidade aumentada e suas variações”, afirma Luciano Soares.
Ao final do processo, que durou dois meses em encontros presenciais na sede do Insper, em São Paulo, a sala se organizou em grupos para desenvolver um projeto colaborativo no metaverso, que contou com mentoria técnica e artística dos professores. “A pluralidade de pesquisas e jornadas somada ao conhecimento de professores e convidados e todo o aparato instrumental disponibilizado pela instituição foi uma das coisas mais gostosas que eu já presenciei nessa vida”, conta Phel, um dos alunos.
Formado em moda pela Faculdade de Artes Santa Marcelina, Phel chegou ao curso interessado em NFT1 . “Passei seis meses tentando entender esse mundo. Fui atrás de cursos, palestras, exposições etc. Absolutamente tudo o que via de NFT eu tentava me inserir, e foi assim com o curso do Insper: eu estava buscando informação, e a instituição estava ofertando o conhecimento”, diz o artista. O conceito e o funcionamento desses tokens digitais de propriedade, que se popularizaram
durante a pandemia, foram temas abordados nas aulas.
Embora já trabalhasse com imagens no mundo digital, Phel foi apresentado à inteligência artificial (IA ) no curso, ferramenta que foi a base de seu projeto de conclusão e que continua sendo um dos pilares da sua produção artística até hoje. “Até a minha entrada no curso, o máximo que eu conhecia de realidade aumentada eram as camisetas infantis da RCHLO, e nada de realidade virtual. Eu já havia tido algumas experiências no metaverso, mas nunca havia colocado óculos de realidade virtual na vida. A primeira vez foi transformadora: me lembro que tive a oportunidade de desenhar diretamente no espaço virtual; peguei um pincel que fazia chover glitter, criei uma cascata de luz neon rosa ao meu redor, sentei no chão e fiquei admirando (existia um mundo ao meu redor e, ao mesmo tempo, ele não estava em lugar nenhum)”, conta o artista. Ao final do curso, Phel apresentou uma série de imagens criadas com IA e um rascunho de marca de moda que faz uso de tecnologia cripto para vendas, promoção da marca e criação de mundos no metaverso.
Assim como Phel, Filipe Russo tinha pouco conhecimento técnico sobre metaverso e realidade virtual. Matemático de formação, com especialização em computação aplicada à
educação e mestrande do programa Erasmus Mundus, ele tem uma produção focada em literatura e artes visuais, especialmente fotografia e design gráfico. “Minha experiência com realidade virtual havia sido mais com o consumo de games e algumas experiências em museus; já com realidade aumentada, só algumas brincadeiras no celular, tipo Instagram e Snapchat”, conta.
Os dois meses de formação na sede do Insper proporcionaram uma ampliação dos horizontes técnicos e estéticos. “Entrei em contato com produções incríveis de que até então nunca tinha ouvido falar. Pude ver usos de realidade virtual para narrativas imersivas, assim como usos divertidos e inovadores de realidade aumentada”, conta.
Seu grupo, que contava com a participação de Lucas Artacho, Natália Nanni e Richner Allan, desenvolveu o projeto CumpliCIDADE . Partindo da ideia da cidade como ponto de troca, o projeto investiga o impacto das políticas públicas na vida urbana e no dia a dia dos cidadãos por meio de uma mesa tecnológica gamificada. “O jogo traz uma narrativa pautada em demandas da sociedade civil para a gestão urbana, como arborização, aumento de instituições educacionais e assistenciais, transporte público, as quais chegam ao gabinete da subprefeitura e necessitam de endereçamen-
tos por parte dos jogadores. A interatividade se dá pela adição e remoção de cartões valorativos que mudam a paisagem urbana, sua configuração e suas dinâmicas”, explica.
Para ser implementado, o CumpliCIDADE demanda, além da mesa tecnológica, a criação de um baralho, cartões NFC e um tablet ou projetor. “A mesa tecnológica pode ora operar com o reconhecimento dos padrões das cartas do nosso baralho, e assim ‘levantar’ as edificações em realidade virtual num monitor (tela, tablet ou realidade aumentada), ora operar com cartas acrescidas de cartões NFC , que armazenam as informações a serem lidas por sensores no tabuleiro da mesa. Tudo isso precisa ser gerido por um computador que administra o ambiente de realidade virtual, que se atualiza segundo as modificações materiais realizadas sobre a mesa com as cartas físicas”, explica Filipe. Além do mais, um tablet ou projetor pode exibir o status da cidade e as demandas que orientam a tomada de decisões administrativas sobre o espaço público, o que compõe a narrativa do jogo e impulsiona as jogadas.
Durante o curso, o grupo conseguiu desenvolver alguns protótipos intermediários, com cartões cortados a laser e uso de realidade aumentada. Mas a mesa tecnológica ainda não foi concluída. “Investigamos as possibilidades que a RV e RA poderiam oferecer para
o projeto, testamos a viabilidade de diferentes tecnologias, incluindo uma demonstração de realidade expandida durante a apresentação final”, conta.
Para Rejane Cantoni, um dos grandes desafios, e também uma das grandes vantagens do curso, foi a possibilidade de reunir pessoas com formações e históricos muito diferentes.
“Havia uma diversidade de conhecimentos e experiências muito grande na sala de aula, e isso foi extremamente rico, gerou projetos experimentais e inovadores”, diz a artista, cujas aulas se dividiram entre uma parte teórica, que trazia também a história da relação entre arte e tecnologia, e outra voltada para o desenvolvimento dos projetos.
Ainda que o curso tenha sido concluído em dezembro de 2022, a formação segue em curso. “Temos um grupo de WhatsApp, que continua sendo alimentado pelos alunos com novidades sobre os projetos e sobre as carreiras deles. É uma troca extraordinária”, diz Rejane
Em março de 2024, o Itaú Cultural promoveu um encontro entre professores e alunos, para uma atualização das discussões. Luciano apresentou as novidades nas áreas de RV e RA (novos equipamentos e tecnologias surgidos nos últimos dois anos), Rejane dividiu as experiências de eventos sobre o tema que aconteceram no último ano, novos editais que
contemplam o assunto, enquanto os alunos puderam mostrar os desdobramentos de seus projetos e suas pesquisas.
“O curso foi uma oportunidade de fornecer mais ferramentas para ótimos artistas. Hoje, os artistas contam com muito mais que pincéis e cinzéis, tanto no mundo real como no virtual. Se eles conseguirem explorar essas ferramentas adequadamente, podem criar obras de arte bem impressionantes. Acredito que esse curso abriu novos horizontes de criação”, conclui Luciano.a
DOSSIÊ METAVERSO
FOMENTANDO NOVAS LINGUAGENS E EXPERIÊNCIAS NO AMBIENTE IMERSIVO leticia de castro
Lançado em julho de 2022, o Chamamento Itaú Cultural de Projetos de Arte e Cultura no Metaverso atraiu artistas e produtores culturais de todo o país em projetos artísticos no meio digital. Foram 128 inscritos, dos quais quatro foram contemplados, nas áreas de poesia, performance, teatro e cultura indígena. Idealizado pela diretora teatral e atriz Janaína Leite, Deeper é uma experiência imersiva que explora a questão do corpo e da consciência em situações-limite. “ Deeper nasce como uma investigação de linguagem para os temas que eu vinha pesquisando, dentre eles a psicose, a questão do corpo em estados-limite, a ideia de dissociação”, conta Janaína, referindo-se a seus espetáculos teatrais anteriores, como Stabat Mater (2019) e História do Olho (2022).
Para transpor sua pesquisa dos palcos para o ambiente digital, Janaína se juntou às artistas Ultra Marini e Leandra Espírito Santo, e à equipe da plataforma Anitya Space, que criou o universo tridimensional de Deeper. Em março de 2024, 46 sessões foram realizadas na sede do Itaú Cultural para um público de 381 pessoas.
Do Maranhão vem o projeto Peregrino Digital, do artista, professor e pesquisador Regis Oliveira, que discute a performance no ambiente digital. A proposta é um desdobramento das investigações iniciadas por Oliveira em sua pesquisa de doutorado, que articulava conteúdos digitais em realidade aumentada à performance presencial. Desta vez, ele criou um ambiente digital com quatro santuários em realidade aumentada, compostos de modelos 3D, por onde o Peregrino Digital e o público circulam por meio de avatares.
“Minha investigação passou a centrar na relação entre a ação executada pelo performer no espaço físico e como ela é transmitida para o público através do seu avatar no ambiente virtual. A ideia de um peregrino que transita entre o físico e o digital, entre aquilo que é material e o que é imaterial”, afirma Regis, que é professor de Artes Visuais do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Maranhão e investiga a relação das tecnologias digitais com as artes há anos, tanto em seu trabalho como professor quanto como artista.
Passando para o campo da literatura, Palavralada é o projeto do poeta Arthur Moura Campos, situado na interface da poesia com a tridimensionalidade e os jogos virtuais. Hospedado em um ambiente virtual, o projeto narra a história de um universo singular, construído por palavras e letras em movimento. “Eu quis fazer um espaço interativo onde as letras fossem as protagonistas. Imaginei um mundo criado por palavras e letras. E é como se o jogo fosse uma reconexão, um storytelling, uma narrativa desse mundo que teve origem a partir das palavras”, diz o artista goiano.
No mundo de Palavralada , a vida é gerada pelo movimento das letras. Quando uma “nuvem-nave” imobiliza essa energia e bloqueia o fluxo vital, o jogador tem a missão de libertar as palavras, para que elas retomem seu movimento, mantendo aquele ambiente vivo. “Conforme você arrasta objetos, o que não tinha sentido pode mudar. E tudo isso se conecta com uma história de um mundo que foi criado por palavras e que está estático. Ele precisa que o jogador, o leitor, o usuário mexa nesses objetos, interaja com eles, para reativar a vida desse mundo, da Palavralada . Daí vem o nome”, conta Arthur.
Arquiteto de formação, Arthur escreveu os poemas e desenvolveu a arquitetura 3D do ambiente, enquanto a equipe Dive Realities ficou
responsável pelos mecanismos de interação. Lançado originalmente em novembro de 2023, Palavralada já passou por algumas atualizações para melhorar a interatividade e o som.
Por fim, Yura Xina propôs a criação de um museu no metaverso, construído com técnicos e artistas da aldeia, sobre a história do povo Yawanawa desde antes do contato com os brancos até os dias de hoje. “Nós achamos que poderíamos usar a tecnologia para guardar essa memória para as futuras gerações. Aí nasceu a ideia de fazer esse museu [virtual] do conhecimento Yawanawa”, diz Laura Yawanawa, produtora executiva. A ideia é que o museu traga registros de cantos, ilustrações, artesanatos, toda a tradição daquele povo que reúne atualmente cerca de 1850 pessoas na Terra Indígena do Rio Gregório, no Acre.
O projeto tem dois braços: uma aplicação single player, na qual os espectadores poderão circular pelo museu, entrando em contato com todas as peças disponibilizadas (vídeos, fotos, scan 3D de artesanatos), e um museu multiplayer na plataforma VRChat, que permite a interação e o acesso no mundo todo. “Os povos indígenas pertencem a uma tradição ágrafa, que não tem escrita. Toda vez que morre um velho, se vai com ele toda uma tradição oral milenar. Com a tecnologia, a gente pode guardar essa tradição na memória do nosso povo. Esse projeto é muito
importante porque ele vai guardar muitas memórias que poderiam se perder no tempo e no espaço”, afirma Tashka Yawanawa.a
DOSSIÊ METAVERSO
Ricardo Laganaro, é cineasta, diretor de realidade virtual, coordenador de 3D, supervisor de efeitos visuais, roteirista, podcaster e empresário. Foi premiado no Festival Internacional de Cinema de Veneza e no Emmy com o curta-metragem imersivo A linha
Tive o prazer de ser um dos jurados das 128 inscrições válidas para o Chamamento do Itaú
Cultural para projetos de Arte e Cultura no metaverso e, levando-se em conta que Deeper, de Janaína Leite, foi um dos quatro projetos selecionados, começarei a análise invocando a inscrição do projeto. Acho pertinente mostrar que ele foi parte de processo que começou com uma criteriosa seleção. Além disso, como também sou um artista criador de obras imersivas e sempre fui muito interessado por processos criativos em geral, gostaria de começar fazendo uma breve análise de como o projeto evoluiu nestes 18 meses que separaram a inscrição e a estreia da obra.
Talvez o aspecto mais atraente, para mim, seja a oportunidade de ver a continuidade da pesquisa sobre a existência, ou não, de um teatro virtual, iniciada por Janaína Leite durante a pandemia.
Pensando nos aspectos conceituais ali destacados, fico muito feliz em ver como a obra final foi bem-sucedida com o seu principal objetivo. A proposta original visava “adotar uma lógica onírica para convidar o espectador à travessia por suas curiosidades e seus medos em relação ao (sub)mundo da internet e do próprio inconsciente”, o que de fato acontece ao se experienciar a obra, como abordarei mais adiante. Também acho relevante observar o quanto as ideias, tanto na linguagem como na técnica, foram se transformando ao longo do processo. Conceitos inicialmente propostos como “lógica de jogo”, “infinitos hackeamentos”, “anonimato com avatares” foram deixados de lado. Durante a produção e a criação, surgiram novas possibilidades muito diferentes do que havia sido planejado inicialmente. Mesmo ferramentas que pretendiam explorar aspectos multiplayer como rastreamento facial em tempo real para animação de avatares, algo bem relevante pensando-se em metaversos, , acabaram sendo deixadas de lado na experiência final, o que, imagino, não deve ter sido uma decisão fácil para a autora e sua equipe. Falando da experiência em si, realmente não a considero um metaverso. Com exceção de se tratar de um ambiente tridimensional, é uma experiência que não traz praticamente nenhum dos elementos que caracterizam um metaverso, como ser um mundo persistente, com a capacidade de ser experienciado
por muitos usuários de forma síncrona e com uma continuidade de dados. Trago isso porque é um aspecto que não pode ser negligenciado, visto que o chamamento era para a criação de metaversos. Porém, como artista e entusiasta de bons conteúdos imersivos, não considero isso um problema, visto que a criação de um metaverso exige um trabalho gigantesco, e o conceito original da obra só pôde ser alcançado no prazo proposto após uma corajosa redução de escopo, o que possibilitou uma entrega muito competente e efetiva. Dito isso, Deeper não é propriamente um metaverso, e está tudo bem.
A experiência não foi pensada para ser realizada na casa do usuário, usando um computador convencional, mas sim com óculos de realidade virtual (RV ). Eis outra decisão complexa, pois diminuiu enormemente o potencial de público, visto que a base instalada de usuários com dispositivos de RV no país ainda é baixíssima. Porém, dada a experiência prévia da autora com as artes cênicas presenciais e sua pesquisa sobre a virtualidade do teatro, me pareceu uma escolha muito acertada, pois só o fato de conseguir produzir uma bela estrutura, que recebia 11 participantes por sessão, já fez com que a qualidade da experiência imersiva fosse exponencialmente aumentada, se compararmos outras propostas usando smartphones ou telas de computador. Sendo um projeto
experimental, faz sentido concentrar-se em uma experiência realmente inovadora, mesmo que para um público menor.
Outra decisão que me ganhou muita simpatia foi a escolha de fazer a introdução fora dos óculos de RV, ainda que de forma interativa, mas já como parte da obra. Primeiro, os participantes eram convidados a preencher um formulário relacionado ao tema, como um aperitivo instigante sobre o que estaria por vir. Dado que a experiência vai fundo na questão do corpo e de seus desejos mais profundos, o formulário já demonstrava bom humor para lidar com o tema da sexualidade, que ainda pode ser tabu para muita gente. Uma trilha sonora com clássicos pop dos anos 1990, com arranjos de sonoridades distorcidas e estranhas, já ajudava a colocar o espectador no clima de uma experiência que sairia do comum, caminhando para o lúdico e onírico.
Na sequência foi apresentado um vídeo produzido pela técnica do deep fake, no qual o diretor Alfred Hitchcock dava explicações sobre como a experiência funcionaria, o que, além de divertidíssimo, acrescentava mais uma pitada de estranheza na preparação do público. O grupo era então conduzido para uma sala escura, onde poderia colocar os óculos de RV após mais algumas instruções dos promotores. Faço um breve desvio aqui
para ressaltar a qualidade de toda a estrutura proporcionada pela equipe da artista. Desde os equipamentos escolhidos, passando pelo treinamento da equipe de apoio, tudo reduziu as eventuais fricções e os desconfortos em relação ao uso da tecnologia. Como usuário e criador de experiências imersivas desde 2012, sei como é difícil preparar uma estrutura para sessões com grupos maiores de usuários, e o que foi feito em Deeper é um ótimo exemplo a ser seguido.
Eu precisaria de um espaço duas ou três vezes maior para comentar profundamente cada parte que se seguiu dentro dos óculos de RV, mas não é o caso aqui. O que posso comentar brevemente é que esse segmento da experiência me provocou o tempo todo, desde seu início com o vídeo real do Hitchcock contando sua tese curiosa sobre o futuro do cinema, em que o público não apenas assistiria, mas vivenciaria as experiências na pele das personagens através de hipnose coletiva (admirável ver como ele acertou no conceito, embora tenha errado na tecnologia usada, que é o menos importante). Também foi impactante o que veio a seguir, um ambiente composto de telas voadoras com conteúdos nativos da internet, como uma preparação para um quarto permeado de glory holes com cenas das mais diversas práticas sexuais não convencionais (muito acertadamente colocadas dentro dos
buracos, de forma que o usuário tinha que movimentar seu corpo e introduzir sua cabeça neles para conseguir vê-las), e que trouxeram à tona sensações desde a curiosidade, passando pela excitação, até um riso nervoso ao ver práticas sexuais mais extremas (nunca achei que uma atividade com gengibre pudesse me causar algo tão agudo). Mas, sem dúvida, o clímax (não literal, que fique claro) veio na cena de suspensão humana, que podia ser vista em primeira pessoa (a partir de uma câmera 360º colocada na cabeça da artista, que foi suspensa por ganchos perfurando seu corpo), ou em terceira pessoa, por telas mostrando a mesma cena. Curiosamente, me pareceu menos aflitivo e perturbador ver a experiência na primeira opção. Não sei se eu teria estômago para ver o corpo de outra pessoa sendo suspenso. Após esse intenso clímax, as cenas que se seguiram ajudaram a digerir um pouco as emoções mais viscerais, enquanto provocavam alguns questionamentos sobre o tema em um diálogo entre uma terapeuta e sua paciente (que conversavam desde o começo do segmento em RV ) sobre a questão do corpo como experimento, ou laboratório, de sensações, desejos e possibilidades, algo que permeou toda a experiência.
Falando de forma geral, talvez o maior mérito da obra, para mim, foi perceber que ao final da sessão ninguém do público estava falando da tecnologia de realidade virtual,
ou mesmo de metaverso. Todos focavam nas próprias emoções e discutiam o conteúdo ali apresentado. O que só comprova que a experiência transcendeu o uso dos óculos, provocando algo mais profundo e único nos usuários, como uma boa obra artística deve fazer, não se limitando a um puro deslumbre técnico. Pessoalmente, como alguém que vive pesquisando formas inéditas de contar histórias com tecnologias de ponta, essa é a primeira grande meta de uma obra deste tipo.
Todo o processo do Deeper só mostra, mais uma vez, que principalmente quando falamos de processos artísticos que envolvam o uso de tecnologias tão novas, a ponto de não existir uma linguagem ainda estabelecida, é impossível dissociar o processo de criação do processo de produção. Tanto a visão original quanto as hipóteses iniciais de como essa visão será concretizada não passam de um ponto de partida que será repetido, transformado e melhorado múltiplas vezes, até alcançar um resultado quase sempre completamente diferente do pensamento original na forma, mas que, ainda assim, cumprem o objetivo inicial, quando bem-sucedidos, como é o caso da obra de Janaína Leite.a
DOSSIÊ METAVERSO
UM PERCURSO INTERESSADO POR DEEPER daniele avila small
Daniele Avila Small é doutora em Artes Cênicas pela Unirio (2019), mestra em História Social da Cultura pela PUC-Rio (2013) e bacharel em Teoria do Teatro pela Unirio (2009). Tem se dedicado à criação de espetáculos que investigam narrativas historiográficas no teatro e o lugar das mulheres na história da arte, como nas peças Há mais futuro que passado e O museu sem fim de 1976. Atualmente, realiza estágio de pós-doutorado na Unirio e integra o júri do Prêmio Shell de Teatro pelo Rio de Janeiro. É idealizadora da revista eletrônica Questão de Crítica, autora do livro O crítico ignorante – Uma negociação teórica meio complicada (7Letras, 2015) e tem dramaturgias publicadas pelas editoras Cobogó e Javali. Suas práticas curatoriais se iniciaram em 2011, com a direção artística do Teatro Gláucio Gill (com indicação aos Prêmios Shell e APTR). Foi curadora de festivais como FIT-BH, Fiac-Bahia, Filte-Bahia, entre outros; da sessão Olhares Críticos, da MITsp, do IDIOMAS – Fórum Ibero-Americano de Crítica de Teatro, da Complexo Sul e dos Encontros Questão de Crítica. Realiza projetos artísticos com o Complexo Duplo desde 2010.
O projeto proposto pela artista de teatro Janaina Leite, realizado na plataforma Anitya Space com codireção de Ultra Martini e diversos colaboradores, se propõe a ser uma experiência imersiva híbrida entre presença e realidade virtual para explorar e questionar, entre outras coisas, o corpo e a consciência em situações-limite. Com fomento do Itaú Cultural a partir do edital Arte no Metaverso, a obra teve sua estreia em março de 2024. Durante uma semana, em apresentações pela manhã, tarde e noite, pequenos grupos de espectadores foram recebidos para cada sessão. As pessoas que recepcionam o público, integrantes da equipe da peça, dão orientações sobre o uso dos óculos de realidade virtual e dos controles, bem como sobre as possibilidades de deslocamento dentro do ambiente de realidade virtual. Antes de entrar, é preciso responder a um questionário
que, a seu modo, funciona como uma espécie de mediação, anunciando temas e jogando com as expectativas que cria.
Para começar, é importante atentar para o caráter processual do trabalho. Deeper é mais uma pesquisa em processo do que uma criação artística “pronta”, embora o trabalho tenha um desenho elaborado para receber espectadores e oferecer a eles a experiência de um percurso. Vale lembrar o boom de realidade virtual dos anos 1990, especialmente nos Estado Unidos, que não avançou como se esperava na época pela dificuldade de monetização das atividades que dependiam de aparelhos individuais, o que tornava (e ainda torna) o custo do ingresso por pessoa para cada experiência virtual alto demais, desproporcional com relação aos custos de realização – algo que também acontece com o teatro e com muitas práticas artísticas que só são possíveis com algum tipo de fomento. Por mais que estejamos em outros patamares de acesso à tecnologia, não estamos lidando com um trabalho feito para alcançar grandes públicos. Antes de mais nada, é importante celebrar que haja espaço e recursos para modos de produção como esse. Não é a quantidade de público atingido que determina a relevância de um processo criativo.
A peça – podemos chamá-la assim, independentemente da categoria das artes a que
venha a ser associada – pode ser abordada por diferentes perspectivas. O fio de reflexão que proponho é o do teatro. Mesmo que a obra não esteja confinada a essa leitura, ela acena para criações teatrais recentes da artista e sinaliza vínculos com a memória desses trabalhos. Duas possibilidades de fruição da obra se mostraram para mim: a relação com o que de fato estava sendo apresentado e os desvios que o trabalho suscitou na minha imaginação. No processo da escrita deste texto, fiquei presa num impasse, com a sensação de que quanto mais eu pensava sobre a peça, maior ficava a distância entre o que a sinopse do trabalho apresenta e o que vivenciei como espectadora. Ficava me perguntando sobre a profundidade que o título anuncia. No entanto, a minha sensação durante o trajeto, que tive a oportunidade de fazer duas vezes, não estaria contemplada apenas por essa narrativa. A minha caminhada pelo ambiente virtual de Deeper foi prazerosa, cheia de curiosidade e expectativa, ainda que também se apresentasse a sensação de que eu “esperava mais”. Depois de ficar ruminando a memória, entendi que aquela camada de imaginação foi o que mais me deixou e ainda me deixa instigada. Embora eu esteja imaginando e desejando algo da pesquisa que não parece estar nos planos da artista, esse desvio ficou insistindo em aparecer. Assim, apresento aqui
algumas notas sobre essas duas perspectivas. São notas tropeçantes, incertas, inseguras, mas que me lembram de que errar também é sinônimo de caminhar.
Os desejos de profundidade na visualidade da cena e de proporcionar ao público uma experiência imersiva têm provocado transformações históricas nas concepções de espaço cênico e nas proposições dramatúrgicas do teatro ocidental há séculos: anseios de que o teatro seja penetrável, que o lugar de onde se vê seja dentro. No Brasil, um rápido exercício de rememoração da cena de São Paulo, cidade onde Janaína Leite vive e trabalha, traz espetáculos como O balcão, de Victor Garcia e Ruth Escobar, nos anos 1960; Viagem ao centro da Terra, de Ricardo Karman e Otávio Donasci, nos anos 1990; a Trilogia Bíblica, de Antonio Araújo e o Teatro da Vertigem, na mesma década, espetáculos realizados em espaços não convencionais, entre outras. Penso também no espetáculo O tiro que mudou a história, de Aderbal Freire-Filho, peça sobre o suicídio de Getúlio Vargas, cuja ação se dava literalmente nos aposentos do antigo Palácio (hoje Museu) da República no Rio de Janeiro. Peças sobre as atrocidades da ditadura militar encenadas no Dops. Experiências imersivas em que a relação entre os corpos e o espaço é um dado inalienável da fruição, nas quais o espaço tem o duplo estatuto do real e da ficção.
Como propor, então, uma experiência imersiva de realidade virtual sem que ela pareça um mero jogo de representação? Faço essa pergunta como uma pessoa que está interessada nas interações entre o teatro e essa tecnologia, e não como alguém que duvida da fertilidade dessa relação. O teatro é uma prática que não se apega a limites. Multidisciplinar, cruza interferências de várias autorias para além das funções consideradas autorais, fagocita outras artes, saberes, epistemologias. É característica histórica do teatro que ele se apodere das tecnologias do seu tempo. A luz elétrica é dos exemplos mais óbvios. O radioteatro, o teleteatro e o teatro digital são outros exemplos evidentes. Não é de se admirar que artistas da cena desejem interações com a realidade virtual. Mas e os técnicos e designers deste campo?
Estão desejosos de interações com a cultura do teatro em toda a sua complexidade, longevidade, multiplicidade?
O teatro é assombrado por uma espécie de mal-entendido – às vezes até mesmo por parte de seus adeptos – que se reflete bastante na visão de fora, de quem não pensa o teatro. O entendimento de “mímesis” como “imitação” não corresponde à complexidade do conceito, que pode estar mais próximo da ideia de criação que de representação. A visão do teatro como imitação o condena a uma suposta superficialidade,
uma relação bidimensional com seus materiais. Diz-se que é “mimético”, de maneira pejorativa, quando a forma do teatro é pouco inventiva no tratamento da realidade. Nesse sentido, pode ser decepcionante que a concepção espacial de Deeper seja, como se diz do teatro, imitativa. Embora a proposta seja a de uma experiência imersiva, em muitos momentos, o ambiente criado me pareceu, contraditoriamente, bidimensional. Entendo que o metaverso no mundo corporativo simule espaços de convívio que correspondem à realidade, funcionando como réplicas. No diálogo com a criação artística, a réplica pode não ser o melhor recurso – a não ser no sentido de resposta. Um espaço que, em vez de uma imitação, é uma contraproposta. Gosto de uma das definições sugeridas por Luiz Costa Lima: “por mímesis, entenda-se um processo metam ó rfico que contraria os padrõ es da realidade”. Já no final do percurso, a tentativa de criar uma espacialidade desconcertante aparece. Isso se dá quando o trabalho se desprende de seus temas e inventa um ambiente que não reproduz nenhuma arquitetura realista. É quando se sente com mais intensidade a vertigem da dissociação entre o corpo físico e o virtual. Quando a visualidade deixa de lado a “representação” da realidade, a vivência se torna mais presente no corpo.
O modo de usar imagens gravadas também me provocou certa desconfiança. Parece que as referências em vídeo, dentro da realidade 3D, pelo menos nesse contexto, perdem força. Isso se dá tanto na primeira sala, em que há telas veiculando vídeos diversos, quanto na sala em que há vídeos com cenas de sexo pontuadas por fetiches anunciados no formulário previamente preenchido. Nesta, há ainda um problema dramatúrgico no uso da tecnologia: o espectador precisa acionar os controles para trazer cada vídeo para si, como se algo “dentro” fosse mudar a relação com o que se vê. Essa mudança não acontece. Na sala em que se vê a cena filmada de suspensão corporal, o mesmo dispositivo é usado, mas desta vez se dá uma passagem para o interior da imagem. Ainda assim, o “dentro” também me pareceu distante.
Além disso, a disponibilidade auditiva que os fones proporcionam aumentam o desejo pela sonoridade e pelo texto, que opera mais como insinuação de acontecimentos anteriores. Uma paisagem sonora para se ouvir de longe, um rumor.
A sensação mais persistente na maior parte do meu percurso foi a de estar visitando o passado criativo da artista, uma vez que o conteúdo das salas faz alusão a seus espetáculos mais recentes. Isso me fez pensar que a criação para o metaverso poderia atuar como
uma espécie de narrativa transmídia (transmedia storytelling) do universo criativo da artista. Nesse caso, outros verbos precisariam ser conjugados para evitar a armadilha da reiteração, da citação sem atravessamentos. A suavidade do “aludir” e do “insinuar” – como o “sinalizar” e “acenar” mencionados anteriormente – seguram as imagens na superfície. Se fosse o caso, a alusão precisaria se tornar enfrentamento. Em vez de sinalizar, desmontar, expor, remontar.
Para além de acenar, endereçar-se.
É como se a materialidade do trabalho se mostrasse em um intervalo de suspensão entre o futuro e o passado da pesquisa. O aprofundamento das questões propostas, a invenção de uma “nova” linguagem e a experimentação com limites da consciência e da presença ainda não se mostram na sua forma mais afiada. São promessas, expectativas, projeções. O que fica mais visível são as citações do trabalho feito até o momento. Na dificuldade de enxergar o futuro, vislumbrei a possibilidade da elaboração de um mergulho mais fundo no passado da pesquisa. Como um convite para percorrer um itinerário crítico-historiográfico, nos moldes de uma historiografia performativa (como conceituada por Eleonora Fabião). No caso, parafraseando uma conceituação anterior de Janaína Leite, uma auto-historiografia performativa por sua trajetória artística, a partir de
seu ponto de vista, fazendo da sua história no teatro algo penetrável e do caminhar virtual do espectador a leitura corporalizada de um ensaiar-se.a
FABIÃO, Eleonora. “Performance e História: em busca de uma Historiografia Performativa” In: Pelas vias da dúvida : segundo encontro de pesquisadores dos programas de pós-graduação em artes do estado do Rio de Janeiro UERJ-UFRJ-UFF. Anais, Rio de Janeiro: Escola de Belas Artes, 2012.
LAUREL , Brenda. Computers as Theatre / Second Edition. Reading, MA : Addison-Wesley, 2013.
MCKENZIE , John. “Virtual Reality: Performance, Immersion and the Thaw,” TDR: The Drama Review 38, nº 4 (1994): pp. 83–106.
Luiz Costa Lima. Entrevista concedida a Ana Lúcia Oliveira, Fábio Lopes da Silva, Georg Otte, Italo Moriconi. Fórum de literatura brasileira contemporânea . v. 10 n. 19 (2018)
IMERSOS
DOSSIÊ METAVERSO
PELA FANTASIA PROFUNDA
christian ingo lenz dunker
Christian Dunker é psicanalista, professor titular do Departamento de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP). É autor de mais de dez livros e criador do canal do YouTube Christian Dunker
A experiência imersiva Deeper, dirigida por Janaína Leite e Ultra Martini, estreou no Itaú Cultural entre 5 e 9 de março de 2024. A instalação começa com o público, de mais ou menos 15 pessoas, reunidas em uma pequena sala onde são convidadas a responder perguntas provocativas, como por exemplo, “quanto tesão ou medo você pode sentir com agulhas e aranhas” ou “você já tinha cometido algum crime, praticado sexo em público” e assim por diante. Ao fundo, escutamos uma música deformada pela lentificação. A estratégia é interessante porque nos leva a pensar que as respostas recolhidas se conectam com o que virá, de tal maneira que, ao tatear nossas fantasias, somos levados a um curioso efeito de vergonha. Afinal, sendo a tarefa coletiva e realizada ao mesmo tempo e no mesmo lugar, cada qual está exposto à sua própria vergonha,
que aparece de maneira mais ou menos surpreendente conforme reagimos às perguntas e nos vemos comprometidos com as respostas que escolhemos. A vergonha é redobrada pela percepção de que os outros ali presentes estão sabendo da sua, como se ela estivesse a céu aberto, ainda que as respostas estejam resguardadas por sigilo.
Nisso, a instalação segue de perto algumas propriedades conhecidas pela gramática da fantasia. O senso comum associa a fantasia com uma imagem, com traços mais ou menos fixos e constantes. Tipicamente, essa imagem pode privilegiar o cenário, os personagens ou a montagem corporal. A paisagem da fantasia define a extensão onde aprendemos a exercê-la. São os espaços de segredo ou segurança. Banheiros, escadas, praias ou ilhas desertas compõem alguns dos mais comuns, mas podemos imaginar cenários definidos por atmosferas, músicas ou perfumes. A segunda linear da fantasia são os personagens. Às vezes são tipos históricos com faces definidas, heróis de cinema e televisão, mas também tipos da história de cada sujeito: ex-namoradas, professoras, médicos, narrativas amorosas, muitas delas inconcluídas. A terceira linear da fantasia são traços, tamanhos, perspectivas, movimentos pelos quais uma determinada imagem adquire potência, geralmente pelo exagero ou
pela redução de partes do corpo, vocalizações ou “frames” decisivos.
Perguntas como “já sentiu tesão com agulhas?” funcionam como interpelações fantasmáticas não apenas porque fisgam alguns que eventualmente gostem de objetos cortantes ou perfurantes, como parte de fantasias sádicas ou masoquistas, mas porque elas eliciam o segundo plano de consideração da fantasia, que é bem menos intuitivo do que o plano narrativo da Outra cena, na qual nos permitimos exercer o teatro suprimido da cena social. Aqui a fantasia se desdobra em três modos: ativo, passivo e interpassivo. Ver, ser visto, se fazer olhar. Comer, ser comido, se fazer comida. Geralmente, a fantasia se fixa, para cada sujeito, em um ou outro modo, mas isso não é regra, servindo como uma espécie de indicador, geral e aproximativo, de saúde mental. Ou seja, quanto mais plástico, variável e intercambiante forem os modos e as cenas de fantasia, mais fácil negociar a própria fantasia, entrar na fantasia do outro ou se mostrar indiferente à fantasia que não nos diz respeito. Ou seja, fantasias são a nossa fonte incondicional de prazer. A maior parte das impotências sexuais conhecidas, dependem de montagens problemáticas, interdições ou esvaziamentos de fantasia, e não de problemas fisiológicos que interferem na ereção, lubrificação, sustentação do pré-prazer e
do orgasmo. Assim como a fantasia é composta por nossos brinquedos eróticos inconscientes, ela é também fonte máxima e determinante de nossa angústia. Isso acontece porque as fantasias são necessariamente transitivistas, ou seja, elas não são apenas compostas pelo nosso filme erótico, de utilidade masturbatória, no qual nos comportamos como senhores de nossos próprios roteiros de satisfação. Fantasias são como aqueles jogos de espelhos infinitos, porque incorporam e contêm dentro de si a fantasia do Outro. Não haverá vibrador ou sex toy eficiente se o sujeito não for capaz de sustentar sua fantasia e enfrentar a terrível e angustiante, porque insabida, fantasia do Outro. Aqui também podemos inferir problemas naqueles que imaginam ou são possuídos pela certeza de que sua fantasia é universal. Alto risco aqui de que a fantasia própria, individual e contingente, se torne uma espécie de lei universal, por meio da qual todo mundo tem que gozar do mesmo jeito.
Percebe-se, assim, como a experiência Deeper foi inteligente ao começar pela aparentemente anódina investigação sobre do que você gosta e do que você tem medo.
Independentemente da resposta, ainda que algumas perguntas sejam caricatas ou exageradas, o importante aqui é que elas interpelam o sujeito, de tal maneira que temos que nos
“lembrar” de nossas fantasias, ainda que seja para dizer: não é essa ! Por outro lado, quando respondemos ao questionário na antessala do que “vai acontecer”, somos levados à terrível sensação de que nossas respostas serão usadas contra nós no próximo passo, ou seja, na próxima cena da fantasia.
Uma vez no amplo e escuro espaço de Deeper, somos recebidos por um instrutor que ajuda a instalar audiofones, capacetes visuais e dois controles remotos, semelhantes aos que encontramos nos videogames. A partir de então, somos convidados a caminhar por espaços virtuais. Aqui encontramos uma terceira característica da fantasia: ela se organiza não como uma imagem, mas como uma imagem com bordas, ou seja, uma janela. Isso explica a dimensão de organização da realidade inerente a toda fantasia inconsciente: trata-se de uma janela sobre a qual está “encaixada”. Não é que vemos o mundo a partir de uma projeção de fantasia, como se ele fosse uma produção inteiramente mental. Mas, de modo mais complexo, imaginemos uma tela furada, composta por materiais heterogêneos, como as colagens surrealistas de Ernest Mach ou as fotomontagens de Man Ray. Isso significa que a “realidade” se apresenta como uma construção compósita, envolvendo zonas de encobrimento, pontos cegos, áreas onde nos vemos vistos
pelo Outro, ou nos entendemos vendo o outro, que não percebe nossa presença. Há efeitos de deformação, subtração e repetição nas nossas divisões, fragmentações e dissociações. Ou seja, a fantasia é composta por séries que podem ser percorridas independentemente, mas que se comunicam, sem que nos apercebamos, com outras séries, cada qual com segmentos conscientes e outros inconscientes. Muitos já compararam a fantasia inconsciente com óculos que usamos sem saber que estamos usando. Por essa janela da alma, pensamos ver o mundo como ele é, quando na verdade apreendemos uma certa deformação regular que nos faz assimiliar o mundo com desvio-padrão, imperceptível porque regular. Ora, a fantasia, em seu funcionamento prático e real não é assim, mas se aproxima muito mais da experiencia Deeper, em que caminhamos entre diferentes janelas, somos levados a crer que escolhemos quais queremos olhar e quais queremos evitar, mas que gradualmente no introduz a experiência de perda do controle e de caminhos inexoráveis impostos pelo Outro. Por isso, é uma experiência imersiva que tateia nossa fantasia e, também, flerta com nossa angústia.
Como na experiência real da fantasia, nossa coordenação motora e sensorial importa. Gemidos atrás de um pedaço de janela em que se entrevê o pedaço de uma cama. Interessa?
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Pierre Janet (18591937) foi um médico e psicólogo, auxiliar de Jean Martin
Charcot no Hospital da Salpêtrière, na França. Suas pesquisas sobre histeria concorreram com as hipóteses da psicanálise.
Vá em frente. Se não, siga para o som de um chicote, uma briga de trânsito, um quarto de motel ou uma sala de cirurgia. A ideia de que estamos livres para ir mais fundo ou seguir em frente é um ingrediente decisivo da reprodução artificial de fantasias que define o experimento Deeper. Podemos dizer que tal experiência introduz um suporte para simulação do conceito de fantasia sem precedentes e inédito. Freud dizia que os artistas caminham à frente dos psicanalistas, descrevendo e nomeando fenômenos que em seguida são tematizados pela psicanálise. Neste caso se dá algo um tanto invertido. As teorizações da psicanálise sobre a fantasia encontram seu correlato nesse aparato de simulação da realidade, que reproduz exatamente as características formais, lógica e de conteúdo que vemos em Deeper. Antes de Freud e de Janet 1 , o criador da psicopatologia moderna da histeria, Jean Martin Charcot, havia se interessado pela descrição visual dos ataques histéricos. Ele entendia que a ciência das “doenças mentais” avançaria pelas mãos das descrições minuciosas dos fenômenos histéricos, para os quais convocou a tecnologia mais avançada de sua época: a fotografia.
Não seria uma surpresa que nossas fantasias incorporem as inovações tecnológicas de cada época. Afinal, a datar de Aristóteles, phantasein é um modo de conhecimento voltado
para a perspectivação do futuro. Desde o início, fantasia é uma faculdade da imaginação e um instrumento de produção de prazer. Fantasiar não é o mesmo que idealizar, projetar ou planejar, pois implica uma transformação imediata e performativa no presente. Brevemente, quem fantasia se transforma, quem idealiza, não.
O uso mais antigo do termo fantasia, em Platão, remete à ideia de aparição, logo, algo que só tem aparência e é desprovido de essência. A fantasia é mera imitação da verdade, da realidade e da essência. Mas a arte de produzir imagens (icástia) é diferente da arte de produzir ilusões (fantástica), pois a primeira reproduz, a segunda introduz o desejo malsão de enganar, iludir ou ludibriar. Notemos aqui a persistência do radical “ludos” em iludir e ludibriar, ou seja, a fantasia tem estrutura de ficção, como um jogo, definido por suas regras (constitutivas e regulativas), participantes e objetivos (agonísticos ou cooperativos). Aristóteles objeta que a fantasia é uma mistura de percepções e opiniões, pois para ele a fantasia é uma faculdade da alma que opera independentemente das sensações orientada para objetos externos, como no caso do sonho. Desta forma, ele introduziu a diferença entre percepções atuais e potenciais (ou virtuais). Para ele há três tipos de fantasias: indeterminadas (aóristos phantasía), sensoriais (aisthetikè phantasía) e
mediadora ou deliberativa (logistikè phantasía). Esses três tipos servem para sintetizar as incidências que descrevi até aqui do conceito de fantasia em psicanálise:
a Criar roteiros que precedem personagens indeterminados ou, inversamente, criar personagens ou cenários à procura de um roteiro;
a Criar imagens suficientemente ambíguas ou deformadas, a ponto de que a “realidade” ou determinadas “imagens” ainda não atualizadas possam agir como imagens potenciais;
a Criar formas de pensamento, juízo e deliberação que permitam jogar com conjecturas sobre situações não imediatamente dadas e concluídas.
Isso não quer dizer que a fantasia seja uma forma de pensamento por imagens, mas uma espécie de pensamento à procura de uma imagem. Daí a ideia de que as fantasias não se apresentam de uma vez em sua forma completa. Elas podem repetir uma certa gramática, mas, ao final, são permanentemente construídas pelo sujeito. Podemos resumir essas três dimensões da fantasia como ponto de unificação da consciência, melhor dizendo, ponto de quase unificação da consciência, como se
a fantasia fosse uma estrutura de relações na qual a fratura, divisão ou dissociação da consciência se “completa” no objeto da fantasia. Esse aspecto é perfeitamente contemplado e até mesmo metodologicamente previsto na montagem de Deeper. A música e os sons acusticamente deformados são um ótimo instrumento para isso. Quando ficamos com medo, sem que a esse medo corresponda um objeto, criamos esse objeto. Quando sentimos vergonha queremos entrar num buraco para que ninguém nos veja, daí que a aparição de um olhar ou de uma presença inesperada converta a vergonha em angústia. Assim, também, quando nos vemos sozinhos no escuro, somos atraídos por qualquer ponto de luz. Somos induzidos a trocar a solidão desamparada pela curiosidade expectante. Surgem assim os pedaços de imagem, os gritos e murmúrios, que nos levam a uma nova divisão subjetiva, desta vez em forma de dúvida: será este um gemido de dor ou de prazer?
De fato, a criação artificial de estados de dissociação é uma intenção declarada da autora:
O que nos interessa é a possibilidade de pensar a ‘dissociação’ como paradigma de subjetivação do qual ainda não podemos prever as consequências: uma vida entre mundos, entre a realidade e a ficção, entre a pessoa e as suas representações
2 https://saopaulosecreto. com/instalacao-deeper-sp/. Acessado em: 01/04/2024.
3 Janaína Ribeiro (2017) Autoescrituras performativas: do diário à Cena. São Paulo: Perspectiva.
virtuais através de seus avatares. Tudo isso parece ser um campo fértil para as linguagens artísticas em suas múltiplas hibridizações.2
Nesse sentido, a instalação caminha com as novas pesquisas sobre as experiências psicodélicas e suas funções terapêuticas. Em tese, são os estados dissociativos, herdeiros de condições traumáticas ou retraumatizantes, que se mostram mais responsivos às transformações induzidas por experiências psicodélicas associadas com escutas psicoterapêuticas. Aliás, esta já era a preocupação de Janaína em seu ensaio “Autoescrituras Performativas: do diário à Cena”3, no qual a noção psicanalítica de outra cena, usada por Freud para designar a cena inconsciente, parece ser mobilizada para pensar a estrutura mimética e ficcional da biografia. Assim como nas montagens teatrais de Stabat Matter e em Conversas com meu Pai, Janaina intui a proximidade entre a economia do prazer e a procriação dos modos de habitação do mundo, sejam eles chamados de mundos possíveis, sejam visões de mundo, ou ainda perspectivas cruzadas. Ser dirigida pela própria mãe em uma peça em que contracena com um ator pornô não choca pelo inusitado da ideia, mas pela lógica surrealista do encontro. Como diria o conde de Lautréamont “encontro de uma máquina de costura com um guarda-chuva sobre uma mesa de dissecação” ou, como dizia Breton, refraseando o encontro
“beleza convulsiva”. O problema aqui não é a suposta heterogeneidade dos objetos, afinal no feirão de inutilidade neoliberal, o que menos estranhamos é a heterogeneidade dos objetos em exposição sob um único enquadre. Trata-se quase do contrário – diferentes enquadres produzindo uma dissociação do objeto. Daí se entende o reencontro, em Deeper, dos mesmos recursos que Lacan empregou para tematizar o fantasma neurótico: anamorfose, repetição e subtração. Como nos filmes de Yorgos Lanthimos, o uso conjugado de lentes esféricas e de iluminação hiper-realista produz a estranha sensação de que os personagens estão mecanizados, como se tivessem perdido algo de essencial em sua figuração, criando um espaço de mútuo recobrimento entre o humano, o humanoide e o inumano. Pessoa, animal e coisa aparecem separadamente quando decompomos a fantasia em suas funções. É exatamente isso que o trauma é capaz de fazer: dissociação, esquizoidia ou desidentificação entre sua função de encobrimento do real, subtração do objeto de gozo e deformação entre a experiência do corpo e do mundo.
A teoria psicanalítica da fantasia como integração, por meio de uma economia de prazer, da identidade corporal com a unidade do mundo, vem encontrando alguns estranhos
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Sinestesia – do grego do grego synaisthisía (syn-) “união” ou “junção” e (-esthesia) sensação” – é a relação de planos sensoriais diferentes. Por exemplo, o gosto com o cheiro, ou a visão com o tato. O termo é usado para descrever uma figura de linguagem e uma série de fenômenos provocados por uma condição neurológica.
achados das neurociências. O primeiro deles é a sinestesia, o cruzamento de experiências sensoriais heterogêneas, como emoções com cheiro, sabores com temperatura, cheiros com sons, palavras com gosto, símbolos com personalidades, coisas com desejos. A experiência Deeper parece criar uma sinestesia 4 artificial quando separam e agregam diferentes instrumentos de modulação para nossa percepção visual (óculos 3D), auditiva (fones de ouvido) e motora ( joystick). Ou seja, a disjunção entre as regras de deformação produz uma experiência de corpo em dissociação.
O segundo fenômeno mobilizado pela Deeper é a cenestesia: o sentimento vago que existe de forma independente em relação aos sentidos, fornecendo uma sensibilidade interna do organismo ou impressões relativas ao bem-estar geral. O fenômeno envolve uma percepção indeterminada de si (propriocepção).
Sensações de perda de identidade, alteração da percepção de reconhecimento do corpo e estranhamentos com afetos, inclusive a dificuldade de nomeá-los (alexetimia), são exemplos de fenômenos cenestésicos. Sensações de bem-estar, mal-estar, fome indefinida ou angústia indeterminada apontam para propriocepções cenestésicas. É o que acontece quando Deeper nos leva a situações inusitadas de prazer e dor, de segurança e temor, de incerteza e angústia.
O terceiro fenômeno evocado pela imersão Deeper é a sincinesia: movimentos involuntários causados por outros movimentos ou afetos do corpo. O mais conhecido é o gesto de colocar a língua para fora quando se vai realizar uma ação motora muito fina como colocar a linha em uma agulha. Há sincinesias que envolvem a contratura de todo um lado do corpo, ou de um conjunto extenso de músculos, em associação com condições neurológicas graves. Em Deeper podemos nos movimentar como se estivéssemos andando ou agarrando as bordas de uma janela para ver o que tem do outro lado dela. Mas os movimentos virtual e real são assíncronos. Podemos andar, mas logo nos deparamos com um estranho reticulado que indica que estamos saindo da zona da experiência. Podemos sentir que estamos subindo ou descendo, o que ganha uma nota a mais de “realidade”, pois nos abaixamos ou levantamos os pés, acompanhando a deformação que é proposta visualmente, mas desmentida proprioceptivamente.
Ao final e ao cabo não é estranho que as sinestesias divergentes entre mãos, olhos e ouvidos sejam percebidas com uma angústia cenestésica e despertem reações de sincinesias motoras em nós. Afinal, a imersão vai fundo na desmontagem artificial de nossa fantasia. Aqui, o que a psicanálise demora anos para en-
sinar ao sujeito, de tal forma que este consiga se advertir mas também melhor usar, a experiência estética mostra de forma experimental e simulada em menos de 60 minutos. As duas valem a pena: fast drive e long run.a
DOSSIÊ METAVERSO
Eduardo Carvalho é curador de exposições, jornalista e gestor cultural. Diretor da Outra Onda Conteúdo, desenvolve projetos nacionais e internacionais que usam cultura, tecnologia e design para engajar a audiência sobre pautas sociais, entre elas os impactos da mudança climática na sociedade. Foi curador-assistente do Museu do Amanhã, no Rio de Janeiro, é mestre em Gestão da Economia
Criativa pela Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM) e bolsista do programa Chevening Clore Fellowship, no Reino Unido, focado no desenvolvimento de lideranças em economia criativa, artes e cultura. Finalista do Prêmio Jabuti em 2018 e 2024. Desde 2021 é responsável por conceber os pavilhões da sociedade civil na Conferência da ONU sobre clima. É um dos criadores da coleção “Educação Climática com a Turma do Pererê”, da Editora Inteligência Educacional, focada em compartilhar informações sobre a mudança climática para o ensino fundamental e que possui ilustrações do cartunista Ziraldo.
“A bolha estourou”. “O metaverso fracassou”. “NFTs não valem mais nada”. As frases acima têm sido ouvidas ou lidas algumas vezes em palestras ou reportagens publicadas em diferentes veículos, dando a impressão de que tais tecnologias não vingaram e viraram assunto do passado. Na verdade, o que experienciamos até o momento foi uma amostra de um metaverso que acaba de deixar a fase da infância e entrar na puberdade.
Biologicamente, quando falamos em puberdade estamos nos referindo à fase em que meninos e meninas, com idade aproximada de 10 anos, passam por mudanças físicas durante a transição para adolescência. A voz engrossa, os pelos crescem, o corpo muda.
Trazendo este conceito para o metaverso, o relatório O futuro é aqui, da Delloite China, sugere que após uma infância bastante agita-
da, teve início um processo de transição que o levará a um outro patamar. Lembrando que quando falamos de metaverso, nos referimos ao ambiente em que o mundo real e o mundo virtual se fundem, com suporte de tecnologias imersivas como a realidade virtual, realidade aumentada e a realidade mista, que podem utilizar óculos, sensores, celulares e fones de ouvido para a vivência de experiências digitais. Ao longo da infância do metaverso, compreendida entre os períodos de 2016 e 2020, emergiram tecnologias para seu funcionamento e houve o desenvolvimento de aplicações, softwares e equipamentos para diferentes indústrias, como a de jogos, a do cinema e a da medicina. Acentuado pela pandemia da Covid-19, vimos saltos geracionais ocorrerem nas artes e no entretenimento. Museus e instituições que sequer pensariam em tridimensionalizar suas coleções, correram para angariar fundos e virtualizar suas obras, permitindo ao público a visualização remota em diferentes formatos. Artistas tiveram a chance de experimentar os NFTs, tokens não-fungíveis que são ativos irreplicáveis, autenticados digitalmente e que não possuem equivalência similar (como ocorrem com as famosas obras de arte, por exemplo). Ganharam força também as moedas digitais, as criptomoedas, resguardadas pelo poderoso blockchain , um imenso banco de
dados criptografados que não podem ser alterados, aumentando a segurança de operações financeiras.
A impressão é a de que vivíamos a era do “tudo ao mesmo tempo agora”, em que muita gente ganhou dinheiro por meio de leilões ou vendas descentralizadas, sem os famosos atravessadores (que podem ser galerias de arte ou mesmo plataformas on-line).
Em conversa com o artista-programador carioca Vamoss, um dos brasileiros que concebeu coleções de criptoartes, ele cita que esta “infância” foi importante para o Brasil por ter dado protagonismo a artistas do Sul Global, propiciando uma independência financeira a uma classe artística que, por muito tempo, se viu negligenciada pelo elitismo do mundo das artes. Um movimento ao qual chamou de espírito de Robin Hood (famoso personagem inglês conhecido por tirar dos ricos para dar aos pobres), citando o já conhecido mercado eurocêntrico e norte-americano.
Quando falamos sobre a impressão de ter ocorrido um possível fracasso do metaverso, especificamente o NFT, Vamoss explica que não é bem assim. “A mudança ocorreu no volume de vendas, que caiu devido à uma baixa no mercado, mas o tema segue com fôlego, num outro ritmo”.
O relatório anual publicado pela
DappRadar, plataforma que analisa dados da Web3 em tempo real, comprova esta impressão: o ano de 2023 registrou declínio de aproximadamente 50% no volume de negociações de NFTs em todo o mundo, que caiu de US$ 24,8 bilhões para US$ 12,6 bilhões. Os dados apontam ainda que, apesar do declínio do volume financeiro negociado, mais gente de diversos setores, como marcas de moda, estúdios de jogos e outras empresas consideradas “tradicionais”, entraram para o mundo dos NFTs.
A FASE DAS DESCOBERTAS
Esses estreantes aguardam ansiosamente pelos desdobramentos da puberdade do metaverso, período compreendido desde 2021 e com previsão de seguir até 2030, segundo os especialistas da Delloite. Nesta fase de transição rumo ao estágio de amadurecimento – que ocorreria a partir de 2030 – viveremos um avanço tecnológico substancial com a criação de mais ecossistemas descentralizados (tchau, tchau Big Techs) e uma infraestrutura que dê conta da chamada Web3, que fará o metaverso mostrar a que veio.
A evolução da Internet como a conhecemos promete mundos e fundos com o suporte do metaverso. Será possível estar conectado a diversos ecossistemas de inovação e criação descentralizados, diferente das plataformas
atuais dominadas pelas grandes corporações tecnológicas como Meta ou Google. É como se cada usuário se tornasse sua própria ilha de bits e bytes, podendo se relacionar diretamente com as outras ilhas, sem a interferência de terceiros. Além disso, moedas virtuais que já circulam atualmente podem ganhar ainda mais tração com o fortalecimento do blockchain , podendo até substituir as tradicionais moedas comerciais que usamos atualmente (será o fim da circulação de dinheiro como conhecemos hoje?). Tudo isso, tendo como aliada a inteligência artificial generativa.
São vários os desafios que temos pela frente para implementar tudo o que se promete em relação à nova fase do metaverso, e que poderão ser superados com experimentação. Com o poder da criatividade, poderemos desenvolver interfaces que sejam mais amigáveis, potencialmente promovendo a democratização do acesso à internet de qualidade e da produção de conteúdos, podendo oferecer maior segurança e governança aos usuários, além de maior acessibilidade e inclusão.
Nas artes e no setor cultural, as oportunidades de uso do metaverso compreendem a preservação de patrimônios culturais (diminuindo o risco de saques devido a guerras e conservando a memória de locais que podem se perder após conflitos ou catástrofes ambien-
tais) e o fomento ao diálogo entre diferentes experiências culturais, como a criação de um turismo digital imersivo que contribua para o desenvolvimento econômico e social de populações.
Artistas podem ainda contribuir com a construção de narrativas que gerem conscientização do público e engajamento em relação a questões sociais globais. Ao vivermos uma crise climática nunca vista pela humanidade, histórias potentes que convidem pessoas e empresas a transformarem a realidade por meio da adaptação serão mais que necessárias.
Em o Jogador Número 1, livro que depois virou filme, o autor Ernest Cline nos mostra um metaverso de altíssimo nível, vivenciado por centenas de milhares de pessoas que existem em um mundo desigual e problemático. Na história estilo cyberpunk, todos buscam a realidade virtual para esquecer os problemas do dia a dia. Que o metaverso, assim como a IA , evolua e nos ajude a nos afastar desse futuro distópico, sendo ferramenta para a construção de um mundo mais plural, tecnológico, inovador e menos desigual para todas as pessoas.a