pontilhados– pesquisas da cena universitária \ 2024
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pesquisas da cena universitária \ 2024
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foto : Olga Lysloff
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O incentivo à pesquisa e à investigação da diversidade de saberes e das diferentes etapas que compõem o ecossistema da criação cênica conduz e alimenta a publicação Pontilhados. Somos movidos pela possibilidade de manter acesas as centelhas da curiosidade, do problema e da busca por respostas – e perguntas – capazes de instigar, subverter e retorcer conceitos e modos de viver e de se relacionar com as linguagens artísticas e suas reverberações. Entre as tantas camadas dessa mirada, revela-se, ainda, a dimensão estética dos encontros: o encanto com os textos – as pesquisas, as movimentações de estudantes de tantos cantos do país, seus percursos e suas inquietações – e a beleza dos reconhecimentos entre a comissão de seleção, como aqui testemunhamos. Somam-se a isso as leituras diversas que intuímos que estes textos encontrarão, forjando novas pontes teatro afora, dança adentro, circo, performance, arte e educação. As dimensões do corpo cerzindo saberes transversais dentro e fora dos espaços instituídos de aprendizagem, em comunidades temporárias, em zonas de encontro fixas ou fugidias que reafirmam a força e a singularidade do encontro, da troca, da conversa. Deixemos que falem os textos. Abrimos esta roda de conversa em travessia, na ponte que é lastro, elo, liga de ideias e de alumbramentos, chamando as vozes do comitê que selecionou os trabalhos desta quarta edição. Digam-nos, Annie, Carlos, Kleber e Renata, como lhes chegam estas escrituras e como apresentam este conjunto polifônico que desejamos ver irradiar em cena expandida, para que mais gente possa acessar novas perguntas, desejos e investigações sobre as artes cênicas em curso, com representações de todas as regiões brasileiras.
Galiana Brasil gerente do núcleo de curadorias e programação artística
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\ conversas sobre a_ponte Os cursos de artes da cena e do palco nas universidades têm sido fator importante para a realização de pesquisas nesse campo. Isso reafirma a relevância dos investimentos nas graduações como fator de incentivo para a criação de produções robustas que dialoguem com as experiências em arte no cotidiano das pessoas e tenham maior inserção social. Assim, fazer parte de uma comissão que tem o compromisso de se debruçar sobre mais de cem pesquisas realizadas no biênio 2023-2024 foi uma experiência marcante, capaz de evidenciar uma possibilidade de mapear os interesses de estudos e potências no campo das artes. Impossível não me lembrar da minha vida universitária, de quanto as conversas de corredor com colegas do curso e professores, as visitas às bibliotecas, o envolvimento com as disciplinas de outros cursos e as festas foram me ajudando a identificar a jornada que gostaria de seguir no curso de artes cênicas. Incentivado por todo esse sentimento… Batata! Elaborei o projeto de pesquisa de iniciação científica. E fiquei feliz quando participei da feira em que os projetos foram apresentados e pude conhecer outros novos pesquisadores de artes, para mim uma grande novidade. Renata, eu fui pego por essas lembranças durante esse processo de leitura dos trabalhos, que demonstrou a relevância das plataformas de publicação de pesquisas em artes como um intercâmbio aberto aos leitores. O que bateu para você? Sabe, Carlos, tanta coisa reverbera em mim sempre que penso em uma parte tão relevante da minha vida que acontece no espaço da sala de aula, eu me lembro com frequência do que o mestre Paulo Freire chama de “chão da escola”. Não tem como não imbricar a vida da gente com
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um processo como este, de seleção dos artigos para a publicação do Pontilhados. Desde aluna em todas as instâncias do ensino (fundamental, médio e superior) até quando me tornei docente, nunca mais saí da escola, da sala de aula. Permaneci refletindo sobre a construção e troca de saberes. Misturada a tantos estudantes, sinto-me sempre parte dessa curiosidade própria do aprender brincando, do ludo, do jogo, da ginga, como se numa roda de capoeira, sabe? Sendo professora, sendo artista, sendo espectadora, eu me sinto alimentada. A diversidade de temas, o perfil tão diferente de estudantes que hoje se constata nas graduações pode parecer pouco, mas me diz o quanto a trajetória das universidades, dos cursos técnicos e das academias reverbera o elitismo e o classismo que foram seus pilares de formação. Penso também quanto hoje se multiplicam questões anteriormente invisíveis no campo acadêmico: a negritude, questões de povos originários, o saber de mestres, o fluido e “epifânico” espaço das identidades e questões de gênero que se impõem como saberes e com suas epistemologias próprias – mais ainda, com seu vocabulário. Como nos ensina o mestre Nego Bispo, aqui se plasmam artigos/ensaios que fazem a arte ser vida: “A arte é conversa das almas, porque vai do indivíduo para o comunitarismo, pois ela é compartilhada”. E são almas muito preciosas estas que se reúnem neste grande encontro que é a edição deste ano do edital. E tu, Kleber, querido, como tudo isso ecoa em ti? Renata, são muitos os ecos que por aqui chegam a partir dessas imagens que você levanta, trançando: arte, vida e a tua experiência docente. Eu me vejo nessa vida múltipla que também é una, na qual estamos professores e artistas trocando saberes com outras pessoas. Um dos ecos que ressoam é perceber, nestes últimos anos, o movimento crescente da escrita de artistas em formação sobre suas práticas e experimentações. Pesquisas artísticas sendo registradas, compartilhadas e que, em suas abordagens, não estão separadas das questões do sujeito em sociedade, em que, por vezes, a formalização estética ganha mais valor, criando atitudes opressivas e/ou cartilhas colonizadoras nos modos de produção em arte. Daí, também, a importância desta publicação, que vem publicizando esse movimento recente e apostando num olhar decolonial em suas análises.
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\ conversas sobre a_ponte
Muito bonito é poder me encontrar novamente com estes escritos, que, assim como Carlos, me fizeram rememorar a vida universitária, percebendo uma espiral de tempos e os contextos que estão diferentes. Nesta edição, observo nos escritos a forte marca dos processos criativos e do muito que envolve a carpintaria cênica: variadas metodologias de criação, reflexões sobre a encenação e a direção, as dramaturgias do texto e da cena, o trabalho da atriz/ator, o corpo, a gênese de núcleos artísticos em variados territórios deste país, a ação coletiva que transborda os muros da universidade e chega à comunidade como ato cultural e político. Diversos assuntos que pertencem às poéticas da cena e que, por meio delas, deflagram o que chamo de dramaturgias urgentes. E, ainda, nesse trançado bonito que se formou temos um panorama expressivo de pesquisas que reconfiguram estatísticas e nos apontam, sim, mudanças: entre os 20 selecionados, há 12 artistas autodeclarados pessoa negra, parda, preta, negra de pele clara; 6 artistas brancas; 1 artista preta indígena; 10 mulheres cisgênero; 5 homens cis; 1 homem transgênero; 1 homem não binário; 5 artistas da Região Sudeste; 5 da Região Sul; 4 da Região Norte; 4 da Região Centro-Oeste; e 2 da Região Nordeste. Dados e marcadores que, visibilizados, nos fazem enxergar e não mais virar os olhos para as modificações vigentes e, com isso, projetar muito do que ainda precisa ser feito, para continuarmos espiralando, rememorando e vivendo. Annie, como chegou a você este Pontilhado? É, Kleber, Renata e Carlos! Pontilhar é partilhar! É tão bom partilhar e encontrar com vocês nestes escritos, nestas pesquisas potentes. Aqui também agradecemos à equipe digna da Pontilhados – pesquisas da cena universitária e a todas as entidades da floresta que nos acompanharam neste intenso processo de mergulho e encontros de muitas águas que banham este país. Foi enriquecedor realizar a leitura de pesquisas tão importantes. A partir delas, enchemo-nos de vida e de esperanças sobre as possibilidades artísticas e pedagógicas que possibilitam um mundo humano mais possível. Como indígena Ticuna em retomada, evoco o saber da floresta para nos guiar, para marcar todos os corpos aqui presentes, como um corpo-rio,
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que flui, que corre em fluxo sereno, como o Rio Amazonas, profundo, grande e intenso. Aqui convoco e convido a todos(as/es) leitores(as) a mergulharmos nesse encontro das águas e adentrarmos na mata de saberes como um corpo-bicho, que sente intensamente cada barulho, cada respirar, cada folha que cai, respeitando o hábitat. Somos corpos abertos cheios de vida, somos corpo-bicho, corpo-bicha, corpo-floresta, corpo-rio, corpo-mídia, corpo-brincadeira, corpo-mãe, corpo-dança, corpo-luta, com expressividades sinceras dos afetos, com teatralidades inatas. Aqui aprendemos que o teatro, por exemplo, não é mais só o lugar que se VÊ, mas é LUGAR QUE SE VIVE. E a floresta é o LUGAR DO SABER. Como já dizia o filósofo originário Ailton Krenak, “o futuro é ancestral”, ou deveria ser. Ainda as contradições do mundo contemporâneo, a sociedade do cansaço e dos corpos dóceis/obedientes nos impedem de voltar a si, de retomar nossas origens. Ser ancestral, antes de mais nada, é ser coletivo, é partilhar, e comungar saberes com respeito e solidariedade, é definitivamente o amor em ação, como dizem bell hooks e minha vó Dica – esta já encantada (falecida). Considero esta publicação, junto com vocês, uma edição especial, pois pessoas pretas, indígenas, trans e mulheres alcançam um patamar de representatividade, de vozes amplificadas, de saberes compartilhados sobre como as artes são transformadoras e o espaço cênico é “escrevivência” (parafraseando Conceição Evaristo), é espaço de cura, de retomada pela escrita; portanto, são pesquisas vivas. E, diante de um cenário cheio de absurdos reais, das florestas queimando e de machucados pelo racismo, pela xenofobia, pelo machismo, pela homofobia, transfobia, por toda a LGBTQIA+fobia, pelo PA-TRI-AR-CA-DO e todas as aversões pela simples existência de corpos e corpas dissidentes, esta edição é também urgente, necessária e artivista. Sabemos que há muito a fazer para continuarmos a “escreviver”, mas aqui iniciamos uma tentativa, um treinamento não colonial.
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\ conversas sobre a_ponte
Na vida e na arte, os escritos aqui contidos trazem as cicatrizes de vivências que a arte foi capaz de cutucar, mas que imediatamente se tornam coadjuvantes diante da potência da criação cênica com os mais diversos públicos e lugares. Por aqui vamos ver e sentir corpos fluindo, em estado de letramento, desconstrução e decolonização. Somos todos(as/es) corpo-poesia e, com respeito aos (às) ancestrais e encantados(as/es), vamos pontilhar, isto é, de ponto em ponto, construir caminhos possíveis, com cores e sabores, confiantes no teatro, nas artes e em uma vida pulsante com ideias e ações verdadeiramente humanas. Pesquisar e escrever é renovar as energias para continuar as lutas. Bora? Bom mergulho! (Imaginem-se jogando-se no rio e finalmente se refrescando e renovando as energias, 1, 2, 3 e já!)
Annie Martins, Carlos Gomes, Kleber Lourenço e Renata Pimentel comissão de seleção
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Annie Martins é nortista, mãe, indígena em retomada da etnia Ticuna, professora do curso de teatro da Universidade do Estado do Amazonas (UEA) desde 2011, doutora em educação, coordenadora do projeto Arbítrio: teatro na prisão no amazonas. Suas pesquisas se concentram nas áreas de teatro e comunicação, com o foco na intersecção de gênero, raça e classe, teatro das pessoas oprimidas, mulheres indígenas e prisões. Carlos Gomes é bacharel em artes cênicas pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) desde 2001, formado em pedagogia pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) desde 2016 e mestre em economia da cultura pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) desde 2024. Foi integrante do Grupo do Santo de 1998 a 2005. Idealizou e dirigiu o projeto Esse teatro dá samba, com jovens da região do Jardim Ângela, em São Paulo (SP). É autor da pesquisa que resultou em um livro e sete curtas documentários Um batuque memorável no samba paulistano, e coordenou o Programa de Fomento ao Teatro (2014-2015) da Prefeitura de São Paulo. É coordenador do Núcleo de Curadorias e Programação Artística – artes cênicas – no Itaú Cultural (IC) desde 2016. Kleber Lourenço é artista do teatro e da dança, educador e pesquisador em artes da cena. Doutor em artes pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e mestre em artes pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp). Dirige o Visível Núcleo de Criação, é integrante do grupo de pesquisas MOTIM [Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq)/Uerj] e da Capulanas Cia. de Arte Negra/ SP. Seus trabalhos se concentram nas linguagens da dança e do teatro em cruzamento com as tradições populares, atuando nas áreas da coreografia, da encenação e da formação pedagógica. Renata Pimentel, nascida no Recife, é professora na Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE) desde 2010. Poeta e escritora de prosa, de dramaturgia e de roteiro para audiovisual, tem formação em letras, dança e teatro, e atua com curadoria em artes visuais, artes da cena e cinema.
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\ sumário
14 \ solo e circo: o circo latino-americano em São Paulo Aline Araujo Filgueira
38 \ cartografando uma personagem extraterrestre: trajetória de uma atriz cuiabana Amarílis da Costa Silva e França
66 \ teatrovivência de Abdias Nascimento: a estética negra da peça Sortilégio no teatro experimental do negro Danielle Souza Gabriel
90 \ desterritorializando a direção por uma linha de fuga lésbica: ruídos epistemológicos Djulia Márcia dos Santos
116 \ desarranjo corporal e a preparação de atuantes teatrais Erique Rafael Lima Nascimento
142 \ torturas: um estudo sobre processo de criação, padrão de beleza e teatros feministas Flavia Grützmacher dos Santos
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\ retrospectiva histórica do ensino de teatro no Brasil e a sua influência no território goiano Jackeline dos Reis da Silveira
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\ Coletivo Arame Farpado: Chacotas negras LGBTQIA+ como fuga das criações de dor João Zabeti
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\ relato de experiência na Zona Franca de Manaus: a construção da montagem cênica Operária Kelly Vanessa Nunes de Sousa Prof. Me. Madirson Francisco Souza
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\ memória, texto e revolução: percepções sobre as possibilidades do gênero dramaturgia de autorreferência para a construção da autonomia Lucas Luciano Cardoso de Oliveira
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\ a floresta, o rio, o barco e o casco na catalogação de corporeidades de um artista amazônico Marcos Maciel Fernandes
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\ sumário
302 \ balbúrdia na universidade pública: (r)existência LGBTQIAPN+ no instituto de artes da Unesp e suas possibilidades pedagógicas Mateus de Freitas Campos
330 \ cartas para não morrer: arte como potência de cura do corpo transvestigênere Matteo Nanni de Paiva
corajosa construção teatral 358 \ em tempos de cansaço Nathália Albino de Souza
visibilidade e representatividade de 386 \ mulheres lésbicas em As sereias da Rive Gauche: pioneirismo e desdobramentos na cena teatral do séc. XXI Rafaela Jacomini Souza
o teatro com criança se faz brincando: 410 \ o desenvolver teatral na comunidade do bairro Tuiuiú, em Primavera do Leste – MT Raquel Elias dos Santos
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\ código (não)binário: o objeto 434 técnico enquanto processo potencializador na criação cênica Ravena Sena
\ performação de espectadores: 464 mediação cultural na região da baixada da Sobral Rylary Karen Targino da Silva
\ o BAILE CÚIER: a cultura ballroom 494 e os corpos dissidentes dos padrões cis heteronormativos na criação de uma encenação Sidnei Mauro de Melo Junior
\ corpo e literatura: aproximações dançadas da Odisseia por diferentes gerações na escola Thiago Prado Neris
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\ ficha técnica/ISBN
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\ solo e circo: o circo latino-americano em São Paulo
Aline Araujo Filgueira Aline Filgueira, São Bernardo do Campo (SP). É produtora e, há pelo menos cinco anos, atua na área cultural. Formou-se em produção cultural pela Universidade Federal Fluminense (UFF), em Niterói (RJ), com pesquisa voltada para o universo circense.
alinefilgueira0@gmail.com
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FICHA TÉCNICA Instituição Universidade Federal Fluminense (UFF) Tipo de curso Graduação (bacharelado) Nome do curso Produção cultural Período do curso 2019-2023 Estado Rio de Janeiro Título do trabalho Solo e circo: o circo latino-americano em São Paulo Nome da autora Aline Araujo Filgueira Nome do orientador Professor doutor João Luiz Pereira Domingues Número de páginas 20
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\ solo e circo: o circo latino-americano em São Paulo
\ RESUMO O presente trabalho propõe pensar a imigração de artistas circenses latino-americanos para o Brasil, com foco para a cidade de São Paulo, como um movimento influenciado por mudanças políticas, sociais e culturais na América Latina e também por transformações artísticas dentro do próprio circo, a partir do surgimento do chamado novo circo no território latino. Uma vez que, esse deslocamento ocorre paralelo a uma onda de inovações e criações, e atrelado ao efervescente funcionamento de escolas de circo no Brasil e em outros países da América Latina. Buscando traçar uma ligação entre esses processos e indicar qual a sua influência para o circo brasileiro. Palavras-chave: Circo Latino-americano; Migração circense; Circo contemporâneo.
\ ABSTRACT This paper deals with Latin-American circus artists’ migration to Brazil, focusing on the city of São Paulo. From the observation of artistic transformations within circus performances, it is proposed to think of it as a movement influenced by political, social, and cultural transformations in Latin America, culminating in the surge of the so-called “nouveau cirque”. As these movements occur in parallel with a wave of innovations and creations, alongside Brazilian and other Latin circus schools operating effervescently, it is aimed to draw a connection between these processes and suggest their influences on Brazilian circus. Keywords: Latin-american circus; Circus migration; Contemporary Circus.
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\ RESUMEN Este trabajo aborda la inmigración de artistas circenses latinoamericanos a Brasil, centrándose en la ciudad de São Paulo. A partir de la observación de las transformaciones artísticas dentro del propio circo, se propone también pensarlo como un movimiento influenciado por cambios políticos, sociales y culturales en América Latina, culminando con el surgimiento del llamado “nuevo circo” en América Latina. Este desplazamiento se produce en paralelo a una ola de innovaciones y creaciones, vinculadas al efervescente funcionamiento de las escuelas de circo en Brasil y otros países de América Latina, con el objetivo de establecer una conexión entre estos procesos y señalar su influencia en el circo brasileño. Palavras-chave: Circo Latinoamericano; Migración circense; Circo Contemporáneo
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\ solo e circo: o circo latino-americano em São Paulo
\ INTRODUÇÃO O ímpeto para a pesquisa surgiu da minha experiência pessoal trabalhando na produtora Margarida Agência de Cultura, que hoje atua em conjunto com alguns grupos de circo formados por artistas latinoamericanos residentes no Brasil. Grupos estes, que apresentam em sua trajetória certas semelhanças quanto ao processo de imigração e construção da sua carreira artística no país, assim como outros tantos artistas e companhias. Como é o caso do Circo Amarillo, de Marcelo Lujan e Pablo Nordio, argentinos que ainda em seu país natal criaram o grupo e por volta de 2002 chegaram ao Brasil, onde até hoje seguem como dupla. E da acrobata, aerialista e trapezista Érica Stoppel, também argentina, prestigiada artista circense e integrante do Circo Zanni1 e da Cia das Rosas. Ou o Circo Delírio, de Esteban Hetsch (ARG) e Gonzalo Caraballo (URU), que juntos criaram a companhia durante encontros no Circo no Beco. E os uruguaios Diego Martínez e Jorge Zagarzazú, do grupo The Pambazos Bros, que por aqui chegaram em 2004. Há também a artista circense, performer e figurinista Marian del Castillo, panamense que um pouco antes da virada do século iniciou sua formação nas artes circenses, na cidade de São Paulo, e hoje integra o grupo Ministério sem Fronteiras2. E Chino Mario, chileno, que em 2003 veio para o Brasil participar de uma convenção de malabarismo e desde então reside em São Paulo, artista solo e integrante do Grupo Irmãos Becker e Cumbia Calavera3. Esses, e outros artistas, argentinos, uruguaios, chilenos, colombianos, compõem um extenso grupo de artistas de circo, que em suas individualidades, possuem em comum o fato de virem para o Brasil entre o final dos anos 1990 e início dos anos 2000. Tornando-se moradores fixos no país, que com a intenção inicial de fundamentarem-se aqui ou não, fizeram daqui seu principal local de atuação e formação artística. Ao falar sobre artistas e companhias que não são de circo de lona, apresento uma outra relação com o território, com a comunidade e com a
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1. Circo Zanni, companhia de circo de lona, que em 2024 completou 20 anos de existência, referência para o circo contemporâneo e do qual também fazem parte Marcelo Lujan e Pablo Nordio, citados anteriormente. 2. Ministério sem Fronteiras, grupo latino-americano multicultural que tem a imigração como tema principal de suas criações artísticas. 3. Cumbia Calavera, grupo musical composto por diversos artistas latino-americanos, que propõe uma releitura instrumental de cumbias clássicas.
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própria arte. Pelo fato desse movimento não se dar dentro de uma família tradicional, é então, um movimento que muitas vezes ocorre de maneira solitária, implicando nesta jornada a necessidade de construir sua própria linha de aprendizagem, por saberes que não foram passados por gerações anteriores, indo de maneira independente atrás da sua formação e capacitação, e principalmente, da construção de uma rede de apoio.
1 \ OS MODOS DE PRODUÇÃO CIRCENSE, UM OLHAR SOBRE O INDIVÍDUO E NÃO A TIPIFICAÇÃO Hoje são utilizados alguns termos e classificações de produções circenses dentro da história do circo moderno. O circo tradicional/clássico, o novo circo, o circo contemporâneo, o circo de rua e ainda o circo social, que nasce a partir da adesão das escolas de circo. Essas tipificações, claro, são alvos de muitas discussões e contraposições, pois acarretam em seu uso diversas camadas que incluem disputa de memória e perspectivas coloniais e decoloniais acerca do assunto (LOPES e SILVA, 2023). Não pretendo com a descrição delas eleger apenas uma como representante do tema aqui a ser abordado, mas usá-las como ferramenta para interpretar com mais clareza o grupo do qual trato no texto, entendendo que essas divisões possuem efeito direto no perfil do artista e do circense. E também, porque essas mudanças dentro do circo ocorrem paralelamente a mudanças culturais e sociais dentro da América Latina, perpassadas por períodos políticos que afetaram a maneira como essas produções circenses distintas foram adotadas, semeadas e desenvolvidas no contexto latino-americano. Por ora, é essencial ressaltar que tratam-se de modos de produção, em maior ou menor escala, em plena atividade. Mas ressalto a atuação de alguns deles ao longo de todo trabalho, como o novo circo, o circo contemporâneo e o circo de rua (INFANTINO, 2023). O primeiro devido ao fato de ter emergido em um período em que esses artistas se iniciam no circo, e por ser fruto e consequência do surgimento das escolas de circo,
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\ solo e circo: o circo latino-americano em São Paulo
uma questão essencial no trabalho. O segundo, por estar relacionado justamente ao momento de chegada desses artistas no país, o momento em que irão migrar para o Brasil e produzir alguma de suas principais obras, tendo como fio condutor essa especificidade. E o circo de rua, por além de ser fruto dos novos modos de produção dentro do circo, são de muitos artistas a escola não oficial e também o primeiro palco, ponto de partida e de encontro, como ficará claro mais para frente. Assim, por ordem, o circo tradicional ou clássico, trata-se da forma moderna de fazer circo, caracterizado pelo circo de família, a itinerância e a lona. Onde a arte e o ofício, sendo que aqui mais do que em qualquer outra época, ocorrem de forma conjunta e inerente um ao outro, se aprendem debaixo da lona e por um conhecimento passado entre gerações. No Brasil, teve início a partir do século XIX (SILVA, 1996). essa forma de fazer circo é de certo a mais popular e presente na lembrança dos brasileiros, quando não, a única ligação que fazem com a arte circense. O novo circo, surge no início dos anos 1970 e se desenvolve ao longo dos anos 1980 na França e posteriormente, levado por vanguardistas do movimento, no Canadá (MOGLIANI, 2023), difundido por alunos e artistas de escolas de circo francesas, que formarão importantes companhias que irão fundamentar o novo circo, como o Cirque du Soleil4, por exemplo (MOGLIANI, 2023). Esse tipo de produção sai das lonas e toma outros espaços como palco, caracterizado por incorporar elementos de produção de outras artes de cena, e isso acontece devido à origem desses novos artistas. O novo5 do novo circo atribui-se ao surgimento de um diferente modelo de formação circense, marcado como aponta Ermínia Silva (2009), não mais exclusivo e restrito ao ambiente familiar e de lona, pela transmissão oral do saber passado de pai para filho, mas sim por uma formação intermediada por uma escola especializada na arte. Assim, os artistas não mais precisavam ser de família tradicional para tornarem-se artistas circenses, como era de praxe, permitindo que artistas já formados em teatro e dança, por exemplo, se iniciassem no circo e trouxessem com
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4. Companhia de entretenimento, criada em 1984 no Canadá, reconhecida mundialmente. 5. “Idealmente, o circo, como linguagem, sempre apresentou o “novo”, ou ao menos “novidades” para seus públicos, com sua diversidade. E essa sempre foi a chave de seu sucesso. Nunca teve medo de assimilar algo que parecia não ser “seu”, não ser “circense”. Pelo contrário, tudo, ou quase tudo, sempre coube no circo, em particular os diversos formatos do “novo”. Como espaço arquetípico da superação, o circo era um berço de inovações e de ousadia”. (MATHEUS, 2016, p. 87)
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maior protagonismo para sua formação e obras, as influências dessas outras linguagens artísticas. É a partir daí que ocorre um exponente crescimento das escolas de circo, de onde despontam novos artistas e grupos, que vão estabelecer novas formas de funcionamento, estrutura e hierarquia, apresentando novos “modos de organização” (SILVA, 2009). O novo aprendeu tudo com o circo família, com o Circo Tradicional. Aprendeu principalmente que pertencer a uma tradição e a uma familiaridade não significa estacionar, cristalizar. Incorporou conhecimento e o transformou como o circo sempre fez (COSTA, 1999, p.78). É neste contexto também que surge o circo social, como uma corrente das escolas de circo, mas caracterizado por iniciativas, programas e cursos que têm como proposta a realização de projetos sociais e educacionais através da arte circense (LOPES e SILVA, 2023, p. 29). Voltado principalmente para crianças e jovens em situação de vulnerabilidade social, o circo social aparece como método pedagógico de um ensino popular, que tem como objetivo a transformação social e comportamental na formação de cidadãos. Influenciado por esses dois modos, tomará força o circo de rua, que produzirá características próprias e culminará em uma nova e potente corrente de migração dentro do circo. Julieta Infantino, pesquisadora argentina, destaca essa modalidade como sendo um estilo único dentro do circo (2023), e à parte do novo circo, caracterizado pela: [..] convocação prévia, a convocação, o desenvolvimento do espetáculo, o momento de passar o chapéu e o encerramento. Da mesma forma, o estilo de rua envolve o uso da comicidade e comunicação constante com o público (INFANTINO, 2014, p. 63).
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\ solo e circo: o circo latino-americano em São Paulo
É através do circo de rua que muitos artistas chegarão ao Brasil, é através dele também que muitas transformações no circo nacional acontecerão, isso ficará mais claro quando trouxer o caso do Circo no Beco. E por último o circo contemporâneo, que começa a ser explorado na década de 1990, mas tem maior desenvolvimento no início dos anos 2000 e ao longo da década, marcado por um modo de produção e performance mais próximo do teatral (ROSSI, 2023). No circo contemporâneo, uma das principais características é que os espetáculos são marcados por dedicarem-se, não restringindo-se, a apresentação de uma menor variedade de técnicas circenses, sem que seja necessário a sucessão de números variados, onde as possibilidades de uso de uma única ou duas práticas guiam e estruturam a obra por completo (ROSSI, 2023). É possível argumentar porém, que essas delimitações e tipificações de criação, como em outras artes, são ambíguas, pois particularidades ligadas à diferentes períodos podem ser vistas em obras criadas muito antes da conceituação e denominação do gênero, alguns autores6 vão dizer ainda que tratando-se do circo essas distinções de produção são “descartáveis”, pois o circo sempre teve como base a multiplicidade de linguagens e por sempre ter se apresentado como uma arte vanguardista, que tem como padrão a superação de limites (LOPES e SILVA, 2023). Quando nos voltamos para os processos das produções artísticas e das histórias dos circenses, é impossível definir cada momento - por exemplo, o ano de 1850 como sendo “antigo, tradicional” e o de 2020 como “novo, contemporâneo”. Conforme apresentado, há fontes suficientes para afirmar que várias produções artísticas circenses no século XIX, em diversos momentos, foram tão inovadoras quanto um artista hoje oriundo de uma escola de circo, um profissional do Soleil. Dessa forma, conceitos e representações que se propõem universais não dão conta da riqueza das
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6. Cf. Silva, 2007; Lopes, 2015; Matheus, 2016; Rocha, 2018.
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histórias dos encontros artísticos, pois eles criam mais esquecimentos que produção viva de outras memórias (LOPES e SILVA, 2023, p. 39). Por essa razão reforço que uma não anula a outra, ao contrário, se incorporam e se completam. Não se trata nem do velho e nem do novo, trata-se da identificação desses sujeitos com sua arte e o efeito que isso possui. Pois partindo dessa contextualização, além de falar sobre um circo latino-americano com características próprias, estéticas e culturais, entendemos quem é esse migrante que iremos abordar, suas especificidades e circunstâncias, temporais e territoriais. E que ainda que não sejam tradicionais de circo de lona, constroem um vínculo com o solo de outras formas, como palco, como trabalho, como casa, como local de disputa, como fronteira, como lugar de encontro, de experimentação e aprendizagem.
2 \ O MIGRANTE CIRCENSE APÓS O PERÍODO DITATORIAL NA AMÉRICA LATINA E O SURGIMENTO DAS ESCOLAS DE CIRCO NOS ANOS 1980 [...] como falar de estética sem falar de política, se uma é tão cultural quanto a outra e se nós, seres humanos, oscilamos entre uma e outra fazendo sociedade, ou tentando fazer? Como dissociar uma da outra se no Chile, assim como na Argentina e na França, e em tantos outros lugares, o advento dessa “nova” arte, ou melhor, o retorno, em versão atualizada, de uma arte milenar tornou-se realidade novamente em virtude da necessidade de mudanças de paradigma, da recuperação dos espaços públicos, da pós-ditaduras, das pós-academias, das crises econômicas, das juventudes inconformadas? (SIMONETTI, 2023, p. 79).
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O artista circense é reconhecido no imaginário popular como esse “nômade sem endereço”, que vive de cidade em cidade sem moradia fixa, apresentando seus números. O próprio circo moderno é fruto da influência e cultura dos saltimbancos e dos mambembes europeus. Artistas populares e grupos circenses que transitavam e migravam entre cidades, por vezes integrando companhias locais de circo e de teatro de rua, se apresentando de maneira independente. Além disso, o início da história do circo no Brasil é marcada por essa imigração, itinerância e nomadismo. As práticas circenses no Brasil se iniciaram com a presença de grupos itinerantes e saltimbancos europeus, e principalmente, pela dinastias circenses, os circos familiares que a partir do final do século XVIII e início do século XIX, iniciaram seu processo de imigração da Europa Ocidetal para outros países (SILVA, 1996), marcando o início de um novo e essencial capítulo para o circo no Brasil, dando início ao chamado circo tradicional, já citado. Mas aqui o imigrante tratado não será o europeu, e essa imigração e itinerância se dará em uma época em que o circo estava em plena mudança e renovação, já no século XX e XXI. Onde esse deslocamento se dá por motivações e de maneiras muito únicas, ligadas à época, tanto dentro da arte do circo e suas mudanças e acontecimentos, como frente ao cenário político e econômico nos países latino-americanos. Essas mudanças, atrelam-se a uma época entre o período ditatorial e de redemocratização de países na América Latina, que antecede e perpassa o momento de surgimento do novo circo no solo latino-americano, principalmente sul-americano, estendendo-se em todo período entre os anos de 1960 a 1990. E que possui relação direta no processo aqui a ser analisado, dando caminho para entender a particularidade da arte, e a maneira de produzir de artistas e comunidades latino-americanas. Vou pontuar com maior detalhamento o caso de três países, a Argentina, o Chile e o Brasil.
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7. Augusto Pinochet, general ditador que governou o Chile durante o regime civil-militar. 8. Stronato é como ficou conhecido o regime ditatorial que durou quase 35 anos no Paraguai, sob o governo de um mesmo ditador, Alfredo Stroessner.
Nos anos 1980, de maneira comum, brasileiros, argentinos, uruguaios, chilenos e paraguaios, estavam em momentos cruciais do período de ditadura civil-militar em seus países nesta década, seja ainda em regime militar ou saindo dele. Brasil, Argentina e Uruguai, por exemplo, se reestruturando em uma pós ditadura, o Chile ainda dentro do regime de Pinochet7 e o Paraguai sob o Stronato8. No caso da Argentina, o fim da sua última ditadura (1976 - 1983), marcou uma intensa vontade e procura por parte do governo e da população, por uma abertura e investimento na cultura do país, trazido por “um sentimento generalizado de esperança e otimismo com a recuperação da liberdade de expressão” (MOGLIANI, 2023, p. 62). Este início de redemocratização significou para o circo argentino uma nova fase, que atrelada à expansão do novo circo e sua chegada no país, por influência europeia e norte-americana, resultou no impulsionamento de ações fomentadoras do ensino formal e institucional da arte circense. É por este motivo, que a argentina Laura Mogliani, coordenadora de pesquisa sobre história do circo na Universidad Nacional de Tres de Febrero, diz que “assim como aconteceu na França e no Canadá, a possibilidade de desenvolvimento do novo circo em Buenos Aires foi uma consequência do surgimento da formação circense” (2023, p. 66). Esse ensino que iniciou-se com oficinas, foi aumentando a variedade de técnicas abordadas, e assim ganhando maior destaque e reconhecimento em todo país. E essa expansão do ensino culminou na fundação da primeira escola de circo do país e a segunda da América Latina, a Escola de Circo Criollo, em 1982, fundada pelos irmãos circenses Jorge e Oscar Videla (MOGLIANI, 2023, p. 66). Marcando o início de uma forte e significativa presença do ensino regular e formal dedicado ao ensinamento das artes circenses na Argentina, de onde surgiram posteriormente outras tantas escolas, que serviram para originar distintos e prestigiados grupos.
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Vou me dedicar a falar de um um deles, por ter influência direta na cena do circo de rua argentino, o La Trup. Criado em 1992, o La Trup é citado como um marco do início do novo circo no país (MOGLIANI, 2023, p. 68). Composto, em sua primeira formação, pelos artistas Gerardo Hochman9, Marcelo Katz, Pasta Dioguardi, Gustavo “Mono” Silva, Mariana Paz e o Palhaço Chacovachi. Seu primeiro espetáculo foi o “En órbita” (Em órbita), que abordava a temática espacial com figurinos e cenários que remetiam ao espaço sideral, e dentre os números apresentados, havia acrobacia, contorcionismo, malabarismo, corda indiana, clowns, equilibrismo e outros. Deste grupo, destaco o palhaço Chacovachi, figura importante para a ascensão do circo de rua na Argentina, que mais tarde tornou-se referência mundial. Ao sair da La Trup, Chacovachi dedicou-se a apresentar-se em espaços públicos, em um período onde esse tipo de produção ganhava força, na década de 1990. Esse estilo despontou no país e influenciou outros artistas a especializarem-se na arte de “passar o chapéu”10, influenciando a difusão dessa distinta, popular e democrática forma de se apresentar para outros países da América Latina. É nesse período, mais para o final da década, que artistas argentinos, principalmente de rua, foram migrando para um país vizinho, o Brasil. Dentro de algumas circunstâncias, e uma delas é a proximidade com a região fronteiriça, culminando numa relevante presença de migrantes argentinos em cidades do sul do país, não à toa, cidades litorâneas com intenso fluxo turístico, de onde conseguem lucrar com seu trabalho passando chapéu, como ocorre até hoje. O mesmo acontece com os uruguaios, por exemplo. E paralelamente, a partir do início dos anos 2000, foram surgindo na região, escolas de circo, como é o caso da Circocan11, fundada em 2003 e da Escola de Circo de Londrina12, em 2004. Já no Chile, após uma das mais violentas ditaduras da América Latina, e que só teve fim em 1990, depois de 14 anos de duração. A sua fase de redemocratização foi marcada pela tentativa de reconstrução de uma
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9. Fundador da segunda escola de circo na Argentina, a Escola de Circo La Arena, em 1994. 10. Refere-se a “Cultura do chapéu” a ação de ser pago pelo público com o valor que lhe achar justo. “Passar o chapéu” ou “fazer chapéu”, portanto, são ações que remetem ao ato de fazer arte de rua, onde o público remunera o artista pela sua apresentação. 11. Mais em: <http:// www.circocan.com.br/aescola/>. Acesso em 06 de dezembro de 2023. 12. Mais em: <https:// www.circolondrina. org/>. Acesso em 06 de dezembro de 2023.
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13. Mais em: <https:// www.elcircodelmundo. com/>. Acesso em 06 de dezembro de 2023.
cultura, que recuperasse a expressividade da população chilena que depois de tantos anos de repressão e violência, parecia adormecida. Essa busca pela estimulação de uma nação entorpecida pelo medo e sofrimento, ainda que difícil e lenta, tinha como forte representante uma juventude instigada pela vontade de criação (SIMONETTI, 2023). Essa inquietude juvenil, social e intelectual é o grande aparato para o desenvolvimento de um movimento circense de destaque no Chile. Ainda com vontades e estratégias remanescentes do período ditatorial, encontros antes tidos como subversivos agora poderiam ser descritos como progressistas, foi esse anseio de (re) construção de uma comunidade e de uma identidade, que fez com o que a linguagem circense que surgiu no Chile tenha até hoje uma veia muito social. “Não há dúvida de que no Chile o novo circo se estabeleceu graças ao circo social e se desenvolveu como uma consequência deste” (2023, p. 321), diz Alejandra Castro, fundadora da ONG El Circo Del Mundo, escola de arte circense fundada em 1995, no Chile. O circo é uma arte que se faz de encontros, e encontros são fomentadores de ideias. E com o passar dos anos, esses encontros passaram a tomar mais espaço, territorial, institucional e popular. Grupos e coletivos foram se criando, alguns ativos até hoje, e que mesmo que não intencionalmente tinham na sua união a potencialidade de continuação e fortalecimento do circo no país. “O encontro não era mais numa praça, mas em muitas, e não apenas na capital, mas nas diferentes regiões do país” (SIMONETTI, 2023, p. 83). Já com o novo circo em larga e forte propagação na América Latina, foram surgindo no país ações promissoras para as novas gerações de circenses, como a criação de um projeto social de desenvolvimento artístico, promovido pelo Cirque du Soleil, o Jeunesse du Mundo (Juventude do Mundo), que mais tarde resultou na criação do El Circo del Mundo13, organização sem fins lucrativos dedicada a ensinar e profissionalizar o novo circo no Chile. E com a influência de turnês de artistas internacionais, e materiais audiovisuais e midiaticos que chegavam ao país, foi-se criando
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no Chile sua própria visão e vertente do circo, com particularidades locais, sempre muito caracterizada pela gestão coletiva (SIMONETTI, 2023, p. 85). E por consequência de todos estes fatores, insurgiu com força no país o exercício do circo de rua, muito ligado a esse ímpeto do encontro e de ocupação do espaço público, a prática tornou-se aprendizado, trabalho e crescimento artístico. Poder-se-ia dizer que há um tipo de personagem de circo de rua que foi tomando forma: o individual, com força nos malabares e no humor, com muitos recursos na maleta e elementos chamativos, com grandes monociclos e figuras de globo. Esse formato, semelhante a seu congênere argentino, tornou-se popular especialmente entre aqueles que almejavam o promissor nomadismo da vida circense, e a maleta transformava-se numa boa companheira de périplos latino-americanos e europeus (SIMONETTI, 2023, p. 86). O Brasil viveu sob o regime de ditadura civil-militar durante 21 anos, de 1964 a 1985, e como aponta Rodrigo Matheus14 em sua dissertação de mestrado, As produções circenses dos ex-alunos das escolas de circo de São Paulo, na década de 1980 e a constituição do Circo Mínimo, a ditadura é um dos fatores significativos para uma chamada crise no circo brasileiro (2016). Principalmente nas grandes cidades onde a sua atuação era mais aparente e incisiva, e pela maior presença de grupos militantes contrários a ela. O caráter repressivo e violento do regime resultou em um quadro social em que famílias se restringiam de frequentar o circo, e em meio a tantas violações dos direitos humanos, não havia “clima” nem mesmo para a palhaçaria. (MATHEUS, 2016, p. 73-75). [...] o período da ditadura teve reverberações mais amplas, levando o país a uma certa apatia política, a um imobilismo que, no meio artístico, representou,
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14. Rodrigo Matheus é artista de circo, integrante do Circo Mínimo, grupo de referência para o circo brasileiro e integrante da primeira geração de artistas formados em escolas de circo.
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muitas vezes, falta de ousadia. No circo, pode
15. A lona é a primeira escola do circense tradicional, portanto, as escolas de circo representam uma forma secundária de passagem de saber no circo. 16. Abelardo Pinto, o Palhaço Piolin, nasceu em 1897 e se tornou um dos palhaços de maior relevância na história do circo brasileiro. 17. Hoje, Escola Nacional de Circo Luiz Olimecha, em homenagem ao circense Luiz Olimecha (1942-2017).
ter sido um dos fatores que levaram a uma certa homogeneização da produção que passava pela cidade de São Paulo (MATHEUS, 2016, p. 75). Além do golpe civil-militar que impactou o consumo da arte circense no país, com a sua atuação inibidora e censuradora, o autor destaca alguns outros principais motivos para a possibilidade da criação de escolas de circo na cidade de São Paulo, como, o crescimento populacional urbano da cidade, que resultou em mudanças e dificuldade de transição, moradia e fixação de artistas e circos de lona no município, e o pensamento desenvolvimentista herdado após a segunda guerra mundial dos Estados Unidos, direcionador da educação e modo de vida da sociedade da época (MATHEUS, 2016). Essas e outras circunstâncias destrinchadas na pesquisa do autor, por vezes se tornam intrínsecas umas das outras, são processos que ocorrem em paralelo, em conjunto, sob influência e como consequência um do outro. É neste contexto, que surgem as primeiras escolas de circo fora da lona15 no Brasil, as três primeiras e de principal referência no ensino circense no país. A Academia Piolin16 de Artes Circenses (APAC), em 1979 em São Paulo, “primeira escola de formação de artistas circenses no Brasil, organizada por integrantes das famílias circenses tradicionais com o apoio do governo do Estado de São Paulo” (MATHEUS, 2016, p. 344). A primeira escola de circo privada, em 1985, a Circo Escola Picadeiro, fundada pelo artista José Wilson Moura Leite, descendente da família Moura de Alagoas, existente até hoje e localizada em Osasco, zona oeste de São Paulo. E a Escola Nacional de Circo17 no Rio de Janeiro, em 1982, administrada e subsidiada pela Funarte (Fundação Nacional das Artes), na época INACEN (Instituto Nacional das Artes Cênicas).
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As escolas de circo foram uma estratégia de manter ativo não somente a arte circense, como forma de conservar as famílias de circo e de passar a frente o conhecimento para novas gerações. É então dentro dessas escolas, que foram se formando novas comunidades de alunos de uma nova maneira de se fazer circo no Brasil. De onde foram se originando coletivos motivados por esse inovador e agitado momento do circo brasileiro, que se uniam para juntar suas inquietudes, ideias e técnicas, sob um novo viés de organização que se apresentava a eles, fora de uma lona e com novos espaços para explorar. Eram novos modelos de artistas também. O que se deve discutir é que, a partir de um determinado momento, a geração seguinte não seria mais a portadora deste conhecimento; a partir daí iniciava-se a mudança de uma organização tipicamente familiar, para um outro tipo de organização na qual a aprendizagem não é responsabilidade coletiva (SILVA, 2009, p. 58). Dali nasce um novo e decisivo capítulo na história do circo brasileiro. Não somente pela formação de artistas e companhias que tornaram-se conhecidos nacional e internacionalmente. Mas porque o Brasil passou a integrar a categoria de um dos pólos de educação circense na América Latina, passando a receber nos anos seguintes um potente fluxo de alunos brasileiros e de diferentes países, na procura de formação e especialização. E não à toa, grande exportador de artistas circenses para companhias internacionais. Trata-se de um momento da história latino-americana marcada por uma juventude criativa e ansiosa por criação, por uma sociedade resistente, ainda que abalada pelas recentes memórias e consequências de anos de ditadura, e em passos largos e determinados rumo à virada do século, e a um dos períodos políticos mais progressistas da América Latina.
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18. Circo no Beco (CnB).
É frente a esses fatos, que fica possível enxergar com mais clareza a interferência política e econômica dos países na construção de um fazer circense latino-americano. A plena expansão e mudança do circo mundial chegava nessas terras e tomava distintos caminhos, atravessados por uma série de complexidades, que por vezes, foram impulsionadores ou limitadores, mas que resultaram em um modo único de fazer circo, com uma estética, técnica e qualidades também únicas.
3 \ CIRCO NO BECO E A MOVIMENTAÇÃO DO CIRCO DE RUA EM SÃO PAULO NO INÍCIO DOS ANOS 2000 É parte essencial da história do circo a sua relação com o território, o seu reconhecimento, importância, alteração e conflito, agente causador de mudanças fixas e temporárias, tanto o circo no território como o território no circo. Ao olhar a trajetória do Circo no Beco, aponto a sua ligação direta com a imigração circense de artistas latino-americanos, como fruto e impulsionador do movimento, assim como com o próprio circo de rua da cidade de São Paulo. No livro Baú Circo no Beco: histórias de um picadeiro a céu aberto, organizado pelas circenses e produtoras Giulia Cooper e Maria Fernanda Vilela, é possível ter uma visão detalhada do ínicio do Circo no Beco e entender como a arte de rua de São Paulo e o movimento de imigração circense estão entrelaçados. O Circo no Beco é uma das maiores referências de local, espetáculo, coletivo e organização do circo de rua do Brasil, e utilizo todos esses adjetivos para explicá-lo porque é apenas assim que o CnB18 pode ser explorado, com vários significados, diverso e de muitos. Localizado na Vila Madalena, o CnB foi criado em 2003, através da organização independente e coletiva de artistas de circo de rua moradores de São Paulo, em uma urgência de ocupar um espaço e reivindicar a importância da arte de rua para a cidade. (COOPER e VILELA, 2014).
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Circo no Beco é o nome dado para um espetáculo que foi iniciado em 2003 por artistas de rua, malabaristas e circenses, pessoas que estavam cansadas de fazer a mesma cena/função/roteiro nos semáforos da cidade e também não encontravam espaço para se apresentarem entre os já consagrados grupos e teatros paulistanos. Dessa forma, resolveram buscar um lugar para elaborar um modelo incomum de espetáculo, chamando-o varieté ou cabaré (COOPER e VILELA, 2014, p. 19). Como já falado previamente, o circo de rua na América Latina tem como impulsionador e um dos pioneiros o circo de rua argentino, por influência do crescimento do novo circo e de companhias internacionais na capital Buenos Aires (SIMONETTI, 2023). Esse traço pioneiro do circo de rua na Argentina, é abordado inclusive na fala dos circenses que faziam rua no início dos anos 2000 aqui no Brasil. Ao dar um depoimento sobre o ínicio do CnB, Duíco Vasconcelos, o palhaço Pistolinha, um dos organizadores do primeiro CnB e até hoje um dos participantes mais ativos de lá, disse: (...) O Circo no Beco começou na Argentina, foram os argentinos que chegaram, dominaram o sinal e a gente começou a ver o que era isso. A gente começou a fazer sinal, e aí a gente viu que o sinal não estava mais dando para a gente, porque você começa a buscar coisa artística mesmo (...) Só que a gente queria mais, eu queria mais. Os caras que vinham de outros países já faziam rua (...) (VASCONCELOS, 2014, p.44). Assim, foi acompanhando a trajetória desses artistas de fora, que já traziam na mala experiência, espetáculos e formação, que alguns desses artistas que aqui estavam perceberam que era possível viver da arte de
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rua, executá-la com maestria, ser reconhecido por isso, e evoluir dentro deste estilo ou para outros, e ocupar novos e diferentes campos e espaços de atuação. Paralelamente, esses mesmos artistas foram participantes ativos na criação e continuação do Circo no Beco. Já na capa, na sinopse exibida, essa relação fica clara - “Em 2003, artistas de variadas partes da América Latina uniram-se para realizar um espetáculo circense ao ar livre” (2014). Marcelo Lujan, Pablo Nordio, Esteban Hestch, Gonzalo Caraballo, Marian Del Castillo e Chino Mario, apresentados ainda na introdução, aparecem e são citados no livro como artistas que contribuíram para a construção da história do Circo no Beco. E foram em pontos de encontro, de desenvolvimento artístico e profissional em conjunto, como é o caso do CnB e das escolas de circo, ou até mesmo os lugares apenas de troca e celebração, como convenções, encontros e festivais, que foi possível para muitos desses indivíduos recém chegados na capital, construir uma rede de atuação, de apoio, de cooperação e de trabalho.
4 \ PALOMBAR, TECENDO UMA REDE CIRCENSE LATINO-AMERICANA NO BRASIL Palombar, refere-se ao ato de costurar a lona do circo, ação realizada muitas vezes de forma coletiva por todos os familiares e artistas que viviam debaixo daquela mesma lona. Utilizo-me dessa expressão para me referir a construção de uma rede de circo latino-americana que vem sendo tecida nos últimos anos, por um conjunto de pessoas e organizações. A rede aqui como uma grande lona, que abriga, sustenta e é palco. Os circenses seguem reproduzindo ensinamentos do circo tradicional, a transmissão do saber segue sendo passada, a troca entre o coletivo também, hoje com possibilidades maiores, atravessam fronteiras e agregam à conversa outras federações e múltiplas línguas. Dando
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caminho para o nascimento de projetos, que têm como objetivo promover a integração de agentes do circo e das artes em geral na América Latina. No Brasil, as principais ações governamentais se dão através da Funarte, em conjunto de outros programas, mediadores e facilitadores de produções artísticas das artes de cena na América Latina, como é o caso do Iberescena19. É por meio da Funarte também, que artistas latinoamericanos conseguem aporte para ingressar e cursar a Escola Nacional de Circo Luiz Olimecha20 e em outras organizações educacionais, por meio de editais que cedem bolsas de mobilidade artística, como também a criação de cursos, oficinas e residências artísticas. Em 2019, em projeto contemplado pela Funarte, por meio do Iberescena, foi criado o Circo Futuro, uma plataforma de apoio à criação artística e ao desenvolvimento do circo na América do Sul. Uma rede internacional, composta por operadores, produtores, centros culturais, escolas de circo, festivais e coletivos de artistas, atualmente do Brasil, da Argentina, do Chile, do Uruguai e da França. Nessa iniciativa, o objetivo é o desenvolvimento de um circo autoral sul-americano, através de ações colaborativas. Deste projeto, foram realizadas as residências Circo Futuro em Fortaleza, de onde originaram-se, por meio de produções coletivas, o Proyecto Indra, do Coletivo Clo21, do Uruguai, e o Colisión, do coletivo Oíd Mortales, da Argentina. (VILELA, 2023, p. 327). No entanto, outros movimentos como festivais e congressos, também afirmam-se como medidas de fortalecimento e encontro desta rede. Como é o caso do Festival Mundial de Circo22, que acontece em Minas Gerais, desde 2001; o CIRCOS23 (Festival Internacional Sesc de Circo), festival internacional de circo da rede Sesc São Paulo, que teve início em 2013; e o Congresso Internacional de Circo Sul Americano, que teve sua 2ª edição em Campinas, em 2019. É de tantas outras formas e exemplos, oficiais ou não, que artistas, circenses e promotores da cultura em toda América Latina seguem se estabelecendo enquanto rede, seguem ampliando o mercado, as parcerias
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19. Ver mais em: <http:// www.iberescena. org/>. Acesso em 07 de dezembro de 2023. 20. Ver mais em: <https:// www.gov.br/funarte/pt-br/ areas-artisticas/circo-1/ escola-nacional-de-circoluiz-olimecha>. Acesso em 07 de dezembro de 2023. 21. Mais em: <https:// www.plataformaclo. com/> Acesso em 06 de dezembro de 2023. 22. Mais em: <https:// festivalmundialdecirco. com.br/circo-futuro/>. Acesso em 06 de dezembro de 2023. 23. Mais em: <https:// circos.sescsp.org. br>. Acesso em 06 de dezembro de 2023.
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e as conexões. Algumas vezes, apenas pela troca, pela conversa, pelo fortalecimento do coletivo. Entendendo que é através desse palombar, que se realiza a manutenção dessa comunidade e se garante a longevidade dessa arte. E o Brasil continua a receber, ano após ano, um expressivo número de imigrantes circenses que aqui se estabelecem e atuam, aprendem e ensinam. Alguns desses artistas compõem hoje um grupo pulsante e atuante do circo paulista, como é o caso de Daniel Satin, palhaço colombiano que aqui reside desde 2019; Pipa Luke, imigrante equatoriana residente no Brasil desde 2016, especialista na arte do bambolê e Painé Santamaria, argentina, que integrou a Cia. Las Martas, com artistas do Chile, Argentina e Brasil e hoje compõe Las Fanfarronas e Cumbia Calavera, grupos que seguem a mesma proposta de formação, composto por artistas de origem diversas. O conhecimento é construído de forma colaborativa, e uma pessoa migrante carrega seu conhecimento de origem e somatiza com o que se encontra no novo. A migração desses circenses é o que possibilita a soma de saberes de toda uma América Latina, que de forma generosa passam a frente. E é por isso que o circo se mantém.
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\ REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS CHEREM, Sluchem Tavares. O Circo Tradicional E A Arte De Itinerar: Novos Tempos, Novas Praças, Velhas Adversidades. 195 f. Dissertação (Mestrado no Programa de Pós Graduação Cultura e Territorialidades) Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2020. COOPER, Giulia; VIEIRA, Maria Fernanda (Org.). Baú Circo no Beco: histórias de um picadeiro a céu aberto. ISBN 978-85-60662-20-3. São Paulo: Arvoredo: Funarte, 2014, 96 f. INFANTINO, Julieta Lorena et al. A arte do circo na América do Sul: Trajetórias, tradições e inovações na arena contemporânea. ISBN 978-6586111-97-2. São Paulo: Edições Sesc SP, 2023, 336 f. MATHEUS, Rodrigo Inácio Corbisier. As produções circenses dos exalunos das escolas de circo de São Paulo, na década de 1980 e a constituição do Circo Mínimo. 339 f. Dissertação (Mestrado em Artes) – Instituto de Artes, Universidade Estadual Paulista, São Paulo, 2016. SILVA, Ermínia; ABREU, Luís A. de. Respeitável público... o circo em cena. ISBN 978-85-7507-116-8. Rio de Janeiro: Funarte, 2009, 262 f. SILVA, Ermínia. O Circo: sua arte e seus saberes: o circo no Brasil do final do século XIX a meados do XX. 184 f. Dissertação (Mestrado no Programa de Pós-Graduação em História) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, UNICAMP, Campinas, 1996.
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\ cartografando uma personagem extraterrestre: trajetória de uma atriz cuiabana Amarílis da Costa Silva e França Amarílis França, Cuiabá (MT). É atriz, com experiência em dança, graduada pela Universidade do Estado de Mato Grosso (Unemat) – MT Escola de Teatro, onde o presente trabalho foi realizado. Formada também como publicitária comunicóloga. contatodamarela@gmail.com
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FICHA TÉCNICA Instituição Universidade do Estado de Mato Grosso (Unemat) – MT Escola de Teatro Tipo do curso Graduação Nome do curso Curso superior de tecnologia em teatro Período do curso 2022-2023 Estado Mato Grosso Título do trabalho Cartografando uma personagem extraterrestre: trajetória de uma atriz cuiabana Nome da autora Amarílis da Costa Silva e França Nome do orientador Professor mestre Benone da Silva Lopes Moraes Número de páginas 19
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\ RESUMO Neste artigo, compartilho a formação de uma personagem teatral, Loretta, da peça “Extraterrestre” (2022), a partir dos princípios do teatro épico brechtiano. Esta pesquisa, parte do meu Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) na MT Escola de Teatro, evidencio o processo de desenvolvimento da personagem, explorando os elementos teóricos e as experiências pessoais envolvidas. Utilizando a cartografia, investigo as influências e os caminhos trilhados durante esse processo. Enfatizo as possibilidades expressivas e críticas do teatro brechtiano, sem entrar em detalhes sobre a história da peça, concentrando-me no desenvolvimento da personagem. Palavras-chave: Cartografia. Atuação. MT Escola de Teatro. Teatro Épico Brechtiano.
\ ABSTRACT In this article, I share the formation of a theatrical character, Loretta, from the play “Extraterrestre” (2022), based on the principles of Brechtian epic theater. This research, part of my course completion work at MT Escola de Teatro, I evidence the character development process, exploring the theoretical elements and personal experiences involved. Using cartography, I investigate the influences and paths taken during this process. I emphasize the expressive and critical possibilities of Brechtian theater, without going into details about the play’s history, concentrating on the character’s development. Keywords: Cartography. Acting. MT Escola de Teatro, Epic Theater.
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\ RESUMEN En este artículo comparto la formación de un personaje teatral, Loretta, a partir de la obra “Extraterrestre” (2022), basada en los principios del teatro épico brechtiano. Esta investigación, parte de mi Trabajo de finalización de curso en MT Escola de Teatro, destaca el proceso de desarrollo del personaje, explorando los elementos teóricos y las experiencias personales involucradas. Utilizando la cartografía, investigo las influencias y caminos tomados durante este proceso. Destaco las posibilidades expresivas y críticas del teatro brechtiano, sin entrar en detalles sobre la historia de la obra, concentrándome en el desarrollo del personaje. Palabras clave: Cartografía. Interino. Escuela de Teatro MT. Teatro épico.
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\ cartografando uma personagem extraterrestre: trajetória de uma atriz cuiabana
1 \ INTRODUÇÃO Preciso começar esse artigo acalmando você que está lendo ou talvez te decepcionando, afinal de contas, a intenção aqui não será de te abduzir para outro planeta, pelo menos não literalmente. Essa experiência extraterrestre tem como pretensão te levar a conhecer um pouco mais sobre uma de minhas personagens favoritas, Loretta, uma psicóloga, apaixonada pela vida e por pessoas, que enfrenta na sua história um momento decisivo, onde se encontra completamente envolvida com Johnny, um professor de inglês. Ela deseja começar um relacionamento sério com ele, porém sabe que para que isso funcione, ela terá de revelar o maior segredo da sua vida. A peça Extraterrestre é narrada pela personagem Loretta e conta a história dessa psicóloga que vive um momento de tensão em sua vida amorosa. A questão principal que leva todo o enredo é o fato de que a personagem entende que todo relacionamento precisa ser fundamentado em uma relação de sinceridade e vulnerabilidade, sendo assim, ela decide finalmente lidar com seus medos, inseguranças, traumas e contar para Johnny que ela vive com HIV. Nesse processo Loretta compartilha com o público situações e sentimentos que envolvem sua história até chegar nesse momento de compartilhar com seu amigo sua situação sorológica, afinal de contas, só assim ela poderá tomar uma decisão e saber se será possível seguir em frente junto dessa pessoa que ela ama. Talvez você esteja se perguntando, por que essa é uma das personagens favoritas dessa atriz compositora? A propósito, me chamo Amarílis e essa personagem além de todo enredo instigante e cheio de emoções, foi minha primeira personagem envolvendo uma temática que me acompanha profundamente a muitos anos, trarei mais informações a frente. Loretta surgiu durante um processo de aprendizagem e ensino prático em atuação, em um curso Tecnólogo de Teatro de Cuiabá/MT. Dito isso, neste artigo proponho a investigação do processo de desenvolvimento da personagem, compartilhando e descrevendo quais
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1. “Criação coletiva, o que se estabelece – ou se procura estabelecer – é um plano de horizontalidade máximo. Ou seja, ninguém subjuga ou direciona ninguém. Todos estão em pé de igualdade, o tempo inteiro, em relação a todos os aspectos da criação” (Araújo, 2009, p.3). Buscamos trabalhar nessa perspectiva ao máximo, sempre encontrando um ponto em comum nas sugestões que surgiam, ou seja, a definição de qualquer mudança ou alteração era tomada em consenso.
foram as metodologias e referências utilizadas por mim enquanto acadêmica, mas mais do que isso, também carrego em minha escrita a experiência pessoal que vivi no decorrer desses meses de construção. Visto que ambas as perspectivas foram essenciais para o desenvolvimento de Loretta e serão também na facilitação da reflexão. O processo de pesquisa foi desenvolvido trazendo um diálogo com a cartografia proposta por Barros e Kastrup, pesquisadoras brasileiras, assim neste artigo você irá encontrar, através de uma narrativa de momentos, quais foram os passos que trilhei desde as vivências em sala de aula até a composição final da peça para primeira troca com o público em cena. Identificando quais foram os disparadores para a criação da personagem, quais as motivações e intenções envolvidas. Entendendo quais foram os exercícios de preparação corporal e de criação de personagens, realizados nas aulas que foram mais efetivos e analisando o processo criativo para peça Extraterrestre, visando entender quais foram as principais etapas realizadas na composição dessa personagem. Importa acrescentar que vários registros fotográficos e documentais sobre a peça e sobre a construção da personagem se encontram nos anexos deste artigo.
2 \ UMA JORNADA DE SINCERIDADE E VULNERABILIDADE A peça Extraterrestre foi desenvolvida num processo colaborativo1, de coautoria do texto, da atuação e da direção entre o meu colega de curso, Hudson Ferreira e eu. Durante o processo de criação, nosso intuito foi criar uma narrativa coesa, sempre buscando gerar conexões entre personagens e público, para atingir o objetivo final da peça, abordar um tema sensível e estigmatizado de forma que as pessoas pudessem compreender e refletir sobre o assunto sem que toda peça tivesse um discurso professoral, ou seja, maçante. Quando digo que essa é uma das minhas personagens favoritas é porque ela me deu a oportunidade de dar alguma espécie de voz para a realidade
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e vivência de pessoas próximas a mim. A personagem surgiu da necessidade de partilhar com o mundo uma realidade que está em todos os lugares, mais perto do que a gente imagina, e que mesmo assim muitas das vezes não sabemos porque pessoas que vivem com HIV, assim como a Loretta, não tem espaço para se sentirem a vontade em falar sobre uma questão que ainda é vista com muitos olhos de julgamento. Foi durante uma aula que uniu as turmas de atuação e dramaturgia, que uma semente foi plantada dentro de mim, germinando em uma compreensão profunda sobre o papel social do teatro. A revelação da necessidade de abordar temáticas sociais no teatro tomou forma quando, no dia seguinte, um familiar que vive com HIV (que não tenho permissão para o identificar) compartilhou comigo suas inseguranças relacionadas ao seu tratamento. Os desafios impostos pelo governo Bolsonaro, se tornaram obstáculos para o acesso a medicamentos pelo SUS2, gerando assim uma sombra ameaçadora sobre a comunidade que vive com o vírus. O relato carregado de temores e tensões ressoou profundamente em mim. Foi nesse momento que a decisão se concretizou na minha mente: eu precisava falar sobre as questões relacionadas ao HIV na minha avaliação específica3. A arte, percebi, não era apenas uma expressão estética; era um veículo poderoso para denúncias, um meio de dar voz aos que muitas vezes são silenciados pela sociedade. Pensando em canalizar minha indignação através da arte, experimentei uma sensação de liberdade e euforia única. Era a chance de transcender as limitações da raiva e revolta, de utilizar a linguagem da expressão artística para tocar corações e provocar reflexões. Vi na arte não apenas um meio de protesto, mas um convite à empatia, uma ponte que conecta experiências individuais a uma narrativa coletiva.
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2. Para saber mais: https://www.cartacapital. com.br/saude/corteno-orcamento-ameacapoliticas-publicas-contrahiv-aids-no-brasil/. 3. É uma avaliação referente a matéria de Atuação, em que os alunos desenvolvem uma peça de no máximo 15 minutos, aplicando o conhecimento desenvolvido no decorrer de determinado módulo, neste caso, no módulo de narratividade.
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3 \ A CONTRIBUIÇÃO DA CARTOGRAFIA NO PROCESSO CRIATIVO A ação de compartilhar experiências pode ser tão rica e relevante quanto a de validar dados e criar definições a partir deles. Segundo Kastrup “a expansão do campo problemático de uma pesquisa ocorre por suas conclusões, mas também por suas inconclusões” (2015, p.72), ou seja, quando oferecemos a possibilidade de que cada leitor gere suas próprias leituras a partir de um objeto, no caso da pesquisa proposta por esse projeto, cada leitor possa tirar percepções criativos de produção de personagens ou produtos, a sociedade e mercado artístico só tem a ganhar com essas diversas perspectivas. Além disso, a contribuição acadêmica deste estudo reside na possibilidade de gerar novos conhecimentos e expandir o entendimento sobre a utilização da cartografia como ferramenta de mapeamento e procedimento de desenvolvimento de processos no teatro. Ao compartilhar um percurso pessoal de desenvolvimento enquanto atriz, busco gerar insights para outras pessoas em seus processos criativos. Sinto que a representação gráfica de espaços geográficos, comumente empregada na cartografia, encontra paralelos surpreendentes na composição de experiências teatrais. Ao utilizar registros e analisar processos, nós artistas conseguimos criar uma relação simbiótica entre o os acontecimentos que atravessam a criação artística e a narrativa dramatúrgica, possibilitando uma imersão mais profunda tanto para os criadores quanto para o público. Dessa forma, a cartografia emerge como uma ferramenta interessante para sistematização de processos subjetivos, como um mapa, um caminho que pode ser traçado e compartilhado.
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4 \ EXPLORANDO O TEATRO ÉPICO BRECHTIANO NA MT ESCOLA DE TEATRO Quando penso em Extraterrestre me vem a narratividade e Brecht a mente, afinal de contas o processo de criação se deu durante um trabalho de conclusão da matéria Atuação e Narratividade, do segundo semestre do curso de atuação, na MT Escola de Teatro. Para melhor compreensão, o curso é dividido em 4 semestres e em cada um deles temos a oportunidade de estudar uma linguagem teatral diferente, sendo assim, no segundo semestre o foco foi a narratividade. Essa linguagem tem como base o teatro épico brechtiano, que diz respeito a um teatro didático que procura um distanciamento entre personagem e espectador para que este seja capaz de refletir e aprender a lição social proposta. No que diz respeito ao processo de construção das personagens, Brecht o concebeu em três fases: a primeira, na qual o ator busca registrar as primeiras impressões, dúvidas e o reconhecimento das contradições da personagem; a segunda, que diz respeito ao mergulho do ator no processo de identificação com a personagem; e a terceira, que é quando o ator busca ver-se de fora, do ponto de vista da sociedade, intervindo dessa forma sobre a construção feita na fase anterior (Bonfitto, 2011, p.87). Segundo o artigo Algumas considerações sobre o teatro épico de Brecht, “o desafio lançado pelo teatro épico é, em última análise, a criação de um teatro responsável socialmente enquanto conteúdo e ousado artisticamente enquanto forma” (Rodrigues, 2010, p. 48), além disso, a estrutura dos textos e peças não seguem necessariamente uma cronologia de acontecimentos, ações dramáticas ou mesmo desfechos com alguma conclusão/resolução de conflitos.
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Desde o início do curso me senti instigada a desenvolver tanto a consciência da cena quanto uma consciência da minha função social de atriz, a capacitação do meu corpo e da minha voz para expressão e a sensibilidade crítica. Foi então a partir do conhecimento adquirido sobre as técnicas do teatro brechtiano que pude aplicar no processo de construção da peça Extraterrestre e da personagem Loretta, as características para a promoção de uma consciência crítica e reflexiva no público em relação às questões sociais, políticas e humanas. Diria que o trabalho de construção da personagem começou desde uma das primeiras aulas da ênfase de atuação do módulo amarelo, com a Profª. Me. de Atuação Katiuska Azambuja. Nesse início do módulo ela trouxe as primeiras explicações sobre o que seria esse teatro narrativo/épico de Bertolt Brecht. O dramaturgo, poeta e encenador alemão do século XX, que através de referências em outros gêneros teatrais e artísticos desenvolveu esse fazer teatral que ficou conhecido como brechtiano. Brecht falava sobre um teatro político e social, que em tese deveria levar o público a ação e tirálo do lugar de contemplação total (sem perder o divertimento). Para Brecht, era importante que o espectador recebesse de maneira plena e didática o que os atores tinham a dizer, pois só desta forma esses conseguiriam de alguma maneira tomar uma atitude frente as barbaridades do seu tempo (Ruiz, 2020, p. 4) Quando consegui entender no decorrer dos encontros, que poderia utilizar da seguinte linguagem para tratar de questões que me eram incômodas socialmente falando, a forma como levei as atividades e exercícios propostos tiveram uma virada de chave. Passei a prestar mais atenção a cada proposta e quais eram os temas que me atravessavam de alguma forma ao ponto de querer e conseguir colocá-los em ação, no corpo. Como disse Anatol Rosenfeld em O Teatro Épico, “o teatro deve ser épico, também, para corresponder ao intuito didático de Brecht, para esclarecer
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o público sobre a sociedade e a necessidade de transformá-la” (2011, p. 31). A partir dessa perspectiva, duas aulas foram muito marcantes, a meu ver, para a construção da peça como um todo. A primeira, ministrada pelo professor de Atuação Jefferson Jarcem, em que fizemos exercícios corporais de trabalho de presença, tempo, precisão, agilidade e confiança. O exercício em questão foi feito em dupla utilizando apenas nosso corpo e um bastão (cabo de vassoura). A cada momento uma pessoa da dupla faria movimentos de passar o bastão na altura do rosto do colega ou no plano baixo, na altura das pernas enquanto a outra pessoa deveria desviar desses movimentos, que inclusive iriam aumentando a velocidade gradualmente, conforme as duas pessoas fossem criando essa conexão, agilidade e confiança para evitar lesões e movimentos em tempos descompassados. Esse foi um primeiro momento de encontro desse ritmo e conexão em dupla com meu colega, Hudson Ferreira, que esteve em cena mais tarde, em Extraterrestre, comigo. Já a outra aula foi a ministrada pela professora Katiuska Azambuja, em que realizamos em coletivo exercícios para prática do conceito de Viewpoints. (...) ao invés de se agir somente por impulsos e desejos próprios, o ator/bailarino é estimulado a compreender sua conduta acional em relação com o ambiente. Tornar-se mais perceptivo ao entorno, utilizando-se de tudo o que ocorre ao redor, sem incluir ou excluir algo somente por um juízo pessoal (...) (Meyer, 2014, p. 8) Onde iniciamos fazendo exercícios de ocupação do espaço e ao final criamos cenas de improviso em trio a respeito de temáticas sociais. Foi a partir desse momento que tive o primeiro contato de encenação com o Hudson e a partir de então iniciamos as trocas para construção do texto de Extraterrestre. Assim, quando iniciamos a construção do texto e os testes nos ensaios, já tínhamos tido uma certa bagagem de exercícios de preparação e de jogos teatrais para aplicarmos em nossos processos. 48
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4. Nos estudos realizados no curso de atuação durante o período de construção da peça estávamos aprendendo a aplicar o distanciamento e efeito V nesse sentido: “O que Brecht sugere, na verdade, é um deslocamento das emoções – por meio de um tipo de atuação do ator e da utilização de determinados recursos – que provoca outras e novas formas de emoção, elevando o espectador ao plano da reflexão, da análise, da crítica. E isso só pode se dar por meio do Verfremdungseffekt, que ele propõe no lugar da identificação, da catarse aristotélica, como proposta de “tornar efetivamente possível um prazer artístico fundado no princípio do distanciamento (Rodrigues, 2010, p. 52).”
Vale lembrar que o processo de construção da peça e de Loretta foram alinhados com o teatro épico, ou seja, o desenvolvimento dessa personagem não tinha a intenção de construir uma personagem totalmente diferente de mim, mas algo que fizesse com que o público encontrasse em cena resquícios de mim, da atriz que ali estava, afinal de contas levei comigo em cena não só um corpo e uma voz, mas sim questionamento sobre algo maior, a vivência de diversas pessoas, incluindo alguns familiares meus. Todos os momentos de estudo e preparação para a apresentação foram vividos com foco na construção de um corpo que tivesse a capacidade de prender a atenção, de emocionar a plateia mesmo que durante a dramaturgia utilizássemos do distanciamento, do efeito V4 e de outros elementos que o teatro narrativo de Brecht abarcava. Objetivar a reflexão e a crítica não quer dizer, no entanto, negar completamente a emoção, como se poderia pensar. O fato de Brecht contestar especificamente a teoria da catarse não significa que ele irá suprimir totalmente a possibilidade de emoção da sua teoria de teatro. O que ocorre no teatro épico brechtiano é a rejeição daquela emoção que visa à identificação do público com a cena, com a personagem, e leva o espectador ao plano da ilusão. (Rodrigues, 2010, p.52) Sendo assim, me preparei para a primeira apresentação buscando a cada ensaio desenvolver essas emoções e trazer essa experiência catártica a partir da mensagem que o texto propunha, evitando romantizar e focar somente na história de personagens fictícios mas sim em como o meu corpo em cena poderia levar a plateia a olhar para si mesma, se imaginando em determinadas situações ou mesmo outras pessoas que pudessem conhecer.
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5 \ PROCESSOS PARA UMA ATRIZ COMPOSITORA A cartografia aqui foi utilizada como metodologia de registro de acontecimentos e processos para que eu tivesse a possibilidade de realizar reflexões de tudo que aconteceu nessa construção. Não se tratou de seguir um método pré-definido, mas sim de seguir cada processo como único e considerar válida as descobertas feitas ao longo da criação, revisitando vivências, questionando ações, revisando leituras que possam ter me influenciado no processo criativo, pontuar o que foi criado e o modo em que isso se deu. “A processualidade se faz presente nos avanços e nas paradas, em campo, em letras e linhas, na escrita, em nós. A cartografia parte do reconhecimento de que, o tempo todo, estamos em processos, em obra.” (Kastrup, 2015, p. 73) Foi interessante mapear as diferentes etapas da criação, como os ensaios, experimentações, improvisações e discussões. Para isso, revistei conversas via whatsapp, anotações que havia feito de aulas e processos do período e vídeos que encontrei de pequenos trechos de ensaios onde estávamos sempre testando possibilidades. Esse mapeamento me permitiu uma melhor reflexão e identificação do que funcionou e o que poderia ser ajustado ou descartado. Procurei me colocar, na medida do possível, com uma visão externa da situação, afinal de contas enquanto escrevo esse artigo muitos detalhes da peça já foram modificados através de novas experimentações possíveis com o tempo. Assim, esse artigo não tem a pretensão de ensinar ou formular alguma espécie de metodologia de criação de personagens épicos, mas sim de compartilhar perspectivas e vivências que possam servir de material para outras produções. Não se trata de um manual, apenas experiências e alguns exemplos de como afetos podem construir pontes de informação e cuidado. O primeiro passo foi estabelecer diálogos significativos com pessoas que conheço e que vivem com HIV. A intenção não era apenas obter informações, mas também compreender as nuances e desafios
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5. Para saber mais: https://www.primevideo. com/-/pt_PT/detail/Parisis-Burning/ 6. Para saber mais: https://www.adorocinema. com/filmes/filme-9432/ vod/ 7. Para saber mais: https://www. youtube.com/watch? v=yezAn6RL9XY&t=328s
enfrentados por aqueles que vivem com essa realidade. Nesses encontros, busquei não só dicas de materiais específicos, mas também e principalmente histórias pessoais, aprendizados e fontes que pudessem enriquecer a minha relação com a dramaturgia e minha presença em cena. Essa fase de pesquisa foi uma jornada de validação e descobertas. À medida que os diálogos se desdobravam, pude filtrar informações e a partir daí, juntamente com meu colega de cena, fomos selecionando as que melhor se conectavam à visão que gostaríamos de transmitir. Foi um processo delicado e essencial para moldar as cenas e a personagem de maneira autêntica. Nesse caminho, identifiquei um critério crucial para mim: queria evitar abordagens excessivamente pesadas. Não desejava que o público saísse da peça com um sentimento de pesar ou uma visão distorcida da realidade do HIV. Foi importante para mim transmitir a complexidade do tema sem sobrecarregar emocionalmente quem assistisse. Para isso realizei muitas pesquisas, além das conversas com pessoas que vivem com HIV, de assistir filmes e documentários como Paris is Burning5 (1991) e Filadélfia6 (1993), troquei muito com o Hudson, pensando em como abordar essa temática de maneira que o público conseguisse fazer a reflexão sem se sobrecarregar ao ponto de não conseguir assistir a peça novamente. Foi nesse momento que algo inusitado aconteceu. Durante o período de estudo, enquanto pesquisava sobre a temática no YouTube, decidi que iria dar uma pausa na pesquisa para assistir um vídeo de comédia do canal Porta dos Fundos, quando numa reviravolta surpreendente, a série VIRAL7 do canal cruzou meu caminho. Essa produtora de comédia on-line, conhecida por sua abordagem irreverente, tratou do HIV em 2014 de uma maneira que me impactou profundamente. A forma como combinaram leveza e humor, sem perder a sensibilidade e a seriedade do tema, foi uma revelação. “Hoje em dia a pessoa com aids[sic] vive normalmente, diferentemente do que acontecia há vinte anos, quando você estava praticamente condenado à morte”, disse Fabio Porchat, um dos realizadores da série, em entrevista (Veja, 2014).
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Essa experiência se tornou uma virada de chave para mim. A série VIRAL mostrou que seria possível abordar questões sérias sem perder a capacidade de tocar as pessoas. A leveza e o humor foram ferramentas poderosas para quebrar minhas barreiras da escrita e para permitir que a mensagem pudesse alcançar um público mais amplo. Assim, inspirada por essas descobertas, continuei minha jornada de troca com meu colega de cena, Hudson, na construção do roteiro da peça Extraterrestre. Cada escolha, cada cena, tornou-se uma expressão consciente da busca por uma abordagem que, ao mesmo tempo, fosse respeitosa e acessível. Em cada etapa, eu não apenas encontrava Loretta, mas também moldava uma narrativa que esperava impactar positivamente, desafiando preconceitos e promovendo uma compreensão da realidade de pessoas que vivem com o HIV. A jornada de criar a personagem Loretta para a nossa primeira apresentação foi um desafio imenso em um contexto acadêmico repleto de reviravoltas e pausas inesperadas devido ao período de férias. Nesse complexo tecer de eventos, a necessidade de equilibrar os compromissos relacionados à peça com as demandas externas tornou-se um exercício constante de malabarismo, exigindo uma organização meticulosa, tanto funcional quanto mental. Decidimos enfrentar o imprevisível calendário acadêmico e as interrupções das férias com uma estratégia clara. Estabelecemos uma quantidade de ensaios que nos permitisse manter a eficiência na produção, mesmo diante das pausas inesperadas. Continuar os ensaios durante as férias tornou-se uma necessidade para esculpir cada cena e aprimorar os processos, assegurando que o resultado não apenas comunicasse a essência da peça, mas também refletisse a verdade das personagens. Inicialmente, a ideia de criar uma personagem com um sotaque distinto e características radicalmente diferentes das minhas parecia promissora. Contudo, à medida que aprofundava minha compreensão do papel, percebi que Loretta não seria uma entidade isolada, mas sim uma parte intrínseca de Amarílis, a atriz por trás da personagem. Quando cheguei
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nessa conclusão, o processo se transformou numa exploração mais íntima e pessoal. Nesse ponto, emergiu uma compreensão única: Loretta coabitava em Amarílis, como disse Bonfitto, “Nada impede o ator de incutir na personagem os sentimentos que ela deve experimentar; o ator não é frio, ele também manifesta sentimentos, mas não necessariamente os mesmos das personagens” (Bonfitto, 2011, p.88). Esse equilíbrio de dualidade entre Amarílis e Loretta, a meu ver, enriqueceu a construção da personagem, tornando-se uma exploração mais profunda do que simplesmente um ajuste de traços superficiais. O ator deve, desde o início, da leitura e dos primeiros ensaios, não buscar “entender” a personagem, no sentido de amenizar suas contradições, mas deve buscar o estranhamento e o estupor diante de suas atitudes. Os fatos usuais devem ser estranhados e transformados em fatos especiais, como Galileo o fez observando a lâmpada, proporcionando assim a apreensão do mundo, ainda muito pouco conhecido, segundo Brecht (Bonfitto, 2011, p. 88). A partir de então, no decorrer dos ensaios e da preparação, olhava para minha atuação e presença em cena como um ponto de interrogação, quero dizer, como uma memória constante de questionar o que estava fazendo, a fim de não entrar num piloto automático de texto e voz. Uma das aulas que me ajudaram nesse processo de olhar com mais atenção para minha atuação, foi a com o professor convidado Rafael Cerigatto, foi uma aula voltada para o trabalho da voz do ator, em que tivemos um exercício onde deveríamos primeiro pensar num corpo que representasse uma sensação do nosso dia e a partir da movimentação desse corpo que tinha uma motivação por trás, o professor nos pediu para falar uma frase que representasse aquela motivação com a voz que representaria melhor aquele corpo.
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Daí em diante pensei em construir primeiro o corpo da Loretta, com detalhes bem simples de postura, respiração e olhar, e esses detalhes vinham a partir do que eu sentia quando pensava nas histórias que havia lido, assistido e escutado pra chegar até ali. Ao identificar minha movimentação, percebi que a sonoridade que surgia naturalmente da minha boca era guiada não por uma fórmula pré-estabelecida, mas sim por uma introspecção profunda e pela observação atenta da minha presença corporal. A sensação de revisitar esse processo me faz refletir sobre algo que na época não parecia tão claro, nessa composição que citei anteriormente, postura, respiração e olhar, eu ainda não tinha tanta noção da potência dessa tríade e mais do que isso, da importância do elemento respiração para a personagem. De acordo com Bonfitto (2011, p.81, apud ARTAUD, 1978, p. 166-167) “A respiração acompanha o sentimento e podese penetrar no sentimento pela respiração, sob a condição de saber discriminar, entre as respirações, aquela que convém a esse sentimento”. Em suma, Loretta vem de um respiro, de muitos respiros de angústia, de pausa, de diálogo e principalmente de muito amor. Afinal de contas, enfrentar o turbilhão de agendas e desafios não resultou apenas em uma personagem com sua própria naturalidade, mas também aprofundou meu entendimento sobre o ofício de atriz. A dualidade entre Amarílis e Loretta não apenas enriqueceu o palco, mas também iluminou um caminho para compreender a verdadeira transformação que a arte pode proporcionar. Em meio às complexidades, emergiu não apenas uma apresentação, mas uma jornada interior que moldou a minha percepção do poder do constante processo de autodescoberta no mundo da interpretação.
7 \ E O QUE LEVO DESSA TRAJETÓRIA? Concluindo este artigo, a jornada cartográfica de pesquisa e a extraordinária experiência de abdução que vivenciei com Loretta, uma
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figura emblemática que se tornou para mim símbolo de resiliência, força e amor, oferecem uma perspectiva única sobre o poder transformador da arte. Esta jornada revelou que a arte tem um potencial tremendo de questionar e a expor aspectos da nossa realidade que, no cotidiano, muitas vezes passam despercebidos ou são ignorados. O teatro narrativo me convidou a refletir e a repensar contínuo sobre nossas ações e julgamentos. Vejo que tanto a personagem quanto a peça serviram como um espelho, refletindo as complexidades, as belezas e as contradições da experiência humana. Com Loretta entendi o poder da conexão com quem nos assiste, para além do enredo e de uma ficção, conectando-nos em um nível mais profundo e empático. A pesquisa cartográfica é menos a descrição de estados de coisas do que o acompanhamento de processos. A instalação da pesquisa cartográfica sempre pressupõe a habitação de um território, o que exige um processo de aprendizado do próprio cartógrafo (Alvarez e Passos, 2014, p.135). Do meu ponto de vista, o território delineado por Alvarez e Passos vai além da materialidade física. Considero os territórios como algo imaterial, uma rede complexa de vivências, relações interpessoais, trocas e expressões. É um convite para transcender as fronteiras do palpável e abraçar a riqueza das interações humanas que acontecem nos bastidores e nos palcos. Assim, vimos nesse processo a essência do teatro onde a teoria e a prática se combinam, sem se sobrepor, desde as palavras no papel até os processos criadores de uma realidade vibrante do teatro. Este não é apenas um exercício intelectual; é uma viagem que nos permite desvendar os territórios teatrais, onde a arte se torna mais do que uma representação, transformando-se em uma celebração da experiência humana. Sinto que após ter vivido toda essa jornada é como se eu tivesse sido abduzida, levada para um território estranho, por vontade própria e que sai de lá diferente de como cheguei.
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\ ANEXOS ANEXO A – Registro do início do processo de elaboração do texto da peça, antes da definição do uso de apenas uma temática.
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ANEXO B – Registro de material compartilhado com meu colega de cena, Hudson. Durante o início do processo de elaboração do texto final.
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ANEXO C – Registro de ideias que surgiam durante os processos de pesquisa. Anotação que serviu de base para uma das cenas que atualmente estão na peça.
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ANEXO D – Material compartilhado com Hudson para estruturarmos a peça dentro dos mínimos necessários no estudo do teatro narrativo e para estruturarmos melhor o conceito, as intenções e objetivos da peça.
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ANEXO E – Primeiro estudo de configuração do cenário. Material utilizado para alinharmos a disposição do espaço na primeira apresentação com iluminação, sonoplastia e produção.
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ANEXO F – Trecho do roteiro que fiz com o mapeamento de ações que seriam utilizadas na peça. Devido ao pouco tempo de preparação, materiais como esse auxiliaram no processo de deixar as ações melhor trabalhadas, enriquecendo a cena.
ANEXO G – Registros de alguns dias de ensaio para a primeira apresentação para o público.
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ANEXO H – Registros do dia que realizamos as filmagens da cena audiovisual utilizada durante a peça.
Amarílis (eu) e Hudson (colega de cena)
ANEXO I – Registros da primeira apresentação para o público.
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\ teatrovivência de Abdias Nascimento: a estética negra da peça Sortilégio no teatro experimental do negro Danielle Souza Gabriel Danielle Souza, Cuiabá (MT). É atriz, graduada pela Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT), e professora. Atua nos espetáculos Encardidos, do Coletivo Atro, e Itans e fábulas de escrevivências, do Coletivo Itans, ambos com abordagem direcionada à temática do teatro negro.
danysgbl@gmail.com
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FICHA TÉCNICA Instituição Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) Tipo do curso Graduação Nome do curso História – licenciatura Período do curso 2019-2023 Estado Mato Grosso Título do trabalho Teatrovivência de Abdias Nascimento: a estética negra da peça Sortilégio no Teatro Experimental do Negro Nome da autora Danielle Souza Gabriel Nome da orientadora Professora doutora Ana Carolina da Silva Borges Número de páginas 17
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\ RESUMO A pesquisa tem como objetivo analisar a peça teatral Sortilégio, escrita por Abdias Nascimento e encenada pelo Teatro Experimental do Negro em 1957, tendo como perspectiva uma pesquisa interdisciplinar da História com a Artes Cênicas. Mediante o problema de pesquisa que propõe a pensar como Abdias Nascimento utilizou os elementos da estética negra em Sortilégio, apresenta uma análise do texto teatral da obra, identificando e interpretando os elementos desta estética, no qual também seria uma ferramenta utilizada pelo movimento da Negritude no século XX em exercer o protagonismo negro. A pesquisa também evidencia o teatro negro contemporâneo como uma Teatrovivência, e nos indaga a pensar a importância da peça Sortilégio e do Teatro Experimental do Negro como um dos precursores em inspiração para uma prática antirracista a partir da vivência de sujeitos negros, inspirando diversos coletivos e companhias teatrais contemporâneos atentos a questões raciais atualmente. Palavras-Chave: Teatro Negro; Abdias Nascimento; Sortilégio.
\ ABSTRACT The research aims to analyze the theatrical play Sortilégio, written by Abdias Nascimento and performed by Teatro Experimental do Negro in 1957, with the perspective of interdisciplinary research between History and Performing Arts. Through the research problem that proposes to think about how Abdias Nascimento used the elements of black aesthetics in Sortilégio, it presents an analysis of the work’s theatrical text, identifying and interpreting the elements of this aesthetic, which would also be a tool used by the Negritude movement in 20th century in exercising black protagonism. The research also highlights contemporary black theater as a Teatrovivência, and asks us to think about the importance of the play Sortilégio and the Teatro Experimental do Negro as one
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of the precursors in inspiration for an anti-racist practice based on the experiences of black subjects, inspiring various collectives and contemporary theater companies attentive to racial issues today. Keywords: Black Theater; Abdias Nascimento; Spell.
\ RESUMEN La investigación tiene como objetivo analizar la obra teatral Sortilégio, escrita por Abdias Nascimento y representada por el Teatro Experimental do Negro en 1957, en la perspectiva de una investigación interdisciplinaria entre Historia y Artes Escénicas. A través del problema de investigación que propone pensar cómo Abdias Nascimento utilizó los elementos de la estética negra en Sortilégio, se presenta un análisis del texto teatral de la obra, identificando e interpretando los elementos de esta estética, que también sería una herramienta utilizada por la Negritud. movimiento del siglo XX en el ejercicio del protagonismo negro. La investigación también destaca el teatro negro contemporáneo como Teatrovivência y nos pide pensar en la importancia de la obra Sortilégio y del Teatro Experimental do Negro como uno de los precursores en la inspiración de una práctica antirracista basada en las experiencias de sujetos negros. inspirando a diversos colectivos y compañías de teatro contemporáneo atentos a las cuestiones raciales de actualidad. Palabras clave: Teatro Negro; Abdías Nascimento; Deletrear.
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1 \ ATO I: DANIELLE SOUZIEL E A TEATROVIVÊNCIA Antes de tudo, se faz necessário declarar que eu, Danielle Souza Gabriel, de nome artístico Danielle Souziel, tenho uma relação pessoal e profissional com o Fazer Teatro. Mesmo tendo começado a fazer teatro na adolescência ainda no ensino médio, a minha relação com o universo do Teatro Negro começou alguns anos depois de eu ingressar ao teatro pela primeira vez, e isso se dá principalmente pelo fato de inicialmente não gostar de adentrar a temática, por não ter consciência da minha identidade como uma mulher negra. Foi especificamente ao estudar teatro performativo, onde se estabelece uma interação de ação e reação direta com o público, que eu percebi o quanto a presença do meu corpo negro trazia incômodos, dramaturgias e diversas interpretações divergentes do que assim pretendia, mesmo que em cenas eu não pronunciasse nem um texto de fala, mesmo que a minha ação no palco era a mais concreta possível, e por vezes até com a intenção de ser a mais imperceptível possível. Tudo se estabelecia a diversas tentativas de criação de narrativas através da minha cor da pele. O incômodo de não poder ser livre criativamente, de não poder fazer qualquer ação que qualquer outro (a) ator/atriz branca poderia fazer, e de não poder fugir da minha dura realidade quanto mulher negra na sociedade, começa a despertar um interesse de me atravessar sobre o assunto. Foi quando surgiu pela primeira vez a oportunidade de fazer parte da produção e criação de uma peça teatral que traria vivências que abarcam os racismos vividos ao longo da minha vida. A performance teatral, Encardidos1 (figura 1 e 2), se baseia em histórias pessoais de cunho individual, são vivências onde considero expressar todas as minhas dores quanto mulher negra na sociedade. O racismo vivido todos os dias. Como ser chamada quando criança com o termo “MACACA” por outros colegas na turma de catequese de preparação da Primeira Comunhão. Como não sentir a liberdade de Ser e Estar em lugares por simplesmente não ser bem-vinda. Como não aceitar o próprio formato dos meus cabelos crespos,
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1. A peça teatral Encardidos foi estreada em 2018 no Sesc Arsenal de Mato Grosso em Cuiabá, participou de festivais nacionais, editais como A_ponte: cena do teatro universitário em 2019 e foi premiada na categoria Teatro do MT Artes 2023. A peça é comportada por programas performativos, nos quais os atores usam da performance de seus próprios corpos para reproduzir a história do povo negro vista pela sociedade, provocando um desconforto ao público ao assistirem de forma escancarada que a única história que se leva em consideração dos afrodescendentes é a história baseada na demonização e na subalternização desses corpos. O projeto nasceu a partir de experiências vivenciadas pelos próprios atores ainda na infância, no qual retratam situações dolorosas do racismo.
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passando assim por uma transformação capilar na adolescência, uma transformação que afetou até mesmo o meu psicológico. Como ter um medo horrendo da solidão, mas sempre estar em posição de que posso aguentar tudo, até mesmo a solidão. Tudo agora está no palco, como uma performance rítmica com dança e música referencial ao Maracatu. Explícito, e como um soco para várias pessoas que se identificam - ou não - com essas histórias. As histórias que antes eram pessoais, agora são histórias que afetam a coletividade e alcançam uma representatividade. Se antes era sobre contar um pouco sobre a minha história, agora percebe-se a responsabilidade de ao mesmo tempo carregar nesta mesma história, o peso de diversas histórias de outras pessoas negras e de todos os meus ancestrais ali presentes.
Figura 1 - “Encardidos” na I Mostra Cuiabana de Teatro Negro
Foto: Helder Faria / Assembleia Legislativa de Mato Grosso - ALMT (2022).
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Figura 2 - “Encardidos” na I Mostra Cuiabana de Teatro Negro
Foto: Helder Faria / Assembleia Legislativa de Mato Grosso - ALMT (2022).
Começo a adentrar no mundo do Teatro Negro como uma forma de sobrevivência, como uma forma de lidar com esses vários incômodos e as armadilhas que a própria sociedade me oferece, e principalmente, para mostrar tanto pra mim mesma, e também para a sociedade em geral, que eu não concordava com tudo aquilo, e que não me permitia mais estar naquele lugar. Se o Teatro Negro afetou meu olhar de forma instantânea e concreta trazendo uma nova perspectiva de me relacionar com a arte e com a obtenção da minha consciência racial, voltemos para 1944 na vida de muitas mulheres (e homens) negras, jovens e adultos, quando Abdias Nascimento decide criar um movimento social onde o principal objetivo é estabelecer um movimento cultural baseado no movimento da Negritude, desenvolvendo o Teatro Experimental do Negro (TEN), como forma de mudar a linguagem e a estética artística dos afrodescendentes, através das identidades e valorizando-os como sujeito histórico.
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É dentro dessa linha de raciocínio que o Teatro na qual Abdias Nascimento ajudou a construir, mostra-se como referência histórica de movimentos e práticas antirracistas e com grande potencial analítico. E mais, parto do pressuposto de que o TEN, apresenta ações culturais altamente politizados e educadores. Dentre as pesquisadoras (es) que coadunam com esse ponto de vista, não poderia aqui deixar de referenciar a Nilma Lino Gomes, intelectual negra brasileira que tem vasta produção sobre os Movimentos Sociais envolvendo a população negra. No plano da educação formal, que envolve as escolas, a autora salienta que se analisarmos os currículos ali propostos observaremos que a produção do estigma da pessoa negra é um projeto político do Estado. A esse respeito afirmou que: “Se passarmos em revista vários currículos do ensino fundamental e médio, veremos que o negro, na maioria das vezes, é apresentado aos alunos e às alunas unicamente como escravo – sem passado, sem história – exercendo somente algumas influências na formação da sociedade brasileira”. Quando não nos é indicado essa versão histórica temos que nos dar com a outra face, na qual “o negro, quando liberto, é apresentado como marginal, desdobrando-se na figura do ‘malandro’. Essa postura reforça o estereótipo do não-lugar social imposto ao negro e impede que o vejamos como sujeito histórico, social e cultural”. (GOMES, 2002, p. 42) É por conta dessas narrativas educativas que para Nilma Gomes, seria importante olharmos para outros espaços nas quais as vozes negras se fazem presentes e como agentes construtores dos seus próprios passados. Se a intervenção de enunciados dos brancos, miram visões depreciativas dos descendentes africanos, num contra discurso desses moldes ocidentalizados, temos o Movimento Negro que ocupa, aliás, um papel fundamental no quesito educador por produzir saberes emancipatórios e também por sistematizar conhecimentos concernentes à questão racial no Brasil (GOMES, 2002). Segundo Nascimento (2004), O Teatro Experimental do Negro, surge em 1944 no Rio de Janeiro, e propõe trabalhar a valorização social do negro
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por meio da arte, da cultura e da educação. Nascimento (2004), ainda ressalta que “nossa cena vivia da reprodução de um teatro de marca portuguesa que em nada refletia uma estética emergente de nosso povo e de nossos valores de representação”. Sendo assim, considero a iniciativa de Abdias essencial para a minha trajetória no teatro, pois se o teatro foi uma ferramenta que utilizei para buscar compreender e obter a consciência racial, além de ser um espaço de me expressar, e posteriormente, um espaço de denúncia e de protesto contra os preconceitos sofridos para continuar exigindo o meu direito quanto pessoa independente da minha identidade, o Abdias Nascimento juntamente com o Teatro Experimental do Negro foi um dos pioneiros que primeiramente estabeleceu uma base ao mostrar a possibilidade de desenvolver essas conexões, mostrando que seria sim possível pensar uma nova forma de produzir teatro, através da educação e da conscientização de pessoas negras que, até então, não eram consideráveis para ter outras imagens na cultura, e continuavam em posições de fetiche e estereotipação. Seria esse um dos motivos da escolha dessa pesquisa fazer tanto sentido para a minha trajetória de vida e também de acadêmica de História Licenciatura, pois a pesquisa atravessa a relação pessoal e profissional, e cria uma linha tênue com relato de experiência e a pesquisa acadêmica. Conceição Evaristo diria que isso seria uma característica da Escrevivência. Evaristo (2020) define que o termo “escrevivência” traz a experiência, a vivência de nossa condição de pessoa brasileira de origem africana, na qual nos colocamos para afirmar a nossa origem de povos africanos e celebrar a nossa ancestralidade e se conectar tanto com os povos africanos, como com a diáspora africana. A linguista e escritora brasileira, ao aprofundar sobre uma nova forma de pensar a literatura brasileira, se identifica com outra escritora que se aproxima com o conceito de escrevivência, a Gloria Anzaldúa (2000 apub EVARISTO, 2020) que nos diz: Por que sou levada a escrever? Porque a escrita me salva da complacência que me amedronta. Porque
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não tenho escolha. Porque devo manter vivo o espírito de minha revolta e a mim mesma também. Porque o mundo que crio na escrita compensa o que o mundo real não me dá. No escrever coloco ordem no mundo, coloco nele uma alça para poder segurá-lo. Escrevo porque a vida não aplaca meus apetites e minha fome. Escrevo para registrar o que os outros apagam quando falo, para reescrever as histórias mal escritas sobre mim, sobre você. Para me tornar mais íntima comigo mesma e consigo. Para me descobrir, preservar-me, construir-me, alcançar autonomia. […] Escreverei sobre o não dito, sem me importar com o suspiro de ultraje do censor e da audiência. Finalmente, escrevo porque tenho medo de escrever, mas tenho um medo maior de não escrever. Anzaldúa (2000) caracteriza a escrita como a reescrita de histórias mal escritas ou até mesmo apagadas para colocar em ordem novamente os desarranjos do mundo, é dentro desta perspectiva que Conceição Evaristo (2020) utiliza o conceito de escrevivência como uma importância para pensar a literatura brasileira contemporânea sobre a perspectiva de trazer os povos afro brasileiros como sujeitos de suas próprias histórias. E sobre essa perspectiva de Conceição Evaristo que busco entender como o teatro negro, acima de tudo é um teatro de histórias apagadas. É um teatro de vivências muitas vezes banalizadas. A teatrovivência. Que a partir de experiências de vida de pessoas afro-brasileiras, se pode criar uma representação nas dramaturgias e nas performances, para mudar uma perspectiva identitária no teatro e transformar imagens, apresentar alternativas críticas e transformar nossas visões de mundo, já que por muito tempo, o teatro brasileiro ignorou essa representação voltada a negritude. Leda Maria Martins (1987) irá dizer que “no teatro brasileiro, até as primeiras décadas do século XX, o retrato do negro gera-se de uma matriz:
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o branco e a ideologia do embranquecimento”. No palco brasileiro, o negro é identificado numa rede semiótica que veicula o “fetiche” da brancura. Até então, em cena, o negro é o Outro diferente, que é identificado pelos estereótipos negativos, ressaltando o grau de embranquecimento cultural das personagens que assimilaram valores exclusivos da raça branca. Sendo assim, o Teatro Negro opera como uma ruptura, provocando um dilaceramento nas convenções cênicas tradicionais, onde construir uma identidade negra quer para a personagem, quer para o teatro, é elaborar, inventar, um novo discurso com novos centros de referência, para desconstruir o modelo constituído pela supremacia da brancura. Nos palcos brasileiros, atualmente, há diversos grupos e coletivos focados pela perspectiva de estudos sobre Teatro Negro. As peças teatrais abordam temáticas ligada as questões relacionadas ao preconceito racial: miscigenação, ideologia do branqueamento, discriminação no trabalho, religião, sexualidade, educação, indústria cultural, mídia e consumo, dentre outras.
2 \ ATO II: ABDIAS NASCIMENTO E A DORORIDADE Abdias Nascimento nasceu em 14 de março de 1914 na cidade de Franca localizado no interior de São Paulo, hoje conhecida como “Capital dos calçados masculinos”, a origem histórica da cidade espelha a história da família de Abdias Nascimento. Em sua memória, a cidade de Franca no início do século XX ainda estava marcada pela luta abolicionista. A mãe de Abdias Nascimento, Georgina Ferreira do Nascimento, conhecida como Josina, era cozinheira e doceira, além de eventualmente ter trabalhado como ama de leite nas fazendas de produção local. Quando era contratada para realizar o trabalho como ama de leite, ela levava os filhos para as fazendas para passar o período de amamentação. A experiência vivida nessas fazendas, nos “anexos” da casa-grande, destinados aos escravizados/as2 que faziam trabalhos domésticos, norteou a formação e a memória de Abdias Nascimento. Os relatos da história de sua família
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2. Segundo Grada Kilomba (2019), o uso do termo “escravizada/o” ao invés de escrava/o, ocorre devido o significado da palavra “escravizada/o” descrever um processo político ativo de desumanização, enquanto escrava/o descrever o estado de desumanização.
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sobre as experiências vivenciadas nesse momento da vida, estão em sua biografia Abdias Nascimento: Grandes Vultos que honraram o senado (2014), organizado por Elisa Larkin Nascimento, no qual ele relembra da forte presença das práticas da história oral que tem tradição africana. Outra imagem feminina marcada pelo Abdias Nascimento é de sua avó materna, Francelina, escravizada na região que hoje é conhecida como Uberlândia. Ao mudar para Franca com os senhores portugueses, é internada na instituição de Juquery. Juquery, era um exemplo de instituição onde predominava um conjunto de políticas racistas. Nesta época se consolida os estereótipos do crioulo doido e do negro criminoso. A medicina social e da engenharia sanitária colocavam a população negra no alvo da “higienização”. Esses sujeitos eram percebidos como um bando de “desordeiros”, grevistas, capoeiristas, alcoolizados, prostitutas e no geral, degradados, e de grande ameaça e perigo. O determinismo racial sustentava essa teoria, já que o negro se “configurava um “desvio doentio” em relação ao padrão de normalidade do ser humano (branco)” (NASCIMENTO, 2014, p.102). Através disso, Vilma Piedade (2017) irá trazer o conceito de Dororidade, onde dialoga com o feminismo e sua interseccionalidade ao se deparar com o termo Sororidade. Na dororidade, é enfatizado a violência, o vazio, o silenciamento e a dor que é causada pelo racismo. Ela vai dizer que “a Dor é preta”. É nesta perspectiva de dororidade que se entende a preocupação de Abdias Nascimento em pretender dialogar diretamente com indivíduos que compartilham dessa dor. Em saber que apesar de ele ser preto e subalternado em relação a cor de pele, ele ainda é de um gênero que estabelece a relação de poder, sendo homem. Um homem negro. E que a dor da mulher negra ele nunca irá sentir. Vê-se as referências femininas durante toda a trajetória artística de Abdias Nascimento, intelectuais negras que por muito tempo na academia científica nem se quer eram consideradas grandes intelectuais. Mulheres negras como: Beatriz Nascimento, Lélia Gonzales, Ruth de Souza,
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Lea Garcia, são personalidades importantes e emblemáticas que irão sempre estar presentes em seus movimentos e principalmente, algumas, envolvidas diretamente com o Teatro Experimental do Negro. Assim, ele utilizará os diversos instrumentos artísticos e políticos para mostrar que o fenômeno do mito da democracia racial vem de fruto de uma convivência nada democrática e totalmente racista.
3 \ ATO III: O SORTILÉGIO NO TEATRO EXPERIMENTAL DO NEGRO O texto teatral Sortilégio: Mistério Negro é lançado originalmente a público em 1961, pela antologia de Abdias Nascimento denominada “Dramas para Negros e Prólogos para Branco”. Rouse (2019) irá enfatizar que Sortilégio é um drama ritual. A obra é uma metáfora da situação do negro no Brasil. A história atravessa a vida de Emanuel, um homem negro, advogado, que rejeita sua própria cultura e sua religião por desejo de ascensão social. Neste percurso, casa-se com uma mulher branca, a Margarida, numa tentativa de embranquecimento. Entretanto, Margarida nega-lhe a possibilidade de ser pai, abortando um filho que julgava ser dele, pois ela é a esposa que não queria ter um filho negro, mesmo tendo se casado com um homem negro. Emanuel, humilhado, acaba por matá-la. Foge e perseguido pela polícia, busca refúgio num terreiro, onde é guiado por Exu e Pombagira. Pombagira é representada pela personagem Efigênia, uma mulher negra e sua ex-namorada. II FILHA DE SANTO (ingênua) – [...] Pomba Gira entrou no corpo dela e não saiu mais... I FILHA DE SANTO (doce) – Pomba Gira é volúvel como o vento... pôs chama no sangue de Efigênia... Amou... se entregou... foi possuída por muitos homens... homens belos... fortes... brancos... (NASCIMENTO, 1961, p. 164)
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A peça se inicia no terreiro com as personagens Filhas de Santo I, II e III, sacerdotisas da religião afro, que juntamente com Efigênia relembram Emanuel da sua trajetória de vida e de todas as vezes em que recusou sua identidade negra. A primeira recusa que será explícito, é a negação da religião. EMANUEL – [...] (aproxima-se do pegi, observa os elementos do candomblé no palco e nos bastidores) É por isso que essa negrada não vai pra frente. Tantos séculos no meio da civilização... e o que adiantou? Ainda acreditando em feitiçaria... praticando macumba... evocando deuses selvagens... [...] EMANUEL – E agora? Começou o maldito candomblé. (NASCIMENTO, 1961, p.167) Vemos nessa fala do personagem que ele está se aproximando de um Peji, um local sagrado da cultura afro-brasileira, onde fica o altar com imagens de santos e assentamentos dos Orixás. Vê-se a repulsa com esses sagrados da religião de matriz africana, renegando sua identidade e sua ancestralidade que, por muitas vezes, influenciado pelo cristianismo, reforça a existência de uma “feitiçaria” nas religiões da umbanda e do candomblé. As duas personagens femininas, a sua amada “Efigênia” e sua esposa “Margarida”, configuram os embates psicológicos e sociais de Emanuel. O texto se escora nestas duas personagens, para trazer a peça uma realidade social do racismo que condiz com a problemática do relacionamento inter-racial e a rejeição da mulher negra. II FILHA DE SANTO (conciliadora) – Há uma preta também na História: Efigênia. III FILHA DE SANTO (polêmica) – Tinha horror de ser negra. II FILHA DE SANTO – Mas botaram nela nome
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de santa: Efigênia. Uma santa trigueira. III FILHA DE SANTO (veemente) – Negra. Santa negra. Ninguém escapa da sua côr. I FILHA DE SANTO (lírica) – Queria ser branca... branca por dentro... ao menos por dentro... III FILHA DE SANTO (violenta) – Ninguém escolhe sua côr que tem. Côr da pele não é camisa que se troca quando der. (exaltada) Raça é fado... é destino ... (NASCIMENTO, 1961, p. 164). Efigênia, apesar de ser o verdadeiro amor de Emanuel, fica em posição de rejeição quando ele decide se casar com Margarida, mulher branca. A Margarida recorre ao casamento para “tapar um buraco” após se ver em um lugar de desonra por ter perdido a virgindade, assim a solução que acha pertinente é casar com um negro, para salvar a sua honra perante a sociedade. Para Efigênia, porém, o que resta é “A eterna amargura da cor”. Também através de Efigênia, fica explícito o desprezo às raízes africanas demonstrado por Efigênia e Emanuel. Este preterimento das duas personagens, favorece as referências eurocêntricas e uma subjetividade imposta pelo branco colonizado, conforme exposto na fala abaixo. EFIGÊNIA – Como, outra coisa! Não discutimos o assunto tantas vezes? E a conclusão não foi sempre: ballet clássico? Você não me queria misturada aos sambas de morro, de gafieira. Me proibiu frequentar “terreiros” onde aprendia a dançar o ritmo dos pontos sagrados... (NASCIMENTO, 1961, p.173) Percebemos a persistência do esquecimento da sua origem na favela e nas culturas afro-brasileira (o samba), principalmente vinda por Emanuel ao impor posturas à Efigênia. Posturas que ele considera “adequada” para a sociedade, mostrando mais uma vez a amargura da mulher negra em ser rejeitada várias vezes na sociedade, até mesmo, pelos seus parceiros.
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Na obra, a personagem Efigênia é preterida por Emanuel quando ele escolhe casar com uma mulher branca. Ao longo da peça, vemos interações em relação homem-mulher, relacionado a questões de afeto e preterimento, muito comum em casais unirracias (entre pessoas negras) e inter-raciais. Souza (2008), pesquisando sobre o tema, aponta dados da cidade de São Paulo em 2008, que indicam que homens negros preferem relacionar-se com mulheres brancas. Dos motivos pelo qual o personagem Emanuel se refere ao escolher casar com uma mulher branca na peça são: aceitação de classe e ascensão social. As mulheres entrevistadas e as participantes do grupo focal concordam que os homens negros jovens, em idade de escolher a parceira conjugal, tendem a preferir a mulher branca, em detrimento da mulher negra. Segundo estas mulheres, esta escolha é mais comum entre os homens negros que buscam uma ascensão social ou aqueles que já ocupam uma posição sócio-econômica considerada vantajosa. (SOUZA, 2008, p.75) Efigênia, além de se abandonada por Emanuel, também deixa de lado seu sonho de ser artista para seguir um dos estigmas sociais da mulher negra ao enxergar o único caminho possível, a prostituição. Pois sua compreensão de si não destina a forças e ajuda sociais, e sim, destina da dor que foi submetida após ter sido abusada. Assim, não encontra uma rede de apoio que a sustente e, sendo ela mesma o sustento de sua família, aceita a condição de prostituição. A característica de vida da personagem Efigênia, reflete a maioria das características das mulheres negras, ao fato de ser o amparo da família – inclusive para os parceiros – implica na aceitação de condições menos favoráveis a elas. Alguns trechos da obra apresentam pontos que constatam a posição determinada a ser aceita pelas mulheres negras, pois faz a denúncia da falta de oportunidades dadas a elas e os privilégios dos brancos que determinam a escassez de opções no âmbito profissional dos negros.
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Além disso, outros trechos mostram o poder imposto pelo corpo da mulher negra, as violências físicas e simbólicas que ficam marcados nas falas de Emanuel, fazendo manipulações psicológicas e colocando Efigênia em um lugar de desprezo: II FILHA DE SANTO – E você? EFIGÊNIA – Eu? II FILHA DE SANTO – Sim, você. Rejeitou a brancura? EFIGÊNIA – Eu precisava vencer. Os brancos têm o privilégio: sem eles, nada feito. Enquanto Emanuel... amava Margarida. Ela teve o fim que merecia. Se não gostava dele, porque insistiu em se casar? [...] EFIGÊNCIA – Sem importância para você. Eu, desde o instante em que perdi minha “importância” tive meu caminho traçado: o caminho da perdição. Não houve escolha. [...] EMANUEL – Sabia que você vinha, Efigênia. E não me abandonaria. Nem um minuto deixei de pensar em você. De te pertencer. Juramos nunca nos separarmos, lembra-se? Sempre te amei. Você sabe disso. Mesmo daquela vez que te bati, foi por te querer demais. Você chamou a todos nós de “negros amaldiçoados”. Passou a detestar a própria cor. A futricar a vida de Margarida. Perdi o controle. Mas juro que bati pensando no teu bem. Queria te fazer sofrer. Para te redimir. Te lavar por dentro e por fora. E você seria outra. Fui um bruto, reconheço. Mas não fiz por ruindade. Pensou que te batia para defender Margarida? Bobinha. Era só por você. Unicamente por você. [...] [...] (Emanuel esbofeteia Efigênia. Impassível, Efigênia caminha até a ribanceira. Acena com o lírio chamando alguém. Ele avança brandindo a lança) 82
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EMANUEL – Ordinária. Prostituta de corpo, prostituta de alma. (NASCIMENTO, 1961, p.187-188; p.190-192; p.193) Vemos a forte presença da violência sobre os corpos femininos, especificamente nas falas e nas ações de Emanuel. No primeiro momento, ao matar sua própria esposa Margarida. E depois, a constante repreensão em Efigênia a todo custo e ainda alegando que a violência física ocasionada por ele foi “por te querer demais” ou “pensando no teu bem”. Isso nos leva a considerar a imediata importância dos movimentos feministas e da interseccionalidade para as discussões contra as diversas opressões de gênero e imposições aos corpos femininos. Segundo hooks (2018, p.17): “O feminismo é um movimento para acabar com sexismo, exploração sexista e opressão”. E mais especificamente o feminismo negro nos apresenta a interseccionalidade, um termo usado a primeira vez pela jurista e professora afro-americana Kimberlé Crenshaw em 1989. Sobre a interseccionalidade, Akotirene (2019, p.56) aponta: O projeto feminista negro adota coalização e solidariedade políticas em prol dos oprimidos por classe, sexualidades ou território, dentre diferentes marcações. A interseccionalidade pode ajudar a enxergarmos as opressões, combatê-las, reconhecendo que algumas opressões são mais dolorosas. Às vezes oprimimos, mas às vezes somos opressores. A discriminação e a exacerbada subalternização de gênero entram em questão nos movimentos negros, pois a falha pelo caráter machista projetado pelo patriarcado, nos oferece ferramentas metodológicas muitas vezes reservadas somente às experiências do homem negro. Dentro desta perspectiva, Emanuel, se sente livre quanto homem, mas não considera em nenhum momento a liberdade da mulher nas decisões de seu próprio corpo, ou seja, apresenta-se o corpo da mulher sendo
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entendido como propriedade do homem. Por isso, “Dororidade carrega no seu significado a dor provocada em todas as Mulheres pelo Machismo” (PIEDADE, 2017, p.13). As questões que Sortilégio apresenta, são questões que competem a vida cotidiana de vários negros em negação de si e de tentativas de adequação a um sistema colonizador, e isso fica extremamente exacerbado na relação de Emanuel e Efigênia, pois por diversos momentos apresentase questões de constituições de subjetividade que leva a negação da identidade, as violências físicas e psicológicas praticadas por Emanuel sobre a Efigênia, a falta de afeto e preterimento estabelecido para Efigênia, e os lugares que são impostos para o negro na sociedade. Durante toda a narrativa da peça Emanuel estabelece a sua consciência racial de sua identidade de homem negro e se reconcilia consigo mesmo, terminando assim por aceitar a religião e o sacrifício a ele forçado, com a ajuda de Efigênia que ao final da obra assassina Emanuel. O seu rito de passagem simboliza seu reencontro com sua negritude e ancestralidade. EMANUEL – [...] Eu não podia amar uma criatura que teria a marca de tudo que me renegou. Sonhei com um filho de face escura. Escuridão de noite profunda. Olhos pretos como abismo. Cabelos duros, indomáveis. Pernas talhadas em bronze... punhos de aço para esmagar a hipocrisia do mundo branco. Brancura que nunca mais há de me oprimir, estão ouvindo? Está ouvindo, Deus do céu? Quero que todos ouçam. Venham todos, venham! [...] EMANUEL (patético, frente para o público) – Eu matei Margarida. Sou um negro livre. (Emanuel, agora calmo e decidido, vai até à gameleira e ajoelha-se entre o despacho, abaixa a cabeça na direção do pegi. Aceita o sacrifício. As Filhas de Santo rapidamente o envolvem e o atravessam com a lança de Exu. Ponto fúnebre de Jubiabá) (NASCIMENTO, 1961, p.195-197) 84
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Entretanto, Sortilégio é um drama épico e uma fábula moral que em forma de ritual constrói a narrativa do Emanuel espelhada na representação de diversos homens negros da sociedade brasileira, que são atingidos por uma cultura eurocêntrica imposta, através da cultura do branqueamento e da imposição da subjetividade hegemônica. O autor Abdias Nascimento, que também irá interpretar o personagem Emanuel, utiliza-se das personagens femininas como agentes para um processo de transformação de Emanuel, sendo assim, essas personagens acabam desempenhando uma função importante na estrutura da peça. As personagens “Filhas de Santo I, II e III” representam o poder feminino no culto dos orixás, trazendo o personagem de volta a sua ancestralidade que sempre foi negada por si mesmo. Para análise das fontes iconográficas sobre a encenação da peça teatral Sortilégio organizada pelo Teatro Experimental do Negro em 1957, foi feita uma ampla pesquisa de fontes relacionado a peça teatral para além do texto teatral “Sortilégio: Mistério Negro” que é lançada pela antologia de Abdias Nascimento denominada “Dramas para Negros e Prólogos Para Brancos” em 1961. Foi realizada uma busca no acervo da Hemeroteca Digital Brasileira, 74 (setenta e quatro) citações em periódicos do Rio de Janeiro e São Paulo de 1950-1960, e 16 (dezesseis) citações em periódicos do Rio de Janeiro e São Paulo dos anos 1960-1970, onde foram encontrados documentos como: manchetes da peça, fotos dos ensaios e da apresentação, entrevistas com Abdias Nascimento e com os demais artistas envolvidos na criação da peça e análises de críticos teatrais sobre o espetáculo. Também foi encontrado no site da Rede de Museus do Estado do Rio de Janeiro, um “Programa do Theatro Municipal” que supostamente era distribuído na entrada ou saída do teatro, contendo 15 (quinze) páginas sobre a peça Sortilégio.
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\ teatrovivência de Abdias Nascimento: a estética negra da peça Sortilégio no teatro experimental do negro
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\ desterritorializando a direção por uma linha de fuga lésbica: ruídos epistemológicos Djulia Márcia dos Santos Djulia Márcia dos Santos, São José (SC). É graduada em licenciatura em teatro pela Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc). No curso, realizou a pesquisa a seguir, com ênfase em teatro contemporâneo. djuliamarc@gmail.com
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FICHA TÉCNICA Instituição Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc) Tipo do curso Graduação Nome do curso Licenciatura em teatro Período do curso 2018-2023 Estado Santa Catarina Título do trabalho Desterritorializando a direção por uma linha de fuga lésbica: ruídos epistemológicos Nome da autora Djulia Márcia dos Santos Nome da orientadora Professora doutora Maíra Castilhos Número de páginas 19
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\ RESUMO A pesquisa busca fazer uma análise sobre o papel da direção enquanto produtor de sentido para a cena a partir do curta-metragem intitulado “Vertigem”, para tanto, investiga a natureza de sua práxis e os conflitos de território, assim como a própria noção de desterritorialização e territorialização a partir dos pensamentos de Gilles Deleuze e Félix Guattari na filosofia. A pesquisa se debruça sobre esses conceitos para colocar em crise quem ocupa esses espaços nas artes da cena, pensando uma epistemologia lésbica e feminista que desmantele o regime histórico metodológico cishéterosexual. Palavras-chave: Território; Teatro; Lesbianidade Vertigo: deterritorializing direction by a lesbian escape line
\ ABSTRACT The research seeks to analyze the role of direction as a producer of meaning for the scene based on the short film entitled “Vertigo”, to this end, it investigates the nature of its praxis and territorial conflicts, as well as the very notion of deterritorialization and territorialization based on the thoughts of Gilles Deleuze and Félix Guattari in philosophy. The research focuses on these concepts to put those who occupy these spaces in the performing arts into crisis, thinking about a lesbian and feminist epistemology that dismantles the cisheterosexual historical methodological regime. Keywords: Territory; Theater; Lesbianity. Vertige: direction déterritorialisante par une ligne d’évasion lesbienne
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\ RESUMÉ La recherche cherche à analyser le rôle de la mise en scène comme productrice de sens pour la scène à partir du court métrage intitulé « Vertigo », pour cela elle interroge la nature de sa praxis et des conflits territoriaux, ainsi que la notion même de déterritorialisation. et territorialisation à partir des réflexions de Gilles Deleuze et de Félix Guattari en philosophie. La recherche se concentre sur ces concepts pour mettre en crise ceux qui occupent ces espaces dans les arts du spectacle, en pensant à une épistémologie lesbienne et féministe qui démantèle le régime méthodologique historique cisheterosexuel. Mots-clés: Territoire; Théâtre; la lesbienne.
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1 \ INTRODUÇÃO Para introduzir a discussão é importante contextualizar o início, o que semeou essa pesquisa. Iniciada enquanto um projeto na disciplina de Direção Teatral I, no curso de Licenciatura em Teatro pela Universidade do Estado de Santa Catarina, com o objetivo de ser um material audiovisual em tempos pandêmicos de COVID-19 em 2021, desenvolveu-se para além da ementa pedagógica e estabeleceu-se enquanto uma coisa outra; avessa e em desequilíbrio, à procura de sua linguagem. Enquanto uma artista mulher, que convoca outras mulheres1 e questões que atravessam essas noções, parecia-me inconcebível não colocar em crise as disposições na realização de uma obra autoral. Nossos corpos existindo e se relacionando em proposição e composição desorganizava lógicas estruturais e epistemológicas quando se afasta dos papéis do modus operandi na criação de obra artística, principalmente no campo teatral e audiovisual. É nessa relação entre as questões de gênero e direção que a pesquisa registra e investiga seus próprios movimentos nessa monografia. Entendendo que não se propõe a criar um dispositivo mas produzir uma reflexão de identidades - ou o esfacelamento delas a fim de novos agenciamentos do corpo e subjetividade das mulheres e mulheres lésbicas enquanto realizadoras. Para tanto, ao longo do percurso de criação artístico busco uma aproximação com a metodologia de trabalho através do Modo Operativo AND2, que também provocou um outro olhar para aquilo que se concebe enquanto direção. a natureza de seus diversos significados, a instância artística adota a direção como uma posição, logo, construindo uma relação hierárquica entre o sujeito que é qualificado para orientar e o sujeito que é orientado. Esse estado de poder, prático e intelectual, manobra as estruturas do campo teatral entre os séculos XIX e XX, em que seu papel “veio a ser, a de atribuir um sentido específico ao texto transformando-o em obra de arte; representação de uma opinião; exposição de um juízo sobre a realidade; expressão de um estilo pessoal” (TORRES, 2018, p. 112).
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1. Para fins de contexto, a pesquisa e sua prática foi realizada junto com duas outras artistas, ambas artistas são produtoras e realizadoras no âmbito teatral. 2. O Modo Operativo AND é um sistema de improvisação e compo-sição-com que oferece um conjunto de instrumentos para o estudo praticado das políticas da convivência e das capacidades de auto observação em ato e de tomada de decisão situada.
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Essas provocações levam a pensar uma desestruturação, substantivo feminino, que em seu conceito tem como um dos significados “a perda do referencial” ou “desfazimento da estrutura”, que me aproximam de Félix Guattari (1996) para o tensionamento de um território: [...] O território pode ser relativo tanto a um espaço vivido, quanto a um sistema percebido no seio do qual um sujeito se sente “em casa”. O território é sinônimo de apropriação, de subjetivação fechada sobre si mesma. Ele é o conjunto de projetos e representações nos quais vai desembocar, pragmaticamente, toda série de comportamentos, de investimentos, nos tempos e nos espaços sociais, culturais, estéticos, cognitivos (GUATTARI; ROLNIK, 1996, p. 323). Nessa articulação entre prática e teoria, a pesquisa se propõe a desterritorializar e pensar poéticas possíveis dentro de um trabalho afetivo pensado entre mulheres e um corpo lésbico.
1.1 Ponto de inflexão Com inúmeros sinônimos, a palavra “direção” tem como uma das características a “orientação para um deslocamento”, premissa basilar quando se pensa a relação moderna do teatro. Para contextualizar a figura do diretor e seu surgimento, é importante trazer à discussão aspectos históricos que contornam do século XIX até os dias atuais, enlaçando-os com a análise do processo e quais suas aproximações. Estes aspectos são fundamentais para desorganizar os pensamentos contemporâneos sobre criação, das estruturas em que foram concebidas, regidas por uma lógica de mediação entre texto e espetáculo. A partir de Jean Jacque Roubine (1998) é possível entender o que permeava o entendimento de configuração teatral e seus desdobramentos durante o século, numa relação entre três elementos: o diretor, o encenador
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e o ator. Com as mudanças de paradigma na transição do século, a queda do ‘textocentrismo’, delimita-se um espaço organizacional para quem determina de acordo com seu conhecimento. Tais noções são suspendidas e deslocadas a partir de trabalhos que fogem desse norte ao longo do século XX e XXI, o que não significa um rompante severo e definitivo com as demarcações deste território. Cabe ressaltar que esta pesquisa não pretende estabelecer uma resposta à discussão sobre a possibilidade de um teatro sem direção ou uma figura que direcione, porque não há respostas assim como há todas as respostas possíveis. Essa lacuna paradoxal, reivindica uma nova poética que imbrique suas ausências e a subjetivação. Nesta pesquisa, parto de um recorte enquanto mulher artista, num corpo que se efetiva enquanto lésbica em leituras e violências, enquanto um corpo marginalizado, fronteiriço como Monique Wittig (2022) provoca “Lésbicas não são mulheres”, rompendo com o sujeito universal abstrato do feminismo - a mulher essencial - e criando uma outra via para sua prática discursiva, teórica e política, ela funda o chamado “pensamento lésbico”. O pensamento lésbico parte da noção de que a lésbica é uma via de rasura, fronteiriça. [...] As lésbicas podem ser muitas identidades políticas ou constituições subjetivas que não obedecem à ideia de mulher de um certo heterofeminismo que já é fundado a partir do termo ‘feminino’. (AZEVEDO apud WITTIG, 2022, p. 12) Assim como a relação do corpo com o espaço gera um afetamento, as inscrições sociais e subjetivas desse corpo se relacionam diretamente com a posição que ele ocupa ou justamente, a ausência desse corpo em determinados lugares. Com essa pesquisa, reivindico um olhar lésbico enquanto artista. Reparando e reavaliando conceitualmente as ordens metodológicas, sociais e políticas ao colocar meu corpo à disposição, assim como um dispositivo para provocação. A subjetividade lésbica cria uma via discursiva desestruturante na lógica patriarcal e que concebe a
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3. Vale a pena chamar a atenção para o recorte do contexto brasileiro. Vale a leitura de Stela Regina Fischer em sua dissertação “Processo Colaborativo: experiências de companhias teatrais brasileiras nos anos 90”, de 2003.
heterossexualidade como norma, Wittig (2022) sublinha “o pensamento hétero se reveste em sua tendência de universalizar imediatamente sua produção de conceitos e torná-los leis gerais que seriam verdadeiras para todas as sociedades, todas as épocas e todos os indivíduos” (WITTIG, 2022, p. 62). Evocar as contradições da figura da direção e sua posição, pensando em um ator-criador, foi um dos disparadores para a construção do processo que será investigado. Cabe aqui pontuar suas especificidades para localizar melhor quem está lendo, já que o projeto é concebido dentro de um cenário pandêmico rigoroso que paralisa a vida cotidiana. Por conta das regras de distanciamento social para evitar uma possível contaminação pela COVID-19, as aulas na Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC), são temporariamente feitas de forma remota. Todas as noções cênicas eram colocadas em suspenso naquele momento. A partir disso, me interessa pesquisar um processo que consiga mobilizar algumas noções a partir dessas circunstâncias, como o trabalho colaborativo com outras mulheres. Tratar o aspecto colaborativo enquanto ética de trabalho não significa entrar em uma esfera anárquica e desorganizada, o processo colaborativo tem em si inúmeras configurações possíveis levando em conta a horizontalização, assim como suas possíveis contradições, a expectativa versus realidade, suas limitações, mas principalmente um olhar possível para deslocamentos e disposições. Nesse sentido é importante alinhar categoricamente como os processos foram nomeados na história do teatro: a criação coletiva nascida na década de 60, afastando-se de vez do textocentrismo e buscando um lugar autoral do ator, tem em suas características não centralizar uma voz e priorizar um processo que tome decisões em coletivo. Tais características podem ser mutáveis, mas sempre norteando-se nas noções de coletividade. A partir da década de 80, surgem as primeiras investigações com a figura de uma direção ou de um/a dramaturgo/a, mas horizontalizada com os demais participantes, chamado de processo colaborativo.3 Nesta pesquisa o olhar para a criação da obra é transitório e impermanente, buscando ampliar as discussões e metodologias do corpo, da imagem e calçando sua própria poética vertiginosa. Quando convidei Bárbara Biscaro para o projeto, pensando
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logisticamente em nossa segurança, pedi para que Bárbara me enviasse um e-mail elaborando uma provocação sobre o tema: “o atravessamento do mundo no coração de uma mulher por meio do amor, da morte e do tempo”, temas que esses que surgiram como disparadores dramatúrgicos para construir nossas referências que perpassam o estético, imagético e cultural. Neste processo sabíamos que a composição dessa personagem era indissociável das nossas posições enquanto mulheres e a própria subjetivação dessa posição social. A partir disso, os e-mails — que trocamos por três semanas — ganham um contorno confessional que chamarei aqui de cartas, instaurando um lugar de jogo dramatúrgico. As cartas que trocamos foram fundamentais na criação de um vínculo à parte, já que agora éramos duas atrizes e mulheres em composição, tecendo e reconhecendo uma terceira mulher ainda sem contorno. Eu te escrevo sem saber ao certo o que quero dizer, deixo a narrativa solta, a ponta dos dedos percorrerem o catálogo de possibilidades de narrar minhas próprias histórias. Isso é algo que me fascina na ficção, no teatro: cada narrativa pode ser crível à sua maneira, compor um mundo totalmente diferente no qual podemos firmar as estacas de uma identidade. (BISCARO, 2020) A relação de identidade, questão que parecia muito cara à dramaturgia, ganha elasticidade ao entender o caráter experimental em que a pesquisa poderia se sujeitar, o tônus das imagens que surgiam colocavam em jogo as noções de um imaginário feminino e justamente, colocar-se em proposição com esse imaginário caracterizava seu desmantelamento, Quando penso em Medeia e o fato dela deixar tudo para trás, assassinar os filhos e subir aos céus em um deus ex machina flamejante, eu penso que ela foi muito corajosa ao romper as amarras com tudo aquilo que para ela representava uma traição de princípios. Medeia não se aborrece com
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4. Maya Deren foi uma realizadora, fotógrafa, dançarina e teórica cinematográfica norte-americana.
Jasão porque ele se apaixona por outra tonta. O aborrecimento maior vem da quebra do acordo firmado, feito de forma covarde. O que você faz quando descobre que o homem que amou, aquele sobre quem você verteu o mais puro leite de sua beleza e volúpia, é capaz de quebrar a ética do acordo estabelecido e por medo, te trata como uma idiota? A morte dos filhos, a capacidade de sacrificar a própria carne é um símbolo eloquente do mito: uma mulher que está disposta a doar um pedaço de si por uma visão de mundo que a sustente ética e afetivamente. Não bastava rechaçar aquele homem, mas cortar os brotos ainda jovens desse galho torto. (BISCARO, 2020) Essa relação que foi sendo criada na troca das cartas, nos posiciona em direção à uma criação compartilhada, agenciando dessa forma uma afetação horizontal para pensar a autoria da obra. Nesta pesquisa, reivindico um chamamento ao termo “atriz-criadora” para Bárbara enquanto propositora e afetadora, na criação de seu próprio discurso e sua investigação, entendendo o fantasma que assolou o ofício dos atores/atrizes em processos normativos, onde se têm o que segundo Antônio Araújo (2011, p. 133) chama de “ator-linha de montagem”, tendo em vista que “em termos convencionais, o/a dramaturgo/a e o/a encenador/a são “aqueles que pensam”, enquanto os atores/atrizes são “aqueles que fazem”. O conceito da obra parece, nesse caso, ser um atributo da dramaturgia ou direção”. O primeiro encontro presencial com Bárbara acontece numa manhã ao final de 2021, em sua casa. Os fios de proposição foram sendo cada vez mais desenhados à medida em que entendia-se a feitura da obra como uma experimentação audiovisual dentro de um contexto onde o teatro não era uma possibilidade enquanto fenômeno presencial. Embebidas de um referencial em comum, partimos do lugar estético e híbrido bastante presente nas obras de Maya Deren4, realizadora e teórica cinematográfica dos anos 1940 — 1950. Suas obras, em especial Meshes Of The Afternoon ou Tramas do Entardecer em tradução
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livre, de 1943, se torna um ponto de contato com o universo do cinema e nossas intencionalidades criativas, tendo em vista que Maya diz sobre suas experimentações “o que existia na minha mente era essencialmente uma experiência visual. A poesia foi um esforço de colocar imagens em palavras.” (DEREN, 2008). Seu estilismo, nomeado por “coreocinema”5, foi um referencial importante no estabelecimento de pontos estéticos de aproximação. Enquanto objetivo, o trabalho prático desenhava-se à medida do que o corpo-dramaturgia de Bárbara propusesse a partir dos vetores de direcionamento que chamarei aqui de “armadilhas” para pensar a relação de um corpo que produz a partir do estranhamento do vir-à-ser: Reconhecer e conceber o corpo — ainda que sem ossos rígidos e formados; montar e desmontar — onde ele cabe e onde ele já esteve? O que faz esse corpo estar em estado de febre, em vertigem? Instaurar e manifestar a própria língua — como as palavras acontecem? partem de onde e atingem quem? Quantas variações e fenômenos e lógicas e soterramentos de palavras podem surgir para formar uma frase? Quais têm corpo e quais são só ruídos? A destituição, o ritual — como os dois movimentos se encontram e conflitam entre si na formação dessa criatura — qual rosto surge depois dessa febre? É o movimento da tragédia, do suicídio, de Medeia, daquela que saí com as pedras no bolso mas nunca pula na água; do vermelho, do vazio, da garganta seca — do incêndio. A condição de jogo como um produtor de sentidos, começa a elucidar questões-chave na construção desse corpo, o afetar-se enquanto dispositivo de composição. O contorno do trabalho prático afasta-se cada vez mais do aspecto naturalista e psicológico, deslocando o corpo de Bárbara para um lugar sensível, explorando outros caminhos expressivos para além da construção de uma personagem, mas sim uma persona.
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5. Advindo do termo “choreocinema” empregado por John Martin para pensar o trabalho de Maya Deren. “ [...] faz-se necessário entender, também, o que esse prefixo “choreo” e o sufixo “cinema” indicam. “Coreo”, do grego khoreía e do latim chorea, faz relação com a dança, enquanto “cinema”, do grego kénemas, indica movimento.” (BASTOS, 2012)
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O deslocamento de um corpo ao se desintegrar das condições, historicamente lidas como assertivas no treinamento do ator/atriz, provoca uma reorganização estética e prática no que se refere à poética de experimentação. Essa questão, que perpassa diretamente o corpo de Bárbara enquanto mulher e artista, traz para discussão o lugar inalcançável da reprodução da realidade, como coloca Jean-Jacques Roubine (1980, p. 26): “o fantasma original do ilusionismo naturalista não é outra coisa se não essa utopia demiúrgica que se propõe a pensar que dominamos o mundo, reproduzindo-o”, essa cena que se fissura e deixa afetar-se pelas imagens, assim como pelo seu próprio ambiente, é o ponto de partida para nossos dispositivos de composição que encontram no Modo Operativo AND sua questão metodológica. O corpo de Bárbara ao atravessar as águas da experimentação, encontra na investigação performativa um lugar de identidade. O aspecto filosófico do M.O AND nos deu pistas para pensar o acidente, o inesperado, enquanto poética: Começar pelo meio é começar pelo imprevisível, ou melhor: começar justo aí, no imprevisível, nesse lugar-situação envolvente em que acidente e acidentado irrompem e se interrompem mutuamente, funcionando como ocasião recíproca para encontrar um novo jogo, um outro jogo. Para substituir o jogo do saber e o jogo das respostas pelo “jogo do sabor” e pelo “jogo das perguntas”. (EUGENIO; FIADEIRO, 2013) O processo de concepção das imagens no corpo daquela persona, uma mulher sem nome, ambientada num espaço familiar mas que agora necessitava um olhar ficcional, que se aproxima e pode distanciar-se no mesmo espectro, fissurando as partituras e noções de um corpo, coloca em suspensão a forma como uma mulher é representada, como Claire Johnston coloca “qualquer estratégia revolucionária precisa desafiar a representação da realidade, não é suficiente discutir a opressão das mulheres no texto fílmico, a linguagem do cinema, a representação da realidade precisa ser interrogada.” (JOHNSTON, 2000, p. 30). A
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interrogação sobre o “amor, a morte e o tempo” deixa seus vestígios para pensar um corpo afetado historicamente, que é dilatado pelas imagens dentro e fora do aspecto ficcional, que está experimentando a incompletude, o esvaziamento da interpretação.
6. NANCY, Jean-Luc. Corpo-fora. Rio de Janeiro: 7Letras, 2015. 110 p. Tradução e organização de Márcia Sá Cavalcante Schuback. 7. Ibid. p. 31.
2 \ PULSÕES VERTIGINOSAS Abre-se o espaço de onde cabe sair, de onde o corpo se coloca diante de si mesmo - pois toda a sua presença está aí, nesse fora de si, que não se desprende de um ‘dentro’ mas que o evoca somente como o impossível, o vazio fora de um lugar, de um tempo e de um sentido. ‘Si’ tornar-se assim: personagem, papel, máscara, maneira de portar-se, exibição, apresentação - ou seja, variação singular da abertura e distinção pela qual há um corpo, uma presença. (Jean-Luc Nancy em Corpo, fora, 2015, p. 81) No capítulo “corpo sob o olhar”6, Jean-Luc Nancy provoca sobre a condição da imagem enquanto um vestígio, o sinal de que algo aconteceu. Partindo desta articulação que o filósofo traz com o corpo como uma “possibilidade de relações”7, destaco o segundo momento desta pesquisa. Ao final de 2021, as elaborações sobre o projeto começam a ganhar contorno no contato com seu público, em exibições localizadas — nesse caso o curta foi exibido para os alunos e alunas da disciplina de Direção Teatral I e no FETO - Festival Estudantil de Teatro em Minas Gerais aberto ao público, o primeiro material8 de vídeo começa a ser confrontado pelo olhar do outro. As provocações estabeleceram pontos de tensionamento entre o ideal e o real dessas imagens, convocando-nos a re-parar9 a construção dessa persona, criada por Bárbara, enquanto produtora de um sentido narrativo e como a experiência sensível de uma percepção daquele que olha enquanto espectador, poderia ser ampliado e destrinchado. A multiplicidade simbólica dessas imagens dava notícias sobre a ausência de uma
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8. https://youtu.be/ KTFYGUPAjYs - curtametragem resultante do primeiro material de vídeo. 9. Como o M.D AND propõe em sua metodologia de composição “Isso porque “re-parar” é também, e quase de imediato, “reparar” no que há à volta, nos fatores de situação cujas interrelações emergem enquanto teias de um imenso e envolvente mapa vivo: diferentemente das tramas lineares das narrativas-expectativa (que operam por desenvolvimento e não por envolvimento)”.
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10. GRIMES, Suelen. Escritos de Tadeusz Kantor: Atuação e Busca de Estados como Procedimento. Itajaí, Editora Rizoma, 2023. 11. BOGART, Anne. Sei Coisas que Sei Sobre o Treinamento de Atores. Trad. Carolina Paganini. Revista Urdimento (UDESC), Florianópolis, v. 12, 2009, p. 30.
interpretação fixa, dicotômica e binária, haviam camadas sobrepostas e atravessamentos político-sociais-subjetivos indissociáveis da sua feitura: [...] Sobre la estructuración corporal del actor/ actriz: que es resultado de lo intercultural, que se sumerge en su propio con-texto, lo vive, lo acciona y lo representa en una extensión de su imaginario, creando una especie de “semiosfera” que lo nutre y lo lleva a reaccionar. (CARREIRA; TELLES, 2023, p. 2) Como citado acima, as interlocuções sobre o espaço social que afetava diretamente o processo foi o que fez a pesquisa se reorganizar, desatando-se de sua significação, éramos deslocadas em direção à crise — conceitual e prática. No início de 2022, convido à Suelen Grimes, também graduanda de Licenciatura em Teatro, para experimentar conosco através de sua lente e vocabulário enquanto atriz, artista multidisciplinar com uma pesquisa na pós-graduação da Universidade do Estado de Santa Catarina, voltada para o tema da atuação contemporânea10. O trabalho de revisitar as imagens e pensar arqueologicamente, mapear, cartografar esses vestígios, simbólicos ou práticos, provoca uma suspensão no tecido sensível da obra. A entrada de Suelen é fundamental para que a pesquisa possa encorpar em sua práxis um novo entendimento de como ficção e o trabalho autoral, poderiam produzir uma fratura na compreensão de trabalho da atriz, assim como o olhar da direção enquanto uma produtora de sentidos, ideológicos e propositivos. A provocação que Bogart coloca “do ponto de vista da criação, o desequilíbrio é mais frutífero que a estabilidade”11, estrutura um pensar outro para a noção de afetação enquanto direção. Neste sentido, se começa a desenhar geograficamente os espaços ocupados, assim como também visualiza-se o romper desses limítrofes a partir dos corpos que ocupam. As relações imbricadas no recorte de cada corpo — e aqui só posso dar conta das inscrições em meu corpo enquanto mulher, lésbica, cisgênera, desviante, como Wittig explica em sua teoria sócio-política sobre mulheres lésbicas “[...] como um não-homem, um produto da sociedade, não um produto da natureza como as mulheres, por isso acusadas de antinaturais, aberração, desvio”
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(WITTIG, 1992, p. 12-13). Se levado em conta sua posição, as marcações geográficas e relacionais de meu corpo invocam um produzir lésbico, um território de estranhamento. Sendo assim, a partir desse limítrofe começo a elaborar as questões processuais de afetação, entendendo que o mesmo irá desorganizar a construção totalizante que permeia o nascimento do conceito de direção no séc. XIX e provocar movimento12. Mobilizar o olhar para a criação, requer “re-parar” metodologicamente sua prática, nesse momento do processo estando em três pessoas, foi necessário que estivéssemos alinhadas horizontalmente, para entender o constructo de posições assumidas ali. Enquanto três artistas mulheres e brancas, compondo e mapeando as pistas de uma quarta persona, ainda que no campo ficcional, a fricção entre corpo e política não poderia passar intacta. Principalmente quando a premissa conceitual parte do “atravessamento do mundo no coração de uma mulher”, é importante que se localize o discurso para não generalizá-lo. Para tanto, busco a partir de Audre Lorde, uma provocação possível para a distorção ao reivindicar o lugar de sujeito de experiência totalizante e homogênea, “quando as mulheres brancas ignoram os privilégios inerentes à sua branquitude e definem mulher apenas de acordo com suas experiências, as mulheres de cor se tornam “outras”, outsiders cujas experiência e tradição são ‘alheias’ demais para serem compreendidas” Lorde (2020). Se fez necessário revisitar e colocar em constante crise nossos “corposarquivos”13, “corpos-história”14 e “corpos-política”15, para que as questões não se diluíssem numa compreensão sem espaço para os recortes de classe, raça e gênero. A partir desses deslocamentos e assumindo um proposital descompromisso em tentar dar contorno, de forma compositiva e narrativa, à essa mulher-persona-corpo-experiência, iniciou-se em fevereiro de 2022 o processo de produção do curta-metragem. Num contexto social em que o país começava a organizar-se como “póspandêmico”, com o recebimento e aplicação em massa das vacinas contra a COVID-19 por todo o território brasileiro, sentíamos mais segurança em explorar o mundo fora das paredes da casa de Bárbara, onde havíamos trabalhado em 2021. Agora, a cidade e suas contradições arquitetônicas, suas angústias e volumes, invadiria a corrente sanguínea da performance.
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12. Neste sentido, o movimento se refere ao que Deleuze e Guattari chamam de territorialização e desterritorialização. 13. Conceitos criados pela autora. 14. Ibidem. 15. Ibidem.
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16. Tradução livre do conceito de “Devised Theatre” por Maria Brígida de Miranda, pesquisado por Alison Oddey. Para saber mais, ler o capítulo 4 do livro “Corpos Dóceis: reflexões sobre métodos de treinamento de atores e atrizes no século XX”.
Para tanto, nós três saímos em direção ao centro da cidade de Florianópolis, onde experimentaria-se a improvisação a partir dos espaços enquanto afetação e concepção visual dessa mulher-persona-corpoexperiência. Nesse sentido, estabeleço uma aproximação possível com as metodologias de “teatro processual”16, prática que pensava estratégias alternativas de criação cênica feitas por mulheres, distanciando-se da lógica de uma função diretiva ou dramatúrgica a partir de uma pessoa, mas sim de uma colaboração enquanto exercício colaborativo e
17. https://youtu.be/0ZwjDMej3o - Curta-metragem “Vertigem” completo. 18. TELLES, 2023, p. 10
democrático, entendendo que as propostas podem “começar de qualquer coisa” (ODDEY apud MIRANDA, 2021, p. 173). Ao longo do dia percorremos três espaços distintos, esses locais escolhidos de forma aleatória, começam a dar contorno à composição de um corpo-cenografia. A relação que se cria com a espacialidade, constrói operações de condicionamento, assim como também distanciamento de determinados signos. Ao posicionar essa mulher-persona-corpo-experiência ambientalmente, com sua qualidade abstracional que joga com os códigos realistas da cena, provoca-se um olhar outro para a manifestação do ambiente enquanto produtor de um sentido fechado. O “corpo oximoro, polimorfo: dentro/ fora, matéria/forma, homo/heterologia, auto/alonomia, crescimento/ excrescência, meu/nada” (NANCY, 2015, p. 99), convoca uma linguagem quando coloca na cena esse ambiente que é a manifestação do que “está sendo” (CARREIRA, 2013) e transforma-o, atormenta-o e multiplica as possibilidades “o corpo performativo não pára de oscilar entre a cena e a não-cena, entre arte e não arte, e é justamente na vibração paradoxal que se cria e se fortalece” Fabião (2013). Neste sentido, reivindico para esse processo um corpo desorganizador, provocador e anárquico. Nasce, assim como também se desfaz, a mulher-persona-corpo-experiência17 sob um olhar protético de câmera que não se faz esconder, que lhe arranca a autonomia e tece novos desejos, que desumaniza e a reincorpora no mundo, que desenha a linha entre o tempo, a morte e a vida. Inclinando-me ao pensamento de Ana Kfouri em Escritos sobre la actuación contemporánea (2023) o que ela chama de “pensamiento-cuerpo”18 como um campo relacional para a construção de uma linguagem que busque o sensível ao invés da representação, localizo esse corpo na tentativa, no risco de quem vai encontro ao abismo e o encara sabendo que pode ser
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encarada de volta, criando um campo de forças opostas, sendo não-sendo um corpo ficcional possível. O corpo que se torna um território de jogo e significações múltiplas, cambiantes, produtor de ficção e intromissão, no sentido de um corpo no interior de outro, da realidade. As tensões fibrosas que envolvem nosso trabalho perpassam operações, procedimentos e linguagens que encontram vazão no que Renato Cohen (1999) organizará enquanto work in progress, ou em tradução livre, um trabalho em processo. Ainda que com características específicas, o work in progress elabora subversões aos territórios culturais, operando irrupções metodológicas, multidisciplinares e indisciplinares, que fazem interdições diretas no tempo e espaço, nosso interesse nesta pesquisa, tanto no campo teatral quanto no campo audiovisual que permeia a relação com a imagem e sua construção. Nesse sentido, o processo se inclina às tendências de um cinema experimental, transitório, indisciplinar, fronteiriço, desobediente às normativas formas de pensar uma mulher-persona-corpo-experiência. Para tanto, convoco ao estranhamento e à navalha ao articular essas imagens naquilo que o cinema chama de montagem. Um estranhamento que abre um espaço entre dois pontos, repleto de ausências e lacunas, convoca um outro nível de presença no vazio. Nesse sentido, o processo constrói sua própria linguagem enquanto uma trapaça “[...] em prol de uma abordagem contextual e transitória que force a produção de conhecimento a assumir a precariedade que a constitui, abrindo-a à multiplicidade de estratégias e procedimentos metodológicos requerida por esse corpo indisciplinar” na contramão das coerências acadêmicas e normativas, Jota Mombaça (2016) provoca ao pensar ruídos19 no condicionamento da produção de conhecimento.
3 \ ENTRE VESTÍGIOS E TERRITÓRIOS DE UMA DIREÇÃO LÉSBICA: IDENTIDADE(S) EM CRISE “[...] A revolução não se reduz a uma apropriação dos meios de produção, mas inclui e baseia-se em uma reapropriação dos meios de reprodução - reapropriação, portanto, do “saber-do-corpo”,
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19. MOMBAÇA, 2016, p. 345.
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20. TORRES, 2018, 35. 21. Ibidem. 22. Usando do conceito de Deleuze e Guattari para atender ao conceito de território e seus dispositivos no livro Mil Platôs: Capitalismo e Esquizofrenia, 1995.
da sexualidade, dos afetos, da linguagem, da imaginação e do desejo.” (Paul B. Preciado no prólogo do livro “Esferas da Insurreição - Notas para uma vida não cafetinada” de Suely Rolnik, 2018, p. 15) Ao introduzir a discussão sobre insubordinação epistemológica no trecho acima, Paul B. Preciado, filósofo e escritor espanhol que cobiça destrinchar as relações do regime de diferença sexual, estava ensaiando um paralelo para olhar a direção, ainda que não fosse sua intenção. Ainda que não objetivamente, entrelaça os fios do tear de um espaço fora da norma na geografia histórico-teatral. Historicamente, a figura da direção no contexto teatral, deveria ser detentor de alguns saberes (TORRES, 2018, p. 26), seja na mediação entre a palavra e o público, “projeta sua encenação, seu imaginário, ajuizando um comentário pessoal ou coletivo sobre o mundo, ou um fragmento do mundo, com o olhar de um sociólogo e de um historiador”20. Todas as noções contemporâneas de direção perpassam a apropriação de um sentido da cena, recortando o mundo em seus fragmentos na leitura da realidade que o circunda21. A figura da direção nasce e se constitui a partir da lógica de organização, aristotélica e binária, que produz as noções do certo e errado, dentro e fora da cena. Razoavelmente, a partir do século XX e a crise na disposição da linguagem teatral e seus agentes, começa a estremecer a lógica normativa e colonial da ocupação dos espaços. Nesse sentido, a pesquisa procura invadir, mas nunca ancorar, um pedaço possível para si a partir da sua episteme e saber lésbico em um território amaldiçoado pela herança patriarcal, convidando aos outros corpos dissidentes, lésbicos, não-binários, não feminilizados, grotescos, corpos monstruosos e indesejados, que se mapeie e de forma indisciplinar, reterritorialize o pensar da cena. Ao pensar a direção, entendendo que essa noção está implicada em diversas linguagens, reivindico um território metodológico e lésbico, que provoque deslocamentos22, rachaduras e linhas de fuga para operar em áreas multidisciplinares, que exijam uma desterritorialização a partir do pensamento e práticas operacionais de manutenção da
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cisheterossexualidade23. De forma prática dentro do processo, o olhar lésbico configura-se enquanto agenciamento para o distanciamento de imagens e narrativas históricas que buscavam na figura da mulher um elemento de sexualização ou objetificação, buscando estrategicamente desenhar possibilidades que fujam da representação da mulher enquanto o Outro, despossuídas de subjetividade ou desejos que não carreguem a marca da cisheterossexualidade patriarcal. Para tanto, se implica cada vez mais uma relação prática com a horizontalidade e o sensível para saber elaborar mais perguntas ao invés de querer produzir respostas. Nesse sentido, o olhar lésbico produziu artesanalmente um tempo outro para um processo, de forma elástica retorcendo o tempo fora do relógio capital que exigia uma produção normativa e desensibilizada com as proposições a partir do corpo de Bárbara. Durante a confecção das imagens o acidental tornando-se-ia um recurso de linguagem, negociavase com o “entre” ao invés do que a indústria chamaria de resultado = produto final. Durante o processo de pesquisa, o objeto “direção” e sua literatura era constantemente equiparado a um manual de instruções, que tinham valores práticos que produzem a figura de uma diretora ou diretor nas artes da cena, com determinadas regras que constituem aquela/aquele que produz o sentido e como. Essa pesquisa justamente reivindica um estranhamento ao que está colocado enquanto norma ou “fórmula” adequada. Importante reiterar que essa pesquisa não visa propor uma técnica ou método de “como dirigir” ou autorizar quais corpos desenham uma nova geografia, mas sim, provocar uma tensão e uma atenção aos traços cartográficos e históricos, justamente porque não há como se constituir uma identidade a direção, uma essencialidade, se a direção é principalmente uma operação relacional, é preciso “reparar” subjetivamente quem está dirigindo, quais corpos desenham ou cruzam essas linhas cartográficas. Essa provocação reitera o que Deleuze e Guattari estabelecem sobre a desterritorialização, todo movimento provoca um outro, como um continuum. Como é possível que os movimentos de desterritorialização e os processos de reterritorialização não fossem relativos, não
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23. Me inclino a usar do termo que Dedê Fatumma opera para falar sobre a sexualidade como dispositivo de poder, para saber mais ler em Lesbiandade, Feminismos Plurais, 2023.
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24. A partir do pensamento de Paul B. Preciado em “Texto Junkie: Sexo, drogas e biopolítica na era farmacopornográfica”, n. 1 edições, 2018, cap. 3. 25. Nesse sentido me aproximo do que Ramayana Lira de Sousa e Alexandra S. Brandão invocam como “experiências lésbicas em devir” no artigo “Inventário de uma infância sapatão em um mundo de imagens” de 2020. http:// periodicoscientificos. ufmt.br/ojs/index.php/ rebeh/index
estivessem em perpétua ramificação, presos uns aos outros? A orquídea se desterritorializa, formando uma imagem, um decalque de vespa; mas a vespa se reterritorializa sobre esta imagem. A vespa se desterritorializa, no entanto, tornandose ela mesma uma peça no aparelho de reprodução da orquídea; mas ela reterritorializa a orquídea, transportando o pólen. (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 17) Toda desterritorialização requer uma reterritorialização, e para isso partindo da negação epistemológica do mundo ao meu corpo-aberração, reivindico um saber-lésbico, um hackeamento24 dos agenciamentos de sexualidade e subjetivação, entendendo a “asfixia histórica” (FATUMMA, 2023, p. 69) que a produção de um saber lésbico, principalmente na área das artes cênicas, foi vítima nos últimos séculos. Em um corpo feito de devir-lésbico25, a condição relacional de direção atravessa minha lesbianidade e sua dissidência na reterritorialização de um olhar que produz sentido na cena, discursiva e praticamente. Importante sustentar que esse “saber-do-corpo” e seus territórios, também configuram um limítrofe geográfico, uma fronteira teóricoprática que inviabiliza e não discute as lesbianidades na cena, “é preciso implementar políticas públicas culturais que fomentem mais produções teatrais com esse recorte e investimentos na educação brasileira para que se realizem mais estudos acadêmicos com essa temática” (MACEDO, 2021, p. 221). O que essa pesquisa aponta é um cenário em que a forma e o conteúdo são fatores cruciais para uma reterritorialização possível desses corpos na cena artística, principalmente pensando a produção de uma obra. Essa mediação atravessada pelos “saberes-do-corpo”, pelo agenciamento de uma sexualidade à margem, constrói fraturas na manutenção de um olhar historicamente subordinado à sexualização, objetificação e/ou violências nas esferas cisheteronormativas — ou pelo menos, tentaram fraturar essa lógica violenta e impositiva perpetrada pelo regime patriarcal e heteronormativo na cena. É importante reiterar
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que a sexualidade dissidente não exime nenhuma pessoa de reproduzir determinadas violências, tendo em vista que as relações e dispositivos de poder se dão em esferas de classe, gênero, raça, enquanto agentes de expressão da lógica colonial “[...] e colonialidade pode ser compreendida como uma lógica global de desumanização que é capaz de existir até mesmo na ausência de colônias formais” (MALDONADO-TORRES, 2019 apud FATUMMA, 2023, p. 63). Nesse sentido, as afetações enquanto metodologia de trabalho perpassam para além do gênero, de um processo compartilhado entre mulheres, as questões inerentes ao meu corpo e inscrição lésbica no tempo, as afetações tornaram-se então devires. Um encontro endereçado que procura desestruturar a economia heteropatriarcal, a formação de uma nova linguagem onde a ficção é cooptada pelas relações produzidas pelas memórias de três provocadoras com seus corpos e subjetividades mobilizadas para e com a obra. Nesse movimento duplo, cria-se uma linha de fuga para as questões metodológicas da direção, desintegrando o lugar de “função” na criação de sentido e propondo um território para a “provocação” de um sentido. Antes de pensar a direção como um conjunto de técnicas e ou habilidades específicas, proponho pensar a direção como um jogo de perguntas que não procure responder coisa alguma. Pensar a direção como um jogo de olhar, de “re-parar” o sensível, uma negociação com o tempo inegociável da experiência subjetiva de um corpo ou obra, uma relação de afecções26 como em Spinoza, que rompa com a lógica industrial e dessensibilizada que neste sentido “autor e diretor devem deixar de reproduzir as formas de produção capitalista no sentido de apropriação e especificidade de trabalho de linha, para passar a funcionar totalmente misturados, atravessados e ligados à uma visão poetizante dos vínculos artísticos”27 (ARROJO apud AUDIVERT, 2014, p. 19). Antes de pensar essa pesquisa como uma metodologia de “salvação”, é justo dizer que os novos territórios não são permanentes, assim como sua identidade. Pensar a direção nos leva a acreditar nessa pesquisa, que se desloque o para e se convoque o porquê, entendendo que criar nas artes da cena é indissociavelmente virar elemento do próprio jogo, é morrer junto com aquilo que se mata.
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26. Por afecções, na linha espinozista, entende-se o encontro de um corpo com outro, ou seja, são as relações entre os corpos. É desses relacionamentos que se extraem as afecções que surgem para nós como afetos; assim sendo, o afetamento por outro corpo nos induz às alterações potenciais que podem ser diminuídas ou aumentadas. (LEAL, 2022, p. 363) 27. “Autor y director deben dejar de reproducir las formas de producción capitalista en el sentido de adueñamiento y especificidad de trabajo de línea, para pasar a funcionar totalmente mezclados, atravesados y ligados a una visión poetizante de los vínculos artísticos”.
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28. Para trazer Antonin Artaud e sua alegoria.
Nascer junto com aquilo que dá vida. Antes de pensar a direção como o
29. Para Preciado no prólogo do livro “Esferas da Insurreição - Notas para uma vida não cafetinada” de Suely Rolnik compara potentia gaudendi à pulsão de vida enquanto as forças inconscientes, que a era neoliberal tenta subtrair. Com várias nomeações a partir de autores como Preciado, Spinoza e Freud: “potência de agir, força de existir, potentia gaudendi, força orgásmica, força vital, pulsão de vida”. (MUNCHOW, 2021, p. 152)
margens, que desfigure e refaça os contornos, horrorize e maravilhe com
juízo de deus28, essa pesquisa busca a contradição que coloque o saber às sua potentia gaudendi29 lésbica, não-binária, decolonial. A noção de direção que queria elaborar encontros e conflitos com questões de gênero, não havia implicado ao próprio corpo um lugar de análise. De forma inconsciente ou não, a distância que havia tomado dos saberes de meu corpo e suas inscrições, me falam diretamente sobre as ausências e despotencialização histórico-social dos corpos lésbicos dissidentes nas artes da cena, nesse sentido, corpos com esse marcador em um espaço construído a partir e para a manutenção do regime patriarcal, raramente fazem parte da bibliografia ou literatura formativa de artistas dentro e fora da academia, ficando à deriva de uma pesquisa mais recortada e infelizmente, mais dificultosa principalmente na cena brasileira. O mapeamento da história de uma direção feminina nas artes da cena é sintomático quando mostra que “[...] a direção feminina também surge de modo tardio, e quando essa ação se torna visível, dá-se como uma variação das atividades de atriz, de empresárias e, não menos importante, de formadoras de opinião [...]” (OLIVEIRA, 2018, p. 163), essa relação histórica diz respeito à uma territorialização da direção a partir da organização social masculina — tendo em vista os recortes de cor e classe social que não fogem de uma análise crítica da reterritorialização lésbica. [...] se voltarmos os olhos para as lésbicas dentro do teatro, mesmo que não exista um movimento lésbico cultural equiparando-se aos movimentos lésbicos feministas, reconhecer-se como lésbica é posicionarse politicamente. Assim, este sujeito mulher lésbica precisa ser representado nas artes dentro de suas inconsistências e em diferentes “contextos históricos”. Essa abordagem do universo lésbico, quando apresentada em cena, é uma oportunidade para que lésbicas possam se reconhecer em suas
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diferenças quanto sujeitos atravessados por diversas identidades. (GRILLO, 2018, p. 196) O movimento de reivindicar um olhar lésbico é posicionar tanto o sujeito mulher lésbica enquanto agente das artes da cena, quanto sistematicamente reposiciona-la e evidenciar epistemologicamente os saberes implicados subjetivamente. Nesse sentido, a linha de fuga lésbica para além das artes da cena, é também uma estratégia para reterritorializar espaços sociais e políticos, territórios esses que possam, de maneira coletiva, emancipar e potencializar estética-política-artística e subjetivamente artistas dissidentes que se propõe a jogar com um olhar que descolonize o pensamento e a prática. Fora e dentro do território teatral, audiovisual, plástico ou artístico. As noções que emergem não se constituem apenas no mundo empírico, é necessário elaborar estratégias para a ocupação e produção de espaços, assim como também a cartografia, análise e acervo de práticas dissidentes que busquem desmantelar a lógica cisheterossexual que violenta epistemologicamente e subjetivamente tantos corpos e existências, de forma micro e macro. Exercitar o olhar e as tensões lésbicas que surgem ao propor um outro agenciamento ético e praticamente, justamente, para “re-parar” a formação bibliográfica, epistemológica e estética de atuais e futuros diretores, mas principalmente, de agentes relacionais da cena com mais interesse em perguntas ativas do que respostas que organizem e produzam um sentido restrito, que construam territórios assim como também saibam desenhar linhas de fuga possíveis para valsar com a sombra do mistério, daquilo que não tem nomeação. O exercício de nomear esses espaços a partir de suas práticas, éticas e corpos, evoca um sentido fundamental para a desterritorialização: romper os limítrofes.
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Trabalho publicado em anais de congresso ou similar BASTOS, Dorotea. Coreocinema: maya deren e o cinema experimental de dança. In: COMUNICAÇÃO AUDIOVISUAL DO XIV CONGRESSO DE CIêNCIAS DA COMUNICAÇÃO, 2012, Recife. Papers. Recife: Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação, 2012. p. 1-12. Disponível em: http://intercom.org.br/papers/regionais/nordeste2012/ resumos/R32-1204-1.pdf. Acesso em: 04 set. 2023.
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\ desarranjo corporal e a preparação de atuantes teatrais
Erique Rafael Lima Nascimento Erique Nascimento, Recife (PE). Graduado em licenciatura em teatro pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), é especialista em gestão e produção cultural, pesquisador, professor e diretor de teatro. Suas pesquisas têm como principal foco o trabalho corporal de atores e atrizes nas artes da cena. eriquerafaeel@gmail.com
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FICHA TÉCNICA Instituição Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) Tipo do curso Graduação Nome do curso Licenciatura em teatro Período do curso 2018-2023 Estado Pernambuco Título do trabalho Desarranjo corporal e a preparação de atuantes teatrais Nome do autor Erique Rafael Lima Nascimento Nome da orientadora Professora doutora Marianne Tezza Consentino Nome da co-orientadora Professora mestre Virgínia Maria Schabbach Número de páginas 20
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\ desarranjo corporal e a preparação de atuantes teatrais
\ RESUMO O presente estudo analisa o Desarranjo Corporal, idealizado por Ricardo Januário, com objetivo de investigar sua possível contribuição para a preparação corporal de atuantes teatrais. A pesquisa busca compreender e refletir sobre as características e dos princípios da preparação e do Desarranjo Corporal, a fim de estreitar a relação entre ambos. Realizado por meio de entrevista semiestruturada, levantamento bibliográfico e análise de aulas, este estudo se fundamenta como uma pesquisa descritiva com abordagem qualitativa, e tem como fundamentação teórica os estudos de Lobo e Navas (2003), Strazzacappa (2009; 2012), Azevedo (2012) e Lopes (2016). Palavras-chave: Teatro; Preparação Corporal; Desarranjo Corporal;
\ ABSTRACT The present study examines the Desarranjo Corporal (Body Disarray), conceptualized by Ricardo Januário, with the aim of investigating its potential contribution to the physical preparation of theater performers. The research seeks to understand and reflect upon the characteristics and principles of preparation and Desarranjo Corporal, in order to strengthen the relationship between them. Conducted through semi-structured interviews, bibliographic research, and analysis of classes, this study is grounded as a descriptive research with a qualitative approach, drawing on the theoretical framework of studies by Lobo and Navas (2003), Strazzacappa (2009; 2012), Azevedo (2012), and Lopes (2016). Keywords: Theatre; Physical Preparation; Corporal Disarray.
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\ RESUMEN El presente estudio analiza el Desarranjo Corporal, ideado por Ricardo Januário, con el objetivo de investigar suposible contribución a la preparación corporal de los actores teatrales. La investigación busca comprender y reflexionar sobre las características y principios de la preparación y el Desarranjo Corporal, con el fin de estrechar la relación entre ambos. Realizado a través de entrevistas semiestructuradas, revisión bibliográfica y análisis de clases, este estudio se fundamenta como una investigación descriptiva con enfoque cualitativo, y tiene como base teórica los estudios de Lobo y Navas (2003), Strazzacappa (2009; 2012), Azevedo (2012) y Lopes (2016). Palabras clave: Teatro; Preparación Física; Desarranjo Corporal.
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1 \ INTRODUÇÃO Pretende-se neste estudo, traçar reflexões e analisar a prática poéticocorpórea, intitulada Desarranjo Corporal, idealizada e desenvolvida pelo bailarino, coreógrafo e orientador do gesto, Ricardo Januário, a fim de refletir sobre a sua possível contribuição para a preparação corporal de atuantes teatrais. Lidar com a preparação corporal para o teatro implica a interação com a concepção de corpo cênico, e refletir sobre tal terminologia significa imergir emum amplo universo com diversas possibilidades. Neste contexto de estudo, entenderemos o corpo cênico como um corpo disponível, que possua presença cênica e tônus muscular (FRANÇA, 2011), além de pensar em um corpo consciente de si mesmo, em movimento e em fluxo. A preparação corporal de atuantes, ainda que seja uma função relativamente nova no universo teatral, tem ganhado cada vez mais espaço, se caracterizando por ser o campo que almeja tornar os/as atuantes mais conscientes de seus corpos e mais expressivos dentro das demandas cênicas. São inúmeras as abordagens e técnicas que podem desenvolver e/ou auxiliar os/as atuantes a conquistar o que aquinosreferimosàcorpocênico.Épensando nessas diversas abordagens que se deseja refletir sobre o Desarranjo Corporal como mais uma possibilidade.
2 \ PREPARAÇÃO CORPORAL A preparação corporal de atuantes é um campo recente na atividade teatral quando comparada com os séculos de existência dessa arte.No Brasil, tem-se indícios da preparação corporal no teatro enquanto campo específico, com profissional dedicado a essa atividade, apenas por volta da década de 1970 (LOPES, 2016). Pontuar sua origem no teatro não é tarefa fácil; entretanto, é possível identificar vestígios do que podemos compreender como o interessepelo corpo no universo teatral.
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1. Como defende RamosSilva (2020, p.162): “O termo Ocidente tal qual utilizado aqui diz respeito à Europa, Estados Unidos e seus seguidores.” 2. Textocentrismo é quando o texto ocupa o lugar central da atividade. Sobre o teatro texto cêntrico, Torres Neto (2009, p.34) afirma: “Do texto advinha todo o matiz da cena, sua textura e densidade. O texto seria portador de uma essência cuja cena deveria revelála o mais fortemente possível. A palavra do autor era transposta do literário para o teatral.” 3. Em todo esse estudo será usado o termo atuante, para designar aqueles e aquelas queatuam na cena, a fim de lidar com a fronteira entre teatro, dança e performance.Termo utilizado também por Richards (2012), Pinto (2015) e Barbosa (2021). 4. Preparador corporal, coreógrafo,bailarino e professor. Klauss Vianna (1928 - 1992) é precursor dos entendimentos de Consciência/ Expressão Corporal, associados ao corpo nas artes cênicas.
Pode-se sinalizar, na história do teatro, diversas mudanças no que diz respeito aos paradigmas que norteiam a arte teatral. No século XX, segundo a história narrada pelo Ocidente1, o teatro foi marcado por uma transformação em que o textocentrismo2 deu lugar à expressividade corporal dos/as atuantes3 (ROUBINE, 1998). Com o objetivo de trabalhar o corpo para aprimorar a expressão corporalna cena, houve, no século XX, a explosão de laboratórios, centros, estúdios, sistemas etc. A relação entre diretor/a/encenador/a e atuante se firmou como dinâmica essencial para a arte teatral. Com essas mudanças no teatro ocidental, a expressividade corporal do/a atuante consolidou uma demanda específica por um olhar atencioso e cuidadoso, que inicialmente foi responsabilidade do diretor por meio de treinamentos corporais (PEREIRA, 1998), mas depois desaguou na necessidade de um artista outro responsável apenas por essa demanda. É desta necessidade, única e sensível, que se pode identificar os primeiros vestígios do que seria um preparador corporal. As discussões sobre o corpo no teatro brasileiro começam a ganhar notoriedade por volta das décadas de 1950/60, mas é na década de 1970 que podemos pontuar um avanço na expressão corporal, muito por intermédio de Klauss Vianna4 (LOPES, 2016). Reconhecido como o pioneiro da preparação corporal de atuantes no Brasil,Vianna foi: “um dos grandes responsáveis pela disseminação do trabalho de corpo para o ator” (LOPES, 2016, p. 72). A partir da década de 1970, quando se relaciona com o teatro profissional, Vianna disseminou a expressão corporal por todo o teatro brasileiro, em decorrência disso, semeou a preparação corporal diferenciando-a das atividades de um coreógrafo. Klauss Vianna é também um dos principais responsáveis pela adoção da nomenclatura “preparação corporal” na década de 1970. Outra forte influência - mais atual - que contribuiu para a utilização desta
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nomenclatura é a Escola e Faculdade de Dança Angel Vianna, com a inauguração da Pós-Graduação em Preparação Corporal nas Artes Cênicas5. Atualmente este termo pode ser encontrado em diversas fichas técnicas, premiações, pesquisas acadêmicas etc. A preparação corporal, desde sua origem, tem um propósito evidente, que é proporcionar um aperfeiçoamento da consciência e expressão corporal de atuantes teatrais. Para Lopes, “[...] o preparador corporal é quem deve identificar (conscientizar a si e ao intérprete em questão) e agir (encaminhar o melhor procedimento) sobre a necessidade daquele corpo.” (LOPES, 2016, p. 27). A partir dos estudos de Lopes (2016) e Monis (2003 e 2004), é possível pontuar alguns dos objetivos da preparação corporal, como por exemplo: 1) assistir corporalmente atuantes de teatro; 2) viabilizar a consciência e sensibilização dos corpos do elenco; 3) proporcionar caminhos para melhorar disponibilidade e presença dos/as atuantes; 4) despertar capacidades físicas e expressivas para a cena; e 5) preparar para a ação cênica; O/a profissional dedicado/a à preparação corporal no teatro precisa ter e trabalhar, essencialmente, com sensibilidade, observação, atenção, presença e escuta ativa, em prol do objetivo técnico e/ou artístico, sem excluir as subjetividades dos/as integrantes do grupo, espetáculo ou turma. A preparação corporal existe, porque há uma grande demanda pela expressividade corporal dos/as atuantes nos espetáculos teatrais. É um campo para desenvolver o que podemos chamar de corpo cênico. De acordo com Pavis (1999, p. 44) cênico é o “que tem relação com a cena”, e “que se presta à expressão teatral”. Sendo assim, para falar sobre corpo cênico, este estudo se vale das contribuições de Pavis, falando de um corpo preparado, integrado, atento, presente e disposto para a cena artística.
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5. Mais informações sobre a Pós-Graduação em Preparação Corporal nas Artes Cênicas acessar: https://www.angelvianna. com.br/preparacaocorporal
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6. Fala retirada da vídeoaula “Danças Africanas e suas diásporas no Brasil”, realizada por Luciane Ramos-Silva para o CYBERQUILOMBO e disponível na biblioteca online labExperimental. org. <https://www. youtube.com/ watch?v=tP206mrqm98>. Acesso em 25 jan. 2023.
De acordo com Azevedo (2012), um corpo disponível é capaz de responder ativamente aos mais variados impulsos e gerenciar o fluxo de energia para melhor aproveitamento das movimentações: O corpo disponível é aquele que permite; que não se isola dofluxo dos acontecimentos ao redor de si que se envolve com o meio ambiente e com os estímulos vindos, não só dapersonagem, mas da relação com o grupo de criação. Corpo disponível é aquele capaz das respostas espontâneas e novas que somente a ausência de preconceitos e defesas maiores contra o mundo podem assegurar.(AZEVEDO, 2012, p. 192). Portanto, pode-se supor que a instauração de um estado de disponibilidade corporal seria uma das premissas básicas para o desenvolvimento do corpo cênico. Ainda que haja, no teatro, uma demanda pela corporeidade cênica, este estudo não pretende lidar com o corpo como um instrumento ou ferramentados/as atuantes para a cena, senão como um corpo total, como um elemento constituinte e indissociável dos/as atuantes, uma vez que, de acordo com Strazzacappa (2012, p. 30): “Seu corpo não é instrumento. O ator é em si seu próprio corpo”. Ainda nessa premissa, Ramos-Silva (2016) defende que: É no corpo que se funda nossa história. O corpo não é instrumento de. O corpo sou eu. A construção do meu intelecto, o meu caminho com o mundo, em primeiro lugar, se dá através do meu corpo. Então o corpo não é instrumento para alguma coisa,o corpo sou eu. (RAMOS-SILVA, 2016).6
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Quando em cena, o que está em ação não é apenas a fisicalidade do/a atuante, senão a totalidade do seu corpo. O corpo é constituído pela sua materialidade, mas também por outras dimensões, como a mente, os contextos culturais, econômicos, espirituais e fisiológicos (LOPES,2016). Essas dimensões precisam ser levadas em consideração, uma vez que não há indivíduo neutro, sem história e sem atravessamentos. Várias pensadoras defendem a unicidade corpo-mente como é o caso de Azevedo, quando afirma que: “Essa forte inter-relação corpo-mente não poderá ser esquecida e será tomada como fundamento para qualquer labor desenvolvido com o ator.” (2012, p. 136); e Luciane Ramos-Silva, que em sua pesquisa intitulada Corpo em diáspora propõe uma metodologia“[...] em oposição à noção herdada pelo pensamento cartesiano em que corpo, mente e contexto estão cindidos.” (RAMOS-SILVA, 2016, p. 163). Lobo e Navas (2003, p.74), ao abordarem sobre o corpo nas artes cênicas trazem a imagem de um corpo inteiro: “quando me refiro ao corpo e suas memórias, estou me referindo a um corpo por inteiro, com cérebro, mente e espiritualidade.”. É nesse caminho de um corpo total, integrado, que trilhamos reflexões sobre o que seria e quais as características de um corpo cênico. Diante das discussões e pensamentos pontuados no decorrer deste estudo, podemos traçar possíveis características para o corpo cênico. Sendo algumas delas: Presença (LOBO E NAVAS, 2003; AZEVEDO, 2012 BARBA E SAVARESE, 2012;); Disponibilidade (AZEVEDO, 2012); Atenção (LOPES, 2016); Vitalidade (AZEVEDO, 2012); Sensibilidade (LOBO E NAVAS, 2003; AZEVEDO, 2012); e Tônus Muscular (LOBO E NAVAS, 2003)
3 \ DESARRANJO CORPORAL O Desarranjo Corporal é uma prática poético-corpórea idealizada e desenvolvida pelo bailarino, coreógrafo, pesquisador, professor e orientador do gesto, Ricardo Januário.
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7. Disponível em: <https:// www.instagram.com/p/ CnekyKAOvx_/>.Acesso em: 20 mar. 2023.
Imagem 1 - Ricardo Januário
Fonte:Arquivo retirado do Instagram do entrevistado.7
De acordo com Januário, sua inserção na dança tem duas versões, a primeira é que seus pais gostavam muito de dançar, sendo inserido, desta forma, no universo da dança por meio do contexto familiar. No tocante à esta primeira versão, ele relembra: Eu descobri que meu pai dançava bastante, gostava de dançar. Mas isso foi uma novidade para mim. Depois de 16 anos dançando eu escuto do meu pai que ele gostava de dançar. [...] Minha mãe dançava bastante também, na sala de casa mesmo. [...] isso provavelmente deve ter me influenciado. (JANUÁRIO, 2023).
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A segunda versão é que Januário iniciou na dança em 2006, aos 14 anos, por meio de um convite de Célia Pacal para dançar, junto com outros adolescentes, a música Thriller de Michael Jackson no “Bloco da Alegria”, em uma competição de carnaval da cidade de Passos/MG. Logo após essa experiência, Januário iniciou junto com outros amigos o grupo de dança “Os Incríveis”, que se constituiu como um dos maiores coletivos de dança da cidade, realizando apresentações em desfiles de passarelas, escolas, festivais etc. Alguns anos depois, os integrantes desse grupo receberam bolsas de diversas escolas de São Paulo para estudar dança. Em 2010, Ricardo Januário iniciou seus estudos no Pavilhão D Centro de Artes, com foco, principalmente, no ballet clássico e posteriormente na dança contemporânea. No seu processo de formação, Januário percebeu que tinha muita dificuldade em absorver os conteúdos aplicados ou aprender as coreografias codificadas da maneira que seus/suas professores/as ensinavam. O artista comenta: “Durante toda a minha formação, eu era a pessoa que demorava um pouquinho mais para pegar, seja para pegar a sequência, seja para pegar um rigor técnico” (JANUÁRIO, 2023). Em contrapartida, havia uma habilidade em se apoderar dos ensinamentos e traduzir para o seu próprio corpo: “eu sinto que tenho muita facilidade de tornar a coisa minha, mas eu tenho muita dificuldade, ou tive, de absorver inicialmente os conteúdos” (JANUÁRIO, 2023). Essa característica na forma de lidar com a dança e sua percepção em compreenderquenãoseria apenas um reprodutor de uma coreografia mecânica e pré-codificada, se deu por causa dos ensinamentos de Edson Fernandes, seu professor e mestre. Para Januário, Edson foi responsável por despertar a atenção para a autonomia e autopercepção do movimento, ou seja, ainda que existisse uma coreografia, cada corpo iria reagir e reproduzir de uma forma diferente, devido aos diferentes aspectos cognitivos, motores, afetivos e expressivos presentes em cada indivíduo.
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Quando ele faz essa ficha cair para mim, de que eu não ia ser um reprodutor fiel de uma gestualidade, até porque eu não tinha habilidade para isso, vários coreógrafos que eu fui passando eu fui percebendo que eu tinha muita dificuldade de fazer a coisa do jeito que era pra ser feita -eu começo a me apropriar daquilo que eu entendia / aprendia e a traduzir no meu corpo, tentando ser o mais fiel possível tanto à pessoa que propôs o gesto, quanto ao respeito ao meu corpo. (JANUÁRIO, 2023). A repetição a qual Januário se opõe é a repetição / cópia mecânica, e não a repetição consciente, que preza pela percepção e conscientização do movimento e pela singularidade que cada corpo pode manifestar neste processo de criação que envolve uma repetição.Para Domenici (2010,p.78), a repetição mecânica do movimento “pode levar a um automatismo que diminui a autopercepção. Assim, busca-se um tipo de repetição que estimule a aprendizagem da dança, capaz de manter os sentidos bem vivos”. Para Souza: “O ensino da dança tem uma longa história de prática fundada em princípios do pensamento cartesiano, que se utiliza da ideia de um corpo construído de fora para dentro e que obedece a uma lógica de repetição e cópia.” (SOUZA, 2012, p.74). Ao refletir sobre os / as coreógrafos/as que aplicam técnicas de dança com o objetivo apenas de reprodução mecânica do movimento com fins puramente estéticos, Strazzacappa defende que: Os coreógrafos não estavam necessariamente preocupados com o corpo, nem com a individualidade de cada dançarino. Ao contrário, o dançarino dever-se-ia colocar à disposição do coreógrafo, anulando, se preciso (e possível) fosse, suas características pessoais. [...] O dançarino é, assim, um instrumento (uma massa de modelar) a
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serviço de uma estética. (STRAZZACAPPA, 2009, p.49). Para Strazzacappa (2009), várias técnicas da dança moderna como as de Merce Cunningham8, Martha Graham9 e José Limón10, tinham como objetivo uniformizar os diferentes corpos dos/as bailarinos/as, por meio da adequação do movimento dos intérpretes à concepção de movimento do/a coreógrafo/a. Alicerçado nas reverberações dos ensinamentos de Edson Fernandes, Januário reposiciona seu olhar a respeito da dança, estudando a gestualidade com base na sua própria individualidade; investigando, despertando, percebendo e potencializando suas características pessoais na dança, assim como fizera no início da sua jornada em Passos/MG. Podemos entender esse pensamento / reposicionamento / movimentação, ainda na década de 2011, como uma semente para o que seria o Desarranjo Corporal. [...] ali, desperta pelo menos a sementinha, porque ali eu reconheço a necessidade de inventar um mundo, porque o mundo como ele tinha sido posto para mim eu nunca via, eu não me via pertencente às companhias, eu não passava em audições… Naquele momento eu comecei a perceber a necessidade de inventar essa dança comigo mesmo. (JANUÁRIO, 2023). No entanto, é apenas em 2016, por meio de um convite para ministrar aulas no Centro de Referência da Dança (CRD) em São Paulo, que o Desarranjo Corporal surge de forma efetiva, ao pensar em uma nova metodologia do ensino da dança. Sobre o nome Desarranjo, Januário comenta:
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8. Merce Cunningham (1919 - 2009) foi um bailarino e coreógrafo estadunidense, conhecido pelo estilo experimental e vanguardista presentes na sua dança. Ele foi um dos responsáveis por mudar os rumos da dança moderna. 9. Martha Graham (1894-1991) foi uma bailarina e coreógrafa estadunidense, fundadora da Martha Graham Dance Company, conhecida por revolucionar a história da dança moderna. 10. José Limón(1908-1972) foi um bailarino, professor de dança e coreógrafo mexicano-estadunidense, considerado um dos precurssores da dança moderna.
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11. Celinha é como Ricardo Januário se refere, carinhosamente, à Célia Pacal, figura importante na sua trajetória artística.
Eu lembro de refletir bastante e de conversar com a Celinha11. Eu queria algo que conectasse um pouco com a roça, modão de viola, algo que conectasse um pouco com uma palavra que toda vez que eu falasse, eu relembrasse de onde eu vinha. Naquela ideia de construção/desconstrução, elaboração/reelaboração de gestos ede caminhos, me veio essa palavra Desarranjo. Arranjo/Desarranjo, que dialogava com construção/desconstrução. Eu faço até uma brincadeira ali colocando próximodamúsica,umarranjomusical,oqueseriaum Desarranjo? Enfim, faço uma brincadeira com a construção e desconstrução e daí surge essa palavra Desarranjo que me lembra a roça de onde eu vim. (JANUÁRIO, 2023). A ligação do Desarranjo Corporal com a desconstrução/reelaboração, pontuadas na escolha do nome da prática, surge, principalmente, na tentativa de pensar uma metodologia diferente das variadas experiências negativas que Januário teve em algumas aulas de dança, como ele mesmo relata: “eu vivi muitas aulas duras durante as minhas formações” e “muitas experiências traumáticas, em danças, de limitação. Como se nem a dança mesmo me coubesse.” (JANUÁRIO, 2023). Pode-se considerar que a falta de reconhecimento e pertencimento frente a algumas linguagens da dança incentivaram o nascimento, em 2016, do Desarranjo Corporal. Essa iniciativa visava criar, em contraponto ao não recebido com frequência, um espaço para o sim, a partir da imaginação de um novo mundo. “Luciane Ramos-Silva, que é uma referência para mim, fala uma coisa que é: ‘Imaginar é realizar. Imaginar é o primeiro passo’” (JANUÁRIO, 2023). O Desarranjo, conforme destacado porJanuário (2023),“também é uma brincadeira de inventar vida, tornar essa vida uma arte do viver, sacralizar.”
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O Desarranjo Corporal promove uma reflexão de como se dá a elaboração de gestos e as características corpóreas na simplicidade . Para 12
Januário(2023), o Desarranjo é compreender sobre a corporeidade e a gestualidade, por meioda autopercepção e da consciência de si. Souza (2012) defende que a percepção é um instrumento para que um indivíduo possa realizar mudanças nos seus comportamentos e gestos. Portanto, pode-se supor que o que Januário deseja criar/elaborar, é uma metodologia em que as proposições sejam fundamentadas em como se faz no lugar de o que se faz. Neste sentido, “o foco está realmente nos processos de aprendizagem e na experiência enquanto um caminho para a experimentação, investigação e descoberta.” (SOUZA, 2012, p. 46). O corpo inserido na prática pedagógica do Desarranjo, é entendido e movimentado, enquanto um corpo integrado, tanto entre corpo-menteespírito, como entre esferas como a natureza, as questões sociais, raciais e regionais, por exemplo, assim como defende Azevedo(2012), Lopes (2016;2020) e Ramos-Silva (2016; 2020). O Desarranjo Corporal é, na práxis, um espaço de acolhimento e movimento; e todas as informações constituintes dos/as atuantes são de extrema importância para o desenvolvimento da gestualidade e para o entendimento da corporeidade. A prática do Desarranjo, está fundamentada em alguns princípios norteadores como a escuta ativa, o espaço-tempo enquanto uma ação potencializadora, a relação entre simplicidade e desafio, a importância do espaço do/a atuante e o afeto de potência. Januário comenta: Eunão vou abrir mão da escuta ativa, não vou abrir mão dela. Não vou abrir mão da tentativa de ser uma ação potencializadora ao invés de repressora. Não vou abrir mão de ser um espaço no tempo. O Desarranjo Corporal como um espaço no tempo,
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12. Assim como defende Strazzacappa (2001, p.82): “simples aqui é entendido como as ações que implicam o mínimo esforço físico”. Nesse sentido e usando as palavras de Vieira, o Desarranjo propõe “trazer para o nível da consciência as ações que poderiam facilmente passar despercebidas” (VIEIRA, 2015, p. 132).
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um tempo potencializador. Essa escuta, para mim, é essencial, esse espaço de potencialização é essencial. Eu também não vou abrir mão de apresentar a simplicidade e o desafio. Eu não vou abrir mão, também, da outra pessoa ter o espaço dela, o que eu quero dizer com isso é que eu nunca vou propor algo que seja limitador, que é só de uma forma[...]. Eu não vou abrir mão de ver com quem eu estou na sala, com quem eu estou me relacionando. (JANUÁRIO, 2023) A escuta ativa, de acordo com Santos(2013), é um dos principais alicerces da pedagogia da participação, em que o/a estudante/atuante é ouvido/a com atenção e valorizado/a pelo que diz e pensa. Ela é capaz de potencializar o desenvolvimento e aprendizagem do/a estudante/atuante. Para Lopes “a observação e a escuta são elementos essenciais a nosso entendimento de uma preparação corporal de atores.” (2016, p. 116). O Desarranjo estimula uma prática pedagógica de autonomia, em que a aprendizagem se dá entre a proposta e conteúdo do preparador/professor e os saberes dos/as atuantes/estudantes. Para Freire (2021), a pedagogia da autonomia, precisa respeitar ossaberes dos/as educandos/as, não apenas em reconhecer que existem, mas em estabelecer um diálogo entre o conteúdo e o saber previamente construído. “O respeito à autonomia e à dignidade de cada um é um imperativo ético e não um favor que podemos ou não conceder uns aos outros” (FREIRE, 2021, p. 58). Ao ser questionado se a metodologia aplicada no Desarranjo é uma elaboração própria ou uma reelaboração/releitura de outras metodologias já existentes, Januário (2023) defende que é uma elaboração própria, uma vez que ele não se formou em nenhum estilo de dança específico.
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Eu diria que eu estou em um processo de elaboração delamesmo, não é uma recriação de algo porque eu não me formeiem nada, quando eu olho assim, eu não me formei em nada.[...] Por isso é uma elaboração própria. (JANUÁRIO, 2023). No entanto, não quer dizer que o Desarranjo seja uma criação deslocada/ isolada de outras linguagens e/ou estilos já existentes. A prática poéticocorpórea proposta por Ricardo Januário dialoga com muitas linguagense tem no seu repertório técnico e artístico aprendizados experienciados em momentos diversos, mas a principal é a linguagem da gestualidade. [...] por mais que seja uma elaboração (própria) não é uma invençãototalabsoluta.Eu me relaciono muito com inúmeras possibilidades de dançar, deixo bem vasto porque a minha pesquisa é bem vasta mesmo, e eu sou, neste sentido, um curioso. Ela não se fixa numa linguagem específica, ela se fixa numa relação corpo e gestualidade, corpo movimento. (JANUÁRIO, 2023). Os exercícios aplicados na metodologia do Desarranjo variam de acordo com os objetivos de cada encontro, tem alguns encontros que são mais calmos, imersivos, meditativos, com o propósito de “reorganizar nossa energia para aquietar”, e tem outros encontros que são pensados e trabalhados com o objetivo de“instigar o fogo”.ParaJanuário(2023), “todos têm essa conexão com a chama, mas uns são mais uma chama mais baixa, mais rente, só para sustentar nossa energia, e outros são para queimar o espaço”. Assim como a entrevista, foi realizada também uma análise, por meio da observação direta, de quatro aulas de Ricardo Januário realizadas em dezembro de 2021, no período da pandemia de Covid-19 (disponibilizadas no canal do Youtube do Sesc Consolação13), a fim de compreender um pouco mais sobre os exercícios propostos no Desarranjo Corporal.
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13. Aula 1 - Articular e fluir como água. Disponível em: <https:// www.youtube.com/ watch?v=xWd4f9PJesE>. Acesso em: 30 mar. 2023; Aula 2 - Me apoio no chão que pisei. Disponível em: <https://www. youtube.com/ watch?v=FSNLA4MbP3k>. Acesso em: 30 mar. 2023; Aula 3 - Pulsar na dança, pulsar pra vida. Disponível em: <https:// www.youtube.com/ watch?v=lzFUBVgb5PE>. Acesso em: 30 mar. 2023; Aula 4 - O gesto de semear ao vento. Disponível em: <https:// www.youtube.com/ watch?v=MLHXvo1_z5A>. Acesso em: 30 mar. 2023.
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Essas quatro aulasforam escolhidas para análise deste estudo,por causa de sua data de execução, são aulas recentes - menos de dois anos -, e por estarem documentadas em formato audiovisual e disponibilizadas no Youtube com livre acesso, facilitando que a análise pudesse ser realizada com calma e atenção e, por serem quatro aulas com objetivos diferentes, mas interligadas pelos princípios e metodologia do Desarranjo. As aulas foram desenvolvidas e ofertadas para todos os públicos, sendo assim, pessoas com ou sem experiência na dança puderam experienciar. A primeira semelhança que pode ser pontuada entre as quatro aulas são seus títulos, é possível notar a presença da poesia no processo de nomear os encontros. Januário propõe um título para cada um deles: aula 1: “Articular e fluir como água”; aula 2: “Me apoio no chão que pisei”; aula 3: “Pulsar na dança, pulsar pra vida”; e aula 4: “O gesto de semear ao vento”. Outros encontros, não analisados neste estudo, também receberam nomes poéticos, como é o caso da residência artística que participei em agosto de 2021, intitulada “Desaguar sobresi - A fáscia de nós”. Nas quatro aulas analisadas, foi possível observar a preocupação com a postura corporal para o início das atividades. Em todas elas Januário propôsque os/as participantes se organizassem com os pés em paralelo, ativassem a respiração consciente e reconhecessem o espaço em que estavam inseridos.No início dessas aulas, houve uma preocupação com a respiração, que para Lobo e Navas (2007, p. 63): “é a primeira relação do ser interior com o espaço externo”. O ato de aterrar, de fixar os pés, em paralelo, no chão, possibilita que os pontos de apoio de cada participante estejam em estado de prontidão. A movimentação desses apoios é o que gera o movimento, que nada mais é do que uma eterna transferência de pontos de apoio. (LOBO e NAVAS, 2007).
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Imagem 2 - Januário ministrando aula do Desarranjo Corporal.
Fonte: Registro do vídeo disponibilizado noYoutube do Sesc Consolação. (2023)
O primeiro momento, de estabilidade, respiração e reconhecimento do espaço, é de suma importância para o Desarranjo Corporal, a fim de ampliar o espaço interno e espaço externo, para potencializar a prática corpórea que acontecerá no encontro. Sobre espaço interno, Lobo e Navas (2007) defendem que ele está relacionado com o próprio corpo no que diz respeito ao seu interior, já no tocante ao espaço externo as autoras afirmam que tem relação com o corpo em movimento e com o espaço exterior ao corpo, ocupado e desenhado por ele. É possível supor que a gravidade é um ponto de investigação muito caro para a proposta do Ricardo Januário pois em todas as quatro aulas ela foi um ponto de partida para a autopercepção, partindo de movimentações que propunham, por exemplo, aterrar/enraizar/afundar (fixar os pés no chão e relaxar as tensões do corpo) e desestruturar e recompor (com os pés em paralelo, permitir que o corpo se entregue à gravidade e logo em seguida se recompor, estabelecendo um jogo de tensão e relaxamento).
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A percepção, seja de si mesmo/a, ou do espaço, está presente no Desarranjo Corporal desde a filosofia da proposta até os exercícios aplicados. Nas quatro aulas foi recorrente a proposição de movimentação/investigação de uma parte do corpo isolada e logo após a proposição da percepção da diferença entre a parte movimentada e a parte não movimentada. Viabilizando, desta maneira, a conscientização do corpo e do movimento. A investigação e a experimentação de ritmo, velocidade, engajamento de partes do corpo ou outras variantes, são bases para os exercícios propostos do Desarranjo. Em todas as aulas foi possível ouvir falas como “investiga em uma perna só”, “investiga o corpo todo pensando nos verbos (engajar / direcionar / articular / flexionar)”, “experimenta as bordas dos pés”e outros estímulos. A investigação e/ou a experimentação estimula a autopercepção e o autoconhecimento, facilitando que os/as participantes/atuantes da prática, entendam nos seus próprios corpos, como cada movimentação/ proposição se comporta. Neste sentido, esses fatores contribuem para a valorização da individualidade dos/as participantes e para a autonomia da aprendizagem, que são possíveis princípios que podemos visualizar no Desarranjo Corporal. Ao refletir sobre autonomia dentro da prática poético-corpórea do Ricardo Januário, é possível salientar e dar ênfase ao fato de que em todas as aulas houve um tempo para experimentação livre e autônoma dos/as participantes. Ou seja, além das investigações e experimentações a partir de exercício, como caminhar, rotacionar articulações e respirar, ainda é destinado um tempo para as experimentações livres no final de cada aula, momento em que os/as participantes/atuantes podem revisitar conteúdos aprendidos e trazer, ainda mais ativamente, conteúdos pessoais. Na quarta aula, Januário propõe uma partitura coreográfica, composta por propostas de movimentação interligadas ao estímulo para que cada participante possa imergir nos seus próprios ritmos e velocidades, construindo os signos e significados de cada movimento. 135
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Além da autonomia da aprendizagem, o Desarranjo também provoca a autonomia do gesto. Na quarta aula, Januário comenta: “eu faço esse convitepara você irexperimentandoolugardetransformaragestualidade.[...] Relembrar cada gesto visto até aqui. O que ele está dizendo para você? O que ele está dizendo para mim? O que você pode estar dizendo com esse gesto”, ele ainda provoca: “Como seria se cada gesto tivesse autonomia?” (JANUÁRIO, 2021). Diante dessas provocações, cada participante é estimulado/a a realizar cada gesto dentro das suas vontades, alterando ritmo, forma ou velocidade, por exemplo.
Imagem 3 - Ricardo Januário ministrando a quarta aula analisada.
Fonte: Registro do vídeo disponibilizado no Youtube do Sesc Consolação. (2023)
O Desarranjo Corporal não tem uma sistematização fixa-ainda-, entretanto, levando em consideração as quatro aulas analisadas, pode-se notar algumas fases no trabalho do Desarranjo, sendo elas: (1) a imersão em si e no espaço;(2)as experimentações de velocidade e ritmo, por meio de diferentes proposições, lidando principalmente com a gravidade do corpo e do espaço;(3) a percepção de si mesmo, do movimento e do espaço; (4)
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experimentação livre; As fases nem sempre acontecem separadas, há uma intersecção entre elas. Ao passo que acontece a imersão em si e no espaço também ocorre a autopercepção. É possível pontuar, nas aulas analisadas, momentos de sensibilização “olhar para si e para o espaço externo” e o “contato como próprio corpo” (LOBO e NAVAS, 2007, p. 83), assim como momentos de conhecimento do conjunto corpóreo, por meio de diversas proposições, como por exemplo, reconhecimentoe experimentações a partir dos ossos , das articulações, dos músculos, e da qualidade expressiva do movimento. O Desarranjo Corporal, a partir dos seus princípios e por meio de sua metodologia, possibilita ao atuante o despertar de um corpo consciente de si, disponível, atento, sensível e poroso, características presentes no corpo cênico. Ao refletir sobre a sensibilidade, Januário (2023) comenta: “Eu acrescentaria junto de sensibilidade, a porosidade. Porque a sensibilidade me parece um campo da escuta, e porosidade um campo de uma ação dessaescuta.” Sendo assim, o corpo no Desarranjo, caminha no sentido de despertar um corpo que escuta/percebe os estímulos internos e externos, e age.Para Lobo e Navas (2007), a sensibilização é um princípio fundador do corpo cênico. No que diz respeito à disponibilidade, Januário (2023) afirma que é “muito difícil entrar em jogo sem disponibilidade”. No Desarranjo, a disponibilidade é essencial para que o/a atuante se permita viver as proposições, confiando e imergindo em si mesmo e na metodologia aplicada. Neste ponto, o conceito de corpo disponível defendido por Azevedo (2012), debatido no capítulo 1 deste trabalho, entra em relação direta com o Desarranjo. Outra característica presente e desenvolvida pela prática proposta por Ricardo Januário é a presença, para ele a presença é “fundamental para agente conseguir conversar” (JANUÁRIO, 2023). Para Azevedo:
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Quando um ator está realmente presente, concentrado no que faz, seu corpo ilumina-se. Toda a sua energia está voltada, todo o tempo, para os objetivos a que se propôs: uma grande integração entre seu corpo, seus afetos e sua mente manifesta-se um tipo especial de brilho. (AZEVEDO, 2012, p. 180) De acordo com Barba e Savarese (2012, p. 210), a presença é uma “qualidade discreta que emana da alma, que irradia e se impõe.” O Desarranjo Corporal é neste sentido, também, um caminho para o desenvolvimento doestado de presença. Para Januário, a preparação corporal lida principalmente com a saúde do corpo que vai entrar em cena. Ele defende que: A preparação corporal que eu estou pensando no Desarranjo Corporal quando se relaciona com o teatro, se relaciona com os atores, não propriamente com o espetáculo. Se relaciona com a vida daquelas pessoas e não necessariamente com oespetáculo que elas vão produzir. (JANUÁRIO, 2023). Sendo assim, a preparação corporal proposta pelo Desarranjo Corporal, lida em primeira instância com os/as atuantes, isso não exclui os objetivos da encenação, quando houver ligação com os espetáculos esses objetivos são priorizados, mas levando em conta principalmente, o/a atuante, sua saúde e a sua qualidade corpórea.Januário (2023) comenta: “Eu vou pensar um pouco mais no que os atores estão precisando, seja para entrar em cena, seja para conseguir vir ensaiar amanhã”. Ao analisar os objetivos dapreparaçãocorporal,desenvolvidasnoprimeiro capítulo, pode-se constatar que o Desarranjo atinge-as diretamente, sendo assim, é possível compreender a proposta poético-corpórea de Ricardo Januário, como mais uma metodologia possível para a preparação corporal de atuantes teatrais. 138
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\ CONSIDERAÇÕES FINAIS A partir da análise dos estudos acerca da preparação corporal e os dados investigados e organizados neste estudo sobre Desarranjo Corporal, torna-se evidente a relação entre ambos. O objetivo deste estudo não é estabelecer o Desarranjo como a única prática capaz a ser desenvolvida na preparação de atuantes teatrais, mas sim compreender a prática poéticocorpórea do Ricardo Januário como mais uma possibilidade de preparação corporal dentro das artes cênicas. O Desarranjo pode ser aplicado em uma preparação de atuantes teatrais por contribuir com os objetivos da preparação corporal e por estimular o desenvolvimento do corpo cênico, conforme compreendidos neste trabalho. Ao reconhecer a relevância do Desarranjo Corporal para a preparação de atuantes teatrais, abre-se um horizonte de possibilidades para a compreensão e o desenvolvimento do corpo emc ena.Que este trabalho sirva não apenas como um registro inicial, mas como um ponto de partida para novas investigações e reflexões, contribuindo para o enriquecimento contínuo da arte teatral.
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\ REFERÊNCIAS AZEVEDO, Sônia Machado de. O papel do corpo no corpo do ator. São Paulo: Perspectiva, 2012. BARBA, Eugenio; SAVARESE, Nicola. A arte secreta do ator: Um dicionário de antropologia teatral. São Paulo: Realizações Editora, Livraria e Distribuidora LTDA, 2012. DOMENICI, Eloisa. “O encontro entre dança e educação somática como uma interface de questionamento epistemológico sobre as teorias do corpo. ”Pro-Posições, Campinas, v. 21, n. 2 (62), p. 69-85, maio/ago. 2010. FRANÇA, Juliana Nazar. “Corpo cênico, movimento estruturado e imaginário criativo: a conscientização do triângulo da composição no processo de criação do ator.” In: Cena em Movimento. Revista Cena PPGAC. Rio Grande do Sul.Nº2. 2011. FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: Saberes necessários à prática educativa. 68ª ed. Rio de Janeiro/São Paulo: Paz e Terra, 2021. JANUÁRIO, Ricardo. Entrevista com Ricardo Januário. Recife, 09 mar. 2023. Entrevista concedida para elaboração de Trabalho de Conclusão de Curso de Teatro do entrevistador Erique Nascimento. LOBO, Lenora e NAVAS, Cássia. Teatro do Movimento: um método para umintérprete criador. Brasília: LGE, 2007. LOPES, Daniel Silva Leuback. O preparador corporal e o trânsito da concepção para o corpo em cena. Dissertação (Mestrado em Artes daCena)– Universidade Estadual de Campinas. Campinas- SP, 2016.
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MONIS, Fátima Cristina. “O trabalho do ator:A preparação que antecede a cena”. Pro-Posições, Campinas, SP, v. 15, n. 1, p. 191–208, 2016. Disponível em: https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/proposic/article/ view/8643852. Acesso em: 8 jan. 2023. MONIS, Fátima Cristina. O trabalho do ator: A preparação que antecede a cena. Dissertação (mestrado) - Universidade Estadual de Campinas, Faculdade de Educação Física, Campinas, SP, 2003. PAVIS, Patrice. Dicionário de teatro. SãoPaulo: Perspectiva, 1999. PEREIRA, Jamil Dias. O instrumental de trabalho do diretor de teatro: Paradigmas conceituais e recursos técnicos. Tese (Doutorado) – Universidadede São Paulo, São Paulo, 1998. RAMOS-SILVA, Luciane. Danças Africanas e suas diásporas no Brasil - Luciane Ramos (Cyber Quilombo). Youtube, 2016. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=tP206mrqm98>. Acesso em: 25 jan. 2023. ROUBINE, Jean-Jacques. A linguagem da encenação teatral, Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. SOUZA, Beatriz Adeodato Alves de. Corpo em dança: O papel da educação somática na formação de dançarinos e professores. Dissertação (Mestrado) - UFBA, Salvador, 2012. SPINOZA, Benedictus. Ética. Belo Horizonte: Autêntica, 2007. STRAZZACAPPA, Márcia. Educação Somática e artes cênicas: Princípios e aplicações. Campinas - SP. Papirus, 2012. STRAZZACAPPA, Márcia. “Educação Somática: seus princípios e possíveis desdobramentos.”IN: Revista Repertório Teatro e Dança, Salvador, v.2, n.13, p.48 – 54, 2009.
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\ torturas: um estudo sobre processo de criação, padrão de beleza e teatros feministas Flavia Grützmacher dos Santos Flavia Grützmacher dos Santos, Santa Maria (RS). Graduada pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), é artista, arte-educadora, professora de teatro e produtora cultural. Realiza pesquisas com ênfase em práticas cênicas acessíveis, teatros feministas, corpo e gênero. flavia.grutz@gmail.com
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FICHA TÉCNICA Instituição Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) Tipo do curso Graduação Nome do curso Licenciatura em teatro Período do curso 2017-2022 Estado Rio Grande do Sul Título do trabalho TORTURAS: um estudo sobre processo de criação, padrão de beleza e teatros feministas Nome da autora Flavia Grützmacher dos Santos Nome da orientadora Professora doutora Marcia Berselli Número de páginas 21
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\ RESUMO Este artigo traz o resumo de uma pesquisa de conclusão de curso cujo objeto de análise foi um processo de criação cênica, o qual teve como foco de investigações dois eixos centrais: o padrão de beleza feminino e pensar o compartilhamento com as espectadoras estando vendadas. O processo gerou um acontecimento cênico intitulado “torturas”. A pesquisa apresentada neste artigo teve como objetivo compreender como um processo criativo de teatro pôde provocar o questionamento e a mobilização da norma estética imposta socialmente sobre corpos de mulheres. Para respondê-la, adentrei nos conceitos de Corpo, Beleza, Gênero e Práticas de Intimidade, analisei os diários da encenadora e realizei entrevistas semiestruturadas com quatro performers que construíram aquele processo. Como conclusão, compreendi que o teatro tem a potência para tensionar e questionar padrões que oprimem a vida de diversos grupos e este processo de criação fez isso. Palavras-chave: Processo de criação. Teatros feministas. Corpo.
\ ABSTRACT This article is a summary of a course completion research focused on the analysis of a creative process, which one focused on two central axes: the standard of female beauty and thinking about sharing it with blindfolded spectators. The process generated the scenic event called “torturas”. This research *had have* the goal about to understand how a creative process of theater can tease the questioning and the mobilization about the esthetic norm sociality imposed about the women’s bodies. To answer the question, I investigated the concepts of body, beauty, gender and “Intimacy Practices”, I analyzed the director’s diaries and carried out
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semi-structured interviews with four performers who built that process. In conclusion, I understand that theater has the power to tension and question patterns that oppress the lives of different groups and this creative process did it. Keywords: Creative process. Feminists theaters. Body.
\ RESUMEN Este artículo presenta un resumen de una investigación de finalización de curso que tuvo como objeto de análisis un proceso de creación escénica, que se hay enfocado en dos ejes centrales: el patrón de belleza femenina y el pensar en compartirlo con las espectadoras con los ojos vendados. El proceso generó un evento escénico titulado “torturas”. La investigación presente en este artículo tenía como objetivo comprender como un proceso de creación en teatro puede provocar cuestionamiento y la movilización de lo patrón de belleza gravados socialmente sobre los cuerpos de mujeres. Para responder a la pregunta, profundicé en los conceptos de cuerpo, belleza, género y “Prácticas de Intimidad”, analicé los diarios de directora y realicé entrevistas semiestructuradas con cuatro performers que construyeron ese proceso. Como conclusión, entendí que el teatro tiene el poder de tensionar y cuestionar patrónes que oprimen la vida de distintos grupos y este proceso de creación lo hizo. Palabras-chave: Proceso de creación. Teatros feministas. Cuerpo.
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1 \ OS POR QUÊS QUE MOVIMENTARAM ESTA PESQUISA Ter desenvolvido uma pesquisa científica sobre um tema que atravessa diretamente a vida de mulheres foi desafiador: é um assunto que durante toda uma vida foi enfatizado como fútil, inútil, banal e, ao mesmo tempo, contraditoriamente básico e necessário. Durante a pesquisa, compreendi que essa perspectiva passou também pelas performers que fizeram parte do processo criativo. Somos ensinadas a cuidar do corpo e da aparência antes de qualquer outra coisa, pois meninas e mulheres devem se apresentar bonitas para serem ouvidas, devem se apresentar bonitas para serem respeitadas. Foi isso que tentaram e tentam nos ensinar enquanto socialização, e foram esses padrões sociais que decidi questionar ao propor a criação de um acontecimento cênico sobre o padrão de beleza feminino com o público estando completamente vendado. A pesquisa de conclusão de curso resumida neste artigo teve como objeto de análise um processo de criação desenvolvido entre agosto e dezembro de 2018 por seis jovens mulheres, uma ainda menor de idade quando o processo de criação iniciou. Ele foi desenvolvido em um total de 22 encontros, tendo iniciado em 16 de agosto de 2018 com duração média de duas horas e trinta minutos por encontro, contou com cinco performers e uma encenadora e preparadora de elenco, a pessoa que escreveu este artigo. Em 13 de dezembro de 2018 compartilhamos o resultado final, um acontecimento cênico chamado torturas, onze cenas1 e cerca de 45 minutos em que cada espectadora foi vendada, vivenciando uma experiência cênica multissensorial sobre padrão de beleza. A espectadora era impedida de ver mas podia sentir e imaginar. A pergunta que direcionou a pesquisa foi elaborada da seguinte maneira: Como um processo criativo de teatro pode provocar o questionamento e a mobilização da norma estética imposta socialmente sobre corpos de mulheres? A resposta veio a partir da análise de dados feita sobre o processo criativo, a qual perpassa dois eixos: os meus registros da época enquanto encenadora e entrevistas semiestruturadas que foram
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1. Para acessar o roteiro completo do acontecimento cênico, basta clicar em: https:// drive.google.com/file/d/ 1W1xSbfN277rJDnXR A5uEZRnsdmc3KzJW/ view?usp=sharing.
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2. As entrevistas foram realizadas de maneira online através de uma conta de e-mail institucional vinculada à UFSM. Optar por realizálas de maneira online se deve à situação de calamidade mundial e isolamento social causada pela Pandemia de COVID-19. A conta institucional oferecida pela UFSM permite gravar videochamadas e armazenar de forma gratuita em seu drive. Saliento que o registro com qualidade foi possível graças a este acesso mediado e garantido pela UFSM.
realizadas com quatro das cinco performers, dados entrelaçados com os
3. A pesquisa de Iniciação Científica foi desenvolvida junto ao Grupo de Pesquisa Teatro Flexível: práticas cênicas e acessibilidade (CNPq/UFSM), durante os anos de 2020 a 2022 e contou com incentivo público fiscal através dos editais PROBIC/FAPERGS (2020/2021) e PIBIC/CNPq/ UFSM (2021/2022)
culta - define que palavras que generalizam algo finalizam com o artigo
conceitos e teorias utilizados para o estudo. As entrevistas foram elaboradas de forma semiestruturada, contando com dezessete perguntas - sendo dez gerais e sete que complementaram as gerais. Elas duraram cerca de uma hora e foram realizadas entre o final de novembro e início de dezembro de 2021, pela plataforma de interação virtual Google Meet2. Todas as entrevistadas permitiram, por meio da voz e do preenchimento de um termo de consentimento, que o registro fosse feito e, ao final do processo de escrita, após lerem o trabalho, permitiram também que os seus nomes ou apelidos fossem utilizados no corpo do trabalho. De modo geral, neste trabalho utilizo a letra A para palavras que generalizam gênero. Meu objetivo é colocar em evidência a importância e representatividade das mulheres na sociedade. A língua - chamada masculino O, porque é considerado universal. Apoiada pelas artistas e pesquisadoras Iassanã Martins (2017) e Márcia Metz (2019), faço da minha escrita um ato de resistência contra a norma culta, por compreender que para ela ser vista como culta, alguém a define e impõe. Normalmente homens, brancos e ricos (MARTINS, 2017). Este texto recusa o masculino hegemônico e universal. Além disso, busquei ao longo da escrita implementar recursos de acessibilidade, com o objetivo de tornar a obra acessível para pessoas com deficiência visual. Esta busca aconteceu sob influência da pesquisa de iniciação científica que fazia no mesmo período, a qual tinha como eixo central práticas cênicas acessíveis para pessoas com e sem deficiência3. Nesta busca, o TCC foi escrito e recursos usados na escrita como as aspas, visíveis a pessoas videntes, foram colocados a mostra, escritas no corpo do texto para que um leitor de telas seja capaz de trazer a informação para a pessoa com deficiência visual e esta, por sua vez, possa compreender outras camadas contidas nas expressões escritas.
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O nome do acontecimento cênico foi escolhido em conjunto, em uma das noites de ensaio. Precisávamos de uma palavra que trouxesse consigo o conceito do que estávamos criando e foi nessa busca que chegamos à palavra dor, porém ela não trazia a potência da nossa criação. Dani, uma das performers, pesquisou sinônimos para a palavra e encontrou torturas. Esse foi um momento de estalo coletivo, em que cada uma repetiu a palavra algumas vezes e percebeu que essas nove letras unidas, traziam em si a essência de tudo o que estávamos refletindo e criando até aquele momento. torturas porque “como chegamos a conclusão final, estamos trabalhando com formas de torturas”4. torturas às quais somos submetidas diariamente quando estamos na busca por alcançar um padrão de beleza inatingível. torturas que machucam o físico, destroem psicológicos e que tiram a vida de muitas mulheres. O padrão de beleza tortura, mas é uma tortura velada.
2 \ BELEZA É DOR? O padrão de beleza é uma construção social que opera como forma de controle e dominação e que é imposto sobre corpos. Naomi Wolf (2018, p. 96) em sua obra O Mito da Beleza, ao falar sobre as heroínas, afirma que “A menina aprende que as histórias acontecem a mulheres ‘lindas’, sejam elas interessantes ou não.” São estereótipos reforçados por histórias que recorrentemente aparecem nos meios de comunicação de massa e que moldam, ano após ano, a forma de muitas mulheres verem o mundo. Atualmente existem narrativas que fogem dessa lógica, mas ainda assim muitas se mantêm. Mesmo entendendo que existe um padrão de beleza masculino, o foco deste estudo está sobre o feminino, por sua força de opressão contra mulheres e por ser, o processo de criação objeto de análise deste estudo, desenvolvido com este enfoque. Mulheres podem até enriquecer com a imagem dos próprios corpos, mas, ainda hoje, homens continuam sendo as
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4. Relatórios do processo de criação, 2018, p. 36. Arquivo pessoal da autora.
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pessoas que mais lucram com as nossas imagens, tendo em vista que “há um predomínio de homens como donos de estúdios, gravadoras e meios de comunicação” (METZ, 2019, p. 36). Trago a afirmativa de que é necessário falar sobre o padrão de beleza porque ele afeta diariamente a vida de muitas mulheres, independente dos marcadores escollhidos: de crianças até senhoras da terceira idade, mulheres cis e mulheres trans, altas e baixas, mulheres de pele escura muito mais do que as de pele clara, mulheres com deficiência muito mais do que as sem deficiência, mas uma coisa é comum a todas: somos oprimidas pela norma estética vigente. Os padrões de beleza estão presentes em nossa sociedade há séculos e, segundo Naomi Wolf (2018), o mito da beleza surgiu em meados do século XX como uma nova maneira de dominação sobre mulheres, exercida pelos homens: “À medida que as mulheres se libertaram da Mística Feminina da domesticidade, o mito da beleza invadiu esse terreno perdido, expandindo-se enquanto a mística definhava, para assumir sua tarefa de controle social” (WOLF, 2018, p. 27). A busca constante e insaciável por se encaixar em padrões de beleza e “ser bonita”, entre aspas, é capaz de gerar uma série de problemas psicológicos e emocionais: baixa autoestima, dismorfia corporal, transtornos alimentares e mortes por procedimentos cirúrgicos. É necessário questionar a norma imposta quando ela ceifa a vida de meninas e mulheres. Percebi, enquanto encenadora e idealizadora do processo de criação que aqui é analisado, que ele foi potente para alimentar e promover questionamentos e tensões. Os questionamentos partiram inicialmente de mim, mas reverberaram em todas as mulheres que participam do processo, assim como afeta as mulheres enquanto grupo social. Márcia Metz é uma profissional das artes cênicas que realizou uma pesquisa de mestrado pelo PPGAC da UFRGS intitulada Gordas, gordinhas e gorduchas: a potência cênica dos corpos insurgentes (2019). Sua obra
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é uma das principais referências para este estudo pelo fato da autora ter elaborado a pesquisa no campo das Artes Cênicas sobre o padrão de beleza feminino, com enfoque sobre corpas gordas, conceito desenvolvido pela pesquisadora. Para desenvolver esta pesquisa, adentrei também na obra O mito da beleza - como as imagens de beleza são usadas contra as mulheres, de Naomi Wolf. A primeira versão do livro chegou ao Brasil em 1992 pela editora Rocco e teve a última atualização feita pela Editora Rosa dos Tempos, em 2018. Mesmo a autora tendo hoje posicionamentos negacionistas5, a obra marcou a terceira onda do feminismo e continua sendo lida e tida como uma importante obra para o movimento. Me questionei sobre utilizar a obra para desenvolver esta pesquisa e compreendi, junto a Metz (2019) que não posso ignorar o fato de que Wolf foi uma das primeiras mulheres a falar sobre a beleza enquanto forma de opressão e de controle social sobre e contra mulheres. Ela ter sido reeditada no Brasil em 2018 me auxiliou a entender e afirmar que O Mito da Beleza continua sendo uma obra necessária e atual. Iassanã Martins com sua dissertação “TODAS NÓS: práticas de intimidade e atuação cênica” (2017) foi fundamental para que eu decidisse adentrar no campo de estudos de teatros feministas. Para compreender corpo, adentrei na obra A sociologia do corpo, de David Le Breton (2020) e usei também de meus conhecimentos sobre as Abordagens Somáticas do Movimento, amparada em Débora Bolsanello (2005) e Ciane Fernandes (2014; 2015). Foi a partir dos estudos em torno de O Mito da Beleza que compreendi que a existência de um mito em torno da beleza persiste justamente para garantir que existam maneiras de dominar as mulheres, calar-nos e nos fazer acreditar que antes de sermos qualquer coisa, precisamos estar bonitas. Ter problemas com a própria imagem hoje, infelizmente, é uma questão que gera lucro para diferentes segmentos da indústria e do sistema mercadológico, (WOLF, 2018; COLERATO, 2016). O lucro é o que
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5. Disponível em: https://www.uol.com. br/universa/colunas/ carla-lemos/2021/03/04/ naomi-wolf-icone -feminista-e-cloroquinere-antivacina-e-agora.htm. Acesso em 02 de julho de 2021.
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move o sistema capitalista e por isso é tão difícil libertar as mulheres da busca constante pela beleza que idealizam. Toda e qualquer ser humana está inserida em alguma sociedade e, de modo geral, as sociedades possuem padrões “comuns”, entre aspas, a serem seguidos. Um padrão colonizador branco, magro, alto, cisgênero, heteronormativo e sem deficiência. Neste contexto, o senso comum tem um papel fundamental: ele é construído socialmente, forjado a muitos anos e fortalecido diariamente. Com ele vem o entendimento para a maioria geral da população de que existem maneiras de ficar bonita e que toda pessoa que se reconhece ou é reconhecida como mulher tem o dever moral de seguir tais maneiras. Tanto a pesquisa de criação cênica em 2018 quanto esta pesquisa científica apresentada em 2022 foi desenvolvida, justamente, para questionar este senso comum. Junto ao padrão de beleza e com o mesmo grau de importância, trago o outro pilar central para o processo de criação: vendar a espectadora. Durante mais de 80% do acontecimento cênico, todas as espectadoras foram impossibilitadas de utilizar o sentido mais usado no dia-a-dia, a visão. Um dos objetivos do mito da beleza é condicionar nosso olhar para a busca incessante por um padrão inexistente na natureza, vendar o público impossibilitou que esse olhar se manifestasse. Refletindo, percebo que busquei o atrito entre os pilares da criação para gerar questionamentos e reflexões na espectadora que iria vivenciar a experiência cênica. A cultura contemporânea colocou o sentido da visão como essencial para a vida. Santos, Silva e Farias (2017, p. 65) afirmam que A idolatria visual impõe um ritmo frenético para a absorção das imagens, impedindo o foco nos detalhes, já não tão sutis, posto que desvelados. Embora a visão permita revisitar o objeto mirado, estamos nos tornando cada vez mais incapacitados para a percepção dos detalhes sutis, considerando a fugacidade da imagem que atualmente cria-se
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a si própria, passando a nada significar além do momento de captura como mercadoria; banaliza-se, perdendo a possibilidade de emocionar. Com essa perspectiva, percebo que a sociedade contemporânea é visuocêntrica: se não for pela visão, é quase como se a gente não conseguisse existir. Porém, essa concepção está equivocada. Enquanto seres humanas, nós viemos ao mundo com mais do que um sentido: temos a audição, o paladar, o olfato, o tato e a visão. Todos eles estão prontos para serem usados e apreciados por nós, basta nos darmos tempo para aproveitar as pequenas alegrias da vida adulta: comer o pão caseiro da mãe, sentir o aroma de laranja na época de inverno, acariciar a pele ou os pelos de alguém que amamos e ouvir aquele som de ondas quebrando na praia pode nos levar, através da memória e da imaginação, até os remotos tempos da infância. torturas também foi sobre isso, ter um momento de pausa no cotidiano para experienciar uma outra possibilidade de viver a vida. Sem a visão, mas ouvindo o som de secadores de cabelo, sentindo a gelada temperatura das bijuterias tocando a pele; o aroma e a textura de um creme sendo passado pelos dedos das espectadoras e do cheirinho gostoso, como disse Eduarda na entrevista, do spray de cabelo. Além de tudo isso, a espectadora ainda teve a oportunidade de comer enquanto experienciava, bastava escolher: brigadeiro ou alface? A escolha de não privilegiar a visão foi calcada no interesse de desvincular os significados atribuídos à imagem dos corpos, e foi uma das estratégias utilizadas para mobilizar a norma estética imposta sobre corpos de mulheres. Impossibilitar as espectadoras de usarem seu principal sentido do dia-a-dia teve como intuito forçar uma parada. Diminuir o ritmo cotidiano imposto pela lógica capitalista, colonial e patriarcal para que as performers e as espectadoras pudessem prestar atenção ao aqui e agora. Dedicar sua atenção ao que acontece com a nossa experiência.
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3 \ O PROCESSO DE CRIAÇÃO COMO ESPAÇO DE DIÁLOGO: AS PARTILHAS ENTRE OS CORPOS DAS MULHERES. O corpo humano existe em relação com a sociedade, não sendo possível analisá-lo deixando de lado seu contexto. Existe relação direta entre as condições sociais, culturais e financeiras de uma pessoa e como sua existência será vista em determinada sociedade. David Le Breton (2020) traz logo no início do seu livro A sociologia do corpo, a afirmação de que o corpo é cultural e socialmente construído. […] o corpo não é somente uma coleção de órgãos arranjados segundo leis da anatomia e da fisiologia. É, em primeiro lugar, uma estrutura simbólica, superfície de projeção passível de unir as mais variadas formas culturais. Em outras palavras, o conhecimento biomédico, conhecimento oficial nas sociedades ocidentais, é uma representação do corpo entre outras, eficaz para as práticas que sustenta (LE BRETON, 2020, p. 29). O autor evidencia que a representação a partir do modelo biomédico é uma das possíveis, a qual é eficaz para as práticas que sustenta. Devemos ultrapassar o modelo biomédico existente e aceitar que as relações e interações sociais moldam as pessoas; sendo assim, moldam o corpo. Para as práticas que foram analisadas nesta pesquisa, percebo que a noção de corpo que as sustentou está vinculada ao modelo social e ao de soma. Nessa perspectiva, o corpo adquire valores específicos de acordo com normas sociais e culturais historicamente estruturadas. Existe um tipo de corpo que está presente no imaginário social da população em geral e aqui explicito o que entendo enquanto corpo padrão de mulher: branca, com traços finos, alta, magra, jovem, curvilínea, sem pelos, estrias, celulites e sem deficiência (WOLF, 2018; METZ, 2019; OLIVEIRA, 2020). Os corpos que diferem deste, praticamente todos, vão tendo acesso a menos privilégios e oportunidades: “As mulheres
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enfrentam desafios por seu marcador de gênero, mas elas vão tendo maiores dificuldades conforme outros marcadores as identificam: cor da pele, etnia, classe social, sexualidade, religião, deficiência, etc.” (RIBEIRO, 2017 apud METZ, 2019, p. 30). Quando uma mulher chega em um determinado lugar, ela trará consigo diversos significados e pré-conceitos calcados em sua imagem. Silvana Goellner (2013 apud METZ, 2019, p. 29), afirma que Um corpo não é apenas um corpo. É também o seu entorno. Mais do que um conjunto de músculos, ossos, vísceras, reflexos e sensações, o corpo é também a roupa e os acessórios que o adornam, as intervenções que nele se operam, a imagem que dele se produz, as máquinas que nele se acoplam, os sentidos que nele se incorporam, os silêncios que por ele falam, os vestígios que nele se exibem, a educação de seus gestos… enfim, é um sem limite de possibilidades sempre reinventadas e a serem descobertas. Não são, portanto, as semelhanças biológicas que o definem, mas, fundamentalmente, os significados culturais e sociais que a ele se atribuem. Sabendo que cada corpo traz consigo signos marcantes e que uma das buscas do processo de criação do torturas era tensionar o padrão, trabalhar com um grupo de jovens mulheres com corpos próximos ao padrão causou questionamentos, em mim e nas performers. Uma das perguntas realizadas às quatro entrevistadas foi como elas viam seus corpos em relação ao padrão. Stanis falou: o meu corpo tá dentro do padrão da sociedade, não vou dizer que não. Mas também não tá porque a sociedade exige que o pessoal não queira celulite e eu tenho celulite, eu tenho estria. […] Eu não me vejo
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no padrão da sociedade, mas sei que estou dentro dele (Stanis, 2021). Todas assumiram que se percebem hoje, próximas ao padrão e, falando sobre qual ele é, Warla pontuou sobre a perspectiva social: é que a minha opinião, ela também é uma opinião social, porque eu construo a sociedade enquanto indivíduo… Então eu não vou estar neutra. […] mesmo eu estando no padrão eu já ouvi coisas do meu cabelo […]. Socialmente isso não me atrapalha. Atrapalha o meu interior (Warla, 2021). Nas entrevistas, todas as participantes pontuaram que esse assunto foi conversado entre nós diversas vezes durante o processo. Dani (2021) trouxe em sua fala que com o processo foi possível “se enxergar como um corpo próximo ao padrão e entender que cada uma ali tinha as suas questões anteriores e presentes, questões com o seu corpo”. Na sequência, relacionando os nossos corpos com o de outras mulheres, ela disse que existem muitas outras formas de mulheres estarem sofrendo por seus corpos estarem ainda mais distantes desse padrão, enquanto a gente ainda tinha privilégios. […] [o padrão] é tão real que nos afeta profundamente e nos faz procurar um ideal, nos faz fazer coisas com nossos corpos pra chegar mais próximo desse ideal e ao mesmo tempo, enquanto alguém poderia considerar nós, que estávamos ali naquela sala, como corpos padronizados, a gente ainda não se acha nisso e nunca vai se achar. Sempre vai ter esse problema. […] cada uma de nós tinha questões diferentes, mesmo podendo ser consideradas corpos semelhantes (Dani, 2021).
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É interessante observar que compreendemos - e o processo auxiliou algumas com isso -, que existem mulheres que vão sofrer mais do que outras, levando em consideração a distância que seus corpos estão do padrão. Algumas sofrerão em seu íntimo: a autoestima poderá ir até o fundo do poço, sua saúde mental será abalada, episódios de depressão e ansiedade podem acontecer. Por outro lado, as mulheres que estão mais distantes do padrão como mulheres trans, negras, gordas e com deficiência terão maior dificuldade para acessar determinadas situações ou espaços por conta de características físicas, como uma vaga de emprego. Refletindo sobre essa questão, percebi que poderia soar incoerente para algumas pessoas seis jovens mulheres com corpos próximos ao padrão produzindo um acontecimento cênico questionando essa norma. Sob influência deste ponto, reforcei minha ideia de que a espectadora ficaria vendada durante o compartilhamento, tirando a venda apenas ao final do acontecimento cênico. Desta forma, nós não precisaríamos nos preocupar com as nossas imagens ou como estávamos em cena, não precisaríamos nos preocupar no possível julgamento que as espectadoras poderiam fazer. Compreendemos, durante o processo, que Todas nós somos mulheres e de alguma forma, por mais perfeita ou perto do padrão que a gente esteja, entre muitas aspas, sempre tem uma coisa que falta […] tá 99.9% perfeita, não serve. […] Todas somos mulheres e sofremos com essa pressão estética, independente se for magra, gorda. Se é gorda, é muito gorda. Se é magra, é muito magra. Se é alta, é muito alta... Tipo, tudo que tu é, é muito, né (Eduarda, 2021). Analisar esse processo de criação significa entender alguns dos meandros da possível relação entre teatro e padrão de beleza, um tema essencial para que cada vez mais mulheres possam se sentir livres com seus próprios corpos e fazer o que for mais pulsante na vida de cada uma. Para
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sofrer com a pressão exercida pela norma estética, basta estar viva, se identificar como mulher e/ou ser lida como uma. Das seis jovens mulheres que fizeram parte do processo de criação, todas estavam cursando uma graduação na área das artes durante o desenvolvimento do processo criativo, três delas na linguagem das artes da cena e as outras três na linguagem das artes visuais. Eram meninas, jovens mulheres que se conheciam de vista por frequentar o mesmo prédio para estudar, mas que não tinham proximidade ou intimidade. Este foi um dos primeiros pontos reconhecidos por mim enquanto encenadora, e a partir dele busquei nos ensaios desenvolver a relação entre elas, para que pudéssemos juntas falar sobre um tema que tocava, à época, todas nós. Com a análise dos diários de encenadora, descobri que cada ensaio foi dividido em três momentos: o momento inicial era aberto para o diálogo. Na sequência o foco era voltado para práticas de consciência corporal e práticas teatrais com o objetivo de desenvolver competências cênicas: mobilizávamos o corpo com o foco na percepção de si, o tempo passava e então a percepção se expandia para a relação com a colega de cena, com o espaço e com o coletivo. No terceiro momento, adentrávamos nas explorações de recursos materiais para a criação cênica. A estrutura dos encontros foi importante para que todas desenvolvessem um conhecimento cênico comum que possibilitasse a elas explorar cenicamente. Aquecer a voz, as articulações e o corpo, descobri-lo, desconstruílo, perceber o espaço e o tempo, a ligação entre corpo e mente; tudo isso são aprendizados que comecei a desenvolver com princípios que perpassam as Abordagens Somáticas do Movimento e as práticas de Contato Improvisação. Reconhecendo tais princípios, pude partilhar com as performers propostas com o intuito de revelar as potências e os limites dos corpos, buscando suavizar os julgamentos de valor e os ideais do que deveria ser o corpo.
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O Contato Improvisação (CI) é uma técnica de dança que começou a ser praticada na década de 1970, por Steve Paxton junto a algumas colaboradoras nos Estados Unidos da América. A pesquisa em movimentos desenvolvida por elas tinha em si objetivos como “[...] descobrir como a improvisação em dança poderia facilitar a interação entre os corpos, as suas reações físicas e como proporcionar a participação igualitária das pessoas em um grupo, sem empregar arbitrariamente hierarquias sociais” (LEITE, 2005, p. 91). Ela foi criada como uma maneira de questionar algumas normas impostas no mundo da dança, como as hierarquias existentes entre coreógrafa e dançarinas e também as hierarquias existentes entre as próprias dançarinas. Os tamanhos, pesos e gêneros não as impediam de realizar qualquer movimento e o grupo não possuía uma diretora que centralizava o poder (NOVACK, 1999). A dança trouxe junto a si os ideais da sociedade da época, a qual passava pela efervescência contracultural. Débora Bolsanello (2005, p. 100) aponta que “A educação somática é um campo teórico e prático que se interessa pela consciência do corpo e seu movimento”. Este é um campo do conhecimento teórico e prático, fato do qual eu já tinha consciência quando desenvolvi o torturas. Além disso, descobri durante a pesquisa, através da artista e pesquisadora Ciane Fernandes (2015), que as práticas somáticas podem operar pelos vieses estético, educativo, terapêutico e de pesquisa, de forma simultânea ou focal, dependendo do interesse de quem desenvolve cada prática. A pesquisadora afirma ainda que “A origem da somática está na revolta contra o dualismo cartesiano […]” (FERNANDES, 2015, p. 11). Soma é o corpo em seu aspecto físico, mas também em seus aspectos subjetivos e sociais, é a relação entre as diferentes dimensões da vida. Soma é o corpo como experiência viva consigo, com a outra, com o espaço e em constante transformação. Através das Abordagens Somáticas do Movimento é possível aprender a ter mais consciência de si compreendendo, por exemplo, que problemas de saúde podem ser sintomas de questões que perpassam a experiência humana. Sendo assim,
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não é possível tratar apenas os sintomas, é preciso entender e trabalhar com as causas. A educação somática tem como proposta para conscientização das praticantes passar pela sensibilização do maior órgão do corpo humano, a pele, que acaba sendo o receptor de grande parte dos estímulos com os quais o corpo tem contato: auditivos, gustativos, olfativos e visuais. Tudo passa pela pele. Os princípios de percepção e consciência de si, da outra e do espaço, que estiveram presentes em todos os encontros do processo de criação do torturas, vieram das Abordagens Somáticas do Movimento e da dança Contato Improvisação. Desde os primeiros encontros, notei que a relação das performers consigo mesmas era permeada por algumas visões um tanto quanto deturpadas, como a percepção de imperfeições gigantescas que, na realidade, eram apenas características que formavam cada uma. Iassanã Martins, outra importante referência para esta pesquisa afirma que, “para criar, é preciso confiar na outra, naquela com a qual você divide o processo inicial de criação, pois é para a sua parceira de cena que você mostra a sua carne primeiro e, para isso, é preciso confiança” (MARTINS, 2017, p. 72). Seguindo na linha das Abordagens Somáticas do Movimento, investi na percepção de si: observar os próprios movimentos e sensações, uma busca por perceber o próprio corpo de maneira generosa e com carinho. Junto a isso, desenvolvemos práticas de contato que estimularam a confiança no coletivo através do ato de tocar e ser tocada. Com o desenrolar do processo, ambas as ações se tornaram mais simples, ao passo que cada uma foi reconhecendo o próprio toque e o da outra como um toque de respeito e investigação. Práticas como estas foram essenciais para que cada mulher que participou do processo conseguisse conhecer a si, a outra, os limites de ambas e, assim, desenvolver uma confiança no coletivo. A partir das abordagens aqui mencionadas, acredito que foi possível desenvolver uma outra relação com o próprio corpo, uma relação de confiança, de reversão da
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imagem limitante de corpo errado para uma experimentação de um corpo em constante mutação, tal como proposto na ideia de soma. Em nossa sociedade não temos o costume de tocar ou ser tocadas nem pelo nosso próprio corpo. Com a análise dos relatórios e das entrevistas, percebi que tocar foi estranho no início, mas com o decorrer do processo foi se tornando mais confortável. Por quê? Encontrei em meu diário de encenadora o planejamento do sexto encontro, realizado no dia 27 de setembro de 2018, o qual contava com a proposta do deslocamento com ponto de contato e outros exercícios que envolviam o contato entre jogadoras. Ainda através do diário, descobri que Stanis se sentiu desconfortável com tais práticas, sentindo e verbalizando que se sentiu invadida às vezes. Na entrevista, três anos depois, Stanis apontou que sentiu desconforto, mas que o coletivo sempre respeitou seus limites “[…] uma coisa que eu aprendi foi usar o toque do corpo. […] no início eu fiquei desconfortável, tinham situações que eu não queria e vocês nunca me forçaram” (2021). Além disso, ela disse que […] aprender a ser tocada por outras pessoas que eu não conheço, de uma maneira respeitosa, me permitiu me desbloquear. […] o trabalho ali era um trabalho de respeito, de educação, de cuidado e tudo, e tu trabalhar isso contigo mesmo entre os teus amigos às vezes, o fato de tu dar um abraço numa pessoa, dependendo, para alguns pode ser desconfortável, para outro pode simplesmente ser um ato de carinho e respeito (idem). Alguns exercícios que desenvolvemos com base em princípios do CI e das Abordagens Somáticas do Movimento foram a Pequena Dança, a Massagem em Quatro Etapas e o deslocamento com ponto de contato. A Pequena Dança é uma um exercício de percepção dos movimentos corporais a partir da observação de si na aparente pausa (BERSELLI, 2014).
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6. Para explicação detalhada dos exercícios Massagem em Quatro Etapas e Deslocamento com ponto de contato, vide: SANTOS, F. G.; BERSELLI, M. Guia de práticas cênicas acessíveis [recurso eletrônico]. Santa Maria/RS: UFSM/ CAL, Departamento de Artes Cênicas, Grupo de Pesquisa Teatro Flexível: Práticas Cênicas e Acessibilidade; Porto Alegre/RS: PROBIC/ FAPERGS, 2021. Disponível em: https://www. teatroflexivel.com.br/ guia-de-praticas-cenicasacessiveis/. Acesso em: 24/07/2024.
A massagem em quatro etapas é um exercício em grupo que envolve as
7. O uso de recursos materiais veio sob influência da prática de criação em ciclos Cycles Repère, a qual apresenta quatro etapas definidas, que se relacionam e retroalimentam, porém, não adentrei na prática ao longo do estudo. Para saber mais, consultar: DOS SANTOS, Vinicius Medeiros; BARONE, Luciana Paula Castilho. Ciclos Repère: História, funcionamento e possíveis intersecções com os processos coletivos e colaborativos no Brasil. O Mosaico, [S.l.], out. 2020. ISSN 2175-0769. Disponível em: https:// periodicos.unespar.edu. br/index.php/mosaico/ article/view/3674. Acesso em: 10 Dez. 2021
consigo princípios da Educação Somática, focando no desenvolvimento
ações de puxar, esfregar, dar leves batidas na pele de uma das pessoas do grupo e energizá-la, com intuito de acordar, mobilizar e preparar o corpo de cada performer. O deslocamento com ponto de contato trouxe consigo estímulos da fala, como falar sobre o padrão de beleza com objetivo de aproximar as performers6. Além destes, o João Bobo foi importante e marcante para desenvolver a confiança no coletivo. Nessa perspectiva, trabalhamos também com o olhar, uma prática que surgiu de uma necessidade percebida por mim enquanto encenadora: as performers não estavam conseguindo olhar uma para a outra em um determinado exercício, e isso estava causando dispersão. Desenvolvê-lo foi importante para melhorar o foco em cena, além de ter sido importante para estreitar a relação entre as participantes. Os primeiros exercícios desenvolvidos em cada dia de encontro traziam da consciência corporal através da percepção de si, do movimento, da respiração, com exercícios como a Pequena Dança e a Massagem em Quatro Etapas. Depois disso, a prática passava para um momento que contava com exercícios voltados para a criação de confiança no coletivo, como o deslocamento com ponto de contato e o João Bobo. Percebo que o objetivo por detrás de tais práticas e exercícios era desenvolver um senso de comunidade, em que todas conseguissem confiar em todas para que o processo acontecesse de maneira confortável e verdadeira. Foi útil para que nós conseguíssemos estar em cena enquanto mulheres artistas, sem ignorar nossas vivências com o padrão estético que nos oprime diariamente. Para criar as cenas, utilizamos do momento de experimentação de recursos materiais7, desenvolvido em todos os ensaios. A escolha de cada um veio a partir do meu repertório pessoal e, possivelmente, das conversas que aconteceram junto ao processo, quando refletíamos sobre o que estávamos criando e sobre o que poderíamos criar. Os recursos
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materiais utilizados em cena revelavam a manipulação a que submetíamos nossos corpos: no calor do secador com uma escova que puxa seus fios de cabelo, no sapato de salto que espreme os dedos, comprime o pé, modifica sua curvatura, altera a postura e sobrecarrega a coluna. Suplícios impostos aos corpos das mulheres por meio de recursos que aprendemos a manter em nosso cotidiano. No processo de criação, investimos nesses recursos como material criativo. Recursos materiais como salto alto, pincéis e maquiagens, escovas, sprays e secadores de cabelo, fitas métricas, espátulas para depilação, jóias e outros adereços reconhecidos pela nossa cultura como sendo de mulher, por estarem relacionados com a beleza. Além destes, trabalhamos com recursos que nada tinham a ver com o universo da beleza, como folhas secas, vassouras e aromatizador de ambientes, objetos que eu levava de casa, pegava na rua ou pelos corredores do prédio onde o processo criativo aconteceu. Os sapatos de salto, por exemplo, muito utilizados em eventos de moda, foram transformados na exploração cênica em objetos que emitem som de maneira extremamente desconfortável. Para a cena, nós os utilizamos inicialmente para criar a ideia de um desfile: uma performer de cada vez andava pelo corredor no centro do espaço cênico. Depois que todas passaram, elas se uniam e juntas passavam pelo corredor central, uma atrás da outra em fila. Na sequência, o som contido e ritmado se perdia em um mar de ruídos emitidos pelos diferentes ritmos e força de deslocamento de cada uma, objetivando tornar o som ensurdecedor até que, no pico máximo de intensidade, Dani saltava com toda a força que seu corpo dispunha e quando aterrissava no solo, todas haviam parado e o silêncio se fazia presente durante alguns instantes. No décimo encontro, dia 22 de outubro de 2018, nós tivemos uma epifania: transformar o momento dos saltos em um concurso de beleza. Quando a plateia adentrasse o espaço cênico, vendada e sendo guiada pela equipe, a sonoplastia estaria acontecendo através de cinco secadores de cabelo ligados. Depois de passar por um momento de cuidados envolvendo
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colocação de adereços e bijuterias na plateia, passar spray fixador de cabelo pelo espaço, cremes nos dedos das espectadoras, aproximar de seus narizes frascos de acetona, acontecia o desfile, um deslocamento marcado e ritmado. A experimentação com saltos surgiu em um dos primeiros encontros, mas se tornou essa cena muito tempo depois. As vassouras chegaram até o ensaio de forma despretensiosa, quando precisamos varrer a sala de ensaio depois de investigar com as folhas secas. As folhas foram descartadas, mas a ação de varrer permaneceu, marcando o fim do acontecimento cênico. Cada performer pegava uma, varria o chão e cochichava à espectadora: nada aconteceu aqui. Não sei como a plateia recebeu esse estímulo, mas ele surgiu de uma experimentação em que as performers diziam, justamente, que depois do que acontece conosco, a sociedade limpa tudo e segue seu fluxo, como se nada tivesse acontecido. O sistema continua girando intacto.
4 \ NÃO ALCANÇAR O PADRÃO SIGNIFICA QUE SOMOS MENOS MULHERES? A artista e pesquisadora Iassanã Martins define o conceito de Práticas de Intimidade em sua dissertação de mestrado intitulada TODAS NÓS: Práticas de Intimidade e Atuação Cênica (2017). A autora contextualiza que “o termo ‘práticas de intimidade’ define a busca de possibilidades de criação entre as participantes do evento cênico, compartilhando atmosferas que se desenvolvem através de um jogo que se propõe a estar junto, olho no olho, exigindo despojamento das atrizes” (2017, p. 31). Como o objeto de análise desta pesquisa foi o processo de criação do torturas, associo este trecho primeiramente a relação que foi estabelecida entre as mulheres criadoras. Foi no diálogo e na partilha, nas práticas cênicas e nas trocas que criamos a intimidade necessária para nos percebermos como mulheres próximas ao padrão e, ao mesmo tempo, oprimidas por ele. Tal percepção foi essencial para que nós conseguíssemos, mesmo sem o olho no olho proposto por Martins
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(2017), criar uma prática de intimidade com a espectadora, levando em consideração que “[…] a intimidade está relacionada à possibilidade de um convívio singular, que só pode acontecer com as participantes envolvidas no mesmo jogo, compartilhando o mesmo espaço-tempo” (idem). Não tivemos olho no olho, mas tivemos estímulos sensoriais que aproximam: a mão da performer passou creme nos dedos da espectadora e a voz da performer cochichou palavras no ouvido de cada espectadora vendada. Nós secamos a plateia com secadores de cabelo, passamos spray fixador pelo espaço e adornamos o corpo das espectadoras: pulseiras, colares e tiaras. Demos a opção de escolha: um brigadeiro ou uma folha de alface? Criamos uma música com melodia doce e que falava sobre a morte de mulheres por conta do mito da beleza8 e depois de tudo isso, finalizamos o acontecimento varrendo o chão, afirmando que nada tinha acontecido. Em meados de novembro de 2018, eu e Eduarda, uma das performers, desenvolvemos uma prática de escuta, com objetivo de colher relatos de mulheres sobre suas questões com o padrão de beleza. Nos instalamos no saguão do Restaurante Universitário I da Universidade Federal de Santa Maria (RU I - UFSM) com um tecido estendido, um pote com bolachas caseiras sobre ele e uma placa convidando mulheres a sentarem e compartilharem suas histórias. As histórias destas meninas e mulheres se tornaram palavras escritas sobre folhas de papel que fizeram parte das experimentações em sala de ensaio. Martins (2017) sustenta que a prática de intimidade desenvolvida no espetáculo por ela analisado foi baseada em três pilares, a atuação em primeira pessoa, o número reduzido de espectadoras e o real como discurso poético. Aqui sustento que torturas desenvolveu uma prática de intimidade com o público porque o real foi trazido à cena pelas performers, as quais contavam histórias reais de mulheres, elas não interpretavam as mulheres, mas contaram suas histórias, as delas, as minhas e as nossas. torturas foi apresentado para um público reduzido porque, com o objetivo de estimular o sensorial, cada performer tinha um
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8. Não caberia neste artigo desenrolar como foi o processo de criação desta música, porém deixo aqui o link para que você possa ouvi-la, caso sinta interesse. Clique no link a seguir, acesse o áudio e aprecie essa experiência: https://drive.google. com/file/d/194b0KSjzrB_ eYMSGWxrq5hwnVIRYMKv7/ view?usp=sharing.
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pequeno grupo de espectadoras que ficava sob sua responsabilidade. Não era possível ter um público maior do que 30 pessoas porque as performers não dariam conta de estimular todas. Com esta pesquisa, compreendi que caracterizar o torturas como um trabalho autobiográfico seria limitante porque o mito da beleza está impregnado em nossa sociedade e se faz presente de maneira violenta na vida de nós, mulheres. Uma violência velada. Me nutri de mulheres que falassem sobre isso e de histórias de mulheres reais porque nunca foi um trabalho sobre mim, sempre foi um trabalho coletivo para falar de um tema atravessado pelas nossas experiências. Ele partiu de uma necessidade - essa sim - minha, mas que atravessa e mutila o corpo de todas as mulheres com as quais eu já tive contato. Percebo que fazer teatro com mulheres pode ser revolucionário por compreender que, ao longo dos séculos, as mulheres receberam pouco crédito pela sua atuação. Propor um acontecimento cênico formado majoritariamente por mulheres também foi um ato consciente na busca por fortalecer vínculos e descobrir a potência que existe quando nos unimos para falar sobre algo que nos afeta tanto. Esse grupo de seis mulheres ocupou uma sala de ensaio dentro do Centro de Artes e Letras da UFSM durante quatro meses do ano de 2018, em busca de conseguir transformar um tema que tocava a todas em uma materialidade que pudesse ser compartilhada com a espectadora, visando questionar o padrão de beleza. Percebo que não foi apenas o compartilhamento que teve capacidade de questionar e tensionar o padrão mas que, possivelmente com ainda mais força, o processo criativo foi um propulsor para tais ações. Por grande parte do tempo em que esta pesquisa foi desenvolvida, não consegui aceitar que torturas foi um acontecimento cênico feminista. Busquei por outras palavras ou definições: poderia ser teatro feito por mulheres, teatro feito com mulheres, teatro feito sobre mulheres, mas reconheci que estas palavras deixavam lacunas e não reconheciam tudo o
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que foi este processo. O teatro “[…] não ‘tem gênero’, mas ‘faz gênero’ [...] auxiliando em seu reconhecimento e legitimização” (Romano, 2009, p. 77). Tentei me distanciar do termo teatros feministas por compreender que, para considerá-lo de fato feminista, precisaria de mais estudos acerca do feminismo. Porém, percebo hoje que este é o termo que melhor expressa o que fizemos: um processo criativo que teve como mote de criação histórias reais de opressões e pressões sociais exercidas sobre e contra mulheres, tendo sido desenvolvido de maneira crítica, composto majoritariamente por mulheres e compartilhado com público sem fazer distinção de gênero. Existe potência em trabalhar com temas que nos tocam enquanto seres humanas. É muito provável que o mundo do trabalho trará a todas nós experiências que não nos convoquem tanto quanto o torturas e esta pesquisa convocaram a mim. Porém, percebi que quando compreendemos que algo nos convoca e tira o nosso sono, existe potência em transformar tudo o que sentimos e nos atravessa em uma prática artística. O que convoca a mim, enquanto mulher, possivelmente convocará outras mulheres e pode causar identificação. Perceber que o que nos incomoda é uma questão social e acreditar em nossos desejos é essencial para fazer teatro. Quando pensar não foi suficiente, eu gritei através da arte e eu não gritei sozinha.
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\ retrospectiva histórica do ensino de teatro no Brasil e a sua influência no território goiano Jackeline dos Reis da Silveira Jackeline dos Reis da Silveira, Goiânia (GO). Formada em licenciatura em teatro pela Universidade Federal de Goiás (UFG), é atriz, arte-educadora e graduanda do curso de tecnologia em produção cultural pelo Instituto Federal de Goiás (IFG). Fluente em língua brasileira de sinais (Libras), atuou como acompanhante terapêutica no Núcleo de Atendimento às Pessoas com Necessidades Educacionais Específicas (NAPNE), do IFG. jackelinersatriz@gmail.com
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FICHA TÉCNICA Instituição Universidade Federal de Goiás (UFG) Tipo do curso Graduação Nome do curso Teatro – licenciatura Período do curso 2017-2022 Estado Goiás Título do trabalho Retrospectiva histórica do ensino de teatro no Brasil e a sua influência no território goiano Nome da autora Jackeline dos Reis da Silveira Nome da orientadora Professora doutora Karine Ramaldes Número de páginas 20
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\ RESUMO O presente trabalho coloca em debate alguns aspectos referentes à arte/ educação, tendo como foco principal a inserção do componente curricular Teatro na Educação Básica1 brasileira. Deste modo, realizando um estudo histórico bibliográfico de alguns documentos que regulamentam a Educação Básica nacional com a finalidade de entender a trajetória do ensino da Arte, em especial da linguagem Teatro no ensino regular, objetivando compreender suas problemáticas do passado que interferem na realidade atual. Palavras-chave: Normatização do ensino da arte no Brasil; Arte/educação goiana; Pedagogia do teatro.
\ ABSTRACT The present work puts in debate some aspects related to art/education, having as main focus the insertion of the curricular component Theater in Brazilian Basic Education. In this way, I carry out a bibliographic historical study of some documents that regulate the national Basic Education in order to understand the trajectory of Art teaching, especially the Theater language in regular education, aiming to understand problems of the past that interfere in the current reality. Keywords: Standardization of art teaching in Brazil; Goiana art/education; Theater pedagogy.
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1. “Art. 201. § 5° A educação básica pública atenderá prioritariamente ao ensino regular” (BRASIL, 1988) “Art. 21. A educação escolar compõe-se de: I – Educação básica, formada pela educação infantil, ensino fundamental e ensino médio;
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\ RESUMEN Este trabajo pone en debate algunos aspectos relacionados con el arte/ educación, teniendo como foco principal la inclusión del componente curricular de Teatro en la Educación Básica brasileña. De esta manera, realizar un estudio bibliográfico histórico de algunos documentos que regulan la Educación Básica nacional con el propósito de comprender la trayectoria de la enseñanza del Arte, especialmente el lenguaje del Teatro en la educación regular, con el objetivo de comprender sus problemáticas pasadas que interfieren en la realidad actual. Palabras clave: Normalización de la enseñanza del arte en Brasil; Arte/educación en Goiás; Pedagogía teatral.
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1 \ INTRODUÇÃO Este trabalho coloca em pauta a trajetória da institucionalização do teatro como integrante do currículo na educação básica brasileira. Investiga o lugar do teatro na educação e como o olhar sobre o ensino da arte se modificou ao longo da história. Busca também, explanar sobre os atuais conflitos que permeiam o trabalho docente dos arte-educadores, no que se refere a sua inclusão e permanência no mercado de trabalho, bem como à garantia de seus direitos, especialmente na cidade de Goiânia-Goiás. A preocupação em abordar o tema desta pesquisa manifesta-se através das experiências e vivências durante todo meu processo de formação no curso Teatro-Licenciatura da Universidade Federal de Goiás (UFG). Os motivadores principais foram os componentes obrigatórios de licenciatura cursados neste período (2017 a 2022), em especial o componente Políticas Educacionais, que me impulsionou a pensar, debater e querer pesquisar mais sobre a educação, porém foi onde também tive que confrontar a falta de materiais que auxiliasse o estudo a respeito da estrutura organizacional do ensino da Arte, principalmente que trouxesse a trajetória do teatro na educação como ponto central do debate. Outro motivador fundamental para a escolha do tema da pesquisa foram as constantes queixas dos colegas de sala sobre a falta de mercado de trabalho durante os debates e discussões nas aulas de Estágio Obrigatório de Licenciatura, e foi onde surgiu também a dificuldade de encontrarmos campos de estágio (na cidade de Goiânia) que tivessem a linguagem Teatro no componente curricular Arte, e principalmente que houvesse professores com formação específica para lecionar este Componente. Esta pesquisa parte do estudo da Constituição Federal Brasileira de 1988 no que diz respeito à educação, visto que este é o documento principal de uma nação, pois é ela quem determina os valores e normas de um país. Outro referencial teórico que embasa este trabalho é a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) de 1961, 1971 e 1996 e suas devidas atualizações. A LDB é o documento fundamental para a garantia de um
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2. Apoiado pelo Partido Português, constituído por ricos comerciantes portugueses e altos funcionários públicos, D. Pedro I dissolveu a Assembleia Constituinte em 1823 e impôs seu próprio projeto, que se tornou a primeira Constituição do Brasil. Apesar de aprovada por algumas Câmaras Municipais da confiança de D. Pedro I, essa Carta, datada de 25 de março de 1824 e contendo 179 artigos, é considerada pelos historiadores como uma imposição do imperador. (Agência Senado, 2021)
ensino público, gratuito, democrático e de qualidade no Brasil, visto que ela orienta os princípios da Educação Básica, pois regulamenta e amplia os conceitos contidos na Constituição Federal.
2 \ A EDUCAÇÃO E SUAS NORMATIVAS LEGAIS A Educação se constitui como um direito social previsto desde a primeira constituição brasileira outorgada em 1824, a Constituição Política do Império do Brasil (Brasil Império)2, que determinou a gratuidade da instituição primária do ensino, além de fazer menções sobre a criação de colégios e universidades onde seriam ministradas áreas do conhecimento como ciências, belas letras e artes. Como pode ser observado a partir da seguinte citação: Art. 179. A inviolabilidade dos Direitos Civis, e Politicos dos Cidadãos Brazileiros, que tem por base a liberdade, a segurança individual, e a propriedade, é garantida pela Constituição do Imperio, pela maneira seguinte. XXXII. A Instrucção primaria, e gratuita a todos os Cidadãos. XXXIII. Collegios, e Universidades, aonde serão ensinados os elementos das Sciencias, Bellas Letras, e Artes. (BRASIL, 1824) É relevante fazermos alusão a este fato para percebermos que o direito à educação no Brasil vem de longas datas e seus conceitos e percursos se modificaram bastante no decorrer dos tempos. Porém, neste trabalho utilizaremos como referência somente a Constituição Federal Brasileira vigente, promulgada em 1988, no que se refere à educação e ao ensino de maneira especial, com referências aos direitos, aos deveres, aos fins e aos princípios norteadores. A Constituição Federal assim define:
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Art. 205. A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho. (BRASIL, 1988) Desta forma, como colocado na Constituição, entendemos que educação é um conceito abrangente e de reponsabilidade das diversas camadas sociais, porém, fica a cargo do Estado assegurar a educação formal em instituições próprias de ensino. Como é afirmado no seu artigo 23: É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios: (...) V proporcionar os meios de acesso à cultura, à educação, à ciência, à tecnologia, à pesquisa e à inovação; porém fica a cargo do Estado a educação formal, oferecida em instituições próprias de ensino. (BRASIL, 1988) Uma outra competência da União, estabelecida no Art. 22 da Constituição é legislar sobre as Diretrizes e Bases da Educação Nacional, conforme aponta o inciso XXIV, deste Artigo. Assim, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) está subordinada à Constituição Federal e suas diretivas são complementares a ela, e como o próprio nome já diz, tem o papel de dar as diretrizes normativas de toda a Educação nacional. Na LDB, encontramos com maiores detalhes as responsabilidades da União, dos Estados e dos Municípios, referentes à Educação. No Art.10, inciso VI, a LDB define como responsabilidade do Estado3: “assegurar o ensino fundamental e oferecer, com prioridade, o ensino médio a todos que o demandarem, respeitado o disposto no art. 38 desta Lei” (BRASIL, 1996, grifos meus). No Art. 11, como uma das responsabilidades dos municípios, estabelece:
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3. Refere-se a todos os estados e o Distrito Federal.
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V- Oferecer a educação infantil em creches e préescolas, e, com prioridade, o ensino fundamental, permitida a atuação em outros níveis de ensino somente quando estiverem atendidas plenamente as necessidades de sua área de competência e com recursos acima dos percentuais mínimos vinculados pela Constituição Federal à manutenção e desenvolvimento do ensino. (BRASIL, 1996) Como é possível observar, a estrutura organizacional da Educação Básica é dividida entre o Estado que é responsável pelo Ensino Médio e os Municípios pela Educação Infantil e o Ensino Fundamental (anos iniciais e anos finais). Porém, na Constituição Federal são atribuídos conceitos mais amplos e complexos a respeito da organização, responsabilidade e estrutura financeira do sistema educacional. No Capítulo III da Constituição, estão postos os dez artigos que orientam a sistematização do Ensino no Brasil. Neste Capítulo, são apresentados, de forma geral, as estruturas e fundamentos que dão forma ao sistema educacional do País. Ele estabelece ainda as competências da União, dos Estados e dos Municípios referentes à Educação. Desta forma, farei algumas considerações que julgo relevantes, sobre o Art. 206 que trata sobre os princípios básicos da educação, em específico aos incisos I e V, para que possamos compreender que mesmo com a existência prevista em leis que, na teoria, determina a maneira que a educação deveria ser ofertada no Brasil, por parte do Estado, na realidade, muitos aspectos delas não são efetivados na prática. Nesse sentido, o inciso I do Art. 206 presume que um dos princípios básicos da educação deve atuar na garantia de “I - igualdade de condições para o acesso e permanência na escola”. Mas deve-se entender que nem sempre o que está previsto na lei é posto em prática de forma efetiva, no chão da escola. Uma das questões que impede que a lei seja efetivada na prática é que as realidades sociais são muito heterogêneas no Brasil, a depender de cada estado e cidade. Pois, questões do acesso
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e permanência na escola, como um reflexo social, também são muito distintas entre as regiões, levando em consideração até mesmo a forma com que a educação é financiada no Brasil, de maneira meritocrática4 e desigual5. Outro exemplo da lei que não se efetiva na prática temos retratado a partir do inciso V, do Art. 206 da Constituição Federal Brasileira (1988) que prevê: “V - valorização dos profissionais da educação escolar, garantidos, na forma da lei, planos de carreira, com ingresso exclusivamente por concurso público de provas e títulos, aos das redes públicas”. Tendo em vista que o plano de carreira se aplica somente aos professores efetivos/ concursados, percebe-se que, no Estado de Goiás, nos últimos anos, tem-se adotado uma política de dar cada vez menos espaço para os professores efetivos e cada vez mais espaço para os professores com contratos temporários. Como podemos observar através dos dados obtidos no artigo Déficit de profissionais da Educação da Rede Pública Estadual de Goiás que aponta: Entre 2011 e 2021, a Rede Pública Estadual de Educação de Goiás estava entre aquelas com maior registro de decréscimo de professores efetivos. Em 2011, segundo dados do INEP (2011), Goiás foi o estado com menor quantidade de contratos temporários. Entre 2011 e 2021 o percentual de contratos temporários no magistério passou de 2,5% para, em 2021, 38,96%. (MIRANDA et al, 2022, p. 10) Diante desse quadro, é importante evidenciar que a falta de concursos públicos afeta diretamente a qualidade do ensino oferecido aos estudantes, o trabalho dos profissionais da educação de forma geral e essencialmente os docentes. Pois, além da baixa remuneração, os docentes com contratos temporários não possuem plano de carreira e nem estabilidade no emprego, podem ser facilmente ameaçados de serem mandados embora, caso não cumpram as determinações das
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4. De acordo com o dicionário contemporâneo de língua portuguesa, o termo meritocracia é um sistema de hierarquização e premiação baseado nos méritos pessoais de cada indivíduo. No sistema educacional, as verbas destinadas à educação são distribuídas nacionalmente com base em notas e resultados, sendo que os maiores recursos são enviados aos estados e municípios que atingem os melhores rendimentos. 5. A questão do acesso e permanência na escola pode ser refletida e verificada a partir dos estudos e análises dos índices de analfabetismo no Brasil, sendo as regiões norte e nordeste mais afetadas pelo analfabetismo. O trabalho Mapa do Analfabetismo no Brasil, realizado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP) aprofunda as discussões sobre o tema. Disponível em: Mapa do Analfabetismo no Brasil — Inep (www.gov.br). Além deste, o documentário Pro Dia Nascer Feliz, dirigido por João Jardim, explana sobre as diferentes realidades do contexto escolar no Brasil. Disponível em: Pro Dia Nascer Feliz DVDRip XviD pedr1nho - Bing video
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6. “A reforma educacional de 1971 estabeleceu um novo conceito de ensino de arte: a prática da polivalência. Segundo a reforma, as artes plásticas, a música e as artes cênicas (teatro e dança) deveriam ser ensinadas conjuntamente por um mesmo professor da primeira à oitava série do primeiro grau”. (BARBOSA, 2011, p. 10) 7. Disponível em https:// www.acheconcursos. com.br/edital-concurso/ edital-concurso-seducego-02-2018 8. Arte-Educadora e Pesquisadora, Diretora do Centro de Estudo e Pesquisa Ciranda da Arte/ Secretaria de Educação do Estado de Goiás. Licenciada em Educação Artística/ Música pela Universidade Federal de Goiás (UFG), Especializada do Curso de Especialização para Gestores da Educação Pública: SEDUC-GO, pela Universidade Federal de Juiz de Fora/ MG, modalidade EaD. Doutora em Performances Culturais pela UFG. 9. Disponível em https:// centrodeselecao.ufg.br/ educacao2010/
gestões. Muitas vezes, tais determinações passam por ministrar a aula do componente curricular fora da sua área de formação, por exemplo, dar aulas de Arte, mesmo esse professor não sendo licenciado em nenhuma linguagem artística; e/ou o professor que é licenciado em uma linguagem específica da Arte é obrigado a ministrar as quatro linguagens artísticas (Artes Visuais, Dança, Música e Teatro), dando vida e permanência à antiga e defasada polivalência6. Tendo isso em vista, podemos evidenciar a marginalização do trabalho docente no território goiano através da análise dos últimos concursos públicos executados pela Secretaria de Educação do Estado de Goiás (SEDUC-GO). O último concurso para professores desta Secretaria, que já possui todos os processos finalizados, foi realizado no ano de 20187 e oferecia o total de 900 vagas, e contemplou apenas professores dos componentes biologia, química, matemática e física. O que excluiu o ingresso de professores de outras áreas do conhecimento no mercado de trabalho, inclusive o ingresso de professores de Arte, um retrocesso muito grande para essa área do conhecimento, como salienta a professora Luz Marina Alcantara8 em sua tese de doutorado Ciranda na arte, construindo performances, afetos e liminaridades. Experiências arte/educativas na rede pública do Estado de Goiás (2009-2016), que relata a importância da efetivação dos arte-educadores para impulsionar o reconhecimento da Arte como componente curricular da educação básica. Uma das mais importantes conquistas do jogo político da arte/educação goiana foi a efetivação de especialistas de Artes Visuais, Dança, Música e Teatro por meio de concursos para o cargo de professor. (ALCANTARA, 2020, p. 92) Em relação aos professores do componente curricular Arte, o último concurso estadual já finalizado que contemplou esta área do conhecimento ocorreu em 20109, e oferecia o total de 5.581 vagas, sendo
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1.056 delas designadas para as quatro linguagens da Arte juntas. Ainda segundo Alcântara (2020) este edital foi o mais completo e democrático já realizado pela Secretaria Estadual de Goiás pois, o total de vagas ofertadas para as quatro áreas artísticas representou cerca de 20% do edital, e abrangeu quase todos os munícipios do território goiano, além de oferecer vagas para as quatro áreas artísticas. Apesar disso, o edital previu apenas 92 vagas para a linguagem Teatro10 o segundo menor número de vagas de todo edital11 e o menor dentre as quatro linguagens artísticas, isso para todo o estado de Goiás. No final de julho de 202212, a SEDUC-GO abriu um novo concurso público para educação e presume a efetivação de 5.050 professores, este edital em 2024 ainda está em andamento, e ainda não realizou a convocação de nenhum professor de Arte. Porém, este concurso não resolve o déficit de profissionais da educação de todo o estado de Goiás, pois de acordo com o Observatório do Estado Social Brasileiro e o Observatório da Educação, a recomendação era “para atender todo o déficit da Rede Pública Estadual de Educação de Goiás. O total de vagas, distribuídas em funções que atendam a rotina escolar, não deve ser inferior ao total de 16.436” (MIRANDA et al, 2022, p. 16). Além disso, este edital prevê um total de 215 vagas para professores de Arte, sendo apenas 54 delas destinada à linguagem Teatro, isso para todo o território goiano. No que diz respeito aos arte-educadores, o número de vagas indicadas no certame atual não representa nem ¼ da quantidade de vagas do concurso realizado em 2010. Isso se torna mais grave se lembrarmos que a responsabilidade do Estado de Goiás, em sua maior parte, são as séries finais do ensino fundamental (6º ao 9º ano) e o Ensino Médio. Anos escolares que trabalham com professores não generalistas13, e sim professores formados em áreas específicas do componente curricular que lecionam. A LDB, em seu Art. 26, parágrafo 2º, sanciona (BRASIL, 1996): “§ 2° O ensino da arte, especialmente em suas expressões regionais, constituirá componente curricular obrigatório da educação básica”. E complementa em seu parágrafo 6º: “§ 6° As artes visuais, a dança, a música e o teatro são as
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10. Disponível em Anexo_I_vagas.pdf (ufg. br) 11. O menor número de vagas do edital foi destinado à área de instrutor de LIBRAS com apenas 58 para todo o estado. 12. Um destaque importante que deve ser levado em consideração é que o edital foi lançado estrategicamente com três meses de antecedência das eleições dos governos federais e estaduais. 13. Professores generalistas são aqueles que ministram todos os componentes curriculares, como ocorre nos anos iniciais do ensino fundamental, onde os professores pedagogos assumem os componentes curriculares.
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14. Disponível em https:// centrodeselecao.ufg. br/2016/concurso_pref gyn_educacao/editais/18edital-n-001-de-22-demar%C3%A7o-de-2016. html 15. Disponível em ANEXO_II_PLANO_ CARGOS_SALARIOS_ PROFESSORES_ EDUCACAO_PREFEITURA_ GYN_2016_Retificado_ Aditivo_1_e_2.pdf (ufg.br) 16. Disponível em https:// centrodeselecao.ufg. br/2022/concursogoiania/ sistema/arquivos/ Anexos_2022/ ANEXO_II_CARGOS_ VAGAS_REQUISITOS_ ATRIBUI%C3%87%C3% 95ES_retificado_3aditivo. pdf
linguagens que constituirão o componente curricular de que trata o § 2º deste artigo” (BRASIL, 1996). Se o Ensino da Arte é obrigatório em toda a Educação Básica, como prevê a LDB de 1996, quem está ministrando essas aulas de Arte no Estado de Goiás, visto que a Secretaria Estadual está a mais de doze anos sem efetivar arte-educadores? Esse fato se torna mais preocupante se levarmos em consideração que a Universidade Federal de Goiás possui curso específico de licenciatura nas quatro linguagens da arte previstas na LDB, formando assim, todos os anos, turmas de professores de Artes Visuais, Dança, Música e Teatro, habilitados para ingressarem na carreira docente. À vista disso, outro questionamento que podemos fazer é: qual método o Estado vem adotando para garantir plano de carreira aos profissionais da educação? Visto que passa mais de dez anos sem promover concurso aos professores que contemple todas as áreas do conhecimento. Refletindo sobre isso, se averiguarmos a situação do município de Goiânia, a realidade não é muito diferente. Vejamos. Analisaremos os dois últimos concursos para professores realizados pela Secretaria Municipal de Educação de Goiânia (SME), o penúltimo concurso promovido por esta secretaria ocorreu em 201614, o edital possuía 4.725 vagas, mas apenas 514 foram reservadas aos professores. No tocante ao componente Arte, foram indicadas vagas de forma separada para Artes Visuais, Dança, Música e Teatro, totalizando 18 vagas para todas as linguagens artísticas juntas, sendo apenas 2 destinadas para o componente Teatro15, número irrisório perto da quantidade de vagas oferecidas aos demais campos do conhecimento. O último concurso realizado pela SME, aconteceu em 2022, e possuía 1.379 vagas, sendo designado o total de 9 vagas16 para as quatro linguagens artísticas juntas, ou seja, o Município passou seis anos sem efetivar arteeducadores, para após esse período, realizar um concurso com quantidade de vagas totalmente desproporcionais ao déficit de arte-educadores da cidade e que não irá atender todas as demandas das escolas municipais de Goiânia, gerando futuramente a necessidade de realização de um
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novo processo seletivo para contrato temporário. É importante fazermos alusões a estes fatos para compreendermos o processo de precarização do trabalho docente, principalmente no que se refere aos arte-educadores, pois a Arte e o Teatro, na educação, ainda percorrem uma trajetória de luta para o seu reconhecimento como área do conhecimento.
3 \ A TRAJETÓRIA DA ARTE E DO TEATRO NA EDUCAÇÃO Faremos aqui um exercício de retornarmos ao passado, recorrendo ao estudo e análise da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional e suas diversas atualizações, para que possamos compreender a trajetória da Arte e do Teatro na educação, pois esta sofre muitas mudanças ao longo de sua história. A primeira versão da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) foi sancionada em 20 de dezembro de 1961 N° 4.024/61, mencionava de forma rasa o ensino da arte, como podemos observar a seguir conforme colocado na lei: “Parágrafo único. Os sistemas de ensino poderão estender a sua duração até seis anos, ampliando, nos dois últimos, os conhecimentos do aluno e iniciando-o em técnicas de artes aplicadas, adequadas ao sexo e à idade” (BRASIL, 1961). Assim, podemos perceber que, logo na primeira versão da LDB, o ensino da arte era disposto de forma não obrigatória na grade curricular, ficando a cargo da escola optar ou não pela sua oferta, destinando-a apenas de forma estendida a estudantes nos anos finais do ensino primário. Além da LDB de 1961 promover o ensino da Arte de forma superficial, ela coloca que sua prática deve se adequar ao “sexo”, e nos revela um preconceito que circunda o fazer artístico dentro e fora da escola, dando a entender que as experiências proporcionadas através da arte devam ser destinadas apenas a meninas, evidenciando estereótipos de gênero em relação à arte e que denuncia a sociedade da época, mas que ainda ecoa nos tempos atuais. Desta forma, a LDB de 1961 acaba excluindo a importância da arte para todos e todas em seus diferentes estágios da
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17. Atriz e Professora da Licenciatura em Teatro da Escola de Música e Artes Cênicas da Universidade Federal de Goiás (UFG). Doutora em Performances Culturais - UFG (2020). Autora, com Robson Corrêa de Camargo, do livro Os Jogos Teatrais de Viola Spolin - Uma Pedagogia da Experiência (Goiânia: Kelps, 2017). Integrou o Grupo de Trabalho Arte/Teatro de escrita do Documento Curricular para Goiás (2016-2019). Informações coletadas do Currículo Lattes em 30/04/2022.
vida: crianças, adolescentes e adultos. Aspecto que é colocado em debate pela autora Karine Ramaldes17 em seu artigo Ensino da Arte: qual ensino queremos? no Brasil não existia qualquer espécie de programa de arte para meninos no final do século XIX e início do XX, havia sim um grande preconceito em relação ao trabalho manual para homens da aristocracia. Somente em meados de 1870-1880, os homens começaram a trabalhar com a arte a partir do desenho geométrico, ou seja, ainda com ponderações e limitações. Todo esse preconceito está refletido na Lei de 1961, que reforça sobre “tipos” diferenciados de arte para meninos e para meninas. (RAMALDES, 2017, p. 77) Ainda em concordância com Ramaldes (2017), o título de Artes Aplicadas, reforça, com essa nomenclatura, que o ensino da Arte se aplica somente ao ensino das artes visuais e técnicas de artesanato. É importante evidenciar este fato para que se questione os rastros que a LDB de 1961 deixou na trajetória da arte educação, por exemplo, o falso legado de que a Arte Visual a única linguagem artística obrigatória na grade curricular das escolas. Após dez anos em vigor, a LDB de 1961 foi revogada e substituída pela Lei de Diretrizes e Bases N° 5.692/71, sancionada em 11 de agosto de 1971, na qual, após muitas lutas, o ensino da arte passa a ser incluído de forma obrigatória nos currículos de 1° grau (Ensino Fundamental) e 2° grau (Ensino Médio) com a nomenclatura de Educação Artística, conforme estabelecido na Lei descrita a seguir: “Art. 7º Será obrigatória a inclusão de Educação Moral e Cívica, Educação Física, Educação Artística e Programa de Saúde nos currículos plenos dos estabelecimentos de 1º e 2º graus”. (BRASIL, 1971)
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Um marco histórico importante que deve ser ressaltado é que entre os anos de 1961 e 1971 ocorreu a ruptura da norma constitucional brasileira, e instaurou-se no ano de 1964 o período da Ditadura Militar no Brasil, fato que ocorreu também em diversos países da América Latina. O Golpe Militar foi uma forma antidemocrática pela qual os militares se organizaram para tomar o controle do país, com apoio de uma parte conservadora da população e de também empresários, a fim de barrar grandes reformas sociais propostas pelo então presidente João Goulart (1919-1976), como ressalta o autor Marcio Sotelo Fellipe18: Goulart propôs as chamadas “reformas de base”, que apenas modernizariam o Brasil. Reforma agrária, que a França burguesa havia realizado 200 anos antes; reformas bancárias, fiscal, urbana, administrativa, universitária; controle de investimentos estrangeiros; direito de voto para os analfabetos e baixas patentes das Forças Armadas. Nada estranho a um regime burguês, nada que não se encontrasse em Estados não fascistas. (FELLIPE, 2017, p. 92) Destarte, o então eleito presidente João Goulart foi afastado do seu cargo e quem assumiu o posto foi o General Castelo Branco (1897-1967). A ditadura foi um período marcado pelo autoritarismo, repressão e perseguição inclusive a artistas, professores, estudantes e também às escolas e universidades, a ditadura só teve fim em 1985, com a eleição de Tancredo Neves (1910-1985) e seu vice José Sarney (1930-), que só aconteceu graças a grandes movimentos por parte da sociedade em prol da democracia. Fazer menção a esse fato é relevante para que possamos compreender a conjuntura política em que a Arte é inserida de forma obrigatória na educação e, para além disso, devemos entender também a organização da educação ofertada na rede pública em 1971, pois a ditadura em vigor
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18. Mestre em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo – USP. É professor da Escola Superior da Procuradoria-Geral do Estado de São Paulo (PósGraduação “lato sensu”), da qual foi diretor de 2007 a 2009. Procurador-Geral do Estado de São Paulo (1995-2000). Membro da Comissão da Verdade da Ordem dos Advogados do Brasil. É membro da Comissão da Verdade da OAB Federal. Foi um dos peticionários na denúncia à Comissão de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos CIDH/OEA, no caso Pinheirinho, em 2012. (FELLIPE, 2017, p. 89)
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19. Professora de pósgraduação da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo – ECA, Ana Mae Barbosa é uma das principais referências brasileiras em arte-educação e, embora já aposentada. Desenvolveu, influenciada diretamente por Paulo Freire, o que chamou de abordagem triangular para o ensino de artes, concepção sustentada sobre a contextualização da obra, sua apreciação e o fazer artístico. A pesquisadora foi, também, a primeira a sistematizar o ensino de arte em museus, quando dirigiu o Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo – MAC. 20. Professor e pesquisador aposentado da Universidade Federal do Maranhão (UFMA) desde 1992, com atuação nos cursos de Licenciatura em Teatro, Mestrado Interdisciplinar Cultura e Sociedade e Mestrado Profissional em Artes. Informações coletadas do Lattes em 27/04/2022
também utilizava a educação como ferramenta para promover seus ideais ufanistas e autoritários. À vista disso, as instituições de ensinos regulares eram divididas em 1° grau (Ensino Fundamental) e 2° grau (Ensino Médio) que formavam a educação básica da época, e nesse período a educação assumiu um caráter profissionalizante, com finalidade de preparar os educandos para o mercado de trabalho já no ensino médio. Porém, o ensino oferecido na escola não conseguia se nivelar ao que era exigido no mercado de trabalho, e, na outra ponta, a educação escolar fornecida, também não preparava os jovens para o ensino superior. Desta maneira, a arte inserida sem preparação nenhuma dos professores, da escola e das secretarias, servia como um simples mascaramento de humanização do ensino no período da ditadura como explicita Ana Mae Barbosa19: Hoje pode parecer estranho que uma ditadura tenha tornado o ensino da arte obrigatório em escolas públicas. Contudo, tratava de um mascaramento humanístico para uma lei extremamente tecnicista, a 5692, que pretendia formar jovens na Escola média. Como as escolas continuaram pobres, sem laboratórios que se assemelhassem aos que eram operados nas indústrias, os resultados para aumentar a empregabilidade dos jovens foram nulos. (BARBOSA, 2011, p. 10) É nesse contexto que o ensino da Arte ganha seus primeiros espaços de forma mais efetiva na educação escolar, porém traz consigo várias adversidades, por exemplo a polivalência, ou seja, um único professor ficaria a cargo de ministrar as quatro linguagens da arte: Artes Plásticas, Artes Cênicas (dança e teatro), Desenho e Música, conforme afirmado por Arão Paranaguá de Santana20: [...] obrigatoriedade da educação artística no ensino de 1º e 2º graus, implementada por lei
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federal em 1971, prevendo-se a modalidade artes cênicas, para ser ministrada de maneira polivalente junto a música, artes plásticas e desenho, durante cinquenta minutos por semana, o que se tornou, na experiência concreta da sala de aula, algo de difícil realização (SANTANA, 2002, p. 248) Outrossim, a Arte transcrita na lei foi inserida na escola como simples atividade21 e não como componente curricular, dando um tom muito raso, superficial e breve ao Ensino da Arte. No que diz respeito à docência das Artes Cênicas, é importante ressaltar que o Teatro e a Dança, na escola, só tinham espaço de atuação e reconhecimento em datas comemorativas e festas, como corroboram os Parâmetros Curriculares Nacionais da Educação (PCNs)22: As atividades de teatro e dança somente eram reconhecidas quando faziam parte das festividades escolares na celebração de datas como Natal, Páscoa ou Independência, ou nas festas de final de período escolar. O teatro era tratado com uma única finalidade: a da apresentação. As crianças decoravam os textos e os movimentos cênicos eram marcados com rigor. (PCN-Arte, 1997, p. 23) Tendo isso em vista, podemos perceber que o ensino da Arte, e principalmente a linguagem das Artes Cênicas, da forma que era desenvolvida no currículo das escolas, não tinha um caráter pedagógico, o que minimizava a sua importância como área do conhecimento e desconsiderava o seu papel na formação do educando como respalda Ramaldes em sua tese de doutorado: Foi nesse panorama, da ditadura militar, que a LDB 1971 foi promulgada, e o ensino da arte na escola acabou assumindo um caráter tecnicista de simples atividades artísticas, descontextualizadas
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21. Em 1971, pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, a arte é incluída no currículo escolar com o título de Educação Artística, mas é considerada “atividade educativa” e não disciplina. (PCN-Arte, 1997, p. 26) 22. Os PCNs são diretrizes elaboradas pelo Governo Federal no ano de 1997, sem caráter normativo.
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e desconexas, sem conteúdos aprofundados e planejamento adequado que visasse a formação artística e estética do sujeito. Ao teatro ficou reservado o espaço de ensaiar peças teatrais para datas comemorativas e cívicas, sem nenhum aprofundamento no processo de ensino/ aprendizagem da linguagem teatral. (RAMALDES, 2020, p. 70) Além disso, é pertinente ressaltar que, em 1971, ainda não existiam cursos de graduação que formavam professores para lecionar a então chamada Educação Artística, gerando vários transtornos, que ainda hoje permeiam o ensino da arte. Ainda segundo Ramaldes: A obrigatoriedade do ensino da arte, implementada pela lei, surgiu antes da formação de professores específicos da área, o que causou vários problemas, dentre eles: a criação de inúmeras licenciaturas curtas polivalentes de apenas 2 anos de duração; professores de outras áreas assumindo o ensino da arte na escola; a proliferação de um ensino/ aprendizagem do teatro na educação básica pouco ou nada consistente; o reforço do teatro na escola como simples atividade sem conteúdos próprios. (RAMALDES, 2020, p. 67) Levando isso em consideração, podemos afirmar que as mudanças promovidas através da reforma na Lei de Diretrizes e Base da Educação Nacional de 1971 para o ensino regular deixou rastos e preconceitos que ainda hoje permeiam o ensino de teatro. Porém, é importante evidenciar também que ela foi o pontapé inicial para a criação dos cursos superiores de licenciatura em Arte. Assim, devemos entender as alterações sofridas pela educação básica reverberar também no ensino superior e posteriormente no trabalho docente.
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Por conseguinte, em 1973, foram criados, no Brasil, os primeiros cursos de graduação de licenciatura para a formação de educadores em Arte. A capacitação desses professores polivalentes acontecia da seguinte maneira: havia os cursos de licenciatura que formavam professores em apenas dois anos (sob título de Licenciatura Curta) nas quatro linguagens artísticas, sendo elas Artes Plásticas, Artes Cênicas (dança e teatro), Desenho e Música, e assim já eram considerados aptos para lecionar em todas as séries do Primeiro Grau (Ensino Fundamental) nas escolas. Isto foi algo extremamente prejudicial para a arte/educação, pois os profissionais recém formados eram jogados à própria sorte na sala de aula, totalmente desprovidos dos conhecimentos metodológicos necessários, tanto no campo das artes, como também no campo educacional. Esses profissionais tentavam se equilibrar em quatro linguagens da arte com conceitos amplos, particulares e bastante divergentes entre si, e além disso, sem um material pedagógico adequado, pois ainda não existiam, no Brasil, muitas pesquisas e referenciais teóricos sobre o ensino da arte e principalmente de teatro no contexto escolar, que fossem capazes de subsidiar a prática educacional. Ademais, o professor poderia optar por uma formação continuada de mais dois anos em que se habilitaria em uma das quatro linguagens artísticas (sob título de Licenciatura Plena), o que também não preparava um educador de forma qualificada. Assim que formados, os professores que optassem por se profissionalizar em uma linguagem na Licenciatura Plena ficariam a cargo de ministrar aulas tanto no Primeiro Grau (Ensino Fundamental) quanto no Segundo Grau (Ensino Médio). Podemos observar isso com mais clareza através do Art. 30 da Lei 5692/71 que se refere especialmente à formação dos professores. Art. 30. Exigir-se-á como formação mínima para o exercício do magistério: a) no ensino de 1º grau, da 1ª à 4ª séries, habilitação específica de 2º grau;
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b) no ensino de 1º grau, da 1ª à 8ª séries, habilitação específica de grau superior, ao nível de graduação, representada por licenciatura de 1º grau obtida em curso de curta duração; c) em todo o ensino de 1º e 2º graus, habilitação específica obtida em curso superior de graduação correspondente a licenciatura plena. § 1º Os professores a que se refere a letra a poderão lecionar na 5ª e 6ª séries do ensino de 1º grau se a sua habilitação houver sido obtida em quatro séries ou, quando em três mediante estudos adicionais correspondentes a um ano letivo que incluirão, quando for o caso, formação pedagógica. § 2º Os professores a que se refere à letra b poderão alcançar, no exercício do magistério, a 2ª série do ensino de 2º grau mediante estudos adicionais correspondentes no mínimo a um ano letivo. § 3° Os estudos adicionais referidos nos parágrafos anteriores poderão ser objeto de aproveitamento em cursos ulteriores. (BRASIL, 1971) Desta maneira, podemos perceber que a implementação da LDB de 1971 gerou um movimento significativo na sociedade, no que diz respeito a concepção da arte/educação no Brasil, tanto no ensino regular quanto no ensino superior, e foi muito importante para as mudanças ocorridas nos anos subsequentes. Apesar de todas as adversidades já mencionadas, esta LDB foi o mote que impulsionou posteriormente a concepção de estudos e pesquisas acerca da pedagogia teatral ainda escassa em 1971. O período da década de 1980 foi marcado por grandes transformações sociais no Brasil, houve em 1985 o fim da ditadura militar, e em 1988 a promulgação de uma nova Constituição Federal, sendo uma época de muitas transições e lutas em prol da política nacional, com todo o processo de redemocratização do País.
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Para a arte/educação não foi diferente. Houve um crescimento significativo na produção de conhecimento na área com a publicação de materiais teóricos, estudos acadêmicos e avanço acerca da formação dos profissionais de educação em arte. Como afirma Ramaldes (2020), esse avanço se deu principalmente após a publicação da obra Improvisação para o teatro, de Viola Spolin, traduzida por Ingrid Dormien Koudela e Eduardo Amos, em 1979 e impactou significativamente o ensino da arte no Brasil. É nesse período, de várias mudanças sociais, de um Brasil já em regime democrático, que, nos anos de 1990, aflora um grande desenvolvimento em relação à pesquisa sobre arte/educação. Assim, a LDB de 1971 deixa de vigorar no dia 20 de dezembro de 1996, dia em que foi sancionada a nova lei n° 9.394, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação. Graças ao empenho e a mobilização advinda de décadas de lutas dos arte-educadores, a Arte passa a ser inserida de forma obrigatória como componente curricular da Educação Básica. Esta é a LDB vigente no Brasil atualmente, mas que sofre algumas atualizações ao longo desse período, inclusive na forma que o ensino da Arte é visto e interpretado. A redação original do texto da LDB de 1996 sobre o ensino da arte, designa que: Art. 26. Os currículos do ensino fundamental e médio devem ter uma base nacional comum, a ser complementada, em cada sistema de ensino e estabelecimento escolar, por uma parte diversificada, exigida pelas características regionais e locais da sociedade, da cultura, da economia e da clientela. § 2º O ensino da arte constituirá componente curricular obrigatório, nos diversos níveis da educação básica, de forma a promover o
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23. Atualmente a Base Nacional Comum Curricular faz parte dos documentos normativos obrigatórios de toda a educação básica (desde o ensino infantil ao ensino médio). A BNCC tem a função de unificar a nível nacional os currículos escolares definindo os conhecimentos e conteúdo a serem trabalhados na escola, tanto na rede particular quanto na rede pública.
desenvolvimento cultural dos alunos. (BRASIL, 1996, grifos meus) A implementação dessa nova lei foi muito importante, pois como pode se observar a LDB, já em 1996, faz menção à criação de uma Base Nacional Comum Curricular (BNCC)23, e além disso regulamenta que o componente curricular Arte seja obrigatório em todos os níveis da educação básica. Esse aspecto é relevante, e merece ser enfatizado, como relata Ramaldes: Pela primeira vez, na LDB, a Arte é apresentada num patamar mais elevado, ou seja, como componente curricular, lado a lado com as outras áreas do conhecimento. Fruto da organização que vinha se estabelecendo em relação ao ensino da arte, especialmente desde os anos 1980, com congressos, federações e estudos sistematizados na área, a inclusão da Arte, como componente curricular obrigatório na LDB 1996, foi resultado da luta intensa das organizações de professores. (RAMALDES, 2020, p. 78) No momento em que a LDB de 1996 é sancionada, ainda não é especificado a quais linguagens da arte a referida lei se aplica, segundo professora Alcantara (2020) este vários gera vários conflitos, principalmente em editais de concursos públicos para professores de Arte, exigindo apenas o requisito da licenciatura plena em uma das quatro linguagens artísticas e oferecendo vagas compiladas a essas linguagens, ocasionando em uma compreensão equivocada de que o ensino da arte ainda era polivalente, como ocorreu no concurso de 2003 em Goiás. Somente no ano de 2016, a partir da lei nº 13.278 de 2016, que altera o parágrafo 6º do art. 26 da LDB, temos pela primeira vez a especificação do ensino do Teatro na LDB, dando a seguinte redação: “§ 6° As artes visuais, a dança, a música e o teatro são as linguagens que constituirão o
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componente curricular de que trata o § 2° deste artigo”. Esse foi mais um passo importante para o ensino da arte e do teatro, pois marca o território das diferentes linguagens artísticas. Mesmo com a reforma da lei 13.278, ainda não é claro de qual maneira o ensino da Arte deve ser trabalhado na escola, também, não é especificado se constarão as quatro linguagens no currículo de cada instituição escolar, e tão pouco é discutido se os estudantes experenciarão cada uma delas em sua trajetória escolar. Contudo, o nosso contexto escolar atual já prediz uma problemática, pois geralmente encontramos nas instituições de ensino a execução de apenas uma das linguagens evidenciadas. Ou seja, ainda é possível fazer leituras equivocadas e ambíguas de como deve-se atender o parágrafo § 2º do art. 26 da LDB. Além disso, ainda hoje encontramos rastros da polivalência no contexto escolar, e muitas instituições cobram de um único professor a obrigação de ministrar aulas das quatro áreas artísticas. Para mais, a obrigatoriedade do ensino da Arte ainda não é suficiente para a garantia da existência deste componente dentro da escola, principalmente, quando colocamos em pautas outras linguagens além das Artes Visuais. Desta forma, evidencio a importância de repensar o espaço da Arte na educação e no contexto escolar, para que essa seja reconhecida como campo do conhecimento, da mesma forma que os demais componentes da grade curricular. É importante ressaltar a relevância de ter professores com formação específica em Arte, pois, somente assim haverá o desenvolvimento pleno deste componente e a sua realização de forma efetiva.
4 \ CONSIDERAÇÕES FINAIS A partir das problemáticas que se estabelecem no cerne das discussões deste trabalho foi possível conferir que a Arte e o Teatro ainda encontram lacunas para se estabelecerem efetivamente enquanto campo do conhecimento na educação escolar. Essas lacunas são frutos de anos da
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negligência do poder público com as artes e com a própria educação, colocando, muitas vezes, os interesses do mercado acima dos processos de humanização e da formação cidadã. A retrospectiva histórica apresentada se faz necessária para compreendermos como as políticas adotadas pelo Estado vêm interferido diretamente nos processos pedagógicos escolares e definem a função que a escola terá na sociedade. Como um reflexo disso, vemos que as políticas educacionais têm se voltado para dar cada vez menos espaços aos componentes que buscam instigar a sensibilidade, a imaginação, a educação estética e o senso crítico. Percebe-se que o ensino da Arte, uma das principais pontes para esses saberes e experiências, vai sendo progressivamente colocado em segundo plano nos projetos pedagógicos. Diante do que foi exposto, levanto as seguintes problematizações: até quando os estados e munícipios vão sucatear e marginalizar o trabalho docente? Quais estratégias podem ser adotadas para que o ensino de arte se efetive como área do conhecimento, e seja tratado como tal? Tendo como perspectivas as atuais reformas da educação, qual a função atual da arte na escola? Quais estratégias os professores podem adotar para reivindicação do seu espaço dentro da escola? Mais do que oferecer respostas, essa pesquisa se apresenta como provocadora de questionamentos.
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\ REFERÊNCIAS BARBOSA, Ana Mae (org.). Ensino da arte: memória e história. 1ª Edição. São Paulo: Perspectiva, 2011. 368 páginas. ALCANTARA, L. M. Ciranda na arte, construindo performances, afetos e liminaridades. Experiências arte/educativas na rede pública do Estado de Goiás (2009-2016). Tese de doutorado. Orientador: Robson Corrêa de Camargo. Programa de Pós-graduação em Performances Culturais, Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 2020. Disponível em: https:// repositorio.bc.ufg.br/tede/handle/tede/10950 RAMALDES, Karine. A solução de problemas como potência prática na performance dos jogos teatrais: de John Dewey à Viola Spolin. Tese de doutorado. Orientador: Robson Corrêa de Camargo. Programa de Pós-graduação em Performances Culturais, Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 2020. Disponível em: https://repositorio.bc.ufg.br/tede/ handle/tede/11666 RAMALDES, Karine. Ensino da Arte: qual ensino queremos? Revista Educação, Arte e Inclusão, v.13, n.2, 2017. Disponível em: https://www. revistas.udesc.br/index.php/arteinclusao/article/view/9114 FELIPPE, Márcio Sotelo. Ditadura militar, crimes contra a humanidade e a condenação do Brasil pela Corte Interamericana De Direitos Humanos. Revista Dikè–XVIl–Publicação Semestral, Revista Jurídica do Curso de Direito da UESC, 2017. SANTANA, Arão Paranaguá de. Trajetória, avanços e desafios do teatroeducação no Brasil. Sala Preta, v. 2, p. 247-252, 2002. MIRANDA, Amanda Fernandes de. et al. Déficit de profissionais da Educação da Rede Pública Estadual de Goiás. Observatório do Estado Social Brasileiro. Observatório da Educação. APG-UFG: Goiânia, 2022. Disponível em: http://obsestadosocial.com.br/obs/
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wp-content/uploads/2022/04/D%C3%A9ficit-de-profissionais-daeduca%C3%A7%C3%A3o_RELATORIO.pdf Agência Senado. Constituições brasileiras. Senado notícias, 2021. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/noticias/glossario-legislativo/ constituicoes-brasileiras Acesso em 27 de set. de 2021. BRASIL. Constituição Política do Império do Brasil. Carta de Lei de 25 de Março de 1824. Manda observar a Constituição Politica do Imperio, offerecida e jurada por Sua Magestade o Imperador. Casa Civil- Subchefia para assuntos jurídicos. Império do Brazil, Rio de Janeiro, 22 abr. 1824. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/ constituicao24.htm Acesso em 26 de jan. de 2022. BRASIL, Constituição da República Federativa do Brasil: texto constitucional promulgado em 5 de outubro de 1988, compilado até a Emenda Constitucional no 105/2019. – Brasília: Senado Federal, Coordenação de Edições Técnicas, 2020. BRASIL. Lei nº 4.024, de 20 de dezembro de 1961. Fixa as diretrizes e bases da educação nacional. Lei de Diretrizes e Bases da Educação-LDB. Brasília, DF, 1961. BRASIL. Lei nº 5.692, de 11 de agosto de 1971. Fixa diretrizes e bases para o ensino de 1º e 2º graus, e dá outras providências. Diário Oficial da União, 1971. BRASIL. Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Diário Oficial [da República Federativa do Brasil], Brasília, DF, v. 134, n. 248, 23 dez. 1996. Seção 1, p. 27834-27841. BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais: arte/Secretaria de Educação Fundamental. – Brasília: MEC / SEF, 1998.
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\ Coletivo Arame Farpado: Chacotas negras LGBTQIA+ como fuga das criações de dor João Zabeti João Pedro Rodrigues (João Zabeti), Rio de Janeiro (RJ). Bixa-preta. Graduado em licenciatura em teatro pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio). É ator, diretor, produtor, comunicador e um dos fundadores do Coletivo Arame Farpado. Formado por artistas periféricas e faveladas majoritariamente negras do Rio de Janeiro, o coletivo tem como foco criações teatrais e audiovisuais que, por meio do humor, da chacota e do papo reto, tensionam o real e o ficcional como forma de recriar realidades periféricas, faveladas, pretas e LGBTQIA+. joaozabeti@gmail.com
retorne ao sumário
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FICHA TÉCNICA Instituição Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio) Tipo do curso Graduação Nome do curso licenciatura em teatro Período do curso 2016-2023 Estado Rio de Janeiro Título do trabalho Coletivo Arame Farpado: Chacotas Negras LGBTQIA+ como fuga das criações de dor Nome do autor João Pedro Rodrigues (em arte: João Zabeti) Nome da orientadora Professora doutora Isabel Penoni Número de páginas 20
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\ coletivo Arame Farpado: Chacotas negras LGBTQIA+ como fuga das criações de dor
\ RESUMO Este trabalho de conclusão de curso investiga a importância da chacota como forma de desobedecer a centralidade da dor nas criações artísticas negras, LGBTQIA+. Utilizando conceitos como oralitura, tempo espiralar e escrevivência, e tendo como princípio a Ancestralidade evoco para a escrita minhas ancestrais e minha corpa bixa-preta, periférica, do Rio de Janeiro para propor a utilização da chacota como forma de subversão, (re) existência e vingança em meio a uma sociedade forjada no racismo e na LGBTQIA+ fobia. Atualmente membro do Coletivo Arame Farpado, trago como objetos de análise quatro criações do Coletivo: o espetáculo Arame Farpado, o Projeto ÊXODO, o Reality Canceladas e o Reality Canceladas 2: Crias da Zona Oeste. Palavras-chaves: Chacota. LGBTQIA+. Ancestralidade.
\ RESUMEN Este trabajo de fin de carrera explora la importancia de la mofa como medio para desafiar la centralidad del dolor en las creaciones artísticas negras, LGBTQIA+. Basándome en conceptos como la oralitura, el tiempo espiral y la escritura de vida, y guiado por el principio de la Ancestralidad, invoco a mis ancestros y a mi cuerpo negro, queer y periférico de Río de Janeiro para abogar por el uso de la mofa como una forma de subversión, (re)existencia y venganza en medio de una sociedad forjada en el racismo y la fobia LGBTQIA+. Como miembro actual del Colectivo Arame Farpado, presento para análisis las creaciones y metodologías experimentadas en nuestro trabajo inaugural: el espectáculo Arame Farpado, un trampolín para el nacimiento de nuestras futuras creaciones. Palabras clave: Mofa. LGBTQIA+. Ancestralidad.
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\ ABSTRACT This undergraduate thesis explores the importance of mockery as a means to defy the centrality of pain in black, LGBTQIA+ artistic creations. Drawing on concepts such as orality, spiral time, and life-writing, and guided by the principle of Ancestry, I evoke my ancestors and my black, queer, peripheral body from Rio de Janeiro to propose the use of mockery as a form of subversion, (re)existence, and revenge in the midst of a society forged in racism and LGBTQIA+ phobia. As a current member of the Arame Farpado Collective, I bring forth for analysis the creations and experimental methodologies experienced in our inaugural work: the Arame Farpado show, a stepping stone for the birth of our future creations. Keywords: Mockery. LGBTQIA+. Ancestry.
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\ coletivo Arame Farpado: Chacotas negras LGBTQIA+ como fuga das criações de dor
ENCRUZILHADA “ÍÁHAHAH Você quer saber sobre a risada, moço? Onde tem risada, pra onde os espíritos ruins vão? Onde tem risada, onde tem alegria o mal não chega, moço. É por isso que eu chego e dou risada, pra mostrar que aqui existe o bem. Exú e Pombagira veio pra rir, dançar, gargalhar e festejar.” – Maria Padilha das 7 Encruzilhadas1
1 \ INTRO PLAY: GLORIA GROOVE - A QUEDA [Cabeça]2 Apresentadora: 2023. Um Coletivo artístico. 6 integrantes: 4 Negras e 2 branquinhas periféricas e faveladas. 6 anos de trajetória. 1 espetáculo icônico e 1 espetáculo falido. Cerca de 6 criações audiovisuais, sendo 2 edições de um reality show e inúmeras tentativas de alcançar o streaming fracassadas. Caju, Maré, Palmares, Realengo, Santa Cruz, São Gonçalo e URCA: um Rio diverso, que coisa mais linda, mais cheia de graça! Tudo isso agora em 1 TCC. Close, gongação e muita chacota! Você está com tempo pra coexistir? A introdução deste TCC foi reescrita muitas vezes. Desculpa já de cara te perturbar com essa informação. Mas não posso omitir que outras vinte versões foram escritas pensando em abordagens diferentes para este Trabalho de Conclusão de Curso. Inicialmente, o trabalho abordaria apenas a fuga das narrativas de dor através da chacota dentro do processo de criação do Reality Canceladas, criação mais recente do Coletivo Arame Farpado, coletivo de investigação teatral e audiovisual do qual sou um dos fundadores e faço parte há cinco anos. Felizmente, após ser tomado por uma histeria ao ter contato, finalmente, ao final de uma graduação em teatro com os conceitos de tempo espiralar e de oralitura sistematizados pela Queen dos Congados Leda Martins (2021), me sinto convocado por tais conceitos e pela própria Leda ao vê-la falar publicamente sobre
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1. Trecho de conversa gravada na memória entre mim e a pombagira Maria Padilha das 7 Encruzilhadas através da corpa de minha mãe carnal Dofona Elisabete D’Oxumaré em algum momento do ano de 2023 enquanto finalizava o meu Trabalho de Conclusão de Curso na UNIRIO. 2. Na escrita de um roteiro jornalístico ou de apresentação, a “cabeça” é o texto que chama a reportagem (o VT), é uma introdução à matéria que virá. 3. Encontro realizado no auditório Paulo Freire, localizado no prédio do CCH da UNIRIO e proporcionado pela quinta edição do SESC Entredança
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4. Phellipe Azevedo é Diretor, produtor, ator, roteirista, educador e cria do Caju. É formado em Ensino das Artes Cênicas pela UNIRIO e atualmente é mestrando pelo PPGAC da UFRJ. Co-fundou o Coletivo Arame Farpado, dirigiu e assinou a organização dramatúrgica do espetáculo “Arame Farpado” (2017/2022), vencedor do 8º Prêmio Questão de Crítica e do espetáculo O Clássico Êxodo, do Projeto Êxodo (2020) do Coletivo Arame Farpado. Co-idealizou, co-produziu, co-editou e co-dirigiu as 2 edições do Reality Show CANCELADAS (2020/2021). Assina a co-direção, co-roteiro e co-produção co-edição do curta “LAIS E PETE” (2021), o projeto foi convidado pelo Itaú Cultural para participar do festival “Cena Agora”. Foi um dos roteiristas e montador da websérie “Placa Mãe” (2020); Co-produziu e foi montador da websérie “Quintal C11” (2020 - 2021). Pesquisa principalmente os temas: favela, processo colaborativo e criação artística e foi professor das disciplinas interpretação e montagem teatral na Escola Sesc de Artes Dramáticas - RJ (2022).
seu livro “Performances do Tempo Espiralar” na aula Magna “Corpos bailarinos, saberes em trânsito”3, a abordar as vidas e memórias negras faveladas e periféricas a partir do princípio de ancestralidade - “princípio mater” para as culturas e visões de mundo africanas e um dos cernes que envolvem essa escrita. Consequentemente, me vi convocado, ainda, a escrever mais sobre os processos metodológicos desenvolvidos ao longo da trajetória do coletivo Arame Farpado, em suas buscas por legitimação nos espaços artísticos, suas ocupações territoriais, trânsitos pela cidade e suas performances como elementos estruturais das criações do coletivo a partir da minha experiência enquanto bixa-preta de Realengo, Zona Oeste do Rio de Janeiro. Ainda sobre Ancestralidade, Leda nos introduz dizendo ser o princípio [...] que inter-relaciona tudo o que no cosmos existe transmissor da energia vital que garante a existência ao mesmo tempo comum e diferenciada de todos os seres e de tudo no cosmos, extensão das temporalidades curvilíneas, regente da consecução das práticas culturais, habitadas por um tempo não partido e não comensurado pelo modelo ocidental da evolução linear e progressiva, um tempo que não elide a cronologia, mas que a subverte. Um tempo curvo, reversível, transverso, longevo e simultaneamente inaugural, ‘sophya e uma cronosofia em espirais; (MARTINS, 2021, p. 42) Tendo essa cronosofia como referência, espera-se analisar os processos de criação do Coletivo não apenas em ordem sequencial, mas também, por exemplo, através do aforismo “Exu matou um pássaro ontem com uma pedra que só jogou hoje” ou, melhor dizendo, eu jamais teria como falar apenas do processo de criação do Reality Canceladas sem me debruçar sobre a pedra jogada no pássaro de ontem bem no início do processo de criação do espetáculo Arame Farpado, quando ainda não nos entendíamos enquanto coletivo, quando nossos encontros se tratavam do TCC do Phellipe Azevedo4, branquinho do Caju e do anseio
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\ coletivo Arame Farpado: Chacotas negras LGBTQIA+ como fuga das criações de dor
de 4 estudantes negras e negros por demarcar suas vidas em um espaço hostil às ciências e tecnologias africanas, originárias e diaspóricas. Mais ainda, eu não poderia falar sobre a experiência do Arame Farpado sem
5. Abreviação de “best friend” do inglês “melhor amiga”
deixar perdida, tenho alguns combinados contratuais a fazer com você,
6. Coordenadora e docente do Programa de Pós-graduação em Artes da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), professora associada do Departamento de Ensino da Arte e Cultura Popular (DEACP), na mesma universidade. Docente permanente do Programa de Pós-graduação em Artes Cênicas (UFRN) e colaboradora do Programa de Pós-graduação em Teatro (UDESC). Ph.D. em Artes Cênicas (UFRN) e Antropologia (USP). Doutora e Mestra em Artes da Cena (PPGAC/ UNICAMP). Pesquisadora -líder do grupo MOTIM – Mito, rito e cartografias feministas nas artes (CNPq). Atriz, encenadora, diretora, dramaturga e escritora.
querida leitora, caso ainda não tenha entendido toda essa marmota que
7. “Jogo” em inglês
convocar o lançamento da pedra de hoje, o Reality Canceladas, criado sem um real no bolso na tentativa de demarcar a existência de pessoas negras, periféricas e LGBTQIA+, de nos manter conectadas e produzindo arte no início do primeiro lock down no Brasil devido à pandemia do COVID-19. Trago, então, como fio condutor de todas as problematizações nessa escrita performática: um alter-ego mais debochado que o normal: A Apresentadora do Reality Canceladas. Prazer, querida! Hoje, por meio dessa persona do futuro que já é passado, irei investigar, a chacota como estratégia de fuga das narrativas de dor que estruturalmente são impostas a corpas negras, periféricas e LGBTQIA+, trazendo a fricção entre o real e o ficcional, já trabalhada nas escritas do coletivo, como método de escrita desse trabalho, o qual minha diva, ícone da performatividade e best5 de longas datas Luciana Lyra6 poderia chamar de “memorial do desejo” que se configura não “como um descritivo de histórias de vida, mas como uma forma reflexiva de sentir esta história, fletindo joelhos e olhando para si.” (2020, p. 07) Mas calma! Depois dessa pequena tentativa de introdução pra não te
falei aí em cima pras espectadoras acadêmicas ficarem felizes: 1. O primeiro é que eu não estou aqui comprometido com nenhum tipo de verdade. O que é real ao contar uma história? Você pode encarar tudo como um jogo. Eu estou aqui tentando ser coerente com a minha trajetória na casa Brasil Diáspora, mas saibam que também posso ser muito fria e calculista. Farei de tudo pra criar alianças e formar o meu bonde, afinal, entrei nesse game7 acadêmico pra ganhar, né gatas?! Ao longo do jogo, vou citar umas amigas, madrinhas e Queens8 e quero ver se até o fim você não vai estar afim de entrar pro meu time. Eu te convido para uma encruzilhada onde o bem e o mal se misturam, onde a saliva de Exú banha as vidas, as histórias, a arte e, por que não, as risadas?
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8. Do inglês “Rainhas”, expressão utilizada pelas LGTBs para se referir a ícones/divas/musas da cultura pop
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9. Abreviação de “popular”; do povo
2. O segundo combinado, que já devem ter percebido, mas devo enfatizar,
10. Em hipótese alguma estou falando sobre este acontecimento acessado pela última vez em 04 de agosto de 2024: https://theintercept. com/2018/08/30/ conceicao-evaristoescritora-negra-eleicaoabl/
Evaristo (não disse que as Queens iam aparecer?), entendi que minha
11. Dialeto criado pela comunidade LGBTQIA+, sobretudo pelas travestis, que se funda da junção do português com o ioruba, kimbundo e outros idiomas e expressões africanas que pairam em terreiros do Brasil.
é que sou pop9. Conversando com a Queen das Escrevivências Conceição arte e minha escrita se aproximam do que ela chama de “escrevivência”, logo, estão completamente distanciadas de um espectro narcísico, não se limitando à narrativa de um “eu sozinho” (Evaristo, 2020, p. 39) perdido em uma solidão egoica. Como contraponto ao reflexo de Narciso, o conceito de “escrevivência” engloba a mitologia dos terreiros citados por essa gênia, presentes também nos abebés de Oxum e de Yemanjá: No abebé de Oxum, nos descobrimos belas, e contemplamos a nossa própria potência. Encontramos o nosso rosto individual, a nossa subjetividade que as culturas colonizadoras tentaram mutilar, mas ainda conseguimos tocar o nosso próprio rosto. E quando recuperamos a nossa individualidade pelo abebé de Oxum, outro nos é oferecido, o de Iemanjá, para que possamos ver as outras imagens para além de nosso rosto individual. [...] O abebé de Iemanjá nos revela a nossa potência coletiva, nos conscientiza de que somos capazes de escrever a nossa história de muitas vozes. E que a nossa imagem, o nosso corpo, é potência para acolhimento de nossos outros corpos. (EVARISTO, 2020, p. 39) Logo, o que aqui escrevo abarca não só a mim, como também as histórias de “uma coletividade” (Evaristo, 2020, p.35) localizada nas periferias, favelas, terreiros, nas noites, nas lutas, nas cotas e nas encruzilhadas. Assim, este trabalho em hipótese alguma ficará circunscrito apenas à academia. Farei o máximo para que a linguagem oral e cotidiana se infiltre na escrita acadêmica, ainda que eu rasgue minhas chances de entrar para a pomposa Academia Brasileira de Letras no futuro10. Por favor, não se assuste com possíveis gírias, gargalhadas, memes, pajubás11, sambas, pontos de exús e letras de funk neste texto, bem como também não se
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incomode com os “pras” ou “framengos” encontrados por aqui. Nossa Queen Legendary Lélia Gonzalez já dizia muito bem: 12
“... gozam a gente quando a gente diz que é Framengo. Chamam a gente de ignorante dizendo que a gente fala errado. E de repente ignoram que a presença desse r no lugar do l, nada mais é que a marca linguística de um idioma africano, no qual o l inexiste. Afinal, quem que é o ignorante? Ao mesmo tempo, acham o maior barato a fala dita brasileira, que corta os erres dos infinitivos verbais, que condensa você em cê, o está em tá e por aí afora. Não sacam que tão falando pretuguês.” (GONZALEZ, p. 238) Então, filha, vou confiar na sua inteligência para entender que o que aqui está sendo criado é pra falar com multidões, com milhões de espectadoras que estão cansadas do academiquês. 3. Nesse terceiro combinado, te convido pra uma conversa que tive em um churrasco com duas Legendaries. Uma delas se chama Grada Kilomba. Ela me lacrou todinha, problematizando a linguagem normativa, dizendo que “a língua, por mais poética que possa ser, tem também uma dimensão política de criar, fixar, e perpetuar relações de poder e de violência” (KILOMBA, 2019, p.14). Ouvindo isso, nossa Queen das Escrevivências Conceição que estava aos berros cantando Figa de Guiné com minha avó Catharina há poucos minutos, nos trouxe um fato interessantíssimo. Ela falou que a Escrevivência, em sua concepção inicial, se realiza como um ato de escrita das mulheres negras, como uma ação que pretende borrar, desfazer uma imagem do passado, em que o corpo-voz de mulheres negras escravizadas tinha sua potência de emissão também sob o controle dos escravocratas,
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12. Palavra em inglês que se traduz como “Lendária”; expressão muito utilizada na cultura Ballroom para se referir a grandes nomes do movimento, à pessoas que revolucionaram a cena das Balls de alguma forma.
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homens, mulheres e até crianças. E se ontem nem a
13. Gíria carioca que quer dizer estar impactada ou refletindo muito sobre algum papo reto.
voz pertencia às mulheres escravizadas, hoje a letra, a escrita, nos pertencem também [...] sem esquecer a pujança da oralidade de nossas e de nossos ancestrais. (EVARISTO, 2020, P. 30) Já barulhada13 com essa conversa perguntei: ué divas, se a escrevivência se funda em mulheres pretas escravizadas, como nossa linguagem ainda convida o “macho” para o centro? Pensando nesse papo, aplicarei aqui, assim como adotamos no Reality, os plurais no feminino para me referir a um conjunto de pessoas em determinado assunto, como forma de tensionar uma coletividade onde corpas que performam a feminilidade, sobretudo corpas de mulheres negras, estejam presentes e lembradas. Em cada plural desse texto há a vida de mulheres negras cis, trans e travestis; há o feminino tão temido, demonizado e odiado pelo homemcis-branco-cristão, feminino que nasce delas e transborda em mim e em tantas outras bixas-pretas. Utilizo esse artifício, ainda, como forma de saudá-las tornando-as tão presentes nesse texto quanto elas foram em meus caminhos. 4. Finalmente, vamos para o quarto e último combinado: Apesar de tentar seguir uma cronologia, este trabalho também se permite ter vários afluentes, ramificações e ritmos diferentes. Vez ou outra você pode esbarrar com links que podem te levar pra outros lugares (fica tranquila, não é vírus), te dando vontade de dançar, de cantar, de ligar pra sua melhor amiga, de meter o pé pra rua… O jogo também é esse! Fica tranquila pra me abandonar aqui. Inclusive sugiro que já leia tomando uma cerveja com as “de fé”. Se quiser me ler no bar melhor ainda! O fazer e aprender coletivo é o que funda essa escrita e é óbvio que eu não poderia tirar isso de você né, bonita? Eu preciso que você esteja disposta a existir e celebrar a sua vida aqui comigo.
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2 \ LAR DOCE LAR ALÔ ALÔ ALÔ VOCÊS SABEM QUEM SOU EU? ALÔ ALÔ GRAÇAS À DEUS” (BRASIL, 2013) Como já puderam perceber, sou a João Pedro Zabeti, bixa-preta, da COHAB de Realengo (RJ), mas pra ser mais preciso sobre minha localização devo falar de antes sobre a origem das mulheres negras que sobreviveram e me criaram para viver. Apesar de muitas outras terem existido antes delas, consigo falar apenas a partir de onde a colonização não queimou os registros, e utilizo este trabalho também como uma forma de eternizá-las. Aquelas, de quem descendo, não vieram de outro estado e tão pouco de outro país, o epicentro de suas memórias é o Morro do São Carlos, no Rio de Janeiro. A partir de mais uma política pública de higienização e gentrificação dos centros que acompanha o Brasil pós-abolição, nos anos 1970 e 1980, houve uma migração massiva da minha família para a Zona Oeste do Rio de Janeiro. Mais precisamente, para Realengo, onde ficava “O apartamento” na COHAB em que morávamos eu, minha mãe Bete, meu irmão gêmeo Gabriel, minha avó Catharina, minha tia Léo e minha avó Maria; e para Bangu/Senador Camará, onde havia “A casa da tia Sueli” no Docinho, a “casa da Tia Sandra” na Capelinha, e a casa da tia Ângela no “Campo do Rola Bola”. Na infância e pré-adolescência, os feriados, finais de semana, férias, carnavais e “Cosmes e Damiãos” tinham lugares reservados ao lado do Gabriel e de mais seis primos e primas. Somando mais os “agregados14” 13 era gente que não acabava mais fazendo qualquer reunião virar um acontecimento. O som alto, o samba, a gritaria, o pagode, a dança, a gargalhada, o funk, o banho no tanque de cimento ou na piscina de plástico, o churrasco, o baralho e a cerveja sempre foram gatilhos para as memórias aparecerem. Em uma fração de segundos, meu tio Paulinho e minha tia Léo dublavam Gal Costa e Elis Regina, descrevendo performances das bichas amigas das minhas tias e da minha mãe que aconteciam no apartamento antes de eu nascer; minha mãe chamava o patrão de racista e expunha suas
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14. Adjetivo quase como um grau de parentesco dado nas periferias à pessoas que se “agregam” à família mas sem ter uma relação sanguínea, tais como: amigas, vizinhas, namoradas, entre outros.
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estratégias no trabalho pra quando os gêmeos ficavam doentes; alguém lembrava de quando minha tia Sandra se queimou com a água do fogão e foi curada pelas mãos da preta velha “Vó Baiana” que a enrolou em folhas de bananeira, rezando por sua melhora durante uma noite inteira; e minha avó Catharina interpretava com orgulho o vizinho Luiz, do São Carlos, filho do seu Oswaldo Melodia, reencenando o momento em que ele prometeu uma televisão a ela quando ficasse famoso, cantando em seguida “Se alguém quer matar-me de amor, que me mate no Estácio...” Em uma das festas perguntei pra minha mãe e minhas tias sobre como era a casa do São Carlos já que não havia muitas fotos. Elas logo responderam: Léo: Ah olha, a nossa casa era uma das mais pobrezinhas do morro, uó, não tinha uma subida pra laje porque não tinha nem dinheiro pra construir a escada! Era só o tijolo, mas era tudo limpíssimo e comida graças a Deus nunca faltou! Sandra: A tia Marli era faxineira de uma escola!!! Então a gente ia ajudar ela a limpar as coisas porque ela já não aguentava fazer muito esforço, aí ela de fininho colocava a comida numa bolsa, amarrava direitinho e a gente trazia, era babado! Bete: Teve uma época que eu fiquei um tempo no morro com vóvó Tita pra terminar de estudar, aí também trazia pra elas em Realengo a comida que a Tia Marli pegava na escola. O foda era quando era peixe porque eu ia pra escola antes né, às vezes ficava aquela água escorrendo com um cheiro de peixe na sala. Todo mundo se perguntando da onde era e eu quietinha kkkk… Não tinha vergonha, não! Sandra: A gente nunca teve isso, né? Tia Marli também vendia quitutes na porta do puteiro de noite em São Cristóvão e ali embaixo do São Carlos, no Piranhão, onde hoje é a Prefeitura. Começou a fazer isso por causa de uma promessa que ela fez na saída de santo. Bete: Ela era respeitadíssima pela cafetina Gisa, pelas prostitutas, pelos malandros que rondavam e até pela polícia, porque tinha a lei de vadiagem né, mas pra ela nunca teve isso.
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Minha avó Catharina se juntou à minha tia-avó Marli, à sua mãe Tita e a tantas outras no òrun15 em 06 de junho de 2012 devido a um câncer de útero, 10 dias antes do aniversário da minha mãe Elisabete que estava se recuperando de um câncer na mesma região. Ela era Ekedi16 D’Oxaguian. Chovia no dia do seu enterro. Ela estava toda vestida de branco e rodeada de pipocas. Quando os coveiros colocaram o caixão no carrinho para empurrar até a cova, o Bàbálórìsà17 Márcio D’Oxaguian gritou dizendo que ela era uma Ekedi e que jamais poderia ser levada no carrinho. Foi então que eu, meu irmão e outros homens agregados18 e amigos a carregamos enquanto cantigas eram cantadas e pipocas eram arremessadas pelo Bàbá. Na saída do Murundu, como de praxe, família e amigas foram pro bar “beber vovó” Sei que parece um filme, mas eu juro por ela mortinha que o dia começou a clarear nesse momento: “Nossa, ela tava toda linda, de branquinho do jeito que ela gostava!” “Com aquelas unhas postiças bem Alcione né haha” “Sandra na Capelinha, Bete em Bangu, então a herança da COHAB ta com a Léo e os com os garotinhos que ela vai sustentar com a herança de mamãe né??!” “Olha, Mira sua bixa invejosa!” 19
“Herança só se for dos empréstimos porque a pensão já tá com o segundo marido kkkkk” Há algo no que essas mulheres construíram que eu acredito estar presente no que eu tenho lido e observado de outras mulheres negras periféricas contemporâneas a elas. Algo sobre um elo entre elas que subverte uma lógica de vida baseada no sofrimento, na pobreza ou no racismo. Não é como se a dor não existisse, mas nas histórias ela nunca foi e nunca será a protagonista porque o mais importante – e aqui eu falo de tecnologia e rataria de vida – é como não paralisar. Na filosofia iorubana o ofó – a palavra – é encantamento, é magia que já nasce com a gente. Ora, se palavra é magia, de que são feitas as histórias contadas? A partir de como as palavras são organizadas, de como as frases são montadas e de como
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15. Palavra em Yorubá que significa “céu” em português. Segundo o dicionário de José Beniste (2020, p. 625) “Céu, firmamento.[...]. Plano divino onde estão as diferentes formas de espíritos e divindades.” 16. Cargo ou “posto” no candomblé designado a mulheres que não incorporam o orixá. São zeladoras dos orixás e os auxiliam quando incorporados em outras pessoas do terreiro. 17. sinônimo de “Pai de santo”; Bàbá quer dizer “Pai”. É o sacerdote responsável pelo terreiro, pelo Ilé (casa). É também quem inicia novas pessoas no culto, dando continuidade às famílias de axé. 18. Adjetivo quase como um grau de parentesco dado nas periferias à pessoas que se “agregam” à família mas sem ter uma relação sanguínea, tais como: amigas, vizinhas, namoradas, entre outros. 19. Apelido carinhoso dado ao meu tio Paulinho, vulgo “Paumira”
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cada memória sai pela boca delas sendo lançadas no espaço, elas têm construído ao longo de gerações, um acervo de encantamentos que as colocam em constante movimento de vida. Anos depois eu entendi que parte dessa magia era a chacota. Aquele humor que jamais se faz sozinho, que se faz sorrindo ou chorando, que satiriza a realidade que as oprime sem ser paralisada por ela. Uma magia onde, apesar do Mundo, elas teimariam juntas em estar sempre vivas e vitoriosas, rumo ao ápice do que essas palavras poderiam significar.
3 \ SOLETRANDO “PIRANHA TAMBÉM ESTUDA”–(ANITTA, 2021) Em 2016 eu ingressei para a UNIRIO no curso de Licenciatura em Teatro, realizando 2 sonhos: o meu de estudar teatro e o da minha mãe de colocar o primeiro filho em uma universidade federal. A minha felicidade logo virou um pavor devido às 5 horas diárias em trânsito e pelo simples fato de que, apesar de ter tido um ensino babadeiro, a gata ainda era de Realengo e conseguia contar nos dedos os espetáculos que havia assistido na vida. Nem preciso dizer que existe um abismo entre regiões como a Zona Oeste e a Baixada Fluminense, de um lado, e as regiões Sul e Central, do outro, onde se concentram a maior parte dos equipamentos culturais da Cidade. Em uma aula, um Professor Progressista após ler um trecho de O Jardim das Cerejeiras com a turma, se lembrou de uma situação que aconteceu em sua casa, com a sua empregada doméstica – que ele não chamava assim, gostava de chamá-la pelo nome. Disse que se sentia mal de ela fazer determinadas atividades para ele, como colocar a mesa e arrumar o seu prato nas refeições e que estava tentando rever isso. Contou que, certo dia, arrumou o prato e foi comer na mesa, mas acidentalmente, esqueceu de colocar o suco! Ele levantou o braço lentamente e, com uma imensa vergonha, chamou ela e disse: “Me desculpa! Mas você pode por favor colocar um suco pra mim?”. Na mesma hora eu e mais algumas alunas negras perguntamos: “Ué professor, porque você mesmo não levantou e pegou o suco?!”, e ele disse: “Mas é o que eu estou falando! É
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algo estrutural, a gente não percebe e faz, é isso que esse personagem está fazendo no texto.” A turma riu. Alguns de vergonha alheia, outros concordando. Eu pedi para ir ao banheiro e fui fumar um cigarro para tentar digerir o que tinha acontecido. Sim, o Professor Progressista contou a história querendo uma medalha por tentar – e falhar miseravelmente – amenizar sua herança escravista, enfatizando a sua enorme contribuição individual para a mudança de uma estrutura de opressão (risos). Foi tão patético que parecia um vídeo do Porta dos Fundos. Fofoca: depois de alguns semestres descobri que esse mesmo professor é citado anonimamente no TCC de Wallace Lino20 – A Bicha Mais Bonita da Maré –, quando ela fala sobre o espaço acadêmico ser hostil a presenças de corpas periféricas e, no caso, mais precisamente de corpas faveladas: “Assim como muitas vezes tive que justificar e negociar minhas ausências quando trocas de tiro me impediram de sair de casa. E como num dia em que, numa dessas situações de confronto, relatei por mensagem ao professor o contexto em que me encontrava e, ainda assim, tive a resposta de que, se não fizesse a prova, seria reprovado e, mesmo após ter saído de casa, da Maré, no meio do tiroteio e chegar em sua casa, na Lagoa Rodrigo de Freitas, (já que ele furava greve e nos fazia assistir aula na sua casa), tive que ouvi-lo dizer, ainda na entrada, que não estava tão perigoso assim. Talvez, se eu chegasse sangrando, ou não chegasse, ele acreditasse.” (LINO, 2018, p. 2-3.)
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20. Wallace Lino é Artista Multilinguagem. Pesquisador, Ator, Diretor,Dramaturgo e Educador. Formado em licenciatura do teatro pela UNIRIO, Mestre em Relações Étnico Raciais pelo CEFET. Cofundador e Integrante da Cia Marginal desde 2005. Atuando como ator nos espetáculos Qual é a nossa cara? 2006 , Ô Lili 2012, In-transito 2013, Eles não usam tênis naique, 2015, Hoje não saio daqui 2019. Cofundador do Grupo Atiro 2016, atuando como Diretor dos espetáculos Família 2017, Obedeça 2017, Ant Corpo 2018, Corpo Minado 2018, Corpo Minado em Quarentena 2020, e Família Virtual 2020. Atuando como dos espetáculos do Grupo. Colaborando em 2020 com a dramaturgia do espetáculo O Clássico Êxodo. Dramaturgo e cocriador do Projeto Entidade 2020. Curta Entidade 2020, Quintal C11 2020 e Rádio Nolance. Sendo também roteirista e um dos diretores do filme Performático Noite das Panteras e do Filme Noite das Estrelas 2021.
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21. A Cia Marginal é uma das principais companhias teatrais de pesquisa do Rio de Janeiro. Composta hoje por Geandra Nobre, Isabel Penoni, Jaqueline Andrade, Rodrigo Maré e Wallace Lino, a companhia vem desenvolvendo há quinze anos um trabalho continuado e reúne em seu repertório cinco espetáculos: Qual é a nossa cara? (2007), O,Lili (2011), In_Trânsito (2013), Eles não usam tênis naique (2015) e Hoje não saio daqui (2019). 22. Me refiro ao Centro de Letras e Arte da UNIRIO
No segundo período, ao passo que mais pessoas negras entravam na universidade, outras situações racistas continuavam a acontecer na UNIRIO e o próprio bairro da Urca se tornava cada dia mais sufocante. Dois semestres depois, Phellipe Azevedo, na época membro da Cia Marginal21, e do elenco de Eles Não Usam Tênis Naique, espetáculo que havia assistido e amado, inicia a parte prática do seu TCC “PERIFÉRICO / PEDAGÓGICO / UNIVERSITÁRIO - Um diálogo do aluno favelado com a universidade” e me convida para uma entrevista por indicação da professora Marina Henriques. Esse encontro se desdobra no processo do espetáculo Arame Farpado, primeiro e consagrado espetáculo do Coletivo homônimo Arame Farpado. Fiquei nervosa achando que podia ser uma pegação, já que não deram uma sala pro tadinho me entrevistar e ele me levou pro quarto andar do prédio do CLA22, a 6 metros do banheiro mais deserto da faculdade. Não era pegação, mas ele começou a perguntar da minha vida e acabei me expondo. Uma das perguntas foi o que eu achava que era meu naquela Universidade. Eu fiquei um tempo em silêncio e então respondi: “Acho que nada é meu, mas tudo pode se tornar meu. Não só meu, mas nosso, no sentido de você se juntar com pessoas e se apropriar daquilo. Mastigar e vomitar as coisas que acontecem aqui sabe? Eu acredito muito nessa apropriação que existe.” (Azevedo, 2018, p.) Pouco tempo depois dessa entrevista a UNIRIO amanheceu pixada com os dizeres: “Pretos fedem” e “KKK” (uma alusão à Klu Klux Klan, grupo que prega a supremacia branca e de extermínio de negros surgido nos Estados Unidos). Até hoje os culpados não foram encontrados. Todo o vômito que eu respondi na entrevista para Phellipe, canalizei na cena “LIBERDADE”, criada a partir de um exercício da aula de Metodologia do Ensino do Teatro 3, com o professor Paulo Merísio, que teve como ponto de partida um trecho do documentário “Nina Simone - A Historical Perspective”, de
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Peter Rodis onde a vovó Legendary Nina diz que liberdade para ela “É um sentimento” e compara com a paixão: “Como você diz pra alguém como é estar apaixonado? Como você conta para alguém que nunca se apaixonou como é estar apaixonado?” ela continua dizendo que já foi livre em alguns momentos nos palcos, dá uma pausa e conclui: “Eu vou te dizer o que liberdade é pra mim: não sentir medo.” A cena era uma grande conversa sobre o que seria liberdade pra mim e pro o público. Nela eu misturava experiências minhas com a experiência de mães que tinham perdido seus filhos mortos pela Polícia Militar do Rio de Janeiro. Eu reproduzia os áudios daquelas mulheres contando as histórias de violência sofridas por seus filhos e intercalava com as minhas memórias, finalizando a cena/performance com o áudio da entrevista da Nina Simone citado acima. Após aquelas duas apresentações, senti um incômodo em relação à cena. Acontece, amigas, que no final da apresentação eu vi brancos impactados sem saber como agir e o que falar, e pessoas faveladas e não-brancas chorando acabadas e algumas me agradecendo por tocar nessas questões ali naquele espaço. Extremamente incomodado, fui comer no bandejão pensando “até que ponto vale a pena gritar para que brancos me ouçam se isso também fere aos meus?”. Fui para o ensaio do Arame Farpado me perguntando se esses gatilhos valiam a pena. Lá encontrei além de PH Azevedo, cria do Caju, na direção, o elenco que ao final ficou formado, além de mim, por Lidiane Oliveira23 de Palmares, (a Lidi) , Peterson Oliveira24 de São Gonçalo 32 (a Pete) e Sol Targino25, atualmente Juliana Targino, da Maré. Eu me sentia finalmente encontrando algo na UNIRIO.
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23. Co-fundadora do Coletivo Arame Farpado e graduada em Atuação Cênica pela UNIRIO. Como atriz, criou e atuou nos espetáculos “Arame Farpado”(2017), e “O Clássico Êxodo” (2020). Participou como stand in do espetáculo “Eles não usam tênis naique”(2019) da Cia Marginal. Como assistente de roteirista foi integrante da sala de conteúdos Narrativas Negras na Paramount (2021), e na série Ninho de Cobras no Porta dos Fundos (2022). No audiovisual atuou no longa “A Vida Invisível” (2019);Longa “Nosso Lar 2-Os Mensageiros” (2023); e o curta “ExpressoParador”(2022). 24. Ator, graduado em licenciatura em teatro pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). Fundador do Coletivo Arame Farpado, atuou e criou o espetáculo “Arame Farpado” com direção de Phellipe Azevedo (2017 -2019) e o Projeto Êxodo (2020) do Coletivo Arame Farpado no SESC Copacabana, com direção de Phelipe Azevedo. No Coletivo também atuou em “Lais e Pete” - direção de João Zabeti e Phelipe Azevedo (2021) e como repórter entrevistador do reality Canceladas 2 crias
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da ZO (2021). Também participou de criações do grupo Fuga Coletiva e atuou no filme “Nave Mãe” - direção Yuri de Carvalho Lobo (2017), entre outros trabalhos como ator. 25. Atriz e produtora audiovisual, já trabalhou nos grupos Atiro e Arame Farpado, atuou e participou dos processos de criação dos espetáculos “VAI” (2013, direção Wallace Lino); Agora sei o chão que piso (2015, direção Wallace Lino); Arame Farpado (2017, direção Phellipe Azevedo); “Correria Dança Contemporânea” (2018, direção Marllon Araújo) apresentada em University of Michigan; “Dança das Cadeiras” (2017, direção Bruna Christine) com premiação do Especial do Júri no Festival de Teatro Adulto Tijuca Tênis Clube. Atuou também nos curtas metragens “Pop Kamikaze (2013, direção Marcos Nauer); e “Atravessador” (2018, Iury de Carvalho) e no vídeo clipe “Febril” do cantor Beto Larubia (2015). 26. Veja o lacre da diva completo: https:// www.facebook.com/ watch/?v=942160299195054 (último acesso em 02 de abril de 2024)
4 \ ESPETÁCULO ARAME FARPADO “PORQUE EU TENHO FAMA, VOCÊ NÃO É CONHECIDA”26 (BARRACO, 2010) Os ensaios pra montagem do espetáculo “Arame Farpado” aconteceram na UNIRIO e no Centro de Artes da Maré e inicialmente, o objetivo era abordar as “experiências de alunos favelados e periféricos que entraram na universidade, suas angústias, seus questionamentos e suas dificuldades” (OLIVEIRA, 2019.). O jogo acontecia sempre a partir de improvisos longos, em torno de 30 minutos cada, onde tínhamos o auxílio de dispositivos que nos mantinham em constante movimento interno. Com quatro negras em cena, não demorou muito para que questões raciais atreladas àquele espaço aparecessem. “Todo o elenco tinha histórias para contar sobre preconceito racial sofrido ou presenciado, não tinha como o elenco fugir disso[…]” (OLIVEIRA, 2019), mas apesar das situações racistas aparecerem, a escolha por trazer nossas histórias gerava momentos de alívio, risadas e acolhimento ao longo dos ensaios. Era incrível conhecer e me reconhecer nas histórias das famílias de todas de alguma forma, seja nos improvisos, nas conversas após os ensaios se arrumando para as aulas ou nas revoltas e gargalhadas no bandejão, e se tem algo que eu aprendi com o Arame Farpado é: Tudo é dramaturgia. Um dia estávamos nos arrumando para ir embora no final do ensaio e Peterson começou a balbuciar uns sons. Perguntamos que musica era aquela que todo mundo conhecia mas a letra estava muito diferente. PH (2017) relata em seu TCC: “Ficamos tentando adivinhar qual era a música. Quando descobrimos que o que ele cantava era “É o tchan”, todos começaram a gargalhar.” Lembro que Peterson confuso perguntou: “Ué gente vocês tão rindo do que? Minha mãe tem essa mania de cantar assim em casa” e a gente riu mais ainda. Antes disso estávamos discutindo sobre a dificuldade de decorar e escrever milhões de nomes europeus nas matérias. Peterson falou de uma aula onde ele e mais 18 pessoas abandonaram uma disciplina devido a uma professora engessada nos moldes educacionais do século XIX.
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Descobrimos assim, o embrião da cena do “Karaokê”. Dessa forma, aos poucos chegamos ao nosso dispositivo geral: Como levar nossas casas para a Universidade? Após isso, diversas memórias foram aparecendo nos próximos ensaios. Estávamos finalmente ansiosas com a estreia e cada dia mais sintonizadas em relação ao objetivo geral. Que foi? Não foi fácil sair do dramalhão não, amor, foram anos e anos, assistindo Tropa de Elite, Cidade de Deus, achando que aqueles ali seriam os únicos lugares onde minha corpa negra-viada-periférica teria a mínima chance de escoar sua arte sendo, finalmente, reconhecida como uma “boa artista” e como alguém que consegue pagar suas contas só com o aqué27 da arte. Fora os filmes, teve até a minha tentativa de ir para os musicais de um professor-diretor universitário que achou tranquilo colocar blackface em seu espetáculo em pleno 2013 no Rio de Janeiro. #NãoTáFácilPraNinguém Como toda boa fênix, ou toda boa fã de Beyoncé, sempre chegará o nosso momento de renascer e eu renasci na estreia do espetáculo Arame Farpado.
5 \ A ESTREIA PH descreve a estreia do espetáculo em seu TCC como acontecendo de modo catártico (2017) e realmente foi. Já no início, com o funk no talo, uma plateia majoritariamente de pessoas negras, de vários cursos da UNIRIO, além da Escola de Teatro (algo muito raro na UNIRIO na época), levantou das cadeiras e começou a rebolar, como relata Peterson em seu TCC: Sol, João e eu em pé lado a lado, de óculos escuros, cada um com uma caixa de papelão na mão contendo objetos que serão usados na peça. Lidiane não está no palco, ela vai entrar daqui a pouco depois que a peça tiver começado, vindo do fundo
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27. “Aqué” quer dizer dinheiro no pajubá. É oriunda da língua Ewê, sendo o nome de um pequeno tambor feito de cabaça.
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da plateia trazendo sua caixa e interrompendo minha fala. “Vem sentando e rebola, vem! Tá na gaiola, vem, tá na gaiooolaaa”. Enquanto o público entra tem música tocando alta, e a cada funk o público canta e dança. O teatro enchendo, tem gente sentando nos degraus e no vão entre o palco e a primeira fileira. Eu não acredito no que estou vendo, nunca vi esta sala cheia desse jeito e nem uma plateia que participasse assim. (OLIVEIRA, 2019, p. 18) Aquela performance era o início do espetáculo: “Aquele público estava sedento para vivenciar e discutir aqueles temas naquele espaço universitário.” (AZEVEDO, 2017). Após a cena inicial, houve gargalhadas quando a Calcinha Preta começou a tocar na Laje do Caju “Onde tem calcinha eu vou, eu vou, eu vou” Ou quando Lidiane chegou atrasada para o espetáculo vestida com roupa de época bem nos moldes da educação do século XIX “A gente tem que começar vestida assim!” e na já falada cena do Karaokê. Houve momentos de tensão com a cena da Ninja onde Sol sobe em 5 cubos de madeira falando da sua trajetória da Maré até a UNIRIO e do diálogo com sua mãe que ainda achava que ela fosse virgem e o auge da catarse no baile do Arame com gummy e churrasco que com o andar das temporadas conquistamos cerveja, churrasco e um show icônico sempre com uma MC babadeira. Já passaram no palco do Arame MC Jessi, nossa estreante e parceira de vários bailes e a cada circuito essa encruza ficou maior com artistas como MC Sabrina da Provi, MC Carol de Niteroi, MC Kátia Fiel, Preta Rara e Preta Queen B Rull, isso sem falar nas DJs como a DJ Kamina e a DJ do Povo. O Arame rodou pelos Sescs do Rio de Janeiro e de Santa Catarina, foi pra Universidade Federal da Bahia (te amo Salvador!), pra Federal de São João Del Rei, pelos Sesis do Rio e até no Itaú Cultural nós chegamos lá em 2019 na primeira edição do Festival “a_ponte: cena do teatro universitário”, tá bebê?! Até lotamos o teatro do Itaú em plena São Paulo, foi chique.
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Em uma live sobre o livro Ñ Vão Nos Matar Agora, as escritoras Jota Mombaça e Leda Martins, falam sobre a importância da raiva. “É importante ter raiva, ela é boa, mas não quando nos fere e nos paralisa, é preciso se manter em movimento, se manter na quebra. Sem movimento não há vida e nós merecemos viver.” (MARTINS, 2021) A pesquisa da chacota que se inicia nas nossas famílias e que herdamos de nossas ancestrais, traz esse movimento. Ao contrário da cena LIBERDADE já citada, em que as memórias paralisavam e onde a raiva era tanta que feria a todos, inclusive a mim, na chacota há a calma, há a sagacidade das esquivas da capoeira, a alegria e a acidez de Exú. Sinto a cólera como uma lança afiada dos dois polos que ao atacar perfura ambos: receptor e lançador, já a chacota é o tiro de uma única flecha, de quem chega sorrateiro e atinge o seu alvo de forma certeira e estratégica, assim como faz Oxóssi que, graças à oferenda de sua mãe, atinge o pássaro que atormentava o reino de Ifé com uma única flecha (VERGER, 2018, p. 118-9). É tão rápido e inesperado que não se tem tempo de levantar escudos.
6 \ CONSIDERAÇÕES FINAIS: BRINCANDO COM FOGO Pra você que está curiosa, após o espetáculo Arame Farpado nós fundamos o Coletivo Arame Farpado que continuou a investigação com mais 1 espetáculo chamado o pandemia, onde contamos inclusive com a participação ilustre da minha dindinha Tati Quebra Barraco como apresentadora ao meu lado na 2ª edição “Crias da Zona Oeste” e ainda com o curta-metragem “Expresso Parador”, dirigido por JV Santos28 que acaba de ser premiado no FestCurtasBH na mostra “Competitiva Brasil”, no Festival Visões Periféricas na mostra Cinema da Gema e no Festival de Itabaiana onde nossa atrizona Lidiane Oliveira foi condecorada com o prêmio de melhor atriz. Além de tudo isso, ainda rolaram 2 pilotos de websérie: Placa Mãe dirigido por Peterson Oliveira e Lais Lage29, nossa
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28. Diretor, roteirista e pesquisador, com formação pela UFF Universidade Federal Fluminense. Nascido e criado no bairro da Penha, Zona Norte do Rio de Janeiro. Co-fundador e colaborador da Cafuné na Laje, também atua com processos de formação em cinema e audiovisual. Seu último filme, Expresso Parador, foi vencedor do prêmio de melhor filme nacional pelo juri do FestCurtasBH em 2023 e da Mostra Cinema da Gema do Festival Visões Periféricas em 2024. 29. É negra, PCD, bissexual e cria de Santa Cruz, Zona Oeste do Rio de Janeiro. É atriz, produtora e diretora no Coletivo Arame Farpado, vencedor do 8º Prêmio Questão de Crítica e é formada em Licenciatura em Teatro na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). É idealizadora e atriz da Ocupação “Ensaio Sobre Uma Atriz que Está Ficando Cega” e atriz nos espetáculos teatrais “Irmã Yerma”, de Caju Bezerra e Diêgo Deleon (2023), “Quem é o Zezinho” (2023) da Trupe De Lá Tag, “Pastrana - A Mulher mais Feia do Mundo”(2022), “Arame Farpado” (2022), do Projeto Êxodo (2020) do Coletivo Arame Farpado; “Corpo Minado” (2019) do grupo Atiro; “Xinguela” (2019) e Cabeça de Porco” (2017)
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pelo Projeto Prática de Montação. No audiovisual atuou na minissérie da Netflix “Os Quatro da Candelária”, dirigiu o documentário “Piracema” (2024), roteirizou o documentário “Meu Corre” (2023), atuou no curta-metragem “Comigo” e “Por que Brilham as Estrelas?” e dirigiu o episódio piloto da web série “Placa Mãe” (2020).
querida Garota de Santa Cruz que chegou no Projeto Êxodo e veio pra ficar e Lais e Pete também com direção minha e do Phellipe Azevedo. Queria falar de tudo como estão nas 110 páginas do meu TCC mas infelizmente você comprou o pacote de 20 páginas desse artigo e seus dados estão acabando, infelizmente nem as fotos foram carregadas, mas lembra do jogo? siga os links. . . Passado esse comercial de milhões, só pra dizer que Exú não brinca, Exú não é de brincadeira e nós estamos nesse game pra ganhar mais cedo ou mais tarde, eu preciso contar para vocês um último spoiler do espetáculo Arame Farpado e vocês vão ver que vai fazer sentido. Antes de entrar na sala, ainda na fila, as pessoas são surpreendidas com uma prova. Sim, nossa primeira vingança é aplicar uma prova principalmente para os professores que estiverem nas filas. Ah mas e as perguntas? São perguntas sobre os nossos territórios como: Quais as cores da bandeira de Unidos de Santa Cruz? Em qual bairro da Zona Oeste fica Jardim Palmares? E mais duas que eu não vou te revelar para você não colar quando for assistir, tá bom? Como uma boa fofoqueira eu não teria como concluir esse TCC sem uma fofoca, né meninas? Foi numa mesa de bar que uma amiga me contou. Ela estava participando de uma residência artística financiada por um edital famoso. Era uma oficina de dramaturgia com um Homem Branco Cis. Papo vai, papo vem, o Homem Branco dá uns exercícios de respiração fazendo uma leitura dramatizada de umas peças de Tchekhov. Eis que a partir de algum assunto alguém cita o espetáculo Arame Farpado como uma referência de dramaturgia e ele fala: — Homem Branco Cis: Eu odeio o Arame Farpado! — Atriz: Ué odeia por quê? — Homem Branco Cis: Eu assisti há um tempo na Martins Penna. Me entregaram uma prova e ganhei ZERO! Eram umas perguntas sobre o Rio de Janeiro e tenho certeza que acertei todas. Expuseram minha prova
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e me colocaram como o Vilão da história! Como se eu não conhecesse a Maré, eu conheço a Maré! De volta à mesa de bar minha amiga completa: — Amigo você tinha que ver a algazarra que ele fez! Foram mais de 20 minutos falando mal do Arame Farpado! Ele depois ficou horas falando dos ancestrais colonizadores dele, falando que precisava reconhecer que eles existem e contando as histórias de cada um até do tataravô. Fiquei passada! Acontece, amigas, que esse Homem Branco Cis assistiu o Arame Farpado na Martins Penna em 2018. Há cerca de 5 anos atrás, alugamos um triplex na cabeça desse querido que é ninguém mais ninguém menos que o professor lá do início do texto, lembra? O que furou a greve dando aula em sua casa na Lagoa, que sente culpa por pedir coisas básicas pra empregada e continua pedindo, que fez um aluno morador da Maré “que ele tanto conhece” sair de casa em uma chuva de tiros pra ir fazer a sua prova, em sua casa na Lagoa, sob risco de reprovação. “Se você chegou então não devia estar tão perigoso assim”, ele disse. Sim, esse era o Professor Progressista <3 <3 <3 Eu imediatamente começo a rir no bar. Era um bar ali bem perto do Largo da Prainha/Pedra do Sal e da Pça. Mauá. Não era uma risada só minha, era uma risada de multidões. A região portuária do Rio de Janeiro, a Pequena África, por vezes desperta esse sentimento em mim. Me perdoe se eu estiver sendo um pouco mórbida, mas essas linhas tortas que Exú vai apontando, essas encruzilhadas tecidas por determinadas histórias vividas em determinados lugares e em determinados tempos históricos – principalmente aqui nessa “ex”-capital colonial brasileira – não me fazem parar de pensar que chacotar também é se vingar e eu acho a Nossa vingança pleníssima. Ela só não pode nos paralisar, lembra: Nós somos gostosas! Essa é a nossa maior vingança, o resto é consequência. Lembra da capoeira, do samba, dos movimentos contínuos, do desequilíbrio, lembra da rasteira e de tantas outras poesias oraliturizadas deixadas por nossas mais velhas. “Exu matou um pássaro ontem com uma pedra que só jogou hoje”. Nossa vingança tá no tempo, queridas. Assim como
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a “ação de Exú” citada por Muniz Sodré (2017) e resgatada pela Queen dos Congados Leda Martins (2021, p. 54), ela “não está dentro do tempo, ela o inventa”. Me formar contando essas histórias é a cereja do bolo da minha maior vingança e das vinganças de quem sonhou comigo e antes de mim. Tentei até agora descrever processos metodológicos do Coletivo Arame Farpado e de minha trajetória que nos dessem pistas sobre como ser uma artista LGBTQIA+, negra ou originária, PCD, ou com qualquer outro marcador social que nos situe fora do que é considerado normal no ocidente, que nos afastem do macho-branco-cis-sem deficiência, sem que nossas criações estejam sempre pautadas pela dor perante à estrutura. Mais do que encontrar respostas, quis aqui viajar nas espiralaridades do tempo refletindo sobre a minha trajetória familiar e no Coletivo Arame Farpado a fim de tornar essas pistas o mais honestas e humanas possíveis. De forma alguma, estou aqui propondo um jeito único ou pregando um ódio às dores sociais retratadas em cena, mais do que isso, estou propondo que em nossas criações o foco seja falar mais conosco, com as nossas famílias do que com esse Professor e acredito que nossa vingança, o nosso feitiço, esteja nisso. A gargalhada que dei quando soube que estamos na cabeça do Professor Progressista há 5 anos foi exatamente por entender que eu me comuniquei antes de mais nada com minhas ancestrais pedindo licença antes de mais nada para contar nossas histórias, com as minhas amigas da plateia, com as minhas tias, avós, mãe, irmãs e primas que nos foram assistir. Ali, no palco, eu conto histórias nossas que elas se lembram e em que se enxergam, eu falo com elas sobre como é sobreviver à universidade e repasso as ratarias que um dia me foram passadas. O desespero do Professor é se ver coadjuvante nessa história, pois ali não era o momento dele de falar, ele teria que se esforçar para ouvir. Bem que a Queen das Escrevivências Conceição Evaristo me ensinou que “A nossa escrevivência não pode ser lida como histórias para “ninar os da casa-grande”, e sim para incomodá-los em seus sonos injustos.” (2020, p. 54)
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\ BIBLIOGRAFIA AZEVEDO, Phellipe. PERIFÉRICO / PEDAGÓGICO / UNIVERSITÁRIO - Um diálogo do aluno favelado com a universidade. Trabalho de conclusão de curso (Licenciatura em Teatro) - Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, 2017. BENISTE, Jose. Dicionário yoruba-português/José Beniste. - 5ª ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2020. EVARISTO, Conceição. A Escrevivência e seus subtextos. Escrevivência : a escrita de nós : reflexões sobre a obra de Conceição Evaristo / organização Constância Lima Duarte, Isabella Rosado Nunes ; ilustrações Goya Lopes. – 1. ed. – Rio de Janeiro. p. 26-47 : Mina Comunicação e Arte, 2020. EVARISTO, Conceição. Da grafia-desenho de minha mãe, um dos lugares de nascimento de minha escrita. Escrevivência : a escrita de nós: reflexões sobre a obra de Conceição Evaristo / organização Constância Lima Duarte, Isabella Rosado Nunes ; ilustrações Goya Lopes. – 1. ed. – Rio de Janeiro. p. 48-57 : Mina Comunicação e Arte, 2020. JESUS, Carolina Maria de. Quarto de despejo: diário de uma favelada. São Paulo: Ática, 2004. LINO, Wallace. O teatro como canal de ruptura do silenciamento. Trabalho de conclusão de curso (Licenciatura em Teatro) - Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, 2018. LIVRARIA MEGAFAUNA. Não vão nos matar agora, com Jota Mombaça, Leda Martins e Hélio Menezes. YouTube, 20 de maio de 2021. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=31ZKs6tSwNI>. Acesso em: 29 de março de 2023.
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LYRA, L. de F. R. P. de. Escrita acadêmica performática... Escrita F(r) iccional: Pureza e perigo. Urdimento revista de Estudos em Artes Cênicas, Florianópolis, v. 2, n.38, p.1- 13, ago./set. 2020. DOI: https://doi. org/10.5965/1414573102382020003 Disponível em: https://www.revistas. udesc.br/index.php/urdimento/article/view/17759/11964 KILOMBA, Grada. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Tradução de Jess Oliveira. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019. MARTINS, Leda Maria. Performances do tempo espiralar, poéticas do corpo-tela / Leda Maria Martins. - 1. ed. - Rio de Janeiro: Cobogó, 2021. MOMBAÇA, Jota. Não vão nos matar agora/ Jota Mombaça. Rio de Janeiro: Cobogó 2021. Nina: A Historical Perspective (1968). Reino Unido. Dirigido, fotografado e editado por Peter Rodis; com Nina Simone. OLIVEIRA, Ronni Peterson da Silva. Histórias em cena: a formação do ator-professor. Trabalho de conclusão de curso (Licenciatura em Teatro) Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, 2019. SILVA, Jaílson de Souza. “Porque uns e não outros?”: caminhada de jovens pobres para a universidade. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2003. VERGER, Pierre. Orixás: deuses iorubás na África e novo mundo / PierreVerger ; traduzido por Maria Aparecida da Nóbrega. - Salvador - BA: Fundação Pierre Verger, 2018.
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\ relato de experiência na Zona Franca de Manaus: a construção da montagem cênica Operária Kelly Vanessa Nunes de Sousa Kelly Vanessa Nunes de Sousa, Manaus (AM). Graduada em bacharelado em teatro pela Universidade do Estado do Amazonas (UEA), é atriz, professora e, desde 2017, atua como produtora de teatro e circo com grupos e artistas independentes. Atualmente faz parte da diretoria da Federação de Teatro do Amazonas (Fetam). nuneskellyvanessa@gmail.com
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FICHA TÉCNICA Instituição Universidade do Estado do Amazonas (UEA) Tipo do curso Graduação Nome do curso Bacharelado em teatro Período do curso 2020-2024 Estado Amazonas Título do trabalho Relato de experiência na Zona Franca de Manaus: a construção da montagem cênica Operária Nome da autora Kelly Vanessa Nunes de Sousa Nome do orientador Professor mestre Madirson Francisco Souza Número de páginas 20
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\ relato de experiência na Zona Franca de Manaus: a construção da montagem cênica Operária
\ RESUMO No cerne da abordagem da montagem cênica “Operária”, encontra-se a marcante influência estética do Teatro Político de Bertolt Brecht, que desempenha um papel crucial no processo criativo tanto da atuação quanto da dramaturgia. Além disso, a pesquisa incorpora as vivências de outros operários durante o período de 2010 a 2014, quando a autora esteve envolvida na linha de produção das motocicletas na Zona Franca de Manaus. Um dos principais objetivos do trabalho é trazer à cena não apenas as experiências reais da autora, mas também desenvolver a construção da personagem “operária” através de relatos compartilhados por outros indivíduos que compartilharam dessa função no polo industrial de Manaus. Palavras-chave: Polo industrial; Montagem cênica; Atuação.
\ ABSTRACT At the heart of the approach to the stage production “Operária” is the marked aesthetic influence of Bertolt Brecht’s Political Theater, which plays a crucial role in the creative process of both acting and dramaturgy. In addition, the research incorporates the experiences of other workers during the period from 2010 to 2014, when the author was involved in the production line of motorcycles in the Manaus Free Trade Zone. One of the main objectives of the work is to bring to the scene not only the author’s real experiences, but also to develop the construction of the “worker” character through reports shared by other individuals who shared this function in the industrial center of Manaus. Keywords: Industrial hub; Manaus; Scenic Editing; Acting.
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\ RESUMEN En el corazón del enfoque de la producción escénica “Operária” se encuentra la marcada influencia estética del Teatro Político de Bertolt Brecht, que desempeña un papel crucial en el proceso creativo tanto de la actuación como de la dramaturgia. Además, la investigación incorpora las experiencias de otros trabajadores durante el período de 2010 a 2014, cuando el autor estuvo involucrado en la línea de producción de motocicletas en la Zona Franca de Manaos. Uno de los principales objetivos de la obra es traer a escena no solo las experiencias reales del autor, sino también desarrollar la construcción del personaje “trabajador” a través de relatos compartidos por otros individuos que compartieron esta función en el centro industrial de Manaos. Palabras clave: Polo industrial; Montaje escénico; Interino.
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\ relato de experiência na Zona Franca de Manaus: a construção da montagem cênica Operária
\ INTRODUÇÃO A declaração universal dos direitos Humanos promulgada em 1948 pela ONU (Organização Das Nações Unidas) declara que todo ser humano tem o direito à livre escolha de emprego, a condições justas e favoráveis de trabalho”. Entretanto, não foi o que a experiência real vivenciada por mim, Kelly Vanessa, acadêmica do curso de Bacharel em Teatro pela Universidade do Estado do Amazonas - UEA, tive aos vinte anos quando fui trabalhar como auxiliar de produção na empresa J Toledo Suzuki, do Polo Industrial de Manaus, na linha de montagem da Hayabusa - moto de alta cilindragem. Diante do contexto histórico, nota-se como a industrialização no Brasil foi um tanto tardia, enquanto na Inglaterra no século XVIII, acontecia a Revolução Industrial, vivíamos no período colonial, época em que a produção de manufaturas era proibida em todo território. De acordo com Rangel (2005), o processo de industrialização brasileira tem sua própria lógica interna baseada, sobretudo, nas substituições de importações em tempos de crise internacional. Somente em 1808, com a chegada da Família Real, as primeiras fábricas foram abertas, estabelecendo-se nos estados do Sul e Sudeste, em estados como São Paulo, Porto Alegre e Rio de Janeiro. No governo de Juscelino Kubitschek - presidente de 1956 - 1961momento em que o Brasil passa por um crescimento da indústria de bens intermediários, abre-se a economia brasileira ao estrangeiro, com a construção de Brasília, garantindo o fomento à indústria nacional (SUZIGAN, 2000). Esse modelo de desenvolvimento orientado pela industrialização via estratégia de substituição de importações e fundado na política de massas (IANNI, 1994, OLIVEIRA, 1982) reservou à região amazônica uma posição secundária no processo de dinamização econômica. A cidade de Manaus passava por uma estagnação econômica que contribuía significativamente no baixo valor da força de trabalho (SKLAIR, 1991). O
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1. As atividades de extrativismo são realizadas no Brasil desde o período colonial em que o destaque era para o extrativismo vegetal de madeira e de minérios como o ouro principalmente nas regiões Norte, Centro-Oeste e Sudeste. Durante o século XIX o extrativismo se tornou mais intenso no Norte do Brasil devido a existência de uma grande variedade de madeiras e plantas que podiam ter uso medicinal (Kainer, 1992).
aumento da concorrência por empregos, implicava em dificuldades na sua organização política (SALAZAR, 1992). Nesse sentido, no ano de 1957, por meio da Lei Federal n° 3.173 criouse a Zona Franca na cidade de Manaus (BRASIL, 1957), onde após dez anos passa por revogações dispostas no Decreto-Lei N° 288 de 1967 que estabeleceu os limites e objetivos para a implantação da Zona Franca de Manaus (BRASIL, 1967), onde define: “Art 1º A Zona Franca de Manaus é uma área de livre comércio de importação e exportação e de incentivos fiscais especiais, estabelecida com a finalidade de criar no interior da Amazônia um centro industrial, comercial e agropecuário dotado de condições econômicas que permitam seu desenvolvimento, em face dos fatores locais e da grande distância, a que se encontram, os centros consumidores de seus produtos. Além disso, em 1968, o governo federal ampliou a zona de concessão de benefícios da Zona Franca de Manaus por meio do Decreto-Lei n°356/1968, que incluiu toda a Amazônia Ocidental (Amazonas, Acre, Rondônia e Roraima) (BRASIL, 1968). Com o intuito de administrar os incentivos fiscais e supervisão das atividades foi criada a Superintendência da Zona Franca de Manaus (SUFRAMA) por meio do Decreto n°61.244/1967 (BRASIL, 1967). Dentro desse cenário em Manaus, a Zona Franca, constituiu-se um centro industrial e comercial, logo a cidade torna-se um modelo de desenvolvimento econômico, abrigando meio milhão dos habitantes da capital amazonense como trabalhadores até os dias de hoje, sendo assim um crucial instrumento para o desenvolvimento e ocupação da região (CHIESA, 2002). Em contrapartida, as atividades do polo industrial mudaram a vida dos trabalhadores, que se ausentaram de seus lares e do extrativismo1, assumindo uma demanda exaustiva de carga horária de trabalho,
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com salário-mínimo baixíssimo. Esse antagonismo remonta à ideia do marxismo que é baseada na luta de classes, pois para Marx a sociedade é dividida em classes antagônicas com objetivos opostos, em geral, a divisão é da burguesia e do proletariado (LUKÁCS, 1974). Esse modo de vida comum, constituído pela posição da classe na divisão social do trabalho, gera interesses comuns e oposição comum contra as outras classes sociais (VIANA, 2016). Em relação a industrialização, a fábrica de motos Suzuki foi instalada no Brasil em 1992, por meio de sua representante J Toledo Motos do Brasil, simultaneamente é chegada a oportunidade de fabricação e comercialização de motocicletas Suzuki no país (MARIM, 2010). Nessa empresa começa minha jornada como operária, de 2010 até 2014, trabalhei, especificamente, na linha de montagem das motocicletas Hayabusa, que em 1999, foi eleita a moto mais rápida do mundo, foi a primeira a ultrapassar a barreira 300 km/h. Com o término do contrato na empresa em 2014, após um processo seletivo da Agência Amazonense de Desenvolvimento Cultural - AADC2 fui selecionada para ser instrutora de Teatro do Projeto Jovem Cidadão3. Foi nesse novo contexto, que pude perceber as possibilidades de novos ares sem a opressão de uma industriária. Estava me libertando da operária do distrito industrial para a operária da cultura com um mundo de novas oportunidades de tornar-me protagonista de mim mesma. Paralelamente às revoluções industriais, na Alemanha, surge um teatrólogo Bertolt Brecht (1898-1956) uma das personalidades teatrais mais marcantes do século XX. Tive acesso aos seus textos do mesmo na primeira graduação em Teatro na Universidade do Estado do Amazonas UEA, lembro das encenações de trechos da peça “A boa alma de Setsuan” e “Ópera dos três vinténs” junto à professora Annie Martins na disciplina de Interpretação II no ano de 2017/1. Dessa maneira, aproveitamos para discutir e fazer improvisos em cima da fragilidade e todos os contextos sociais que a raça humana está inserida, daí surgiu o anseio para explorar mais os textos de Brecht.
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2. A Agência Amazonense de Desenvolvimento Cultural (AADC) foi criada em 29 de dezembro de 2010 pelo Governo do Estado do Amazonas, por meio da Lei o Decreto nº 3.582 de 29 de dezembro de 2010, e instituída pelo Decreto nº 31.136, de 30 de março de 2011, como pessoa jurídica de direito privado, sem fins lucrativos, de interesse coletivo e de utilidade pública. 3. O Projeto, coordenado pela Secretaria de Estado e Assistência Social – SEAS em parceria com o Centro de Educação Tecnológica do Amazonas – Cetam, Secretaria de Estado de Educação do Amazonas – Seduc, Secretaria de Estado da Juventude , Desporto e Lazer – Sejel e Secretaria de Estado de Cultura – Sec, beneficia alunos da rede estadual de ensino por meio da oferta de educação profissionalizante e atividades culturais e esportivas.
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Segundo Brecht (1978) “só poderemos descrever o mundo atual para o homem atual, na medida em que o descrevermos como um mundo passível de modificação.” Esse teatro nos dá a oportunidade de trazer para cena causas sociais, sendo assim, as peças são conhecidas por um teatro político, sempre marcadas por reflexão que possibilitam mudanças significativas para sociedade. Outro dramaturgo que carrega em seus textos reflexões da atual sociedade, Marcio Sousa em Folias de látex e Tem Piranha no Pirarucu. Tive a oportunidade de encontrá-lo algumas vezes e pude ouvir de perto suas experiências com o fazer teatral e ainda pode relatar a importância do teatro de Brecht, no decorrer deste trabalho trago a entrevista que fiz com o mesmo. Com isso, o presente trabalho traz o processo de construção da montagem cênica “Operária” que mostra algumas situações de precarização vivenciada pela mesma, nos anos de 2010 a 2014, que a impediu de usufruir deste direito internacional na prática. No decorrer da pesquisa, será pontuado como se desenvolveu o processo de construção da montagem cênica, suas inspirações a partir do texto dramatúrgico de Márcio Souza e ainda, como se relacionou com as histórias reais expostas no corpo e vindas à luz pela memória, sendo agora uma representação do seu tempo de Operária.
\ MOTIVAÇÃO PARA MONTAGEM DA PEÇA “A OPERÁRIA” Durante o processo de construção da personagem “Operária” foi necessário revisitar os processos cênicos que reverberam no meu corpo. Logo após terminar a primeira graduação em Licenciatura em Teatro, senti o anseio em experimentar mais as práticas teatrais com o corpo em cena, pois tive a sensação de que a primeira graduação trouxe muitas disciplinas pedagógicas (trago a memória que tinha consciência sobre isso, o desejo era somente fazer licenciatura). Já estava em sala de aula como instrutora de Teatro, amo ministrar aulas, também dentro dessa primeira graduação me reconheci enquanto produtora de teatro, sempre
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por detrás das cortinas, foi meu desejo ser professora ou produtora e pouca experimentação com o corpo. Em 2019, iniciei uma pesquisa junto à Daniely Lima4 sobre as questões de identidade e gênero dentro da cena contemporânea, sendo inspiradas pelo teatro documentário e a noção do corpo como performer enquanto documento de cena revisitando recortes reais da minha vida. Dessa maneira, a sala de ensaio e meu corpo têm se encontrado nesse lugar da atuação teatral. Montei e fiz temporada com a performance “Vanessa” resultado dessa pesquisa, com a direção de Daniely Lima e provocação cênica de Cássia do Vale5 do Bando de Teatro de Olodum. Rodamos a cidade de Manaus através da Lei Aldir Blanc6, contemplada com o Prêmio Manaus Conexões Culturais 20207. Cito essa experiência com a Daniely, pois foi a partir dela que desejei construir e montar um espetáculo na performance “Vanessa”, que depois muda para “Memórias”. Depois desse processo criativo artístico, vi a possibilidade de construir o que quisesse com o teatro, pois poderia contar minhas histórias, através da encenação, sendo a protagonista, estando no palco como atriz e apresentando minhas vivências no pólo industrial de Manaus, que se ausentou muito da minha fala. Sempre que ouço um governo ou um jornal noticiar sobre ensino técnico e jovem aprendiz, sou tocada profundamente, uma vez que recordo de tudo que vivenciei e dos anseios em trabalhar no pólo industrial de Manaus. Muitos jovens, assim como eu, sonham com seu primeiro emprego, porém, pouco se fala de todas as debilidades que os empregados do distrito passam, como as atividades repetitivas sendo exercidas em tempo determinado pelos líderes de linhas que em sua maioria são autoritários e grosseiros. Conta-se também, com o calor em excesso por conta do ambiente fechado e com pouca circulação de vento. O almoço que muitas vezes está em uma decadência, além de acordar muito cedo para pegar o transporte disponibilizado pela empresa para todos e isso faz com que a rota passe muito cedo e traga de volta cada um a sua casa muito tarde dependendo do bairro que você mora. Recordo sempre que não tinha acesso ao azul do céu e não via a luz do dia.
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4. Daniely Lima é palhaça, encenadora e arte educadora residente em Manaus. Pesquisa com a comicidade negra e o conceito de mulheridade na cena contemporânea. 5. Cássia Valle é atriz,museologa,Gestora Cultural, Membro do colegiado do Bando de Teatro Oludum, escritora, Poeta, Contista, dramaturga e diretora teatral. Mestre em Patrimônio Cultural. 6. Lei Nº 14.399, De 8 julho de 2022. Institui a Política Nacional Aldir Blanc de Fomento à Cultura. 6. Lei Nº 14.399, De 8 julho de 2022. Institui a Política Nacional Aldir Blanc de Fomento à Cultura. 7. fomento a projetos artísticos e culturais se dará por meio do Prêmio Manaus de Conexões Culturais, instrumento utilizado para a aplicação do inciso III, da Lei Aldir Blanc, que trata de editais, prêmios e chamadas públicas destinadas aos trabalhadores da cultura.
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8. https://www.gov.br/ suframa/pt-br/assuntos/ polo-industrial-demanaus. Acesso em 26 de Janeiro de 2024.
Em 2021, inicio a especialização em Desenvolvimento, Etnicidade e Políticas Públicas no Instituto Federal do Amazonas - IFAM e deparome com os livros de Márcio Souza, especificamente “Tem piranha no pirarucu“ que logo na contra capa relata que o texto foi censurado com o título que chamava-se “Zona Franca meu amor”. Em vista disso, é muito perceptivo que nunca poderíamos falar de uma forma crítica sobre o setor da indústria que mais emprega os cidadãos amazonenses. Segundo o Portal Suframa8, meio milhão da população amazonense trabalha no pólo industrial de Manaus e a cada dez pessoas que conhecemos, sete trabalham no distrito, e essa pesquisadora, foi uma dessas trabalhadoras que durante quatros anos em seu primeiro emprego, foi uma operária do polo industrial de Manaus com então vinte anos de idade. Exatamente depois de dez anos de minha saída da empresa que trabalhei, resolvi trazer para cena um pouco do que vivenciei dentro da fábrica do polo de duas rodas.
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Figura 1. Contracapa do livro de Márcio Souza.
Fonte: A autora (2024).
Em meu encontro com o escritor brasileiro, dramaturgo, ensaísta, diretor do tesc e romancista brasileiro Márcio Souza, ele pode narrar a partir de entrevistas, o quanto seu trabalho teve influência de Bertolt Brecht para
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9. Helene Weigel nasceu em Viena, em 12 de Maio de 1900, foi uma das mais notáveis atrizes de sua geração. Era casada com o dramaturgo alemão Bertolt Brecht e diretora artística do Berliner Ensemble, a sua atuação se apresentava entre os principais papéis das obras do dramaturgo Brecht. (MARSTON, 1999).
desenvolver suas encenações. Abaixo alguns destaques da entrevista no dia 16 de junho de 2023: Fala um pouco sobre o Bertolt Brecht. (Autora) Conheci pessoalmente Brecht, em Berlim, ele só falava alemão, falava muito mal inglês, eu não entendia nada do que ele tentava falar em inglês, eu tenho um inglês muito melhor do que o dele, rsrs então ele e a Helene Weigel9 nos receberam lá em Berlim, eu fui assistir a “A exceção e a regra” da Helene, montagem que eu já tinha encenado aqui (Manaus - AM) de forma bem diferente é claro, e o Brecht era uma pessoa que falava mal o inglês, e eu nunca aprendi o alemão mas nós conseguimos nos entender de alguma maneira porque tinha a linguagem do Teatro, que eu dominava muito bem, ele muito mais do que eu. (Márcio Souza) E essa montagem ‘’ A exceção e a regra’’ que você assistiu lá, como foi? (Autora) Era um monólogo com vários trechos das obras do Brecht, era um espetáculo de uma hora e meia, inclusive textos teóricos. (Márcio Souza) Como foi a influência do Brecht no teu trabalho, nas tuas obras? (Autora) Olha o Brecht foi crucial, porque ele era um dramaturgo que tinha um senso crítico, foi um grande escritor, um grande dramaturgo, conhecia profundamente a linguagem teatral, ele era um autor que queria dizer coisas importantes, passar coisas importantes para plateia. E essa lição eu aprendi com ele, de passar as coisas e as falas, as coisas daqui do Amazonas, para plateia aqui de Manaus E
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para a plateia brasileira. Nós fizemos várias temporadas em São Paulo, no Rio de Janeiro, e é claro, em São Paulo, foram fantásticas as duas vezes que apresentamos lá, uma vez no Centro Cultural de São Paulo, na sala Ademar Guerra, nós fizemos o “Tem Piranha no Pirarucu” foi um sucesso, fantástico, o povo se surpreendia, aquele tipo de senso de humor cáustico, nosso espetáculo não era muito comum lá em São Paulo, o senso crítico ganhava a plateia. E depois quando nós voltamos para Manaus, o sucesso de São Paulo atraiu o público daqui, até porque raramente fazíamos no Teatro Amazonas, nós tínhamos nosso teatrinho ali no SESC, só depois que o teatrinho entrou no interesse do público de Manaus, mas no início as pessoas achavam estranho aquilo, aquele teatro pequenino, com os bancos, sem cadeira, depois que a gente conseguiu as cadeiras individualizadas. Aí nós dividimos alguns programas, como por exemplo, nós tínhamos sábados detonados, que era uma programação aos sábados, que a gente fazia uma coletânea de textos críticos sobre Manaus e a sociedade baré, era um grande sucesso porque a juventude se identificava com as críticas do Sábados detonados, de tal forma que o teatro ficou pequeno demais. Começou a dar problema na entrada, as pessoas queriam entrar na marra, tivemos que trazer para o hall de entrada do SESC, era o grande sucesso do grupo. (Márcio Souza) Que surpreendente ouvir Márcio Souza falando do Brecht, pois já era um desejo trabalhar com o método Brechtiano. A ideia inicial era montar uma peça na íntegra de Márcio Souza com o método teatro épico, contudo, nos encontros que tivemos junto à equipe primária da montagem teatral “Operária”, Ivy Oliveira10, na direção de Pedro Arcos11, na cenografia e produção, dialogamos e pesquisamos através de leituras e chegamos à conclusão de que as minhas vivências dentro do polo industrial de Manaus estariam presentes.
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10. Atuando no Teatro desde os 15 anos de idade, tem formação no Liceu de Arte e Ofício Cláudio Santoro e na Universidade do Estado do Amazonas, onde participa do Grupo de Teatro Experimental da Universidade-TEU e Grupo Fome. 11. Graduando em Licenciatura em Teatro, professor, iluminador, ator, cenógrafo e pesquisador da Cena Ballroom de Manaus. Iniciando no teatro em 2015, no Liceu de Artes e Ofícios Cláudio Santoro, estudante universitário desde 2022 e professor do CMPM II Marcantonio Vilaça e Escola Municipal Waldir Garcia, ambas da SEDUC/AM.
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12. O Produto Interno Bruto (PIB) corresponde ao somatório de todos os produtos finais da economia de uma determinada região, seja ela uma cidade, estado ou país.
Dessa maneira, o diálogo com os dramaturgos estaria presente, além de poder trazer as minhas próprias histórias para cena que me daria a autenticidade para o processo criativo da montagem cênica “Operária”. Então iniciamos os ensaios com o texto “Tem piranha no pirarucu” reverberando em alguns momentos junto com as minhas memórias como é sugerido: Montamos uma peça para lembrar de questões relevantes; lembramos delas em nossos corpos, e as percepções ocorrem em tempo real e espaço real (BOGART, 2011, p. 29). As imagens da época que estive na fábrica J Toledo Suzuki motos do Brasil ficaram mais nítidas e comecei colocando trechos que faziam relação com a realidade vivenciada como, relatos sobre o PIB12 e questionamentos sobre os tipos de proteínas na hora do almoço. É muito comum na mesa do manauara o frango e não o peixe tambaqui e pirarucu, peixes típicos da nossa região. Todos esses assuntos tratados na dramaturgia de Márcio Souza condizem com a realidade vivenciada na fábrica. Assim como a borracha foi um levante para economia do estado no século passado (OLIVEIRA, 2001), a Zona Franca de Manaus é um modelo econômico de desenvolvimento que abrange 10 mil quilômetros quadrados, totalizando no ano de 2017 50 anos de criação (ARAÚJO, 2017). Mesmo diante da crise mundial em 2018, esse polo continua em destaque na economia da região, empregando um terço da população manauara, porém, fica uma pergunta: quem ganha com esse desenvolvimento econômico? Uma das maiores motivações para montar um espetáculo teatral que traz essa temática de trabalhadores na linha de produção do Polo Industrial é mostrar que não são os operários que ganham com esse desenvolvimento, mas são eles os que mais colocam suas mãos em evidência para essa linha de produção nunca parar.
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Figura 2. Processo de construção da “Operária” com Ivy Oliveira e Pedro Arcos em junho de 2023.
Fonte: A autora (2024).
\ OPERÁRIA EM CONSTRUÇÃO: SALA DE ENSAIO A dramaturgia da “Operária” foi construída com a ajuda de Marilta Figueiredo13 que começa a participar dos ensaios e me ouve relatando como era o processo de ir trabalhar. A narrativa se inicia no caminho de ida e volta ao distrito, na rota, com relatos de insatisfação de não poder ver a luz do dia, além de apresentar o processo de montagem da Hayabusa - considerada a moto mais rápida do mundo em 1999. Durante a jornada dentro da fábrica, ficava nos postos de montagens que continham as seguintes peças: paralama, guidão e carenagem da moto, dessa maneira trago para cena os movimentos repetitivos na montagem dessas peças, trago para o corpo as partituras que darão conta da mecanização que as trabalhadoras e trabalhadores são submetidos por anos a fio.
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13. Marilta Figueiredo, dramaturga, atriz e cantora. Atua desde 2015 no cenário amazonense como dramaturga e atriz, tendo mais de 8 dramaturgias encenadas nos Centros de Convivência da Família Madalena Arce Daou e Padre Vignólia, bem como no Teatro da Instalação e Largo de São Sebastião. Participação em filmes premiados como Graves e Agudos em Construção de Valter Jr., como cantora no projeto da Banda Vó Tita, em andamento.
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O teatro épico utiliza, da forma mais simples que se possa imaginar, composições de grupo que exprimam claramente o sentido dos acontecimentos. Renuncia a composições “acidentais” que “simulem a vida”*arbitrárias”: o palco não reflete a desorganização “natural” das coisas. É precisamente o oposto da desorganização natural que se aspira, ou seja, à organização natural. Os princípios à luz dos quais se estabelece tal organização são de índole histórico-social. A atitude que a encenação deverá assumir identifica-se com a de um cronista de costumes e a de um historiador; esta identificação, muito embora caracterizando deficientemente tal atitude, facilita-nos a sua compreensão (BRECHT, 1956, p. 32). A partir da Figura 3 é possível observar o início que foi a construção da personagem “Operária” na sala samambaia dentro da Escola Superior de Artes e Turismo - ESAT. Logo no início, usei os objetos dentro da sala que remetiam ao local que trabalhei dentro da fábrica. No decorrer das orientações da professora Vanja Poty, ela me desafiou a esquecer um pouco dos objetos e a trabalhar o meu corpo enquanto atuação, representando as atividades repetitivas.
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Figura 3. Início do processo cênico na sala de ensaio em Junho de 2023.
Fonte: A autora (2024).
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14. O ator Lucas Sancho, fundou em 2008 o projeto o grupo Núcleo do O Ator Maestro, que visa na construção de espetáculos solos do artista como regente da cena.
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15. Giselle Letícia, rondoniense de sangue amazonense, iniciou seus estudos musicais ao piano na Escola de Música Villa-Lobos em sua cidade natal, Porto Velho. Aos 13 anos ganhou de seu pai sua primeira flauta transversal. Foi amor à primeira vista, e de lá para cá muitas memórias foram criadas. Em 2020, aos 17 anos, ingressou na Universidade do Estado do Amazonas (UEA) em Manaus, como aluna de Bacharelado em Música - Instrumento Flauta Transversal. sob orientação do Prof. Diogo Navia. 16. Diogo Navia é músico e psicanalista residente em Manaus. Professor da Universidade do Estado do Amazonas, membro do Laço Analítico/Escola de Psicanálise e integrante da Banda Casa de Caba 17. Amiga da autora, até os dias de hoje, na peça Operaria, ganhou uma personagem(2024). Maria Glaudiane Pinheiro Melo, Há 10 anos Técnica de Segurança do Trabalho. Atualmente como parte do Setor do SESMT do Grupo Eucatur. Tecnóloga em Gestão Ambiental pela Faculdade Salesiana Dom Bosco. Especialista em Auditoria Ambiental Aplicada ao Desenvolvimento Sustentável.
Esse processo corpóreo foi muito árduo, pois a preparação corporal não foi muito exercida antes, senti muitas dificuldades em relação ao condicionamento físico, além de ser visitada com pensamentos “não quero” e “não consigo”. Ivy, enquanto diretora, usou o método ator maestro14, o processo de construir tudo sozinha me angustiava, visto que revisitar minhas histórias era um grande desafio. Pensar em tudo para a construção de “Operária” poderia ser menos angustiante, contudo, pude contar com uma equipe para dialogar e construir junto. Começo a compartilhar mais com as pessoas ao meu redor sobre o processo criativo e nesse tempo encontro no restaurante universitárioRU a Giselle Letícia15 que está cursando música na ESAT, com habilitação em flauta, sendo assim, lancei o convite para ela aderir junto ao processo criativo da montagem cênica “Operária”. Ela aceitou. Ter uma musicista no processo foi um divisor de águas, uma vez que o processo começou a se formar. Giselle Letícia também lança o convite ao seu orientador Diogo Navia16 para assistir a um ensaio. Lembro de que nesse dia, houve vários feedbacks a partir do orientador e foi fundamental, pois foi sugerido o uso do instrumento diapasão que começamos a usar no início da peça até o fim. É muito real a vivência dentro da fábrica, e esse episódio do uso do instrumento diapasão me fez lembrar do protetor auricular sempre usado por todos os colaboradores do distrito. Nesse período de construção, fiz contato com as meninas que ainda trabalhavam lá e consegui protetor, uma blusa e um boné. Nasce a personagem. Na verdade, as personagens, um monólogo onde a atriz Kelly Vanessa traz seis personagens. Algumas pessoas que trabalhavam comigo na fábrica surgiram em minha memória, assim, personagens se entrelaçam com as pessoas reais. Glaudiane17, a amiga sempre presente, questionando, abrindo sempre as conversas paralelas, daí logo surge o Seu Paixão, o líder brabo que traz sempre as frases como “produtividade”, “sem conversas paralelas” e “para aumentar o PIB”. Recordo que durante o almoço sempre tinha a Valéria que mostrava seus catálogos e vendia seus produtos de beleza, e fazia sua renda extra, na cena, ela aparece para mostrar que no distrito há uma vida além da linha de produção das motocicletas. 239
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Havia também a dona Lila que vendia bombons e doces após o almoço, tudo de forma bem discreta, pois a venda não era permitida. Há a personagem Raquel, contudo, é uma personagem ainda em construção, pois gostaria de poder extrair mais para poder dialogar com uma temática sobre como as mulheres são percebidas e assediadas dentro da fábrica. Com esses personagens estabelecidos em agosto de 2023, conseguimos levar a montagem cênica à qualificação dentro da disciplina montagem cênica 1 para continuidade na disciplina montagem cênica 2. Durante o início do novo semestre, Ivy decidiu, por questões pessoais, sair da equipe do espetáculo “Operária” e ficamos sem direção. Dessa maneira, permanecem apenas eu, Pedro e Gisele. Nesse momento, começo a acionar amigas e profissionais do teatro como Viviane Palandi18, Isabela Catão e Marilta Figueiredo para ajudar na construção e amadurecimento da personagem. Viviane atua durante muito tempo como preparadora corporal e Marilta enquanto dramaturga e começa a apoiar na direção teatral das cenas, Isabela é atriz da cena e ajudou com algumas sugestões de leituras e conta algumas histórias sobre seus familiares que vivenciaram no distrito. Todas essas falas e escutas sensíveis fortaleceram a montagem cênica “Operária” e serei eternamente grata às meninas por isso. Certo dia, durante o ensaio, recebo uma mensagem, por meio do aplicativo WhatsApp, de Wagner Santinny19 se disponibilizando para entrar na equipe da montagem cênica, já que ele estava sem processo cênico e precisava ser avaliado na mesma disciplina curricular de montagem cênica II. Sendo assim, aceito o pedido, pois já era meu desejo que alguém ocupasse especificamente esse papel de diretor da cena. Acredito muito no papel do diretor de um espetáculo, visto que este é o primeiro espectador e assim poderíamos progredir com mais confiança e a ficha técnica completa. A ficha técnica é composta por: atriz, Kelly Vanessa; direção teatral, Wagner Santinny; estagiária de Direção, Bruna Pollari; direção musical, Giselle Letícia; dramaturgista, Marilta Figueiredo;
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18. Atriz, preparadora de atores e atrizes, provocadora cênica. Formação pela Escola Livre de Teatro (ELT) em Santo André-SP, graduada em teatro pela Universidade do Estado do Amazonas (UEA), mestranda pelo programa de PósGraduação Interdisciplinar em Ciências Humanas (PPGICH-UEA) e artista pesquisadora no Diretório de Pesquisa Tabihuni – ESAT/UEA. 19. Wagner Santinny, ator, diretor, produtor, Finalista do curso de bacharelado em Teatro (Uea) e iniciação à Licenciatura, foi estagiária da Federação de Teatro do Amazonas e atualmente compõe o quadro de estagiários da central de arte e educação na secretaria de cultura de estado de cultura e economia criativa.
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20. Anna Carolina Pereira Angelo - Anna Angelo discente do curso de licenciatura em teatro na Universidade do Estado do Amazonas ( UEA). Atriz, mediadora teatral, iluminadora e atuando como arte-educadora sendo bolsista do programa de iniciação a Docência (PIBID)
cenografia e produção, Pedro Arcos; provocadora cênica, Viviane Palandi; iluminação, Ana Angelo20 e Gabriel Pascarelli; fotografia, Tainá Andes. Figura 4. Ensaio aberto com a primeira vez de Márcio Souza na plateia.
Fonte: A autora (2024).
Na foto acima, é possível encontrar (da esquerda para direita) Giselle Farias, Pedro Arco, Kelly Vanessa, Marcio Souza, Cesar (acompanhante de Márcio) e Fabio Batista Campos (espectador) e embaixo da esquerda para direita, Vagner Souza e Vanja Poty. No dia da foto mencionada,
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aconteceu um ensaio aberto em que a presença de Márcio Sousa foi muito significativa. O dramaturgo menciona que a peça “Operária” é muito diferente do “Tem Piranha no Pirarucu”, pois fala das realidades dos operários e a dramaturgia dele fala sobre o início da chegada da Zona Franca de Manaus. Com isso exposto, concluímos que a “Operária” marca uma trajetória de inovação para permear espaços onde possamos falar de opressores e oprimidos no contexto que foi vivenciada por ela.
\ CONSIDERAÇÕES FINAIS A grande motivação em não desistir dessa montagem é poder presenciar os espectadores na plateia e depois ser procurada com relatos de como foi assistir a “Operária”. Entre risos e reflexões percebo que ainda há um enorme percurso nessa jornada e não posso desistir. Contudo, percebo que não estou sozinha neste processo, há uma equipe em um processo colaborativo construindo e amadurecendo junto. Dessa maneira, decidi trazer para as considerações a fala da equipe (Figura 5) e espectadores que estão na montagem cênica de a “Operária”, a partir das seguintes perguntas: “Qual a importância pra mim a criação de “Operária”?”; “Como tem sido participar desse processo de criação da montagem cênica “Operária”?” e “Qual o tipo de interação que vocês operaram como criadores da montagem cênica “Operária”?”.
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Figura 5. Apresentação da qualificação da montagem cênica.
Fonte: A autora (2024).
De acordo com a equipe de “Operária”: Ao escrever o texto ‘’Operária’’ tive a oportunidade de pesquisar um pouco da história ocorrida desde o período da borracha até o aparecimento do Distrito Industrial, bem como conhecer, através de relatos da idealizadora do projeto, fatos que ocorriam quando da sua permanência, como funcionária e que talvez ainda ocorram no ambiente de trabalho, que nos faz refletir sobre as Leis e seus respectivos cumprimentos. Trabalhadores que disponibilizam horas preciosas sem ter o devido equipamento de segurança, mulheres que ganham menos, trabalhando mais que os homens, experimentando a dor de deixar os filhos sob cuidados alheios e todo um trajeto de cumplicidade de quem deveria fiscalizar e simplesmente fingem que não estão vendo. Para mim foi motivo de
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acrescentar à minha vivência mais fatos de repúdio ao sistema. Em contrapartida, tive a oportunidade de mostrar para o público um pequeno recorte do que realmente acontece com os trabalhadores. Espero que possam mostrar no palco toda a trajetória da personagem por mim escrita, pois a mesma tem uma gama de informações e reflexões para serem compartilhadas com o público. (Marilta Figueiredo, dramaturgista) Fazer parte da equipe da montagem do espetáculo “Operária” foi participar de diálogos colaborativos durante todo o processo criativo. Tendo a escuta aberta para as colaborações advindas da equipe, cada integrante, com sua respectiva função, contribuiu na montagem. Isso ampliou o processo, como também, acentuou a abertura e disponibilidade da atriz durante a experimentação da dramaturgia escrita, espacial e corporal. (Viviane Palandi, provocadora cênica) Para mim, estar participando da montagem de “Operária” como direção musical é um grande prazer e privilégio. É uma peça que retrata fielmente a realidade dos trabalhadores no Distrito Industrial de Manaus. Apesar de nunca ter trabalhado no distrito, pessoas que foram e são próximas a mim já trabalharam ou ainda trabalham e ao conversar com elas, eu sempre vejo cenas da ‘’Operária’’ Além disso, é a segunda vez que trabalho com direção musical e continuo me apaixonando pela área do teatro e da direção musical. Fazer parte desse trabalho é uma forma de eu aprofundar ainda mais os meus conhecimentos musicais, instrumentais e inclusive pessoais, além de trabalhar minha criatividade e pensamento rápido. (Giselle Leticia, direção musical)
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Fazer parte de “Operária” foi uma experiência incrível. É ótimo ver o crescimento de pessoas com as quais você está trabalhando. Pude presenciar o esforço de cada um e o melhor delas no palco. Isso é enriquecedor. Para mim, como estudante de teatro, só veio a acrescentar. Conhecer a realidade de uma trabalhadora de fábrica que dá voz a tantas pessoas em situações semelhantes, emociona e nos faz pensar o quanto é difícil ter uma rotina que muitas vezes destrói o corpo. Ao assistir, mesmo que você nunca tenha feito parte dessa realidade, você se coloca no lugar dessas pessoas. Fazer cenografia, mesmo com materiais simples, foi algo que me fez crescer como um profissional de Teatro, errando e aprendendo, ao lado de pessoas que incentivam sempre essa evolução, além de abraçar e debater de maneira leve, alegre e emocionante. (Pedro Arcos, produção e cenografia) Participar do processo Operária foi um divisor de águas para minha construção enquanto, diretor, artista e discente. Lembro quando entrei no espetáculo já em processo e queria ver na Kelly Vanessa os sete capítulos de Anne Bogart, de formas implícitas a modo que a atriz pudesse trazer para sala de construção o erotismo e a memória. Foi uma imersão válida em todos os aspectos inimagináveis, foram dias de construção mútua em uma linha horizontal.(Wagner Santinny, direção)
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\ REFERÊNCIAS ARAÚJO, E. S. DESENVOLVIMENTO URBANO LOCAL: o caso da Zona Franca de Manaus. Revista Brasileira de Gestão Urbana, v. 1, n. 1, p. 33–42, 2017. Disponível em: https://periodicos.pucpr.br/Urbe/article/view/4255. Acesso em: 13 mar. 2024. BOGART, A. A preparação do diretor: sete ensaios sobre arte e teatro. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011. BRASIL, Decreto-Lei N° 3.173 de 6 de junho de 1957. Cria uma zona franca na cidade de Manaus, capital do Estado do Amazonas, e dá outras providências. Casa Civil, Subchefia para Assuntos Jurídicos. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/1950-1969/l3173.htm>. Acesso em 13 de Mar. 2024. BRASIL, Decreto-Lei N° 288 de 28 de fevereiro de 1967. Altera as disposições da Lei número 3.173 de 6 de junho de 1957 e regula a Zona Franca de Manaus. Casa Civil, Subchefia para Assuntos Jurídicos. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Decreto-Lei/ Del0288.htm>. Acesso em 13 de Mar. 2024. BRASIL, Decreto N° 61.244 de 28 de agosto de 1967. Regulamenta o Decreto-Lei nº 288, de 28 de fevereiro de 1967 que altera as disposições da Lei nº 3.173, de 6 de junho de 1957 e cria a Superintendência da Zona Franca de Manaus - SUFRAMA. Casa Civil, Subchefia para Assuntos Jurídicos. Disponível em: < https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/atos/ decretos/1967/d61244.html>. Acesso em 13 de Mar. 2024. BRASIL, Decreto-Lei N°356 de 15 de agosto de 1968. Estende Benefícios do Decreto-Lei número 288, de 28 de fevereiro de 1967, a Áreas da Amazônia Ocidental e dá outras Providências. Casa Civil, Subchefia para Assuntos Jurídicos. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/ decreto-lei/del0356.htm>. Acesso em 13 de Mar. 2024.
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BRECHT, B. Estudos sobre Teatro / Bertolt Brecht: coletados por Siegfried Unseld; tradução de Fiama Pais Brandão. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,1978. CARREIRA, A. L. A. N. et al. Metodologia de pesquisa em artes cênicas. Rio de Janeiro. 7LETRAS, 2006. CHIESA, Clélio. A Competência Tributária do Estado Brasileiro: desonerações nacionais e imunidades condicionadas. M. Limonad, 2002. IANNI, Octavio. “O Declínio do Brasil-nação”. Em Estudos Avançados vol. 14, nş 40, São Paulo, 2000, pp. 51-58. KAINER, Karen A.; DURYEA, Mary L. Aproveitando a Sabedoria das Muiheres: O uso de recursos floristicos em reservas extrativistas, Acre, Brasil. Economic Botany, v. 46, p. 408-425, 1992. LUKÁCS, Georg. A consciência de classe. Estrutura de classes e estratificação social, v. 3, p. 11-60, 1974. MARIM, D. Estratégias na indústria de motocicletas: um estudo exploratório do setor de motocicletas brasileiro. 165 f. Dissertação (Mestrado em Administração) - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2010.
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\ memória, texto e revolução: percepções sobre as possibilidades do gênero dramaturgia de autorreferência para a construção da autonomia Lucas Luciano Cardoso de Oliveira Lucas Oliveira, Recife (PE). Graduado pela Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE), é ator, professor, cantor, pesquisador e dramaturgo. A partir de estudos decoloniais sobre identidade e autorreferência, encontra sua perspectiva artística para pensar e refletir sobre o mundo e a existência humana. lucasoliveira_lucas@outlook.com
retorne ao sumário
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FICHA TÉCNICA Instituição Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE) Tipo do curso Graduação Nome do curso Licenciatura em letras português-espanhol Período do curso 2016-2023 Estado Pernambuco Título do trabalho Memória, texto e revolução: percepções sobre as possibilidades do gênero dramaturgia de autorreferência para a construção da autonomia Nome do autor Lucas Luciano Cardoso de Oliveira Nome da orientadora Professora doutora Renata Pimentel Teixeira Número de páginas 20
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\ memória, texto e revolução: percepções sobre as possibilidades do gênero dramaturgia de autorreferência para a construção da autonomia
\ RESUMO Este artigo/ensaio foca sobre como o estudo e a reflexão sobre um gênero textual teatral na contemporaneidade pode auxiliar o processo da autonomia em espaços pedagógicos. Ou seja, partindo do pensamento afrodiaspórico e decolonial, busca-se refletir sobre algumas características e potencialidades do texto dramatúrgico autorreferencial na cena teatral e em outros espaços pedagógicos, principalmente, na promoção da autonomia dos processos de vida para corpos dissidentes. Palavras-Chave: memória, dramaturgia- autorreferencial, autonomia.
\ RESUMEN Esto artículo/ensaio habla sobre cómo la reflexión de un género textual teatral en el mundo contemporáneo puede dar soporte para el desarrollo de la autonomía en espacios pedagógicos. O sea, Partiendo del pensamiento afrodiaspórico y decolonial, quiero reflexionar sobre algunas características y potencialidades del texto dramático autorreferencial en la cena teatral y en lo estudio en otras clase, principalmente, en la promoción de la autonomía de los procesos de vida para cuerpos disidentes. Palabras clave: memoria, dramaturgia autorreferencial, autonomía, teatro.
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\ ABSTRACT This article/essay focuses on how the study and reflection on a contemporary theatrical textual genre can help the process of autonomy in pedagogical spaces. In other words, based on Afrodiasporic and decolonial thinking, we seek to reflect on some characteristics and potentialities of the self-referential dramaturgical text in the theatrical scene and in other pedagogical spaces, mainly in promoting the autonomy of life processes for dissident bodies. Keywords: memory, self-referential dramaturgy, autonomy.
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\ memória, texto e revolução: percepções sobre as possibilidades do gênero dramaturgia de autorreferência para a construção da autonomia
“Educação não muda o mundo, educação transforma pessoas, pessoas mudam o mundo” -Paulo Freire“Vou aprender a ler, pra ensinar meus camaradas” -Ya Ya Massemba, de José Carlos Capinam e Roberto Mendes, na voz de Maria Bethânia-
1 \ PRÓLOGO Vida é o princípio de tudo. Exu é o guardião da vida, é a vida também, por isso as suas ideias também levo como regência, e peço licença para escrever o que se segue sob esta constância, este fluxo contínuo de interação e de múltiplas perspectivas. A vida é o solo de plantio da memória, é o ponto de partida e chegada para a existência. São estas memórias, as do corpo, que principalmente fazem com que eu me reconheça no mundo: eu me chamo Lucas Luciano Cardoso de Oliveira, De Xangô e Malunguinho, vinte e cinco anos no nordeste brasileiro da América Latina, aqui no Recife mesmo - de onde escrevo, preto e indígena como meus pais. Me propondo a lançar um olhar que transita pelo viés científico/ acadêmico, artístico e popular sobre meu jeito de ver o mundo, percebo que o ponto de partida dos meus questionamentos são os processos que envolvem a construção da memória na sociedade contemporânea, socialmente tratados como privilégios, uma vez que eles são resquícios de processos de colonização: do Brasil, do resto da América Latina, da África; e estão pautados no apagamento, no esquecimento, na deslembrança, na desmemória. Logo, possibilitar um ponto de partida sobre estratégias de enfrentamentos contra este sistema e contra as opressões que ele promove, assegurando a democratização e o acesso à memória pelas minorias e o desenvolvimento dos seus processos de autonomia,
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de letramento, da consciência de si e dos contextos onde cada qual está inserido é o mote de reflexão deste trabalho. Na estratégia, então, se sobressai o texto, como núcleo de uma proposta de ressignificação e produção de sentido. Do texto, ressaltam-se aqui as possibilidades da dramaturgia, e das possibilidades dos textos dramáticos, o caráter de autorreferência; o fator de contar sobre si, fazer narrativa de sua própria história, friccionar biografia e ficção, autor e personagem, teatro e a vida de fato: ser obra. A proposta é refletir, a partir de duas dramaturgias contemporâneas autorreferenciais - “Luzir é Negro”, de autoria de Marconi Bispo; bem como o texto de “Memórias Bordadas em Mim”, de Agrinez Melo, a esta última sobre quem tecerei um olhar mais próximo na análise; sobre como elas podem proporcionar a alguém a experiência de perceber-se, e como essa percepção contribui com o processo de liberdade a partir da ocasião em que este indivíduo assume as consequências de se colocar de fato como autor de sua obra. Diante da reflexão sobre as possibilidades do texto, lanço-me a perceber primeiro o lugar teatral, espaço ao qual as dramaturgias inicialmente se destinam, e depois, outros lugares pedagógicos, espaços onde, assim como no teatro, as propriedades dos gêneros textuais podem ser percebidas e refletidas em suas amplas possibilidades. Quero refletir, também, como o estudo deste gênero pode contribuir com a consolidação das observações propostas por Paulo Freire, inseridas nos currículos nacionais de educação, e tão necessárias quando nos propomos, como professores e artistas, a assumir uma perspectiva revolucionária na arte, na educação e no processo de ensino-aprendizagem. Portanto, este trabalho quer refletir e dialogar com as possibilidades de contribuição que o uso de um gênero literário contemporâneo teatral - a dramaturgia -, sob o caráter autorreferencial, pode trazer para a construção da autonomia e a consciência de si aos indivíduos que se reconhecem produtores de textos diversos e se submetem à fricção de serem autores conscientes de si e dos seus textos, para que, a partir disso, sejam autônomos dos seus processos pessoais e sociais de vida. 253
\ memória, texto e revolução: percepções sobre as possibilidades do gênero dramaturgia de autorreferência para a construção da autonomia
2 \ ATO Nº 1: O TEXTO - DRAMATURGIA DE AUTOREFERÊNCIA Partindo dos processos de vida e do entendimento do contexto colonial em que vivemos - a necropolítica, a qual entende Mbembe como “as formas contemporâneas que subjugam a vida ao poder da morte” (2016, p.146) - que este trabalho surge como estratégia e necessidade, a verdade é que há mais de cinco séculos (desde a implantação da empresa colonial) vivemos em estado de sítio, desprovidos de nós mesmos, uma vez que a necropolítica: equivale à dominação absoluta, alienação ao nascer e morte social (expulsão da humanidade de modo geral). Para nos certificarmos, como estrutura político-jurídica, a fazenda é o espaço em que o escravo pertence a um mestre. Não é uma comunidade porque, por definição, implicaria o exercício do poder de expressão e pensamento. (MBEMBE, 2016, p. 131) Logo, essa proposta parte da compreensão de que as bases para o texto de caráter autorreferente funcionam como uma possibilidade de transgredir, fazer memória aos corpos dissidentes, que podem assumila como chave para a autonomia e a transformação, para apropriação do direito de existir. Então, tomando o texto como ferramenta de autonomia, quero refletir sobre a estrutura textual de dramaturgias de caráter autorreferencial, e exemplificar este gênero a partir de “Memórias bordadas em mim”, de Agrinez Melo e “Luzir é negro”, de Marconi Bispo. A priori, quero definir algumas perspectivas, entendo aqui o texto como possibilidade de construção de sentido (KOCH, 2003, P.19), fricção e ação. Encarar o texto dessa forma, é acreditar na interação, como preconiza o professor Marcuschi: “Trata-se de uma unidade comunicativa atual realizada tanto no nível do uso como ao nível do sistema.” (2012, p.31). O texto também deve ser entendido como um lugar político de questionamento, enfrentamento e reflexão, é necessário entender os
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multitextos, e como as novas configurações de gênero dizem muito sobre nossas formas de falar, aqui os textos de autorreferência ganham força. A dramaturgia é um gênero textual feito para ser representado em cena, a partir de um/uma ator/atriz (ou várias/es/os) para o público. Não há teatro sem troca e, se não há encenação, a dramaturgia assume o lugar da literatura. Contemporaneamente, preciso pontuar qual a minha perspectiva de dramaturgia e ela concorda com a ideia pós-dramática de Texto: Se procurarmos um conceito que apreenda as novas formas de representação do texto, ele precisa englobar a noção de “espaçamento” no sentido em que concebe Derrida: a materialidade, o decurso temporal, a extensão espacial, a perda da teleologia e da identidade própria. Optamos pelo conceito de paisagem textual, porque ele designa a conexão da linguagem teatral pós-dramática com as novas dramaturgias do visual e ao mesmo tempo mantém o ponto de referência da “peça-paisagem”. Texto, voz e ruído se misturam na ideia de uma paisagem sonora - evidentemente em um sentido diferente daquele do realismo cênico clássico. (LEHMANN, 2007, p.254) A dramaturgia tem fluidez, não acontece somente de uma forma, ou de forma cartesiana como incute a ideia da tradição clássica grecoeuropeia. Esses moldes podem ser considerados dramaturgias, mas há outros saberes e ideias, estruturas do acontecimento particulares de que as ideias clássicas não conseguem dar conta, como as dramaturgias ritualísticas dos folguedos populares presentes em toda América Latina. Um primeiro ponto deve ser percebido: entender e usar o potencial ritualístico que a dramaturgia promove e historicamente traz consigo, para o trabalho de possibilitar autonomia a indivíduos produtores de seus
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próprios textos, é assegurar a experimentação da autonomia através da cena, uma vez que, segundo Mary Douglas, o ritual é “como uma tentativa de criar e manter uma cultura específica, um conjunto particular de suposições através do qual a experiência é controlada.” (DOUGLAS apud CAMAROTTI, 2003, P.21). Ou seja, o foco é no próprio contexto-corpo. (LEHMANN, 2007, p.258). Logo, podemos definir como dramaturgia de autorreferência os textos dramáticos que friccionam biografia e ficção através de um contato com o autor/personagem e o público. O texto tem o objetivo de colocar em foco a história e a vida do/a próprio/e/a autor/e/a, criando uma metalinguagem de si mesmo/e/a. Para Gasparini, a autorreferenciação são “Os textos que justapõem, ou alternam, uma narrativa referencial e uma narrativa ficcional.” ( 2014, P. 197). Quem também afirma a estreita relação entre a autobiografia e a ficção é Silva: O presente do indicativo acaba com a distância entre o momento da narração e a época dos acontecimentos, anula a distância épica. Já a terceira pessoa assume essa distância que separa o eu que narra do eu narrado. Esse procedimento mistura o autobiográfico e o ficcional, sublinha a oscilação entre a autobiografia e a ficção [...] E é essa ambiguidade que leva à própria escritura. Autobiografia ou ficção? O efeito autobiográfico está presente, e o efeito ficcional também. Mas ambos remetem à escritura, à maneira pela qual a palavra trata dessas diferentes possibilidades. (SILVA, 2004, p. 38). Para melhor percebermos as potencialidades do texto dramático de autorreferência, trago agora uma reflexão sobre como se estruturam dois exemplos de dramaturgia de caráter de autorreferência já indicadas anteriormente: “Memórias bordadas em mim”, de Agrinez Melo (2022) e “Luzir é negro”, de Marconi Bispo (2017). A análise estabelecida sobre estes dois textos está fundamentada nas ideias contemporâneas sobre texto as quais, principalmente à luz dos estudos contextuais, acredita-se estarem
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configuradas na literatura, o lugar de construção de sentido e fricção e que tem como objetivo exemplificar ou perceber particularidades. Ou seja, “Uma atividade interativa altamente complexa de produção de sentidos, que se realiza, evidentemente, com base nos elementos linguísticos presentes na superfície textual e na sua forma de organização” (KOCH, 2003, P.17). “Memórias Bordadas em mim” é um texto dramático autoficcional no qual Agrinez Melo conta sua vida sendo “[...]mulher, negra, mãe, namorada, atriz, figurinista, professora, produtora, iluminadora, sou sócia de um grupo de teatro chamado O Poste Soluções Luminosas, em Recife. (MELO, 2022, p.3)”. Já em “Luzir é Negro”, o ator Marconi Bispo, se descreve: “Eu: negro, gay, ator, cantor, periférico, tio de Hyury e Ana Luísa, filho de Iemanjá e Oxalá, comandado por Oxum, zelado por Oxóssi, que ia ser chamado de Leônidas – os que têm forma e lutam como um leão.” (BISPO, 2017, p. 7) Nessas obras, em primeiro lugar, quero destacar como primordial a metalinguagem que este tipo de texto usa para se estabelecer, na dramaturgia a metalinguagem ganha mais camadas de acontecimento, uma vez que ela não acontece somente na camada da escrita, ela possibilita a cena, a ação: o “eu” fará, também, as ações do “eu”; reviverá a memória do “eu”, fazendo fricção do potencial do teatro e da vida, e da interpretação e do texto, e assim criam-se mais camadas metalinguísticas. Um outro fator que surge com importância é a necessidade da nominação de quem se autorreferencia no texto dramático. Destaco aqui sobre a potência de dizer o próprio nome como comprometimento com a história contada e como tomada de posse da palavra do lugar em cena. Pois, além de assumir a palavra e o foco, “Dar um nome a si mesmo e às coisas é estabelecer uma episteme cultural, um ethos e uma cosmovisão; ou seja, significa construir seu ser-no-mundo”. (WALTER, 2008, p.5).
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Do nome à possibilidade de refletir sobre a presença do corpo políticofísico no contexto do mundo em que vivemos, outro recurso da autorreferência, é possível entender os processos da memória e do corpo e como isso se constitui um só, e assim a reflexão e o questionamento sobre a ocupação do corpo no mundo se tornam uma questão fundamental para o desenrolar da narrativa da cena e da autonomia: “Chamar atenção para o corpo é trair o legado de repressão e negação que nos foi transmitido pelos professores que nos antecederam, em geral brancos e do sexo masculino”. (HOOKS, 2013, 253). Podemos perceber esse processo a partir do fragmento a seguir de “Histórias bordadas em mim”: Eu almejava participar de alguns eventos muito importantes para um modelo. Em um deles, de tanto tentar, fui selecionada, em Recife. Minha mãe passou a noite inteira costurando uma roupa pra mim, enquanto eu sonhava com o desfile. (Caixinha de música) Eu saí de casa radiante. Viajei duas horas de ônibus. Quando chego lá, dou de cara com o maquiador. Ai, racha, que pele é essa? Passa já pra sala de maquiagem, que eu vou deixar a tua pele translúcida. Ele apagou todos os traços do meu rosto. Eu não tinha sobrancelha, não tinha olho, não tinha boca. Curioso que só eu tinha os traços apagados. As outras meninas, não. Entrei na passarela sem brilho nenhum. Saí daquele desfile desolada, viajei duas horas de ônibus, de volta pra casa. (MELO, 2022, p.2) Outra possibilidade do texto autorreferencial é o resgate das particularidades das nossas ancestralidades também dissidentes,
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próprias, através de uma perspectiva também própria, dando nomes exatos, apontando características, uma vez que a nós, corpos dissidentes, também é negado o direito de conhecermos nossa ancestralidade, algo que socialmente é tratado com privilégio, mas Agrinez traz suas raízes, e isso possibilita entender muito mais sobre ela. Eu tinha dois avôs. Um era vô Sebastião. (som gaita) Era um homem negro, alto, careca, simpático. Todo final de semana ficávamos aperriando minha mãe pra ir pra casa de minha avó, só pra que eu pudesse ver meu avô. Chegando lá, eu pulava em suas costas e íamos juntos para a padaria. Comprávamos um pão doce e sentávamos na calçada pra comer. Era uma delícia. Meu avô não podia comer pão doce. Ele já tinha açúcar no corpo inteiro. Num misto de tristeza e consolo, lembrei que ainda tinha um avô. Meu avô José. (som de triângulo) Ah, meu avô José Mendes era um homem branco que usava um chapéu grande e preto e uma bengala. Ele adorava contar histórias. Todos os dias eu voltava da escola e ouvia as histórias do meu avô. (MELO, 2022, P. 9) A mesma busca da raiz/ árvore de genealogia de si ocorre na dramaturgia autorreferente construída por Marconi Bispo, pela invocação da figura do avô, o autor/ator encontra um caminho para recontar a história coletiva, bem como, para além desse significado, a palavra aqui também adota o significado de Deleuze e Guattari, quando também entendem o mundo a partir da perspectiva de que somos vários (1995, p.10):
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[...] convivo, desde sempre, com o fantasma do meu avô paterno, José Mariano Bispo, alguém que me deu o sobrenome. Uma África sem fotografia, sem rosto, África que trago no meu corpo, mas que nunca vi. Meu avô, pai de santo, filho de Iansã, é o invisível visível em mim. Se meu pai nasceu em 1936, meu avô deve ter vindo ao mundo nos anos iniciais do século XX. 1910? 1905? Pouquíssimo tempo depois do que se diz “fim” da escravidão. Negro e pai de santo: meu avô responde até hoje pelo que canto. (BISPO, 2017. P.7) Contar nossa própria história e do nosso povo é descontar a história oficial e pôr em circulação uma versão de relato nosso sobre nós, que somos tantos; é mostrar o outro lado de que todo corpo é casa de narrativas, todo corpo é memória, a memória é a ciência do corpo (NASCIMENTO, 2018, p. 337). Se o fragmento abaixo for lido com, apenas, o compromisso de somente ilustrar uma característica da autoficção, ele não ganhará o sentido necessário a esta reflexão sobre as potencialidades do texto para autonomia; mas, se lido com a consciência de que ele foi proferido por uma mulher preta, autora e atriz de sua história, no palco do teatro Santa Isabel, no Recife, um espaço projetado para os colonizadores, esse texto ganha mais força do que já tem, ganha representação e representatividade. Mais uma vez o maquiador apagou todos os traços do meu rosto. Mas dessa vez eu tinha maquiagem. Fui pro banheiro e acendi a sombrancelha, passei sombra no olho, lápis, blush nas bochechas e um batom ver-me-lho. Entrei na passarela deslumbrante. Ao descer da passarela, dou de cara com o produtor e com o maquiador. Que num discurso de
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reprovação, me dizem, entre tantas coisas, que eu não era profissional. [...] Fui pro meu quarto e me olhei no espelho: Nunca mais eu vou deixar ninguém apagar os traços do meu rosto. (apontando pro espelho) NUNCA MAIS DEIXE NINGUÉM APAGAR OS TRAÇOS DO SEU ROSTO. OUVIU? NUNCA MAIS! (MELO, 2022, p.3) Assim como também se autorreferencia Marconi Bispo: Depois, demonstrar – com a ajuda da plateia – minhas experiências com TV, cinema e publicidade. Depoimento que prepara para a cena de Otelo e Joana/Gota d’água (Eu sempre quis fazer um protagonista, eu sempre quis ser um protagonista). Luz 5 (banda entra com BG) OTELO – Açoitai-me, demônios, para longe dos prazeres de uma visão celestial! Fazei-me girar nos ventos sem descanso e queimem-me no enxofre! Lavem-me em um mar de fogo líquido!... (BISPO, 2017, P. 3) Mas não só compartilhar o momento da autonomia, uma dramaturgia autorreferencial possibilita querer ser cena de um teatro denunciador, principalmente se ela é produzida por alguém que vive no Recife, no Brasil, na América Latina, ou em quaisquer espaços geopolíticos onde há muita
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desigualdade, onde há muitos corpos dissidentes. Contar sobre si mesmo em cena é querer saber do corpo que temos, da sua real natureza, e isso tem grande importância na construção da autonomia e na descolonização de algumas ideias sobre nós mesmos; como denuncia Fanon, entendendo “homem de cor” por corpos dissidentes: No mundo branco, o homem de cor encontra dificuldades na elaboração de seu esquema corporal. O conhecimento do corpo é unicamente uma atividade de negação. É um conhecimento em terceira pessoa. Em torno do corpo reina uma atmosfera densa de incertezas (2008, p. 104). Os “eus” dissidentes transformam a narrativa autorreferente e dão nome e lugar às narrativas marginalizadas através do olhar da periferia, por exemplo, através dos corpos/as dissidentes de Agrinez e Marconi é possível ter acesso a narrativas de religiosidades de matrizes africanas no processo natural de construção de si a partir do contexto de vida deles. Este lugar é fundamental na promoção da democratização da narrativa, estimulando que outros corpos dissidentes entendam suas matrizes identitárias: “Toda linguagem é epistêmica. Nossa linguagem deve contribuir para o entendimento de nossa realidade. Uma linguagem revolucionária não deve embriagar, não pode levar à confusão.” (ASANTE apud GONZALES, 2020, p.124) Como nas seguintes cenas, quando ainda criança, Agrinez é chamada de macumbeira e se questiona pelo rito religioso de Dona Zélia. Essa é uma narrativa planejadamente pouco evidenciada, mas quantas experiências cristãs na infância não ganham narrativas? Quem nunca ouviu ou cantou o enredo de um batismo cristão? JACIRA – Vem cá, macumbeirinha mirim, vem comigo. E ela me ensinou a sambar.
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JACIRA – Um pé, outro pé. Um pé, outro pé (vai repetindo e acelerando) Além de Jacira, ainda tinha Dona Zélia. […] Fui pra casa, mas aquilo ficou na minha cabeça: Por que Dona Zélia tava ali, imitando um homem, com cachimbo na boca, ao som do tambor? Além disso, fiquei me perguntando porque me chamavam de macumbeirinha mirim. (MELO, 2022. P. 11) No trecho a seguir, Marconi também conta o que quase não se tem audição, entra no mar de novo e vê a divindade da mesma cor que a sua, com beleza e intimidade: painho, deixa eu mergulhar fundo de novo. cuidado, sem se afastar. eita, sabe o que eu vi, painho? lá vem você com mais uma história. eu vi um peixe do tamanho da brasília, painho. que cor? o peixe? é. ah, era um rosa esquisito. toda cor pra você é esquisita. deixa eu ir de novo, painho. só essa vez, a gente tem que voltar. eita. que foi? uma negra, painho, me abraçou. foi? foi aquela que mainha disse que era minha mainha também. como ela estava vestida? de azul, painho, azul. azul esquisito? não, dessa vez não. azul infinito, painho. azul infinito. azul que não vai acabar mais nunca, ela disse. (BISPO, 2017, P. 1) Na estrutura do texto narrativo uma característica peculiar que se destaca na construção do caráter autorreferencial é a rubrica, a qual traz as indicações das ações do processo de contar sobre si, e nela pode ser revelado muito de como o outro estrutura sua própria narrativa. Enquanto as falas promovem uma visão do acontecimento mais abertamente, na rubrica, o autor/ator ou a autora/atriz nos textos promovem o registro de muitas ações libertadoras, que não se expressam no corpo de fala da dramaturgia.
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• Xuxa e a cadeira de balanço do meu avô. (Banda entra com Amiguinha Xuxa – ou usaremos o áudio original?) • Falar da casa (das cortinas ao invés de portas nos quartos), da configuração da família (Lado branco X Lado preto). • Festas de aniversário, momento em que os lados se encontravam e momento que o Bongi se encontrava. • Falar da foto da festa de aniversário exibida, explicá-la. • Momento do Quebra-Panela. Antes, explicar como era este momento nas nossas festas. • Dentro da panela temos 1 texto escrito em uma barra de chocolate meio-amargo que vai liberar o depoimento Rim sem Coração. (BISPO, 2017, P.6) A estética de contar sobre si também possibilita outras imagens descartadas pela intenção do sistema. Ser um corpo dissidente me diz que os meus direitos de vida foram intencionalmente oprimidos desde antes mesmo do meu nascimento, dentre eles ressalto os direitos do próprio corpo, que “serve-nos de bússola, meio de orientação com referência aos outros.” (SODRÉ, 1988, p. 123) – a memória; por isso, concordo com Maria Lugones, quando ela escreve, a partir de uma proposta de feminismo decolonial, sobre o sistema que sustenta nossas sociedades colonizadas O projeto de transformação civilizatória justificou a colonização da memória, e, junto dela, a do entendimento das pessoas sobre si mesmas, sobre suas relações intersubjetivas, suas relações com o mundo espiritual, com a terra, com a matéria da sua concepção sobre a realidade, a identidade, e a organização social, ecológica e cosmológica (LUGONES, 2019, p. 361)
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Por exemplo, a cena de uma mulher preta falar de si, e de seus processos sofrendo colonização e buscando caminhos decoloniais de maternidade, enquanto há cada vez mais necropolíticas para a existência de vida, nos desorganiza ao pensarmos no assunto, e também nos diz muito sobre a falta de representatividade e memória a estes afetos nas narrativas teatrais colonizadas, mas precisamos falar do amor aos corpos dissidentes e também a todos os outros; a quebra da imagem, a recolocação e a ressignificação do signo já é descolonizante. É impossível falar sobre a história única sem falar sobre poder. Existe uma palavra em igbo na qual sempre penso quando considero as estruturas de poder no mundo: nkali. É um substantivo que, em tradução livre, quer dizer “ser maior do que outro”. Assim como o mundo econômico e político, as histórias também são definidas pelo princípio de nkali: Como elas são contadas, quem as conta, quando são contadas e quantas são contadas depende muito de poder. (ADICHIE, 2019, p.23) É descolonizante, pois usa da potência do texto autorreferencial para ritualizar muitas outras histórias, como ensina Adichie, partindo do mais palpável: a vida humana de fazer memória de si; se partimos desta perspectiva que o caráter autorreferencial possibilita na dramaturgia, percebemos um dos pilares do seio da natureza do gênero: democratizar as histórias das nossas realidades, pois O escritor continua sendo o herói de sua história, o pivô em torno do qual a matéria narrativa se ordena, mas fabula sua existência a partir de dados reais, permanece mais próximo da verossimilhança e atribui ao seu texto uma verdade ao menos subjetiva ou até mais que isso. (COLONNA, 2014, P.50)
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É dessa potência de possibilitar a existência de múltiplas histórias que, vivendo a cosmogonia de corpos dissidentes, o texto dramatúrgico autorreferencial também se torna o lugar da prospecção da autonomia, de manipulação e prospecção da história que está por vir, planejando o futuro de si, escolhendo fazer diferente do sistema, tomando sua autonomia através da própria história, como é encenado por Marconi no trecho a seguir. Sinto agora meu povo se levantando da terra, passando por essas frestas, me preparando pra guerra. Eu sinto meu avô, minha avó, Sinhá, Iaiá, bisavô, bisavó, tataravô, tataravó. Tudo negro. Tudo gente que se parece com a escuridão (BISPO, 2017, P.7) É a necessidade da autonomia que percebo como exercício para vivermos melhor, mas não qualquer autonomia, precisamos tê-la de maneira consciente e compromissada, pois há muitas liberdades inconsequentes roubando a atenção da vida das pessoas, de modo que autonomia fala de outro tipo de liberdade, um outro tipo de libertação, a que liberta. O fato de me perceber no mundo, com o mundo e com os outros me põe numa posição em face do mundo que não é de quem nada tem a ver com ele. Afinal, minha presença no mundo não é a de quem a ele se adapta, mas a de quem nele se insere. É a posição de quem luta para não ser apenas objeto, mas sujeito também da História. (FREIRE, 1996, P.23) Assim também, Paulo Freire trata pontos sobre estas ideias de autonomia e liberdade em sua grande contribuição com os processos de vida em uma sociedade em trânsito (FREIRE, 1967), em pensar nas planificações de educar com o exercício da liberdade, Paulo Freire, a partir do contexto de viver no nordeste do Brasil como eu, percebeu que mais do que ensinar técnicas e fórmulas, é necessário que pela educação estabeleçamos uma
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prática reflexiva sobre a vida, onde o conhecimento não se fragmenta, se expande (FREIRE, 1967, p. 18). Isso também é pensar em um enfrentamento contra o sistema que atualmente nos desorienta, logo, ter autonomia é ter consciência de sua identidade e do seu corpo-político; deste lugar partem bell hooks e Paulo Freire: é necessário sermos sujeitos praticantes de ações conscientes, isto é a liberdade do corpo, não do objeto. Vivendo no contexto da maior pandemia da história humana, todo o caos me possibilitou perceber que lamentavelmente ainda aprendemos pouco. Essa experiência consolidou o que logo cedo comecei a perceber: que ser o corpo que sou e morar em uma periferia do nordeste brasileiro sob a manutenção da negação das memórias e dos direitos de vida do povo que me é contemporâneo e ancestral é uma consequência que me aproxima ainda mais dessa ainda presente realidade refletida criticamente por estes autores: é preciso desideologizar. Se, para manter divididos os oprimidos se faz indispensável uma ideologia da opressão, para a sua união é imprescindível uma forma de ação cultural através da qual conheçam o porque e o como de sua “aderência” à realidade que lhes dá um conhecimento falso de si mesmos e dela. É necessário desideologizar (FREIRE, 1987, p. 132) É este movimento de desideologização que está havendo nos teatros do Recife: a presença de dramaturgias autorreferenciais possibilitou que outras narrativas e vidas marginalizadas pudessem ocupar lugares de fala e ecoar suas vozes em arenas antes privilegiadas e ocupadas apenas por narrativas colonias. Esse movimento não é pequeno, cada vez mais temos entendido que contar sobre si é voltar para si e contar também sobre o outro. Aqui no Recife há trabalhos como “Mi Madre”, de Jhanaina Gomes, além dos já analisados acima, entre outros. Pelo Brasil, há o “Manifesto transpofágico” de Renata Carvalho; “Macaco”, de Clayton Nascimento. Além do teatro autobiográfico pensado na Argentina, e do teatro de fricção de Lagartijas Tiradas Al Sol, no México, por exemplo. Entendo, então, por decolonidade a
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emancipação de cada um de nós das desumanizações e dos aprisionamentos gerados pela colonialidade epistêmica, espiritual, política e econômica à qual os damnés foram submetidos durante a modernidade/colonialidade. Essa emancipação, todavia, não tem um sentido iluminista de saída das trevas, mas constitui uma armação da corpo-política do conhecimento, a partir da qual podemos libertar nossas ,mentes, escrever o livro da nossa vida e construir um mundo que permita cantar uma música de liberdade... Uma redemption song. (COSTA; TORRES; GROSFOGUEL, 2018, P.27) Bem como reflete Chimanda Adichie. As histórias importam. Muitas histórias importam. As histórias foram usadas para espoliar e caluniar, mas também podem ser usadas para empoderar e humanizar. Elas podem despedaçar a dignidade de um povo, mas também podem reparar essa dignidade despedaçada (2019, P. 32) E este movimento latino-americano pode ainda ser maior, se entendermos o caráter pedagógico do espaço teatral e podermos usá-lo como ferramenta para contribuição da construção da autonomia em outros espaços pedagógicos como a escola. Pois, falar sobre si é também ensinar aos outros, e como diz o professor Paulo Freire, “quem ensina aprende ao ensinar, e quem aprende, ensina ao aprender”. (1996, P.12).
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3 \ ATO Nº2: OS ESPAÇOS PEDAGÓGICOS E A AUTONOMIA É sobre aprender e ensinar que se desenrola a vida, por isso, a preocupação com a autonomia dos indivíduos inseridos dentro de um processo de ensino-aprendizagem, onde a chave é a reflexão e o questionamento. Como aponta Freire, é dentro deste processo e do lugar pedagógico que “os educandos vão se transformando em reais sujeitos da construção e da reconstrução do saber ensinado, ao lado do educador, igualmente sujeito do processo” (FREIRE, 1987, p. 26). Mas para isso precisamos possibilitar as novas narrativas, as forças da vida: “Uma educação, pedagogia, escola ou currículo que busque firmar compromisso com a diversidade e combater as injustiças cognitivas/sociais haverá de abrir caminhos para Exu passar”. (RUFINO, 2019, p. 264) Aqui, então, entende-se a autonomia como o lugar em que o indivíduo assume o ritual da vida, seu protagonismo no mundo, a responsabilidade pelas consequências de suas ações e a possibilidade de construir sua própria vida, tendo consciência crítica do contexto opressivo, e mesmo assim não abandonando suas verdades, trata-se de “Reconhecer que a História é tempo de possibilidade” (FREIRE, 1996, p.11). A Autonomia é o reconhecimento do indivíduo como sujeito social, pessoa coletiva que entende seu compromisso com a verdade da e sobre a vida. É o lugar de retomada, do corpo, do texto, da língua, da memória, do punhal. A autonomia possibilita que as narrativas necropolíticas do sistema não se repitam aos corpos dissidentes e ciclos de opressão e violência sejam desfeitos, uma vez que ser é a maior forma de desarticular os planos de morte do sistema. Os negros escravizados pegaram fragmentos do inglês e os transformaram numa contralíngua. Juntavam suas palavras de um modo tal que o colonizador teve de repensar o sentido da língua inglesa. (HOOKS, 2013, p.226-227)
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Mas, para que isso aconteça, são necessárias sensibilidade e coragem para o novo (FREIRE, 1996, p.54): que nós, enquanto professores ou facilitadores do processo de ensino e aprendizagem de uma pedagogia crítica, tenhamos consciência do processo de autonomia que a sala de aula, por exemplo, o espaço de aprender e ensinar, contém; uma vez que centrar as forças no ataque à colonialidade já implica uma resposta responsável à educação (RUFINO, 2019, p. 276), como um processo de Invocação de responsabilidade para com a vida em toda sua diversidade e como forma de “Desaprendisagem” das investidas totalitárias empregadas pelo modelo de produção de escassez e morte. A Educação é um fenômeno inerente à condição dos seres borda a tessitura de pedagogias inventivas e lúdicas focadas no tratamento dos traumas mantidos pela continuidade do terror colonial. (SIMAS; RUFINO, 2019, p.13) Entendo aqui como espaço pedagógico todo lugar onde a vida é questionada através de uma intenção que contenha a possibilidade de troca, ou seja, “que procura transformar a consciência, proporciona aos alunos modos de saber que lhes permitam conhecer-se melhor e viver mais plenamente no mundo.” (HOOKS, 2013, P.257) Nesta perspectiva, não somente nos espaços cênicos das cidades a dramaturgia de autorreferência se realiza em suas possibilidades, há outros espaços onde esse gênero, assim como no teatro, é passível de ser levado a suas potências totais, como a escola, a sala de aula, e “terreiros de candomblé, umbanda, macumbas cruzadas, ruas, esquinas e rodas. Sabedorias de jongueiros, capoeiras, sambistas, sujeitos comuns praticantes do devir cotidiano” (RUFINO, 2019, p. 277). Em cada contexto, formas de educação próprias. Precisamos entender contemporaneamente os espaços pedagógicos, para neles fazermos ações também contemporâneas. Perceber a escola como um lugar naturalmente propício à autonomia é dar suporte à
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conquista da liberdade, ao sonho, à potência de ser humano, uma vez que o que nos torna mais humanos, segundo Freire, é a liberdade: “é por isso que, minimizado e cerceado, acomodado a ajustamentos que lhe sejam impostos, sem o direito de discuti-los, o homem sacrifica imediatamente a sua capacidade criadora”.(FREIRE, 1997, P.42). A autorreferência habita este lugar da criação, a possibilidade de ser a própria narrativa, caracteriza mais que um gênero dramático somente, mas uma gama de possibilidades de construções textuais. É a presença do caráter de autoreferência em espaços pedagógicos que defendo como forma de incentivar a autonomia às pessoas. o ensino da produção textual com base em gêneros disponibiliza as condições pedagógicas que podem levar o aluno a compreender como participar de modo ativo e crítico das ações de uma comunidade”. (MARCUSCHI, 2010, p. 78) Portanto, neste segundo ato, quero salientar apontamentos e possíveis consequências do estudo do gênero textual dramaturgia de autorreferência em espaços pedagógicos como caminho para o processo de autonomia. O ensino-aprendizagem deste gênero possibilita tratar os indivíduos como naturalmente produtores de textos diversos, pois a autonomia na construção do texto é um princípio básico para o caráter autorreferencial da dramaturgia (COLONNA, 2014, P. 49), é o próprio corpo dissidente que conta a história, isso desloca quem produz o texto, assim como a sua reflexão comum, o gênero provoca então outros caminhos para pensar na língua e a vida. Isso significa dizer, portanto, que o estudo da dramaturgia de autorreferência traz consciência de que somos naturalmente autores de nossas possibilidades como criadores e escritores, como falantes de uma língua. Para curar a cisão entre mente e corpo, nós, povos marginalizados e oprimidos, tentamos resgatar a nós mesmos e às nossas experiências através da
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língua. [...] aí nesse lugar, obrigamos o inglês a fazer o que queremos que ele faça. [...] libertando-nos por meio da língua. (HOOKS, 2013, P.233) O processo de autonomia também implica o reconhecimento de várias questões de identidade, uma pessoa autônoma, principalmente que vive no sul da américa, ou no centro, reconhecer a identidade latino-americana que carrega consigo, pois ela também é um punhal e a dramaturgia de autorreferência, com seu poder de pesquisa no terreno da subjetividade e no convívio coletivo das pessoas, favorece que descubramos e percebamos punhais importantes para nos constituirmos autônomos dos nossos processos de vida pessoal e social. Como afirma Lélia Gonzalez sobre a produção negra no Brasil, por exemplo. é justamente a consciência objetiva desse racismo sem disfarces e o conhecimento direto de suas práticas cruéis que despertam esse empenho, no sentido de resgate e afirmação da humanidade e competência de todo um grupo étnico considerado inferior. (GONZALEZ, 2019, P. 360) A liberdade é ser quem se é e assumir as consequências disso com consciência e responsabilidade. A dramaturgia de autorreferência no teatro, na escola, no terreiro, em casa, nas redes virtuais, em outros espaços pedagógicos, por sua vez, pode ser um despertar para a liberdade e para autonomia. E, quando de fato encontramos o nosso conhecimento, naturalmente, nos comprometemos conosco e isso faz o diferencial acontecer na nossa vida: a narrativa oficial (deles, dos opressores) não nos narra mais, não é a nossa única narrativa (ADICHIE, 2019, p.23); nós somos livres para sermos autores do nosso próprio espetáculo de vida.
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4 \ DEPOIS DO ESPETÁCULO – A REVOLUÇÃO Depois do espetáculo, gosto da imensa gratidão que se estabelece com o público. Como é especial chegar ao fim da encenação depois de se permitir contar algo a alguém. Agora desejo a revolução, que a história possibilite a transformação, sem começo e sem fim, nada se acaba. Isto é a vida, por isso, entendo o próprio fazer deste trabalho como uma pequena grande revolução, em mim e no mundo, então, quero apontar considerações ressaltadas dentro do processo de escrita deste trabalho, e sobre os caminhos para continuidade desta revolução. Da prática, considero fundamental que o desenrolar deste trabalho em um futuro bem próximo chegue às salas de aula do Recife e onde quer que seja necessário e importante incitar a autonomia e a liberdade das pessoas. Da troca, este trabalho me possibilita devolver à sociedade meu olhar sobre ela mesma e sobre mim, possibilitando que todos nós nos beneficiemos de todo aprendizado que eu carrego comigo e que, com as fricções da academia, podem contribuir com as reflexões de como vivermos melhor atualmente. Da democratização da arte, essas reflexões sobre as possibilidades do ensino do gênero dramaturgia de autorreferência querem também proporcionar e levar o teatro cada vez mais para as salas de aula da educação brasileira, bem como os infinitos espaços pedagógicos presentes na nossa sociedade, contemplando uma perspectiva contemporânea da arte da cena e refletindo sobre ela. Do texto, entendo que a autorreferência habita o lugar de caráter diante dos gêneros, não é somente um gênero textual, mas enseja possibilidades de construções de múltiplos sentidos friccionando com o gênero. Ficar atento a este fenômeno contemporâneo da linguagem é perceber quais pulsões o texto possibilita hoje, no momento em que o corpo ganha possibilidade de (re) existir como quer. Da potencialidade do texto aos corpos dissidentes, a dramaturgia de caráter autorreferencial tem o vetor de promover impactos no processo de
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autoconhecimento e reconhecimento na vida das pessoas. O exercício que essa perspectiva de gênero textual assume não é uma tecnologia textual nova, nós já fazemos isso nos carnavais, maracatus e cavalos- marinhos aqui do Nordeste da América Latina. Nós desde sempre quisemos falar sobre nós e sobre o que nossos corpos sentem como caminho contra a desmemória e a opressão, quero muito em breve poder escrever muitas outras linhas sobre isso. Do contexto, é necessário que busquemos enquanto artistas e professores entender e ensinar nossa verdade sobre o contexto opressor, pois, enquanto não tomamos consciência dele e não nos unimos em ações para mudá-lo, os nossos processos de autonomia estarão comprometidos ainda mais. Precisamos sobretudo apreender a memória da nossa história para aprendermos com ela, e sabermos como driblar mecanismos que outrora nos prejudicaram. Se já tivéssemos estabelecido coletivamente a noção sobre a nossa história, talvez este trabalho nem teria tanta necessidade de leitura/audição. E a você que pode me ler e perceber minha forma de ver a vida, desejo te causar questionamentos e vontade de levar meu trabalho adiante junto comigo, da sua maneira, na sua pedagogia, no seu jeito e no seu compromisso de fazer arte ou ensinar, tratando a vida como um ebó numa encruzilhada onde Exu, a própria vida: “engole de um jeito para cuspir de maneira transformada.” (RUFINO, 2019, p. 270).
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\ memória, texto e revolução: percepções sobre as possibilidades do gênero dramaturgia de autorreferência para a construção da autonomia
HOOKS, Bell. Ensinando a transgredir: a educação como prática da liberdade; tradução de Marcelo Brandão Cipolla. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2013. DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs – capitalismo e esquizofrenia. vol. 1, Tradução de Aurélio Guerra Neto e Célia Pinto Costa. Rio de janeiro: Ed. 34, 1995. NASCIMENTO, Beatriz. Transcricao do Documentario Ori. In: . Beatriz Nascimento, quilombola e intelectual: possibilidade nos dias da destruição. 1 ed. Diáspora Africana: Editora Filhos da África, 2018. p. 326-340. FANON, Frantz. Pele negra máscara brancas; Tradução de Renato da Silveira. – Salvador: EDUFBA, 2008. GONZALES, Lelia. Por um feminismo afro-latino-americano. In RIOS, Flavia; LIMA, Márcia. Por um feminismo afro-latino-americano: Ensaios, intervenções e diálogos. Rio de Janeiro: Editora Schwarcz S. A., 2020. SODRÉ, Muniz. O terreiro e a cidade: a forma social afro-brasileira. Petrópolis: Vozes, 1988. LUGONES, María. Rumo a um feminismo decolonial. In: BUARQUE, Heloisa. Pensamento feminista: conceitos fundamentais. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2019. P. 368 – 392. ADICHIE, Chimamnda Ngozi. O perigo de uma história única; tradução Julia Romeu – 1ª ed.- São Paulo: Companhia das Letras, 2019. COLONNA, Vincent. Tipologia da Autoficção. In: NORONHA, Jovita Maria Gerheim (org.). Ensaios sobre a autoficção. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2014. p. 29-66. FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996.
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\ a floresta, o rio, o barco e o casco na catalogação de corporeidades de um artista amazônico Marcos Maciel Fernandes Marcos Maciel Fernandes, Macapá (AP). Graduado pela Universidade Federal do Amapá (Unifap), é ator, bonequeiro, dançarino de boi-bumbá, animador em festas, perna de pau e arte-educador. Participa, desde 2014, do grupo de dança Amigos da Toada e, desde 2017, do grupo de teatro Semsensura. marcosfernasndes@gmail.com
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FICHA TÉCNICA Instituição Universidade Federal do Amapá (Unifap) Tipo do curso Graduação Nome do curso Licenciatura em teatro Período do curso 2018-2023 Estado Amapá Título do trabalho A floresta, o rio, o barco e o casco na catalogação de corporeidades de um artista amazônico Nome do autor Marcos Maciel Fernandes Nome da orientadora Professora doutora Adélia Aparecida da Silva Carvalho Número de páginas 17
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\ a floresta, o rio, o barco e o casco na catalogação de corporeidades de um artista amazônico
\ RESUMO Este artigo apresenta um processo de pesquisa e catalogação de corporeidades cotidianas, resgatadas a partir de quatro elementos: A Floresta, o Rio, o Casco e o Barco. Esses elementos emergem das memórias e histórias da minha infância no interior, às margens do Rio Jupati-Pa com meus familiares paternos, entrelaçadas às vivências na capital de Macapá-AP, com meus familiares maternos. Ao revisitar tais experiências reencontro na minha trajetória como artista amazônida as referências presentes nos costumes e saberes dos meus ancestrais que seguem marcadas em meu corpo. Nesse trabalho descrevo a experiência de levantamento dessas corporeidades, através da gravação de imagens em vídeo e a elaboração dramatúrgica a partir dessas memórias. Palavras-chave: Ancestralidade Amazônida, Corporeidade, Decolonialidade.
\ ABSTRACT This article presents a process of research and cataloging of everyday corporeality, rescued from four elements: The Forest, the River, the Hull and the Boat. These elements emerge from the memories and stories of my childhood in the interior, on the banks of the Jupati River-PA with my paternal family, intertwined with my experiences in the capital of Macapá-AP, with my maternal family. When revisiting these experiences, I rediscover in my trajectory as an Amazonian artist the references present in the customs and knowledge of my ancestors that remain marked on my body. In this work I describe the experience of surveying these corporeities, through the recording of images on video and the dramaturgical elaboration based on these memories. Keywords: Amazonian Ancestry, Corporeality, Decoloniality
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\ RESUMEN Este artículo presenta un proceso de investigación y catalogación de la corporalidad cotidiana, rescatada de cuatro elementos: El Bosque, el Río, el Casco y la Barca. Estos elementos emergen de los recuerdos e historias de mi infancia en el interior, a orillas del río Jupati-PA con mi familia paterna, entrelazados con mis vivencias en la capital de Macapá-AP, con mi familia materna. Al revisitar estas experiencias, redescubro en mi trayectoria como artista amazónico los referentes presentes en las costumbres y saberes de mis ancestros que quedan marcados en mi cuerpo. En este trabajo describo la experiencia de relevamiento de estas corporeidades, a través del registro de imágenes en video y la elaboración dramatúrgica a partir de estas memorias. Palabras clave: ascendencia amazónica, corporeidad, descolonialidad.
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1 \ INTRODUÇÃO Nesta pesquisa busco compreender, através do fazer artístico, de forma reflexiva, corporal e visual meu processo de ancestralidade enquanto uma pessoa ribeirinha afro-indígena, que vivenciou processos de apagamento durante um longo tempo por questões e relações pessoais e sociais que me marcaram na infância e por um longo período me distanciaram do entendimento do lugar de pertencimento, revisito memórias da infância no interior na casa de meu pai Ezequiel no Rio Jupati-Pará e na cidade de Macapá na casa de minha mãe Ivany, compreendendo esse lugar de enunciação. Através de algumas teorias da decolonialidade busco refletir sobre esses corpos que desbravaram a longo período a desconstrução de falas, gestos, autarquias que foram usadas como única verdade pelos colonizadores, mas que os povos sempre buscam desvencilhar tais relatos da sua realidade. As Pesquisas desenvolvidas a partir de uma perspectiva decolonial são relevantes em minha pesquisa, à medida que reafirmam o lugar de fala de indivíduos silenciados, e no meu caso auxilia no reconhecimento das minhas raízes afro-indígenas, da relação da mesma com a natureza, dando possibilidades para a criação de novos mundos a partir desses elementos de catalização de levantamento desses materiais. Durante o processo de pesquisa, realizei a gravação de vídeos onde busquei revisitar as memórias de espaços e tempos, a partir dos quatro elementos selecionados (a floresta, o rio, o barco e o casco) para acionar corporeidades silenciadas do meu corpo ribeirinho e afro-indígena. O vídeo, nesse trabalho, é um pequeno exercício de catalogação de gestualidades, que entrelaço a fragmentos das narrativas dessas memórias.
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2 \ MEMÓRIAS E DEVANEIOS DE UM PASSADO PRESENTE Nascido e criado no município de Macapá, Estado do Amapá entre a zona urbana e rural chamada de Rio Jupati-Pará onde o acesso se dá por embarcações, às margens do Rio Amazonas, no qual passava as férias escolares na casa de meu pai e sua segunda família. Lá vivia imerso em costumes diferentes da capital, experimentando, cotidianamente, banho de rio, a pesca, viagens de barco, passeios no casco e no meio da floresta. Com aproximadamente seis anos de idade adentrei a religião evangélica, na Igreja Adventista do Sétimo Dia em que permaneci minha infância toda servindo a igreja entre cultos, reuniões e fazendo parte também como Desbravador em um grupo de meninos e meninas de dez a quinze anos que cultivavam ações sociais, brincadeiras educativas, passeios e viagens para outras cidades e interiores do estado do Amapá. Os pensamentos e as indagações dentro desse universo durante a infância foram fortemente entrelaçados, em caixas, bolhas, espaços que tendem a permanecer sem diálogos, onde nossa prioridade era seguir a Bíblia e a palavra de Deus. A experiência fechada na igreja, suas narrativas projetadas e enriquecidas pela colonização, a forma de se portar perante a sociedade hierarquicamente conduzida pelo que eles acham que é correto, as vestes usadas, calças e camisas sociais, sapatos pretos e meias sociais determinava uma ocasião específica, aquele local, a superioridade de ser relevante nessa perspectiva prevalecida e estruturado pelo colonizador, sua influência me fez esquecer de quem realmente era, meu local de origem, a simplicidade do meu povo amazônico, dos banhos de rio, as pescas, as crenças e costumes adormecidos estavam. Compreendi o quanto a colonização nos marca e silencia as origens das pessoas amazônicas, ao difundir uma perspectiva colonizadora que até hoje tem suas marcas na nossa educação e cultura, nos subtraindo o direito ao acesso a perspectiva dos povos originários que habitavam essas terras muito antes mesmo da colonização.
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3 \ FRONTEIRAS DECOLONIAIS 3.1 Faíscas de Decolonialidade na sociedade brasileira O impedimento de exercer seus costumes e crenças é uma das primeiras formas de apagamento de um povo e assim começa o processo de colonização no Brasil. A prática da limpeza étnica fez com que alguns grupos e seus povos perdessem o direito de exercer sua cultura, suas crenças, saberes adquiridos pelos seus antepassados, tiveram obrigatoriamente de seguir outras etnias caso quisessem ter suas vidas de volta, os que não concordassem seriam assassinados de forma brutal em meio à praça pública, enforcado, onde a população assistia para compreender que quem mandava eram os poderosos e de que não valia uma valentia, pois todos que fossem contra teriam o mesmo destino: a morte. Foi um momento muito difícil e cruel para a comunidade, tendo em vista que foram obrigados a seguir essa doutrina colonizadora, suas regras e seus deveres impostos, assim sendo, eliminando sua diversidade em um período tão sórdido e desumano. Ao contrário do que ateste o senso comum contemporâneo, o “racismo de cor” não foi o primeiro discurso racista. O “racismo religioso” (“povos com religião” versus “povos sem religião” ou “povos com alma” versus “povos sem alma”) foi o primeiro elemento racista do “sistema-mundo patriarcal, eurocêntrico, cristão, moderno e colonialista” (Grosfoguel, 2011) formado durante o longo século XVI. (Grosfoguel, 2016, p. 36). Identifiquei em leituras que as manifestações espirituais sempre foram um alicerce dos Povos Originários, seus costumes e crenças eram seguidos com devoção, seus trajes de roupas tão pouco luxuosos tendo em vista as vestes do colonizador, suas terras o seu sustento, seus saberes, compreendendo na organização social o verdadeiro sentido de comunidade.
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Hoje reconhecemos a grande importância em trabalhar os saberes ancestrais, dialogando e refletindo como um processo de pertencimento e reafirmação cultural, investigando processos identitários em diálogo com as nossas etnias, saberes e crenças, sendo primordial e um grande aliado ao combate ao racismo, sexismo, patriarcalismo de uma estrutura ocidental herdeira de um período colonial que foi construído às custas de muitas mortes do povo nativo e dos escravizados.
3.2 Artes da cena e outros territórios: criação de mundos decoloniais A colonização permanece sendo reproduzida pelos nossos corpos e pela repetição de atos e ações cotidianas que refletem as relações de poder às quais fomos submetidos ou submetemos os outros. Um dos aspectos cruciais dessa investigação cênica é que o ator precisa voltar o olhar para seu corpo, a fim de tirá-lo do automatismo cotidiano e tomar consciência da influência que as relações de poder, de colonialidade e de adestramento social exercem sobre o corpo, etapa inicial de qualquer proposta descolonial – assumir que a colonialidade existe e opera coletiva e individualmente. (Simão; Sampaio, 2018, p. 677). Neste trabalho ouso pensar a descolonização a partir do meu espaço, a partir das minhas vivências e da minha história, buscando uma gestualidade que está impressa em minhas vivências. Obviamente não é uma busca que ignora todos os conhecimentos adquiridos na minha formação, mas, atravessado por ela, eu me permito voltar agora o olhar para a minha ancestralidade amazônida, buscando aqui, nas memórias impressas nas palavras e no corpo, descolonizar o meu olhar sobre a cena.
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3.3 Faíscas de Encantarias e corporalidades indígenas nas artes da cena A Experiência nos movimentos dançantes que estive presente reverberou contatos com diversas etnias, nos ensaios em grupo de toada, espetacularizando as suas histórias a partir das expressões corporais, e contextos originários nas apresentações em Macapá e no Festival Folclórico de Parintins-AM com o grupo de danças. A presença e reconhecimento dos costumes e cultura de etnias indígenas em eventos culturais e em trabalhos acadêmicos, artísticos e pessoais, são de grande importância para os povos originários e para a nossa sociedade em geral. No Oiapoque município do estado do Amapá por exemplo: temos as Etnias Palikur, Galibi Kali’ na, Galibi- Marwono e Karipuna que estão localizadas nos rios ao longo da BR-156, o qual os indígenas levam sua cultura pelas regiões do estado e influenciam a população a um olhar curioso, que promoverá iniciativas para a valorização e entendimento de produção de material científico e cultural, contribuindo com o reconhecimento da sua cultura, suas vivências, enxergo também como grandes dramaturgias viventes de diversas ferramentas de construção cosmológica, materiais e de linguagens visuais Elas podem ajudar, e muito, no sentido da desconstrução dessa imaginação, desse imaginário cristalizado, na medida em que conseguirem se conectar com o cosmo (...). Conectarem-se com essa relação interpessoal, com esses seres, sobretudo com os seres cosmológicos da cultura indígena. Uma manifestação precisa estar conectada com essas relações cosmológicas, com esses seres que eu chamo de Yamasã, com o interpessoal... com o que conecta as pessoas entre si. Porque dançar e cantar é uma forma de relação, pra nós. Uma relação de oferecimento, de descontaminação das comidas... Então em cada linguagem, em cada gesto há um
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sentido. E na medida em que esses curiosos das artes começarem a pesquisar com profundidade e entender isso, algo mudará muito. (Gonçalves, 2018, p. 12). O Festival Folclórico de Parintins em suas três noites de festival, transporta a presença da espetacularização das Etnias Indígenas, do Folclore Brasileiro em que apesar de teatralizar a cena, de certa forma contribui politicamente e social, gerando reflexões para o público presente, uma atenção primordial para a Amazônia, suas florestas, ao povo nativo, ao folclore, ressignificando mensagens positivas de conscientização e de afirmação, um olhar delicado de atenção com o que está acontecendo no cenário atual. O corpo em ação fragmenta relações com objetos e suas memórias, onde a um discurso pessoal entre as linhas de linguagens integradas com os movimentos e as energias corpóreas, norteando a construção de um material teórico e substancialmente reflexivo, notadamente preciso.
4 \ IDENTIDADE AMAZÔNIDA 4.1 Etapa 1 - Inspiração no Ritual Turé Nas apresentações do Grupo de Dança Amigos da Toada, participei integralmente dos ensaios e todo ano nos preparamos para os festivais tanto no estado como fora, sempre me chamava atenção às partes indígenas, que envolviam o pajé, suas tribos, seus enredos, os passos definidos, brutos e marcados, era perceptível o quanto meu corpo precisava de energia para fazer parte daquele momento, comecei a medir as minhas relações com determinada toada o qual me fazia refletir bastante sobre os indígenas e suas lutas, seu canto, sua dança, sua crença e a simplicidade de um povo conhecedor dessas terras, no Festival Folclórico de Parintins- AM, foi onde pude de perto presenciar as manifestações folclóricas e populares do nosso Brasil.
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A Toada, Letra e Música do Ritual Turé foi um baluarte de inspiração nessa pesquisa, pois foi onde pude estar mais próximo do contexto indígena, suas histórias e seus relatos, em que a inspiração consistiu a partir da caminhada grande de trabalhos corporais dentro de sala de aula, treinamentos experienciais, diálogos com autores que explanaram sobre tais práticas do ator em cena. Essas práticas em laboratório fizeram me conectar com as minhas particularidades tanto corporais quanto como indivíduo e sua naturalização, as lembranças e memórias, meu convívio com meu lugar de enunciação, morada e de meus laços, costumes e saberes de um corpo Amazônida, foi sem dúvida uma condição para que pudesse entender meu lugar e dá continuidade ao meu processo de resgate ancestral. Esse processo inicial foi essencial para chegar ao caminho da busca por uma gestualidade impressa em meu fazer cotidiano no meu interior Amazônida que discutirei mais detidamente no próximo item.
4. 2 Etapa 2 - Ancestralidade Tucuju (Corpo Memória) No caminho desta pesquisa, percebi a necessidade de encontrar as gestualidades impressas no meu corpo, como material para a criação cênica, busquei então, um olhar sobre a minha ancestralidade, memórias distantes, ofuscadas pelo tempo, adormecidas pelos processos de branqueamento que colonizam o nosso olhar, entendo essa caminhada como um elo meu com as minhas corporeidades e suas significâncias cotidianas. As corporeidades negras surgem como elementos cheios de possibilidades ao utilizar o corpo como instrumento relacional com o mundo, que inicialmente busca por um “eu” singular, mas não um “eu” individual que busca de algo pessoal, sendo o “eu” equivalente ao “nós” na filosofia africana, que é nomeado de “Ubuntu”. (Mendes, 2020, p. 02).
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1. Ato de puxar o Matapi da água e posteriormente a retirada dos camarões.
Nosso corpo possui relações com a materialidade e com os gestos, por isso é importante acentuar suas energias e estar mais diretamente em diálogo com cada relação existente. As memórias das minhas vivências no interior, às margens do Rio Jupati, onde me aproximava das minhas raízes afro indígenas. Escolhi e destaquei nessa busca quatros elementos que dialogam com algumas indagações que estavam esquecidas, seja pelo tempo ou por mim mesmo: quem sou? de onde vim? e como cheguei até aqui? Essas perguntas me levaram à definição de quatro elementos: o barco, o rio, a floresta e o casco. Olhar para eles é, de certa forma olhar para mim e para minha história e de todos que trago como reverberações em mim. NO BARCO: No interior temos o enraizamento das práticas da caça do animal para o sustento, o cultivo de plantas para a comida e ervas medicinais utilizados como remédios para enfermos, aprendemos desde pequeno a nadar às margens do rio, pilotar barco, despescar1 matapi, preparar peixe, subir nas árvores para apanhar o açaí fresquinho para o café da manhã, almoço ou jantar. Lembro que uma das únicas coisas que papai me ensinou foi como pilotar um barco, não sabia como funcionava, era grande demais aquele troço, enquanto ele ficava na parte de trás do barco para rodar a manivela, eu estava na frente ao piloto para direcionar o leme, para que pudéssemos velejar às margens do rio, achei difícil, mas aos poucos aquilo foi me completando e me tocando as entranhas do meu corpo, como se fôssemos um só, me senti útil, forte e até mesmo corajoso naquele momento familiar aprendendo os costumes de meu pai, que também eram meus e da minha família. Os barcos, para mim, são cheios de significados, carregados de objetos, frutas, madeiras, uma infinidade de coisas, às vezes me parece que estou numa loja de roupa, outras vezes numa feira ao ar livre, essa sensação se dá pela tremenda versatilidade de artefatos diante dos meus olhos e o
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contato visual direto com essas potencialidades artísticas descritivas que ocupam suas paredes e que configuram esses pequenos espaços uma vez ou outra, um lugar de significância cultural do povo da floresta. Quando gravei as imagens do barco busquei resgatar a memória do meu corpo nesse transporte muito usado pelo ribeirinho para fazer seu deslocamento entre as comunidades vizinhas e a cidade de Macapá. As lembranças dessas viagens estão carregadas de vestígios dos corpos, da floresta, falas e costumes de quem habita cada pequena comunidade ribeirinha. Busquei reencontrar o toque, o olhar nesse ambiente cheio de significados artesanias, costumes, ressignificando com as minhas vivências e essência amazônida. Essas lembranças das minhas vivências de quando viajava para o interior, viagens sobre as marés altas do rio amazonas, nas grandiosas maresias que atravessavam o barco de meu pai, memórias gostosas que revisito e manifesto nessa escrita, me coloco diante das minhas inquietações, do contato do meu corpo com essas experiências, acomodadas e adormecidas, durante muito tempo. NO RIO: No Rio Jupati me sentia acolhido, regado de boas sensações, era costume banharmos ao amanhecer e no final do dia, dependendo do rio estar cheio, dificilmente à noite, mas às vezes acontecia com a enchente do rio, sempre bom o banho, pois a água estava saudável para o corpo, limpa para os afazeres domésticos, agora quando começa a secar traz consigo todo tipo de sujeira deixados às margens do rio onde se misturam em meio às correntezas. Quando gravei as imagens do rio busquei as memórias desses mitos, dessa força das águas que pode nos lavar ou nos arrastar, a relação do meu corpo ancestral com esta encantaria que é parte das memórias e histórias ouvidas, minhas recordações diárias, tanto em Macapá como no interior na casa dos meus familiares, as histórias contadas pelos meus parentes
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que envolviam os seres encantados habitantes das águas, da floresta, da relação cosmológica da natureza com o homem nascido e criado às margens do rio. Na feitura do vídeo sobre as águas busquei o envolvimento do povo e na devoção às suas crenças por santos católicos, sincretizada ao misticismo da Amazônia, aos costumes que repercutem na essência do que acreditam e cuidam, com o intuito de viver bem, cercados e protegidos pela natureza. Tive necessidade de me conectar novamente nesse curso dessas águas para despejar a minha vontade de compreensão dentro desse processo de encontro comigo mesmo, com a minha essência e com os fluxos que me trouxeram até este lugar, meu lugar, minhas origens, meu lar. NA FLORESTA: Os rituais aconteciam pela manhã, condizia com o costume de ter que estar na hora certa e momento para dar passagem as coisas boas que nos rodeiam, pedir que os encantados, os seres que não enxergamos, mas que estão na mata nos abençoem, nos acompanhem para que possamos ter um dia, uma semana de fartura, a cada instante respeitando o povo que já habitou essas matas muito antes de nós, alguns ainda estão nos observando, outros cuidando do certo, abrindo caminhos para que continuemos o que começaram e talvez não tiveram tempo de terminar, ou talvez terminaram e querem que suas raízes continuam ressoando dia após dia. Quando gravei as imagens da floresta busquei me reconectar com um momento de respeito, empatia e um momento sagrado de pedir licença, pois as florestas assim como as demais encantarias amazônicas é um verdadeiro santuário rico em vida, possui esse dever de reorganizar toda a vida na terra. Por isso foi preciso parar um pouco no tempo, compreender essa outra temporalidade impressa pela/na/com a floresta deixar de lado alguns vícios ditados no dia a dia para fazer valer esse momento de integração,
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\ a floresta, o rio, o barco e o casco na catalogação de corporeidades de um artista amazônico
de redescoberta para que eu pudesse reviver momentos únicos que tive durante minhas aventuras desbravando as matas enquanto criança e nos dias de hoje, com aquele mesmo respeito e curiosidade do sempre. NO CASCO: Nosso transporte no interior eram os cascos, que são pequenos barcos de madeira que não possuem motor para funcionar, apenas o remo e nossos braços que flexionam movimentos como se fossem braçadas, aquelas de quando estamos nadando, só que com o remo. Esse meio de transporte é muito usado pela comunidade amazônica, sendo mais prático do que estar se deslocando para lugares próximos com embarcações grandiosas, como os barcos, por exemplo, que necessitam de combustível para funcionar. As pessoas no interior têm uma relação muito forte com as histórias contadas pelos antigos que reverberam até os dias de hoje, tem toda uma relação com a Amazônia e suas fantasias, fábulas, mitos, quem não é da floresta, muitas vezes, não acredita nessas histórias, o povo de fora critica, ri e muita das vezes acha maior baboseira, porque não viveram a experiência que temos aqui. Quem nunca viu o Amazonas Nunca irá entender a vida de um povo De alma e cor brasileiras Suas conquistas ribeiras Seu ritmo novo Não contará nossa história por não saber e por não fazer jus Não curtirá nossas festas tucujus Quem avistar o Amazonas, nesse momento, e souber transbordar de tanto amor Este terá entendido o jeito de ser do povo daqui. Quem nunca viu o Amazonas Jamais irá compreender a crença de um povo Sua ciência caseira
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2. Trecho da letra da música: Jeito Tucuju de Joãozinho Gomes e Val Milhomem.
A reza das benzedeiras O dom milagroso(...)2 Quando gravei as imagens do Casco a intenção foi de me relacionar profundamente com as recordações de quando criança em torno do Rio Jupati, mergulhar nas lembranças do meu primeiro envolvimento com esta artesania construída pelas mãos calejadas de meus parentes moradores muito antes de mim e até mesmo de meu pai na Vila São Jorge, esse saber ancestral adquirido com o passar do tempo pelos indígenas, pelos negros que desde sempre construíam esses artefatos. Faço um apanhado geral dessas revisitações com o coração trêmulo, pois desde que me atentei a tal percurso do corpo memória, compreendi que transitamos muitas das vezes imaginariamente e que isso se dá pelo fato de catalisarmos imagens, falas, gestos, corpos em constante movimento. Confesso que escolhi o barco, o rio, a floresta e o casco, como uma forma de buscar essa ancestralidade adormecida por algum motivo ou necessidade, certo que estive em uma encruzilhada repleta de questões e perguntas que foram salientadas no decorrer de cada gravação, de cada espaço revisitado, me senti acolhido.
4.3 Etapas 3 – Elaboração do texto para o vídeo O texto elaborado para o vídeo é uma transcrição poética de trechos do meu relato sobre cada um dos elementos escolhidos para a catalogação de corporeidades e gestualidades cotidianas de uma pessoa ribeirinha afro indígena, abaixo disponibilizo o link do trabalho completo audiovisual: https://youtu.be/sHrTfjLd2cY?si=nn_h-ykKEE40u_eTexto do vídeo: Autor: Marcos Maciel Fernandes Orientação dramatúrgica: Adélia Carvalho “Eu já pedi licença?
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\ a floresta, o rio, o barco e o casco na catalogação de corporeidades de um artista amazônico
Tomei a “bença” dos mais velhos? Sabe aquele frio na barriga? Constantemente acontece, uma vibração intrusa que me arrebata o corpo, um arrepio dos pés aos fios dos cabelos. um mundo inteiro abaixo dos nossos pés, uma infinidade que atravessa quilômetros, cada camada... a vontade de entender esse contexto amazônico...aqui...eu e os meus... meus olhos buscam para além do cotidiano que torna invisível, aqueles seres... como é mesmo que se diz? Aqueles... ... Eu já pedi licença? - Menino calça a sandália... não pode andar descalço, com os pés ao vento, a mata tem bichos, cobras que festejam entre as folhas, as árvores caídas ao chão da mata escondem segredos ocultos. Como é mesmo que se diz? Aqueles... - Encantados. Bença meu pai, que não era presente; Bença Papai que, sempre muito distante, deixava a impressão de que não fazia tanta questão de estarmos ali; Bença meu pai, que sumia às margens do Rio Jupati com seu barco; Bença, meu Pai, que me ensinou a pilotar o barco; Bença, meu Pai, me diz: nós éramos um tanto faz? Bença Pai, esse troço é grande demais! Lembro bem: ele na parte de trás do barco para rodar a manivela, eu na frente ao piloto para direcionar o leme, velejar às margens do rio! Achei difícil, Pai, mas aos poucos aquilo foi me
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completando e tocando as entranhas do meu corpo, como se fôssemos um só, me senti útil, forte e até mesmo corajoso ao seu lado, aprendendo seus costumes, que também eram meus. Bença meu pai, eu sou sua continuidade. Os rituais aconteciam pela manhã, sempre nos mesmos horários, aprendi a pedir para dar passagem as coisas boas que nos rodeiam, pedir que os Encantados, os seres que não enxergamos, mas, que estão na mata, nos abençoem, nos acompanhem para que possamos ter um dia, uma semana de fartura. Aprendi o respeito ao povo que já habitou essas matas muito antes de nós, e aqueles que ainda permanecem por aqui. Você precisa ver para acreditar? Eles estão aqui. Desde antes, agora e até depois de mim... - Abram caminhos para que continuemos o que começaram e talvez não tiveram tempo de terminar, ou talvez terminaram e querem que suas raízes continuam ressoando dia após dia. Eles estão aqui. Sabia? Eles. Os Encantados. Seis horas de viagem pelo rio Jupati. Meus avós, no final de tarde sentavam na frente da casa para espiar o rio passar, nesse momento que as histórias eram tecidas, como uma rede que nos emaranhava. Vovó e Vovô com voz de simplicidade e sabedoria, entre memórias e mitos falavam da força das águas que podem nos lavar ou nos arrastar e meu corpo ia sendo tecido nessas tradições ancestrais, nessas encantarias que davam corpo e
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\ a floresta, o rio, o barco e o casco na catalogação de corporeidades de um artista amazônico
voz aos habitantes das águas, da floresta, da relação cosmológica da natureza, histórias dos nascidos e criados às margens do rio. Criança, eu ficava no pátio da casa do meu Pai, muita das vezes observando o casco e me questionava: como aquele pedaço de madeira em formato de um barco era tão necessário? Sempre que saía pelo rio, não era simplesmente sentar no casco e sair remando, tinha algo mais... aquele momento de suspensão... cada saída era diferente: o sentar era diferente, as braçadas, as águas do rio... mesmo rio, sempre...mas, as águas, sempre diferentes... Saíamos muito para o rio atrás de comida, às vezes, pescávamos na beirada. Eu nunca tinha sorte na pescaria só pegava o peixe rouba isca, chamado de baiacu o bichinho atentando, quando não comia minha isca, tirava minha linha e levava meu anzol, às vezes tragicamente puxava o baiacu, peixe que não é de comer...peixe de pele diferente dos outros peixes, de corpo espinhoso, ele tufa quando está em perigo como se fosse um balão, é fofinho esse ladrão de isca e de anzol. Baiacu! Tantas lembranças remam comigo no rio, a perda de uma pessoa próxima ou, até mesmo da família, um alagamento aleatório porque o barco passou fortemente e as maresias cobriram o casco, tantas lembranças... Sempre me senti parte do Rio Amazonas, das suas águas, como se fôssemos um encontro, um encontro de almas que se entrelaçam, se completam e, tantas vezes transbordam, como uma cheia que escorre nos solos regando e cultivando a terra
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quente, dando espaços para novos atravessamentos identitários, a água que jorra do rio nas raízes de uma planta, fortalece toda a vida existente ali e para além... Mergulho...Mergulho...Mergulho... Meu corpo reencontra sua identidade nos movimentos adquiridos no ir e vir desse meu interior, meu corpo se mistura ao rio, à floresta, aos encantados...meu corpo é remo, motor, rede tecida por tantas mãos.... o encontro da minha vida em Macapá e minha vida na comunidade do Rio Jupati, faz de mim quem sou: rios que se encontram, chão de terra, no fundo do rio, água que ultrapassa suas margens... Venho colhendo memórias. Memórias de nadar às margens do rio, pilotar barco, despescar matapi, preparar peixe, subir nas árvores para apanhar o açaí fresquinho para o café da manhã, almoço ou janta. Memórias de pular por cima do miritizeiro, deitar nos troncos das árvores, tirar fruta do pé da árvore, comer ali mesmo, brincar no terreiro com meus primos e irmãs, estar no chão, cair e levantar tantas vezes, do barro criar esculturas... Eu já pedi licença? Tomei a bença dos mais velhos? Sabe aquele frio na barriga? Eles estão aqui... Eles Nas minhas memórias, histórias, vivências... Eles e eu, No rio, na floresta, no barco e no casco, Eles e eu, Eles...
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Os encantados. Bença. Eu já pedi licença? (Maciel, 2022,p.46)
\ CONSIDERAÇÕES FINAIS Esse processo de pesquisa foi marcado por toda a minha formação desde as disciplinas do curso de teatro da Universidade Federal do Amapá UNIFAP, que me instigaram a refletir sobre o meu corpo, minhas origens, minhas referências, coisas vistas e muitas das vezes não percebidas por estarem diluídas no meu cotidiano e quando consegui olhar de forma reflexiva e indagadora para questões que me rodeavam, pude vislumbrar em cada processo dentro da universidade, um caminho para desvendar em mim um discente-artista-pesquisador. Experimentando um caminho longo na dança, reproduzo a necessidade e vontade pessoal de me jogar o máximo possível nos encontros em sala, exercícios, práticas que possam fazer entender meu corpo, suas inúmeras possibilidades, lugares desconhecidos, referências que pudessem dialogar com o hoje e com o amanhã, confesso que nas disciplinas de prática corporal, me sentia livre, potente e desafiado, foi então que comecei a perceber o quanto meu corpo tinha possibilidades ainda pouco investigadas, muito além do que tinha domínio, um corpo repleto de memórias, faíscas que o tornavam coerente, versátil e vibrante. Por conta das minhas origens de um menino do interior, crescido e criado nas terras amazônicas, pela convivência com meus parentes do Rio Jupati e do Rio Viçosa, percebo muito mais do que uma morada, que preciso revisitar e reafirmar com outros olhos este lugar ancestral, buscado a partir das minhas vivências essas incógnitas que perduram, em meu corpo essa amazônida.
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Busquei estar mais próximo de referências dos povos originários que dialogassem com as minhas nascentes como um artista amazônico, caboclo e ribeirinho, nessa pesquisa pude compreender a minha relação com o povo indígena, confesso humildemente que não tinha tanta clareza e conexões que me fizessem refletir sobre as questões que me atravessaram na minha infância no interior, onde estive relacionado diretamente com os costumes e saberes indígenas, os rituais diariamente em diálogo com a Amazônia, o deitar as 18hrs da noite logo quando o sol se põe, e quando a luz natural se vai o amanhecer às 06hrs da manhã quando o sol aparece, pois os afazeres começam cedo. Nesta pesquisa usei como fonte de inspiração algo que estivesse o mais próximo de mim e do meu contexto familiar, foi então que a partir das vivências na dança corporalmente surgiram recortes pessoais catalisadas no meu corpo, memórias vivas em cada movimento, seja nas danças no São João, no Carnaval e no Festival Folclórico de Parintins, no Teatro ambos foram fontes para que me engajasse até aqui. Comecei a investigar com o meu corpo as memórias a partir desses quatro estímulos: barco, rio, floresta e casco, memórias de minhas vivências amazônidas, que estão impressas na gestualidade cotidiana, na forma de sentar, caminhar, mover os braços, a cabeça e memórias do meu interior, do interior que habito e que me habita, de um interior que emerge em meu fazer artístico. O vídeo é uma mostra dessa investigação, não é uma obra final, mas, uma pesquisa, que pode ser usado, posteriormente, como uma catalogação dessas gestualidades contidas nos rituais cotidianos, muitas vezes ignorados: caminhar com os pés descalços, nadar, pedir licença à floresta e ao rio, manejar o barco ou remar o casco, pedir licença, tomar benção, acolher a ancestralidade, respeitando e se orgulhando dela em nós, em nosso corpo e em nossa formação.
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\ balbúrdia na universidade pública: (r)existência LGBTQIAPN+ no instituto de artes da Unesp e suas possibilidades pedagógicas Mateus de Freitas Campos Mateus de Freitas Campos, São Paulo (SP). Graduado em licenciatura em teatro pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp), é ator, teatro-educador e engenheiro civil. Pesquisa intersecções entre teoria cuir, teatro e educação e, mais recentemente, (trans)criação visual no teatro infantojuvenil. Foi integrante da coletiva LGBTI+ Balbúrd_IA Drag, que atuou no Instituto de Artes da Unesp (IA) de 2019 a 2022. m.campos@unesp.br
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FICHA TÉCNICA Instituição Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp) Tipo do curso Graduação Nome do curso Licenciatura em arte – teatro Período do curso 2018-2022 Estado São Paulo Título do trabalho Balbúrdia na universidade pública: (r)existência LGBTQIAPN+ no Instituto de Artes da Unesp e suas possibilidades pedagógicas Nome do autor Mateus de Freitas Campos Nome da orientadora Professora doutora Rita Luciana Berti Bredariolli Número de páginas 20
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\ balbúrdia na universidade pública: (r)existência LGBTQIAPN+ no instituto de artes da Unesp e suas possibilidades pedagógicas
\ RESUMO O sucateamento do Instituto de Artes da Unesp desencadeou um evento de cabaré LGBTI+ performático, e dele se originou a coletiva Balbúrd_IA Drag. Para além desses eventos de palco aberto, a coletiva passou a se articular nas redes sociais, resgatando fatos da história cuir, divulgando artistas LGBTI+ e promovendo debates, aulas e palestras. Partindo das vivências viadas do autor, esse trabalho se divide em 3 partes. A primeira é o resgate da cena teatral LGBTI+ brasileira do século 20, ressaltando os grandes marcos da presença queer nos palcos e na dramaturgia. O segundo ponto é a documentação das atividades da coletiva Balbúrd_IA Drag, com relatos e fotografias das atrações dos festivais e demais atividades propostas. Por fim, a escrita deste trabalho mergulha na pedagogia cuir e analisa como as atividades da coletiva Balbúrd_IA Drag podem contribuir para trazer o patrimônio queer para dentro das salas de aula. Palavras-chave: Teatro-Educação. LGBTI+. Pedagogia Cuir/Queer
\ ABSTRACT The failing of Unesp’s Arts Institute triggered a LGBTQIA+ performative cabaret event, leading to the creation of Balbúrd_IA Drag collective. In addition to these open stage events, the collective started articulating on social media, recovering facts from queer history, promoting LGBTQIA+ artists and promoting debates, classes and lectures. Based on the author’s experiences as a faggot, this work is divided into 3 parts. The first is a rescue of the Brazilian LGBTQIA+ theater scene of the 20th century, highlighting the great milestones of the queer presence on stages and in dramaturgy. The second point is the documentation of the activities of Balbúrd_IA Drag collective, with reports and photographs of the attractions of the festivals and other proposed activities. Finally, the
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writing of this work dives into queer pedagogy and analyzes how the activities of Balbúrd_IA Drag collective can contribute to bringing queer heritage into classrooms. Keywords: Theater-Education. LGBTQIA+. Queer Pedagogy.
\ RESUMEN La precarización del Instituto de Artes de la Unesp desencadenó un evento de cabaret LGBTI+, y de ahí nació la colectiva Balbúrd_IA Drag. Además de estos eventos de escenario abierto, el colectivo comenzó a articularse en las redes sociales, recuperando hechos de la historia cuir, promocionando artistas LGBTI+ y impulsando debates. A partir de las vivencias del autor como marica, este trabajo se divide en 3 partes. La primera es el rescate de la escena teatral LGBTI+ brasileña del siglo XX, destacando los grandes hitos de la presencia queer en los escenarios y en la dramaturgia. El segundo punto es la documentación de las actividades de la colectiva Balbúrd_IA Drag, con reportajes y fotografías de los atractivos. Finalmente, la redacción de este trabajo se sumerge en la pedagogía cuir y analiza cómo las actividades de la colectiva Balbúrd_IA Drag pueden contribuir a llevar la herencia queer a las aulas. Palabras clave: Teatro-Educación. LGBTI+. Pedagogía Cuir/Queer.
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1 \ EU: DE CRIANÇA VIADA A HOMEM CIS GAY O processo de autodescoberta da identidade LGBTI+ é complexo e muitas vezes marcado por sinais desde a infância. Eu, desde pequeno, me sentia diferente e sentia que meus impulsos destoavam, eram distintos do que se esperava de mim, tanto no ambiente escolar como no familiar, onde normas de masculinidade existiam. Apesar de não receber repressão direta em casa, comentários homofóbicos sutis permeavam o ambiente. Na escola, o bullying homofóbico era frequente, sem defesa por parte de pessoas adultas que presenciavam. A pressão social me levou a renunciar a interesses considerados “femininos” (como ser fã da Shakira ou usar sunga) em favor de uma imagem mais masculina. Aos 16 anos, me reconheci enquanto gay, antevendo os desafios que teria pela frente1. A partida deste trabalho se deu das minhas memórias de bicha interiorana que cavava caminhos para se entender em uma realidade que parecia não me abraçar.
2 \ LGBT+EATRO “Não existe teatro sem viado e fita-crepe!” (Marcelo Drummond apud Martins, 2010, p. 433). A frase acima, uma complementação da famosa frase de Cacilda Becker “Não existe teatro sem fita crepe”, escancara uma ideia que habita no imaginário da maioria das pessoas: a de que o meio teatral seja comumente frequentado por pessoas LGBTI+ (especialmente as pessoas cis). Diversas poderiam ser as razões para tal: o uso do palco como um confessionário, ou a possibilidade de performar de uma maneira que no cotidiano não seria possível (MARTINS, 2010). Apesar disso, a dramaturgia
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1. Segundo Modesto (2015, p. 128-9), “sair do armário” é uma ação que envolve os planos moral (autorrespeito, dignidade) e ético (autoestima, busca da felicidade). A impossibilidade de ser quem se é fere a dignidade da pessoa LGBTI+ e prejudica a busca de sua felicidade.
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2. Termo usado na época para designar o que hoje chamamos de Fundação CASA.
em si nem sempre refletiu essas sexualidades dissidentes. Ao longo do século 20, algumas peças apresentavam personagens LGBTI+, embora sem a profundidade observada hoje.
2.1. Pré-anos 60 Segundo Moreno (2002), já no século 19, Qorpo Santo escreveu uma peça chamada “A separação dos dois maridos”, na qual as personagens Tatu e Tamanduá são casadas. Tatu quer fazer sexo com Tamanduá, que o recusa, e por fim a peça se encerra com ambos separados. Outros exemplos de dramaturgia onde a sexualidade LGBTI+ é sutilmente abordada são Coelho Neto com “Os mistérios do sexo” ou “O patinho feio”, João do Rio, com “Eva” e “O Bebê de Tartalana Rosa”. Pulando algumas décadas, chegamos a Nelson Rodrigues, que retratou diversas situações homoeróticas em suas peças. Conforme resume Tomaz (2011), o autor ilustrou uma relação lésbica entre Glória e Teresa em “Álbum de família”, de 1946, e retratou personagens como o garçom Pola Negri, dotado de “frenética volubilidade”, em “Perdoa-me por me traíres”, de 1957; a travesti Dorothy Dalton, que foge da FEBEM2 em “Viúva, porém honesta”, de 1957; Serginho, um jovem com fortes tendências homossexuais, em “Toda nudez será castigada”, de 1965; e Osvaldinho, de “Anti-Nelson Rodrigues”, de 1973, cuja mãe o aponta como bicha. É válido indicar também a peça “O beijo no asfalto”, de 1960, que apesar de não ter personagens LGBTI+, retrata o beijo entre dois homens e a comoção pública que isso causou (GUIMARÃES, 2021). Já nos anos 60, Walmir Ayala traz a questão da homossexualidade como protagonista em cena. Lançada em 1965, a peça “Nosso filho vai ser mãe” retrata a personagem Otávio, que passou a infância sendo vestido pela mãe com roupas femininas para cantar e entreter as amigas. O nome da peça remete ao “parto” da própria homossexualidade de Otávio, que clama por respeito frente a uma sociedade que quer destruí-lo.
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O senhor é o que se costuma chamar um homem de bem. É mesmo bastante atarefado. Tão atarefado que nem conseguiria ser mãe, mesmo que quisesse. Para isso, aliás, e necessário o ócio e rebeldia e o heroísmo. ................................................ E extranho, a dureza da cara dos homens práticos. Mesmo dos homens de bem, como esse. Eu falava, falava de mim, das coisas essenciais de mim, e ele tinha a mesma expressão dos macacos do zoológico. Os mesmos olhos vazios, a mesma ruminação de pensamento, o egoísmo, o sentido utilitário. Estamos completamente perdidos (AYALA, 1965 apud CANALES, 1981, p. 175). A peça se destaca pelo respeito com o qual tratou o tema, foge de representações estereotipadas ou cômicas apresentando as angústias de uma personagem que peita a sociedade pelo direito de ser quem de fato é.
2.1.1. O T da questão Algo que merece atenção quanto aos anos 50 e 60 é o advento do silicone e, com ele, o “surgimento” das travestis e mulheres trans. É importante frisar essas aspas pois, na atualidade, as discussões sobre sexualidade e gênero estão em um outro patamar. Em meados do século 20, a divisão entre masculino e feminino era muito bem marcada, e calcada na binariedade e na cisgeneridade. Ou seja, pessoas trans eram possivelmente lidas como lésbicas masculinizadas ou gays afeminados. A possibilidade de “construção” feminina permitiu que pessoas pudessem “transicionar” para um corpo feminino por meio de próteses e então ocupar espaços para mulheres.
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3. Por nudez, entendese que as pernas das coristas e atrizes ficavam expostas, sem meias. Posteriormente, essa exposição foi se estendendo para o resto do corpo.
Destaca-se aqui que, com a invenção do silicone, surgiram também técnicas mais rudimentares para atender às pessoas que não tinham condições de pagar por uma intervenção cirúrgica segura. Ou seja, a injeção de substâncias como silicone líquido, silicone industrial, parafina, eram alternativas para pessoas sem poder aquisitivo (GUIMARÃES, 2015, p. 53), realidade presente na vida das pessoas trans de hoje e daquela época. Passíveis de se feminilizarem, as travestis passaram a ocupar espaços teatrais tradicionalmente ocupados pelas mulheres cis, como os shows de variedades.
2.1.2. Show de variedades no Brasil Em meados do século 19 e começo do século 20, companhias estrangeiras importaram os shows de variedades para o Brasil. As francesas trouxeram números burlescos, de vaudeville e operetas (ESTEVES, 2014, p. 51), as portuguesas trouxeram o Teatro de Revista, “com esquetes e números musicais, críticas sociais e políticas, o uso do cômico, da sensualidade feminina, e de um apelo bastante popular” (SOUSA et al., 2018, p. 161-162). Nos anos 20, as companhias europeias “Ba-ta-clan” e “Velasco” trouxeram as revistas “modernas”, isto é, com palcos mecanizados, cenários e figurinos luxuosos e temática fantasiosa, caracterizada pela nudez das vedetes3 (BESSA, 2012). Em meados dos anos 60, com o golpe civil empresarial militar, a Revista perdeu força.
2.1.3. Travestis no Teatro Segundo Meneses e Jayo (2018), o provável marco inicial da presença travesti nos palcos brasileiros foi Ivaná, em 1953. Antes dela, atuaram no Brasil alguns atores transformistas. No começo do século 20, o estadunidense John Bridges performava como a famosa atriz Pepa Ruiz (MENESES e JAYO, 2018). Já dos anos 20 aos anos 50, é possível citar o
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ator argentino Aymond, que se apresentava caracterizado como grandes atrizes da época (CESÁRIO, 2021) e Madame Satã, que incorporava personagens femininas no Rio de Janeiro, como no número “Mulata do Balacochê” do espetáculo “Loucos em Copacabana”, ou em números interpretando a cantora Carmen Miranda (DURST, 1985). Segundo Veras (2021), a própria Ivaná já declarou recusa quanto ao título de primeira travesti do teatro brasileiro, indicando Aymond como pessoa merecedora do mesmo. Porém, tanto Veras (2021) como Cesário (2021) analisaram com cuidado a vida e trabalho de Aymond e concluíram que ele era um ator transformista, e não uma travesti pois, “apesar de Aymond se apresentar nos palcos com linda toillete feminina, na rua usava calça, paletó, colarinho e gravata. (...) O artista sabia seu lugar naquela sociedade. Sabia de seus códigos e, portanto, jogava o jogo conforme as regras” (CESÁRIO, 2021, p. 17). Como complementa Veras (2021, p. 478): A sugestão de que o artista passava para sua personagem demandas próprias, apesar de tentadora, é por demais sensível. O que temos, de fato, é que ele vivia em uma sociedade com fortes restrições às sexualidades desviantes e o palco se mostrava como um lugar propício para essa vivência, ainda que por meio da personagem. Certamente nunca poderemos dizer quais foram os sentidos íntimos de sua escolha profissional, mas temos a possibilidade de através dela lançar luz sobre as alternativas e possíveis estratégias de muitas pessoas que em situações parecidas não deixaram rastros. A trajetória de Norberto é a de um sujeito excepcional normal, no sentido proposto por Carlo Ginzburg (1987), que argumentou que a história de um sujeito pode revelar processos invisíveis de grupos e relações sociais.
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Seja como for, Ivaná transpôs importantes barreiras. Para além dos palcos, atuou também em filmes, como “Mulher de Verdade”, de 1954, dirigido por Alberto Cavalcante, contracenando com Inezita Barroso e Adoniran Barbosa (MENESES e JAYO, 2018). Outro nome de destaque dessa época é Phedra de Córdoba. Nasceu na capital cubana em 1938, onde estudou dança e teatro. Aos 16 anos, durante uma turnê internacional, conheceu um empresário brasileiro que a convidou para estrelar alguns espetáculos de Teatro de Revista no Brasil, onde passou a se entender como Phedra, conforme conta Rocha (2013, p. 218-220). Segundo Meneses e Jayo (2018), Ivaná, Phedra e outras que provavelmente não foram devidamente registradas constituem uma primeira geração de artistas travestis que pavimentaram o caminho de outras que vieram nos anos seguintes, quando de fato a presença dessas artistas se projetou de maneira mais potente na cena teatral.
2.2. Pós-anos 60 Os anos 60 se caracterizaram pelas mais variadas mudanças sociais e políticas, como o mundo dividido na Guerra Fria e a eclosão de ditaduras em países latino-americanos pós-Revolução Cubana. No Brasil, houve o surgimento de emissoras como a TV Tupi e a TV Globo, além do sucesso da Nouvelle Vague e do cinema brasileiro. Na música, a MPB ganhou destaque, assim como o rock internacional e a Jovem Guarda. Quanto à moda e comportamento, é possível citar o surgimento da moda unissex e movimentos de contracultura, como o Women’s Lib, o Black Power, o Gay Power e o movimento hippie, todos clamando por mudanças sociais. Essas circunstâncias são importantes para entender a cena teatral LGBTI+ pós-60.
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2.2.1. Dramaturgia libertária Como destaca Martins (2010, p. 436), a censura sempre atuou junto às atividades teatrais. Isso prejudicou a possibilidade de trabalhar a questão LGBTI+ nos palcos, porém não impediu totalmente. Pessoas como José Vicente e Plínio Marcos são algumas das que trabalharam alguma sexualidade desviante em seus textos (MARTINS, 2010, p. 438). O teatro homoerótico é inaugurado por Zé Vicente, com “Santidade”, em 1967. Por abordar a homossexualidade na Igreja Católica e nas Forças Armadas, foi censurada. Em “O Assalto”, de 1969, a personagem Vítor, bancário que odeia a profissão, pede demissão e revela ao faxineiro Hugo seu desejo sexual, contribuindo para o desenrolar de uma tensão sexual (CANALES, 1981, p. 177). Martins (2010, p. 438) destaca que, diferente das peças homoeróticas estadunidenses, que, embaladas pela Rebelião de Stonewall, tratavam a questão de maneira mais coletiva, nas peças brasileiras esses conflitos são tratados na esfera privada. Já as peças de Plínio Marcos se caracterizavam pela crueza da vida de pessoas marginalizadas, excluídas, mundanas. As personagens que habitam suas peças são prostitutas, presidiários, mascates, trabalhadores braçais, travestis, pessoas em situação de rua. Em “Barrela”, peça que escreveu em 1958, retrata o estupro entre presidiários em uma cela. Em “O Abajur Lilás” (1969), três prostitutas discutem no prostíbulo comandado por Giro, um homossexual. Fernando Mello escreveu em 1969 “A pequena tragédia de Vera Maria de Jesus, a Condessa da Lapa”, na qual a travesti Vera reflete sobre sua trajetória e seu entendimento enquanto mulher. A peça tem tom cruel e obsceno e se passa em uma cela de presídio que ela divide com um assassino, acompanhados de um agente penitenciário homossexual (CANALES, 1981).
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4. Linguagem usada pela comunidade LGBTQIAPN+ brasileira, com um vocabulário formado por expressões que foram criadas ou adaptadas. Elas incorporam palavras de origem de grupos étnicolinguísticos africanos, como nagô e iorubá.
Seu maior sucesso foi “Greta Garbo, quem diria, foi parar no Irajá”, de 1973, que arrebatou público no Brasil e no exterior. Retrata o encontro do jovem Renato com Pedro, mais velho, que o abriga em seu apartamento. Posteriormente um triângulo amoroso é formado com a prostituta Mary. Diferente da antecessora, esta peça trata do universo de maneira leve e divertida, com trocadilhos do pajubá4 (GREEN, 2000, p. 414). Outra personagem travesti de sucesso é Geni, da peça de Chico Buarque “A Ópera do Malandro”, de 1978, na qual ela tenta frustrar o casamento do malandro Max com Terezinha, filha de um casal mantenedor de um prostíbulo. O sucesso da música “Geni E O Zepelim”, cantada no espetáculo, colaborou para que a personagem se destacasse ainda mais. Nos anos 80, a epidemia de AIDS assolou o mundo e refletiu na produção dramatúrgica, resultando, segundo Moreno (2002), nas Aids Drama. No Brasil, o escritor Caio Fernando Abreu é um exemplo, tendo escrito peças, contos e romances que foram adaptados para os palcos, como “Morangos mofados” em 1984 e “O homem e a mancha” em 1994. Como exemplos estrangeiros, é possível citar “The Normal Heart”, de 1985, escrita por Larry Kramer, “Safe Sex”, de Harvey Fierstein e “Angels in America”, de 1991, escrita por Tony Kushner. A virada para os anos 90 na cena paulistana foi marcada pela formação do grupo “Os Satyros”, responsável por um vasto trabalho sobre homoerotismo teatral. De acordo com Martins (2010), algumas peças clássicas de sua trajetória são “Saló, Salomé”, de 1991, “Filosofia na Alcova”, de 1993, e “Sappho de Lesbos”, de 1995. Em Recife, estreou em 1991 “Cinderela, a História que sua Mãe não Contou”, escrita por Henrique Celibi (ex-integrante do grupo “Vivencial Diversiones”) e encenada pela Trupe do Barulho. Fez um estrondoso sucesso no Brasil inteiro. Os anos 90 foram mais fecundos para a dramaturgia LGBTI+, conforme aponta Moreno (2002). Alguns exemplos disso são “Violeta Vita”, de Luiz
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Cabral e “Risco de vida” de Alberto Guzik, escritas em 1995; “Nocaute”, escrita por Cláudia Schapira em 1996; “Sereias da Rive Gauche”, por Vange Leonel em 1999 e, escritas em 2000, “Espelhos e sombras”, de Avelino Alves e “Tango, bolero e chá-chá-chá” de Eloy Araújo, entre outros. Em partes, essa dramaturgia era motivada por eventos como o Festival Mix Brasil, que promovia ciclos de leituras dramáticas, tal qual o OffMix 99. O trabalho com esses textos impulsionava sua montagem nos anos seguintes, incrementando a cena teatral LGBTI+ (MORENO, 2002). Além disso, havia divulgação da mídia especializada (como o site Mix Brasil) e geral (como os cadernos de cultura dos grandes jornais), e abertura para desenvolvimento do trabalho dessas peças em espaços alternativos, como “Os Satyros”, que já vinha trabalhando com o homoerotismo teatral (MARTINS, 2010). Na virada para os anos 2000 e nas décadas seguintes, a cena teatral LGBTI+ seguiu se enriquecendo, embalada pelas conquistas da população LGBTI+ no início do século 21, como o casamento homoafetivo ou retificação de nome e gênero. Para além de mais peças com temática cuir, surgiram também editais com essa temática e mais grupos de pesquisa.
2.2.2. Androginia nos palcos No início dos anos 70, surgiu o grupo Dzi Croquettes, liderado por Lennie Dale. Suas apresentações eram uma releitura do Teatro de Revista, com figurino mesclando elementos tidos como masculinos e femininos (como barba e batom, perna peluda e salto alto), entregando um espetáculo fortemente trabalhado na performance andrógina, na contracultura e no besteirol. Exilados na França devido à censura da ditadura, o grupo fez sucesso internacional e enfrentou tragédias, como a epidemia de AIDS e assassinatos.
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Outro grupo importante dessa época foi o Vivencial Diversiones, instalado em um café-teatro de Olinda. Promovia performances variadas e reflexões sobre temas sociais e políticos, utilizando uma estética mais crua e simples. Serviu como inspiração para o roteiro do filme “Tatuagem”, de Hilton Lacerda. Henrique Celibi, um dos integrantes, tinha planos de reabrir o café-teatro do grupo antes de falecer em 2017.
2.2.3. As travestis pós-Ivaná Se nos anos 50 houve o début de Ivaná abrindo o caminho das travestis nos palcos do Teatro de Revista, nos anos 60, esses palcos foram tomados por elas, acompanhadas por atrizes trans e atores transformistas. Um marco dessa época foi o show “Les Girls”, estrelado por Rogéria, Valéria, Marquesa, Brigitte de Búzios, entre outras, que fez turnê nacional e internacional, projetando Rogéria também na televisão. Na cena recifense, Sharlene Esse, Odilex e Raquel Simpson são alguns dos nomes de destaque que se apresentavam em boates como “Misty”, “Mangueirão”, “Vogue” e “Stock”, segundo Parente (2019). Em São Paulo, a cena noturna das boates era liderada por Miss Biá, interpretada por Eduardo Albarella, cuja carreira se estendeu desde 1958 até sua morte em 2020. Conforme conta Pinhoni et al. (2017), além de cantar e dançar, Miss Biá também atuou como entrevistadora, em um número onde personificava Hebe Camargo, recebendo celebridades sentada em um sofá na boate. Considerada a boate LGBTI+ mais longeva da América do Sul, a “Nostro Mondo” foi dirigida por Condessa Mônica, que abandonou sua carreira como oficial de justiça para se dedicar à boate e à sua carreira artística. Localizada próximo ao cruzamento da Rua da Consolação com a Avenida Paulista, a “Nostro Mondo” era um ambiente vibrante e acessível, sendo pioneira por propiciar as “pegações”, shows de strip-tease masculinos, e
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matinês para menores de 18 anos. Apesar do falecimento de Condessa Mônica em 1989 vítima da epidemia de AIDS, a “Nostro Mondo” continuou aberta até 2014. Elisa Mascaro e seu marido inauguraram a boate “Medieval” em 1971, localizada na rua Augusta, próximo à Avenida Paulista. Os números musicais, inspirados nos cabarés parisienses, apresentavam figurinos de qualidade e permaneciam em cartaz por meses, atraindo um público diversificado, que assistia aos números sentados (e não em pé). Atraía artistas da época e gerava bastante frisson nos arredores, ocasionado pelas entradas triunfais, como a de Wilza Carla, que certa vez chegou montada em um elefante. Fechou em 1984 devido à concorrência com a boate “Homo Sapiens”. Esta, por sua vez, trouxe inovações, como “concurso de melhor corpo masculino, pocket-peças de teatro e shows de humor” (STEFFEN, 2017), além de receber um público mais burguês. Fechada a “Medieval”, Elisa Mascaro abriu a boate “Corintho” em 1985, no bairro de Moema, comandando a casa com ainda mais pulso firme. Em contrapartida, empregava, além das artistas do palco, também garçons, seguranças e cozinheiros, com carteira assinada, férias, 13º salário e plano de saúde, uma realidade até então distante para as artistas LGBTI+, especialmente as trans e travestis. Com o avanço da epidemia de AIDS e a omissão do poder público, a cena das boates LGBTI+ foi afetada, resultando em um declínio desse cenário festivo e na perda de várias figuras importantes. Apesar disso, as boates continuaram existindo, algumas sendo abertas e outras fechadas, e os shows de travestis e transformistas deram lugar às performances de drag queens, mantendo-se até os dias atuais. Além das principais casas noturnas citadas, muitas outras contribuíram para a efervescência da cena LGBTI+ em São Paulo, e várias outras artistas também desempenharam papéis importantes nesse contexto.
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5. “RuPaul’s Drag Race” é um reality show estadunidense, comandado pela drag queen RuPaul, no qual drag queens são avaliadas por diversos critérios, como interpretação, canto, dança, maquiagem, improvisação e figurino, e são eliminadas a cada episódio, até restar uma vencedora. O programa já conta com 16 temporadas e tem também franquias internacionais, se constituindo hoje como uma referência internacional na cultura drag.
3 \ BALBÚRD_IA DRAG Em meados do primeiro semestre de 2019, alguns serviços do Instituto de Artes da Unesp passaram a funcionar apenas até as 19h, afetando especialmente o curso de Licenciatura em Artes do Teatro (LAT), o único em período noturno. Isso gerou grande desmotivação no corpo discente. Para levantar o ânimo e chamar a atenção para o período noturno, o professor Vinícius Torres Machado sugeriu um evento de encerramento de sua matéria, e foi decidido fazer um festival drag no mês de junho, denominado “Balbúrd_IA Drag”, inspirado no programa “RuPaul’s Drag Race”5. O evento foi um sucesso, contando com apresentações bastante diversas: de pessoas que já se montavam como drag, de pessoas que se interessavam mas nunca tinham se montado, de pessoas que nunca haviam pensado em se montar mas que toparam experimentar. Isso imprimiu no festival um caráter libertário de experimentação, livre de julgamentos, e despertou interesse nas pessoas por mais edições, resultando na formação de uma coletiva LGBTI+ comprometida em continuar com as atividades.
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Figura 1 – Encerramento da 1ª edição do Balbúrd_IA Drag Festival
Fonte: Campos (2023).
A 2ª edição aconteceu no contexto do avanço da precarização do instituto, que passou por um processo de redepartamentalização, isto é, fundiram o departamento de artes cênicas e o de artes plásticas em um só, enquanto o departamento de música permaneceu independente. Em resposta, estudantes propuseram uma paralisação, transformando o IA em um espaço político ativo. Durante esse período, uma nova edição do festival “Balbúrd_IA Drag” foi organizada, ocorrendo em setembro de 2019. O evento contou com apresentações de dublagem e improvisações. Uma 3ª edição, com temática de Halloween, aconteceu em outubro do mesmo ano, organizada de forma bastante repentina nos fundos do campus durante a paralisação, proporcionando um palco aberto para diversas formas de apresentação, embora haja poucos registros dessa edição.
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A 4ª edição, intitulada “Balbúrdia Summers”, foi planejada com mais cuidado, agendada para o início de 2020 durante a semana de acolhimento das pessoas que ingressavam na graduação. A temática de verão reverberou na decoração, que contou com uma piscina de plástico cheia de bexigas. Para além das apresentações com drag kings, queens, acrobatas circenses, o evento contou com aula de dança, desafio de maquiagem e um quiz sobre edições anteriores do festival. Houve um convite para desfilar, pensado como incentivo para todas as pessoas terem contato com o palco, independentemente de suas habilidades de performance. O resultado foi positivo, com muitas pessoas se divertindo no palco e na piscina de bexigas. A 4ª edição foi bem recebida, apresentando novidades e colaborando para a integração das pessoas novatas. No entanto, as expectativas promissoras para o ano foram interrompidas pela suspensão das aulas devido à pandemia de covid-19 no mês seguinte.
3.1. Balbúrdia pandêmica Diante da pandemia, o Instituto de Artes enfrentou incertezas sobre como continuar as aulas e atividades. A coletiva Balbúrd_IA Drag, adaptandose à nova realidade, pausou suas atividades presenciais, expandindo-se virtualmente no perfil @balburdiadrag da rede social Instagram, onde postou uma série de vídeos explicativos sobre o surgimento da coletiva e a importância da cultura LGBTI+ na universidade. Além disso, promoveu uma série de recomendações de filmes e artistas LGBTI+. Realizaram também lives com pessoas convidadas, como o diretor do Museu da Diversidade Sexual e a drag queen Marcia Pantera. Mesmo durante a pandemia, celebraram o primeiro aniversário da coletiva com uma festa virtual e um videoclipe colaborativo. Essas atividades ajudaram a manter viva a chama da coletiva durante os desafios impostos pela pandemia. 319
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No ano seguinte, em parceria com o Cursinho Popular Pré-universitário “Heleny Guariba”, organizaram os “Encontros LGBTQIAP+”, abordando temas como cinema, história da comunidade LGBTQIAPN+ e intersecções entre teatro e diversidade. Embora os encontros não tenham alcançado grande adesão do público do cursinho, representaram uma importante iniciativa pedagógica para a coletiva, ampliando seu alcance e impacto.
4 \ UMA ENCRUZILHADA: TEATRO, EDUCAÇÃO E VIADAGEM O cruzo é a arte da rasura, das desautorizações, das transgressões necessárias, da resiliência, das possibilidades, das reinvenções e transformações. (...) A encruzilhada, símbolo pluriversal, atravessa todo e qualquer conhecimento que se reivindica como único. Os saberes, nas mais diferentes formas, ao se cruzarem, ressaltam as zonas fronteiriças, tempos/espaços de encontros e atravessamentos interculturais que destacam saberes múltiplos e tão vastos e inacabados quanto as experiências humanas (RUFINO, 2019, p.86) Repensar a arte-educação, especialmente em um contexto de ataque à cultura e à educação por parte da extrema-direita insurgente no Brasil em meados dos anos 2010, é mais do que necessário, torna-se uma obrigação das pessoas educadoras. Quando da elaboração deste trabalho, em algum momento houve uma hesitação em pensar na integração das atividades da coletiva Balbúrd_IA Drag em um ambiente pedagógico, especialmente na educação básica. Um impeditivo se formou, resultante dos ataques que o conservadorismo insiste em promover contra a Educação. Como trabalhar um festival drag com crianças e adolescentes? Seria apropriado propor montação e performance?
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O erro nessa questão ultrapassa questões conservadoras. Ele começa quando se cogita desenvolver atividades com crianças e adolescentes da mesma maneira como se trabalha com pessoas adultas. Já no início do século 20, Winifred Ward questionava o teatro ensinado a crianças como se fossem adultas. Crianças sendo dirigidas, com texto decorado, para apresentarem uma montagem teatral ao final do curso (MARTINS, 2017). Ward propôs uma mudança de olhar, de modo que o trabalho fosse desenvolvido valorizando a criatividade das crianças, construindo o processo a partir das vivências e impressões de mundo delas. Pensar em atividades da coletiva Balbúrd_IA Drag direcionadas para crianças e adolescentes é algo perfeitamente possível, desde que construída juntamente com eles, e não “copiada e colada” a partir dos cabarés universitários.
4.1. Pedagogias cuir Diversas pessoas têm pesquisado sobre as interseções entre sexualidade, gênero e educação, impulsionando uma revisão das práticas pedagógicas para torná-las mais inclusivas. Louro (2019) destaca como a sexualidade é construída social e politicamente, enfatizando a hierarquia e a diferenciação que marginalizam as identidades não normativas: As perguntas, as fantasias, as dúvidas e a experimentação do prazer são remetidas ao segredo e ao privado. Através de múltiplas estratégias de disciplinamento, aprendemos a vergonha e a culpa; experimentamos a censura e o controle. Acreditando que as questões de sexualidade são assuntos privados, deixamos de perceber sua dimensão social e política (LOURO, 2019, p.33).
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Além disso, ressalta a imposição da heterossexualidade na escola. Tidas como local de conhecimento, seriam então locais de ocultamento e ignorância quando se trata de sexualidades dissidentes, promovendo sua exclusão e ocultando suas identidades. hooks (2019) destaca a importância do corpo e do erotismo na educação, defendendo a integração do corpo e da mente para promover uma paixão pelo aprendizado. Butler (2019) analisa o poder e controle sobre os corpos na escola, enquanto Britzman (2019) aborda a necessidade de uma pedagogia que reconheça as fissuras e promova a curiosidade. Araujo (2019) e Passos (2022) discutem pedagogias que desafiam as normas de gênero e sexualidade, buscando incluir corpos dissidentes e questionar as estruturas de poder. Lopes (2021) e Rufino (2019) propõem uma desconstrução das práticas educacionais heterocentradas e patriarcais, visando promover experiências pedagógicas mais diversas e inclusivas. Essas e outras pessoas promovem reflexões que catalisam a promoção de uma educação mais humanizada e liberadora.
4.2. Relatos de práticas pedagógicas drags viadas Décadas atrás, a cultura queer era associada especialmente a ambientes adultos e sensuais. No entanto, figuras como Rogéria e, mais recentemente, Rita Von Hunty, desafiaram essas noções, ganhando visibilidade em diferentes esferas. Paralelamente, no contexto educacional, várias iniciativas têm superado essas barreiras. Rosa e Felipe (2021) relatam um trabalho de mediação de leitura em uma biblioteca promovida por uma drag queen e destacam a contribuição para o protagonismo dessas crianças na reflexão sobre seu próprio processo identitário, então em constituição. Já Calixto e Santinho (2013) comentam sobre a abordagem do tema da homossexualidade com duas turmas de 9º ano por meio da da peça
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“O Bebê de Tartalana Rosa”, de João do Rio. Notou-se timidez de estudantes perante esse assunto, resultante da invisibilidade da homossexualidade ao longo de sua educação fundamental. Por meio de diálogo aberto, foi possível abordar o tema de forma franca e transformadora, conectando uma dramaturgia do início do século 20 à realidade das turmas. Castaleira et al. (2019) apontam para uma gincana em uma escola Maringá/PR, onde estudantes montades/as/os como drag kings e drag queens modelaram em um desfile, avaliado por 3 drag queens convidadas que compuseram a banca. Os autores refletem sobre como esse movimento reconfigura o ambiente escolar, “tensionando uma suposta subordinação e abrindo um campo de dispersão e multiplicidade que extravasam os regimes historicamente engendrados” (CASTALEIRA et al., 2019, p. 182). Souza et al. (2016) propõem atividades em sala de aula que desafiam normas cis-heteronormativas, incluindo o uso de uma saia como instrumento pedagógico. Esta saia foi usada em uma roda onde as bordas são seguradas por outras pessoas, permitindo que alguém se posicione no centro através de um furo no tecido. Apesar da resistência inicial de alguns meninos, a atividade os incentivou a participar, promovendo fruição e liberdade de expressão enquanto entoavam os cantos populares e exploravam os movimentos da saia-brinquedo. Wendy Moretti desenvolveu oficinas de voguing para crianças em um lar de contraturno em Araraquara/SP, conforme relata Campos (2023). O projeto foi bem recebido pela diretora e pela comunidade, e Wendy trabalhou com cerca de 40 crianças ao longo de 6 meses. Ela ensinou os fundamentos do voguing, abordando sua história e origem nos Estados Unidos, nas comunidades LGBTI+ negra e latina. As crianças participaram ativamente das aulas e, ao final, apresentaram uma performance para familiares e funcionários do lar, recebendo reações positivas.
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4.3. Por uma educação balburdiante É curioso pensar o quão recente é a atenção dada às pautas LGBTI+ no ambiente pedagógico quando se pensa nas muitas décadas ao longo das quais a Educação se desenvolve no Brasil. Ou seja, há ainda muitas “verdades” a serem desmanteladas6, verdades estas que colaboram para a naturalização de muitos padrões nas escolas, inclusive o cis-heteronormativo. Foi comentado, anteriormente, no receio de desenvolver atividades da coletiva Balbúrd_IA junto de estudantes de educação básica. Seria isso promover atividades que promovam alguma sexualidade? É importante reconhecer que essa prática já existe nas escolas desde sempre: práticas de promoção da sexualidade cis-hétero. Isso é notável quando profissionais de Educação Física propõem que meninos joguem futebol e meninas joguem voleibol, ou quando se organizam quadrilhas de festa junina, com as crianças performando como casais heterossexuais, com meninas usando vestidos e tranças. Por que não tornar a escola um ambiente onde todas as sexualidades e identidades possam existir? Pensando em teatro-educação, a proposta de aula de voguing, anteriormente apontada por Campos (2023), é interessante por promover interpretação, trabalho corporal, resgate histórico e resistência LGBTI+. Essa e outras iniciativas já desenvolvidas pela coletiva Balbúrd_IA Drag (cabarés performáticos, cine-debates e aulas sobre movimento LGBTI+), visam trazer a epistemologia cuir para o ambiente escolar, promovendo diversidade, preservando história e colaborando ativamente no combate à LGBTI+fobia.
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6. Pois a Educação, assim como a sexualidade, é movimento, e jamais fixidez e estabilidade (LOURO, 2019).
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5 \ CONSIDERAÇÕES FINAIS Este trabalho se caracterizou pelo meu profundo envolvimento emocional. Revirei minhas memórias e vivências de criança viada no ambiente familiar e escolar e deixei elas me guiarem. Tentei resgatar parte da história da cena teatral LGBTI+ no Brasil para entender como ela evoluiu ao longo das décadas e como resultou neste tempo presente. Revisitei pessoas que pesquisaram e seguem pesquisando a pedagogia queer. Assim pude entender como as atividades da coletiva Balbúrd_IA Drag eram influenciadas, tanto pela cena teatral de décadas atrás, como por práticas pedagógicas que rompem com estruturas normativas de sexualidade e identidade que seguem enrijecendo as escolas. Práticas pedagógicas libertadoras seguem sendo novidade, uma novidade que nunca envelhece. Especialmente neste cenário político do Brasil onde a extrema-direita segue pulsante, colaborando na divulgação de inverdades e para promover a fiscalização dentro das escolas. Assim, as escolas se tornam um espaço de perseguição e insegurança para pessoas LGBTI+. É imprescindível que se atue no desmonte de estruturas cisheteronormativas nas escolas, e que o patrimônio queer seja naturalizado nesses espaços, promovendo visibilidade e empatia para pessoas LGBTI+.
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\ cartas para não morrer: arte como potência de cura do corpo transvestigênere Matteo Nanni de Paiva Matteo Nanni, Curitiba (PR). Graduado pela Universidade Estadual do Paraná (Unespar), é ator, artista visual e pesquisador com ênfase em arte marginal e estudos de gênero. falecomnanni@gmail.com
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FICHA TÉCNICA Instituição Universidade Estadual do Paraná (Unespar) Tipo do curso Graduação Nome do curso Licenciatura em teatro Período do curso 2018-2022 Estado Paraná Título do trabalho Cartas para não morrer: arte como potência de cura do corpo transvestigênere Nome do autor Matteo Nanni de Paiva Nome da orientadora Professora doutora Caroline Vetori Número de páginas 21
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\ RESUMO O impulsor desta pesquisa, ou poderia dizer, do mergulho para dentro de mim mesmo, foi registrar e aprofundar os processos criativos e autobiográficos para a criação da intervenção urbana e performance artística, intitulada Cartas Para Não Morrer. Uma principal questão delineou a investigação: o que faz de mim, eu? A qual foi debatida através de cartas e obras de arte, onde propondo reflexões políticas, discutindo gênero, retratando transvestigêneres e incitando assuntos que permeiam como me tornei quem sou e os acontecimentos que refletiram em mim, resultaram no texto e performance final. Tendo a pedagogia da experiência e da expressão artística como forma de comunicação, a pesquisa justifica-se também em seu caráter pedagógico. A apresentação se dá através de cartas e obras físicas, mas que foram digitalizadas para a formação deste documento. Palavras-Chave: Processo criativo; transgeneridade; performance artística.
\ ABSTRACT The impetus for this research, or I could say, the dive into myself, was to record and deepen the creative and autobiographical processes for the creation of the urban intervention and artistic performance entitled Letters Not to Die. One main question outlined the investigation: what makes me me? Which was debated through letters and works of art, proposing political reflections, discussing gender, portraying transgenderes and inciting issues that permeate how I became who I am and the events that reflected on me, resulting in the final text and performance. With the pedagogy of experience and artistic expression as a form of communication, the research is also justified in its pedagogical nature. The presentation takes the form of letters and physical works, which have been digitized to form this document. Keywords: Creative process; transgenderism; performance art. 332
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\ RESUMEN El impulso de esta investigación, o podría decir, la inmersión en mí mismo, fue registrar y profundizar en los procesos creativos y autobiográficos para la creación de la intervención urbana y performance artística titulada Cartas para no morir. Una pregunta principal delineó la investigación: ¿qué me hace ser yo? que fue debatida a través de cartas y obras de arte, proponiendo reflexiones políticas, discutiendo sobre género, retratando transgéneros e incitando cuestiones que permean cómo llegué a ser quien soy y los acontecimientos que se reflejaron en mí, dando como resultado el texto final y la performance. Con la pedagogía de la experiencia y la expresión artística como forma de comunicación, la investigación también se justifica en su carácter pedagógico. La presentación adopta la forma de cartas y obras físicas, que se han digitalizado para formar este documento. Palabras-clave: Proceso creativo; transexualidad; performance artística.
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\ CARTA 1 - PRÓLOGO “Escrever é um ato de descolonização no qual quem escreve se opõe a posições coloniais tornando-se a/o escritora/escritor ‘validada/o’ e ‘legitimada/o’ e, ao reinventar a si mesma/o, nomeia uma realidade que fora nomeada erroneamente ou sequer fora nomeada.” (KILOMBA, 2019, p. 28) e é por acreditar nesse conceito que escolho viver meus processos criativos através de cartas, onde parto em busca da resposta para a pergunta: o que faz de mim “eu”? Entendo que uma carta pode se tratar desde um bilhete deixado para que alguém se lembre de algo, a uma longa e detalhada carta de amor, mas pode ser uma carta de baralho, e eu diria que até uma obra de arte famosa, tão cheia de significados que ganha páginas e páginas de explicações, ou até mesmo um grafitti/picho que através dos muros gritam realidades distintas. Hoje posso dizer que sei quem sou, Matteo Nanni, transvestigênere, branco, ator, performer, pesquisador e artista visual, que sei respeitar as minhas linguagens de comunicação e me expresso através de diversos formatos artísticos, mas sei também que sou um amontoado de experiências que vivi e que o reflexo que vejo no espelho, não agrada a sociedade em que vivo. Mas eu já quis ser tantas coisas e já fui muitas outras. Foi sempre por minha vontade que tomei essas decisões? A busca por entender meu caminho, me fez esbarrar em tantas outras vidas transvestigêneres que vejo que a minha história, mesmo única, pode ser compartilhada e sentida por uma comunidade inteira. Neste trabalho utilizo o termo transvestigênere, defendido pela vereadora Erika Hilton e Indianare Siqueira, por ser um termo de empoderamento e político. Que além de criado por pessoas trans, é um termo guarda-chuva, que inclui transexuais, transgêneros, travestis, pessoas não-binaries e todas aquelas que fogem do “CIStema”. Também faço o uso o termo “CIStema”, que segundo Vitor Rubião, militante LGBTQIAPN+ independente e integrante do programa TODXS Embaixadorxs 2018, trata-se do sistema onde estamos inseridos, que
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favorece pessoas cisgêneras em detrimento de pessoas trans e não-binaries.
\ CARTA 2 - TRANSMUTAÇÃO Me identifiquei enquanto transvestigênere em meados de 2014, mas foi somente em 2019 que comecei a realizar o processo de hormonização e a me identificar enquanto homem trans. Posso dizer com certeza que não foi um processo fácil, pois foi apenas quando eu estava na faculdade que tive acesso e passei a saber da existência de pessoas trans, podendo então abrir espaço para trabalhar os desejos da minha criança. Em abril de 2019 comecei a aplicar testosterona quinzenalmente e já nos primeiros meses lidei com rompimentos. Na época eu trabalhava como vendedor em uma loja dentro de um shopping, e parte da equipe de funcionários se recusava a me tratar por pronomes masculinos e me chamar de Matteo. O fato de estar tendo que me justificar para clientes, ouvir ofensas e ameaças diariamente, por si só já não era fácil, ainda tinha que passar horas sem usar o banheiro porque os funcionários do shopping diziam que eu não parecia nem homem o suficiente para usar o banheiro masculino, nem mulher o suficiente para o feminino. Fui mandado embora porque não estava mais batendo as metas desejadas. Mesmo com uma realidade dura, faço parte de uma minoria dentro da comunidade trans, pois apesar das dificuldades iniciais, tive amparo da minha família, estou escrevendo o trabalho de conclusão de curso dentro de uma universidade pública e atualmente trabalho apenas com arte. No Brasil, segundo informações do Projeto Além do Arco-Íris/ AfroReggae, estima-se que a evasão escolar de transvestigêneres ocorre em média aos 13 anos de idade, momento em que são expulsos de casa pelos pais e tutores, onde, sem amparo legal, passam a viver na rua. Como reflexo, em 2018, no país, cerca de 0,02% da comunidade transvestigênere estava na universidade, 72% não possuía ensino médio e
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56% não completou o ensino fundamental. Segundo a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA), estima-se que 90% da população trans tenha a prostituição como fonte de renda e única possibilidade de subsistência, devido a dificuldade de inserção no mercado formal de trabalho, por deficiência na qualificação e falta de oportunidades profissionais causadas pela exclusão social, familiar e escolar. Estando hoje ciente dessa realidade e do amparo que gostaria que eu mesmo e a comunidade inteira tivesse, principalmente em relação às nossas escolhas serem respeitadas, nesta carta que mando para o meu eu de 2014, quando começava a me questionar sobre as possibilidades que habitavam meu corpo, adiciono a obra Transmutação, uma pintura acrílica, onde vemos retratado os glúteos de uma pessoa branca, me representando, com a seguinte frase pichada em vermelho nas costas “as possibilidades que habitam meu corpo, correspondem unicamente a mim” e oitenta e oito agulhas hipodérmicas 30x7mm espetadas nos glúteos, representando todas as aplicações de testosterona que meu corpo injetou até a data da entrega do trabalho.
(registros da obra “transmutação” e da execução da mesma.
(Fotógrafa: Rafaela Sochodolak)
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1. Acesso disponível em: 26/11/2022 https:// revistahibrida.com.br/ brasil/o-paradoxo-dobrasil-no-consumode-pornografia-eassassinatos-trans/
\ CARTA 3 - QUEM OLHA POR NÓS? Por anos, fui o único homem trans de Licenciatura em teatro da Unespar, com breves passagens de algumas outras pessoas transvestigêneres pelo curso. O que não me faltam são exemplos de invisibilidade institucional e transfobias, sejam por parte de docentes ou de estudantes, fatos que tornam cada vez mais difícil a permanência dessa comunidade na universidade. Já é de conhecimento prévio que a maior parte da população transvestigênere encontra-se fora do mercado profissional de trabalho, sendo assim, à margem da sociedade e do “CIStema”. Se não somos encontrados em números significativos em locais de poder (instituições políticas, educacionais, de saúde e trabalhistas), onde estão as pessoas trans? Anualmente os maiores sites pornos do mundo publicam um relatório sobre as categorias, nomes e palavras mais buscadas dos vinte países com maior número de acessos. O RedTube, em 2016, divulgou pela primeira vez o Brasil como país que mais consome pornografia com pessoas trans do mundo, e segundo Bruna Benevides, desde então, estivemos sempre presentes na lista e permanecemos na liderança de outros sites internacionais como o maior público para esses vídeos.1 Este fetiche, não permanece somente nas telas. Pessoas cisgêneras sentem-se com direitos sobre os corpos trans. Frequentemente sou questionado sobre minhas partes íntimas, recebo propostas inconvenientes, fotos pornográficas não solicitadas, toques sem permissão, entre outras situações recorrentes em todos os lugares que frequento e que as pessoas acabam tendo conhecimento de que sou trans, essas situações também são relatadas inúmeras vezes por outras pessoas transvestigêneres. É refletindo sobre a invisibilidade de pessoas trans para o “CIStema”, e a grande hipersexualização de nossos corpos para realização de fetiches
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de pessoas cisgêneras que ao me deparar com a obra “Olhai por Nóis” do artista João Luis Prado Simões França, mais conhecido como M.I.A (Massive Ilegal Arts), surgiu a minha obra Quem Olha Por Nós?. M.I.A é um homem cisgênero, preto, morador da Zona Oeste de São Paulo, que começou aos 16 anos a espalhar sua expressão através do picho, para ele uma arte de rua e de resistência. Sobre a obra que referenciei, em 2018, o artista pichou as palavras “olhai por nóis” no Pateo do Collegio, local da primeira construção paulista, onde se firmou o primeiro núcleo de catequização jesuíta no Planalto e representa um marco do genocídio indigina, mas M.I.A garante que a obra é sobre olhar para todas as pessoas que estão marginalizadas. Conhecer França, sua história e suas obras, me fez analisar diversos aspectos de minha vida. Conheci o graffiti muito jovem, quando criança já era recorrente o anseio por marcar as paredes com desenhos e frases, mas foi na adolescência que comecei de fato a grafitar e me interessar por estudar essa arte de rua. Fora esse ponto em comum com M.I.A, nossas vidas divergem em milhares de aspectos, mesmo assim, a obra dele me toca e me faz questionar quem olha pelas pessoas trans, uma vez que somos desamparados pela família, pelo governo e invisibilizados perante a sociedade. Em meio a esse questionamento, surge minha obra Quem Olha Por Nós?, como parte desta carta que envio à sociedade. Me coloco da maneira predominante que somos vistos pelas pessoas cisgêneras, nú. Em quatro painéis de fotos realizadas pela fotógrafa Dinah Breda, cada uma delas com uma palavra da frase pichada em vermelho. Busco através dessa obra, redirecionar os olhares cisgêneros, que habituados a nos verem nus em vídeos e fotos pornôs, se esquecem que somos seres humanos, com fragilidades e emoções.
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(Fotografia: Dinah Breda; Intervenção e modelo: Matteo Nanni)
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\ CARTA 4 - IMORRÍVEIS Conforme dados levantados pelo Transgender Europe (TGEU), que monitora dados globalmente registrados por instituições trans e LGBTQIA+, o Brasil lidera há mais de 13 anos o ranking de países que mais matam pessoas transvestigêneres. Segundo a ANTRA, a estimativa é de que a cada 48h uma pessoa trans seja assassinada no país. Desde janeiro de 2008, quando os levantamentos da TGEU começaram a ser feitos, foram registrados 4.042 assassinatos de transvestigêneres, devido a sua identidade de gênero, e 1.645 ocorreram no Brasil, o que dá 40% de todos os casos.2 E os números reais são ainda maiores, já que não há registros oficiais sobre grande parte da comunidade trans e o levantamento é feito a partir do noticiamento dos casos. Além da violência que leva diretamente à óbito, precisamos falar também sobre as agressões físicas, verbais e psicológicas que resultam mais tarde em suicídio. O tema é tabu, mas torna-se cada vez mais necessário o debate e a prática de políticas públicas afirmativas voltadas para a população. Bruna Benevides, Secretária de Articulação Política da ANTRA, expõe: Existe um mito relacionado às questões de saúde mental das pessoas Trans, onde está posto que a Travestilidade ou Transexualidade em si, são fatores que causariam ideações suicidas, depressão, ansiedade ou outras questões de saúde mental. São ideias sob um viés estigmatizante e patologizante, que ignoram os resultados positivos de uma transição em ambientes acolhedores, com apoio (...) (BENEVIDES, 2018) Segundo a Organização Mundial de Saúde, o Brasil é o 8º país com maior índice de suicídio do mundo e estima-se que 42% da população trasvestigênere ja tenha tentado suicidar-se. Recentemente, o projeto
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2. Dados levantados até o ano de 2021. Acesso disponível em 26/11/2022 https://www. correiobraziliense.com.br/ brasil/2021/11/4963887no-mundo-a-cada-10assassinatos-de-pessoastrans-quatro-foram-nobrasil.html
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3. Acesso disponível em 26/11/2022 https://www. nuhufmg.com.br/homenstrans-relatorio2.pdf
“Transexualidades e Saúde Pública no Brasil: entre a invisibilidade e a demanda por políticas públicas para homens trans/trans masculinos”3, realizado pelo Núcleo de Direitos Humanos e Cidadania LGBT (Nuh) e pelo Departamento de Antropologia e Arqueologia (DAA) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), revelou que 85,7%, dos homens trans/trans masculinos, já pensaram em suicídio e/ou tentaram cometer suicídio. Não se pode negar atendimento à uma comunidade que necessita de medidas urgentes para sobreviver, mas para Benevides: É preciso exigir não somente políticas públicas, mas a criminalização da LGBTfobia e a conscientização constante sobre a questão de gênero. Afinal, enquanto tivermos grupos exigindo por exemplo o fim da “ideologia de gênero nas escolas” ou seja, o debate sobre a realidade dos LGBTs, os grupos marginalizados pelo preconceito continuarão achando que estão sozinhos no mundo e adoecerão, sejam eles adultos ou jovens. (BENEVIDES, 2018) Ainda em 2019, no início de minha trajetória pública enquanto transvestigênere conheci Demétrio Campos, homem trans, preto, modelo, dançarino e artista visual. Logo me identifiquei com ele através de sua arte, ele expunha nas redes sociais seus desenhos, compartilhava vídeos dançando e era fácil cair em seus inúmeros encantos. Mas Demétrio também compartilhava suas angústias, a perseguição que estava sofrendo por parte de colegas cisgêneros de trabalho, e relatou inúmeros casos racistas que aconteciam naquele momento com ele. Em Maio de 2020, Demétrio veio a falecer, vítima de suicídio. Paulo Vaz, homem trans, ativista, policial e influenciador, casado com o youtuber Pedro HMC, do canal “Põe na Roda”, sofreu inúmeros ataques transfóbicos pelas redes sociais desde quando anunciou seu relacionamento com Pedro e em Março de 2022, também veio a
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falecer da mesma causa. Paulo e Demétrio são só dois, dos diversos transvestigêneres que conheci, e/ou tive como referência que foram suicidados. Sim, usarei o termo suicidado, porque entendo que nas situações em que existem tamanha discriminação social, transfobia e/ou homofobia, esses fatores tornam-se estímulos ao ato de suicídio. Portanto não posso concluir que foi um ato isolado e sim um problema estrutural e coletivo que retira, através de opressões, a vida de sujeitos. Foi em uma conversa recente com Ivoni Campos, mãe de Demétrio, que surge a obra desta carta, Imorríveis, como uma forma de homenageá-lo. Na obra retrato Demétrio, como um rosto de resistência transvestigenêre, representando os nossos que foram tirados cedo demais. Ao seu lado, retrato a mim, representando os que estão aqui. A cima, ilustro João W. Nery, psicólogo e ativista, representando os que vieram antes de nós. Logo abaixo Gustavo Batista, transvestigênere de 8 anos, representando a todas as crianças transvestiêneres. Essa arte foi idealizada para ser uma intervenção urbana (interação de um elemento artístico com algo preexistente e cotidiano, modificando a nossa percepção do meio urbano e artístico), em forma de lambe-lambe. Geralmente feitos de um papel fino e maleável, de fácil aderência a quaisquer superfícies, a serem fixados com cola ou grude. Os “lambes” surgiram por volta do século XIX, acredita-se que foi como cartaz para a divulgação dos circos que essa forma de arte se popularizou. Mais tarde ganhou força como instrumento de protestos e, a partir dos anos 80, se firmou como ferramenta de artistas de muralismo, sendo usada de diversas formas e tamanhos. Como grande parte das artes populares e de protesto, é tida como arte marginal. E é por me entender como artista-corpo-marginal que me reconheço nesse estilo artístico.
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(Obra digital autoral “Imorríveis” )
\ CARTA 5 - EU NÃO ANDO SÓ! Quando falamos da aparência de pessoas transvestigêneres, há uma expectativa por parte das pessoas cisgêneras de que queremos e/ou precisamos nos encaixar nos padrões de corpos binários e cisgêneros. As pessoas trans que por ventura, se encaixam nesse “ideal”, acabam sendo exaltadas por possuírem “passabilidade”, passar-se por pessoas cisgêneras no cotidiano. Esse termo surge como uma forma de traduzir
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para a realidade transvestigênere, o termo “passing” que ganhou força com o movimento negro norte americano, e é utilizado para referir-se a negros de pele mais clara, que identificam-se ou são percebidos como pertencentes a um grupo racial diferente. Com o passar do tempo e o aumento dos estudos e as diversas demandas sociais, o termo tornou-se mais abrangente, referindo-se a capacidade de uma pessoa em ser lida como pertencente a uma categoria identitária diferente da sua, seja ela étnica, racial, orientação sexual, gênero, entre outras. No caso de pessoas transvestigêneres, essa cobrança em busca de corpos “passáveis”, constrói uma narrativa de repulsa ao corpo trans, até mesmo por parte do próprio indivíduo e da comunidade, que inserido nesse “CIStema”, têm dificuldade em enxergar a beleza na pluralidade de nossos corpos. Me recuso a usar tal termo transfóbico. Não estamos tentando nos passar por nada, nenhuma pessoa trans deveria sentir-se pressionada por padrões estéticos já inalcançáveis até mesmo para pessoas cis, mas entendo que a primeira vista, pode parecer um lugar onde há uma sensação de segurança, mas ela não é real. Reconheço-me dentro dessa posição, e também sendo uma pessoa branca, sei que estou inserido em locais e estruturas que outros dos meus não tem acesso, mas compreendo que todos sofremos com transfobias em diferentes graus e nossa luta deve ser conjunta e contra o “CIStema” que nos oprime. Durante muito tempo, acreditei que a caminhada transvestigênere era um caminho solitário, devido ao afastamento das pessoas cisgêneras que faziam parte do meu círculo social naquele período. Todavia, fui surpreendido. Ao longo desses anos, conheci um sentimento que só quem faz parte de um grupo marginalizado consegue compreender, talvez seja empatia, ou alguma outra coisa que faz com que, em sua maioria, as pessoas trans se acolham e se amparem.
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4. Estão presentes na arte: Alan Oliveira, Alec Lessa, Alex, André Heil, Anthony Tko, Antônio Sampaio, Azul Shay, Bernardo Aguilera, Bluew, Cael Rodrigues, Caio Berti, Caio Constâncio, Caio Steban, Chico, Cauan Campos, Davi Apollo, Dayo Matteo, Dhiego Monteiro, Diallo Mouro, Eric Lessa, Esteban Ângelo, Federico Ballardin, Frank Ribeiro, Gabriel Augusto, Gian Pavanello, Giovanni Passerino, Guilherme Dias, Guilherme Ferrari, Guilherme Grando Armstrong, Guilherme Santos, Handsome J, Henrique A., Jaian Pereira, João W. Nery, Júlio Mota, Ka Moreira, Kaito, Kauè Rosa, Kelitzz, Keyran, Lazuli Ricci, Lourival Bezerra De Sá, Lorenzo Arcencio, Luca Caetano, Lucca Sad, Lui Martins, Luiz Eduardo Daibert, Mago Amô, Matteo Nanni, Mical Kairós, Mickael Martins, Midan Beni, Miguel Leoa, Mikael Augusto, Morgan dos Reis, Murilo Christofer Alves, Natan Brandolin, Nate Albrecht, Nathan Silveira, Noah Moura, Rafael Guilherme de Oliveira e seu filho Nicolas André Silva De Oliveira, Nicolas Correa Cezar, Pedro Augusto, Pedro Ferreira, Pedro Godinho, Ravi França, Samuka Silva, Sebastian Pettersen, Tiago Miguel, Theo, Théo Gregório, Theo Rafael, Toguro, Tyler Matheus, Vcntt, Vinícius Colpani, Vitor Lourenço e Yuri Costa.
Acredito que com a transição pude conceber um conceito diferente de família e compreender que não estou só. Conforme fui conhecendo a família transvestigênere, percebi o quanto somos diversos. Por mais que algumas linhas de nossas histórias se assemelham, resultamos em identidades distintas e únicas, hoje, considero “ser transvestigênere”, como sinônimo de “ser quem você realmente é”, sem precisar seguir um padrão imposto sobre o seu corpo e as possibilidades que o permeiam. Saber identificar a mim mesmo e o grupo ao qual pertenço, tornou possível reconhecer meu passado e buscar resgatar transvestigêneres que foram apagados da história. Como é o caso de Lourival Bezerra de Sá, que aos 78 anos, já após seu falecimento, a mídia tentou apagar sua identidade trans. Bezerra, foi retratado desrespeitosamente como uma mulher que enganou por anos, até mesmo a seus filhos, se passando por homem. Podemos imaginar que Lourival, pela idade avançada, e pela possibilidade de retificação dos documentos para pessoas trans ser algo recente, não teve a chance de trocar legalmente seu nome e gênero. Assim como ele, existiram e existem muitas outras pessoas transvestigêneres, que foram propositalmente apagadas, humilhadas e excluídas da história. É como forma de homenagear a família transvestigênere que a cada dia mais se acolhe e se fortalece, que trago a obra Eu não ando só!4 Uma colagem feita a partir de imagens de homens trans e transmasculinos enviadas pelos mesmos, para mim. Também busquei colocar junto na arte João W. Nery e Lourival Bezerra de Sá, por serem masculinidades trans que atravessaram e marcaram minha trajetória.
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\ cartas para não morrer: arte como potência de cura do corpo transvestigênere
(representação da obra “Eu não ando só! frente e verso)
\ CARTA 6 - MORTALITE No Blog Bicha da Justiça, o maior blog brasileiro sobre direitos e informações da comunidade LGBTQIA+, Renata Rocha, informa que cirurgias trans integram o Sistema Único de Saúde (SUS) atualmente. Rocha diz: “A primeira prevista no processo transexualizador foi a redesignação sexual, feita exclusivamente em mulheres transexuais e travestis. Em 2013, entretanto, o protocolo foi ampliado para incluir outras possibilidades. São 7 tipos, com tempo de espera médio de 8 anos.(...) também é possível realizar a terapia hormonal de forma gratuita” (ROCHA, 2022). Foi ciente disto, que quando decidi-me pela hormonização, procurei realizar o processo pelo SUS, mas devido a grande fila de espera, optei pelo plano de saúde, mas poucos eram os profissionais qualificados para o atendimento, grande parte deles nunca haviam tido contato com
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5. Acesso disponível em: 26/11/2022 https:// queer.ig.com.br/202101-21/mastectomiamasculinizadora.html
pessoas trans. Isso se repetiu quando fui em busca da mastectomia masculinizadora, fazendo assim com que eu desistisse da cirurgia em 2019. Outro fator recorrente e dificultador da realização das cirurgias pelo plano de saúde é a solicitação de diversos atestados (psicológico, psiquiátrico, endocrinológico entre outros). Além de alegações de serem cirurgias estéticas, algo inverossímil no caso de pessoas transvestigêneres, por tratar-se de uma questão de saúde. No final de 2020, fui incentivado por amigos a retomar as buscas por profissionais do plano de saúde, uma vez que a realização da cirurgia pelo particular estava fora de cogitação. Segundo o site Queer5, até 2021 o custo médio de uma mastectomia masculinizadora no Brasil era entre R$ 15 mil a R$ 30 mil, eu não poderia arcar com este valor. Encontrei, apenas na cidade de Juiz de Fora, Minas Gerais, a cirurgiã plástica Gisele Botega, referência em cirurgias de reafirmação de gênero e cadastrada no plano. Então, em 14 de Janeiro de 2021, realizei a mastectomia masculinizadora longe de casa, acompanhado apenas de uma amiga, Dinah Breda, pois minha família não estava de acordo. Nos dias que sucederam a cirurgia, mesmo com dor, sentia-me em êxtase e toda a experiência me lembrava uma carta de Tarot, a carta da Morte “A Morte é uma carta positiva (…), referente a transições de um estado para outro. Algo termina algo começa, e dá a chance de aceitar a mudança em vez de temê-la” (BARTLETT, 2011, p. 111) Como na carta, a partir da realização da cirurgia senti que renasci em todos os âmbitos. Minha família se tornou muito mais presente, buscaram me entender e respeitar. A relação com meu corpo mudou, e a forma de ser, sentir e de estar presente perante a sociedade também. Sinto como se houvesse naquele momento morrido uma parte de mim, insegura e triste, e nascido um novo Matteo, mais confiante, mais alegre e mais disposto a viver. Portanto nesta obra, a carta Mortalite, colagem de duas fotografias feitas pela artista Dinah Breda, busquei retratar a carta A Morte de Tarot, trazendo uma fotografia onde estou com aparência mais vulnerável antes da cirurgia, e uma outra após a realização do procedimento, onde
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\ cartas para não morrer: arte como potência de cura do corpo transvestigênere
estou em posição mais imponente, espelhadas. A parte de trás da carta é composta por uma colagem de letras pichadas em um muro, fazendo ligação novamente com essa arte marginalizada e tão presente em minha vida. (representação da carta física - frente e verso)
\ CARTA 7 - DÚPLICE Entre 2012 e 2021, mais de 15 mil estudantes da rede pública de ensino preencheram nomes sociais, em suas fichas de matrícula nas escolas. Esses estudantes estão matriculados tanto no ensino básico, quanto na Educação de Jovens Adultos (EJA), segundo dados das Secretarias
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6. Acesso disponivel em: 26/11/2022 https:// normativasconselhos.mec. gov.br/normativa/view/ CNE_RES_CNECPN12018. pdf
Estaduais de Educação, obtidos via Lei de Acesso à Informação (LAI). Não temos como saber ao certo quantas crianças e adolescentes trans existem no país, por diversos motivos, como a Resolução do Conselho Nacional de Educação Nº 1 de janeiro de 20186, aprovada pelo Ministério da Educação, apenas jovens maiores de 18 anos podem solicitar o registro do nome social no ato da matrícula nas escolas. No caso de menores de idade, o requerimento deve ser feito pelos responsáveis, mas como mostram os dados apresentados anteriormente, há um grande déficit nas relações familiares de pessoas transvestigêneres e grande número de evasão escolar das mesmas. É opcional a cada escola particular disponibilizar ou não o uso de nome social na instituição de ensino. Como não há um Órgão responsável por fazer esse levantamento e também por falta de amparo governamental à comunidade, não é possível a estimativa. Existe também falta de cuidado em relação à saúde das crianças trans, e poucas conclusões acerca do uso de bloqueadores hormonais que facilitariam a hormonização futura dessas crianças, como dependem dos responsáveis legais para amparo psicológico e outros tipos de serviços prestados pelo SUS, é ainda mais difícil o acesso e maior a falta de amparo social. Cuidar das crianças transvestigêneres do presente é uma responsabilidade de todos, como comunidade, e é negligenciada. Mas e as crianças trans do passado? Fui, assim como várias, uma criança transvestigênere sem compreender tal fato, muito menos saber da possibilidade de um dia vir a ser quem ela sonhava. Cresci em uma família branca, de classe média, muito religiosa, sem amparo para ser LGBTQIA+. Sexualidade e gênero eram temas pouco debatidos, de modo que não tinha outra alternativa possível sem ser a imposta para a minha criança, ser uma mulher heterossexual. Por isso me reconheço no depoimento abaixo, de Megg Rayara Gomes Oliveira: Esses relatos da minha infância são exemplos de práticas que evidenciam o poder normalizador presente no dispositivo de sexualidade que construiu dentro da cultura ocidental a cis
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heterossexualidade como a única sexualidade possível. (OLIVEIRA, 2020, p.82). Lembro-me de com cerca de 7 anos, ir dormir orando para que Deus me fizesse acordar um menino, ou para que eu parasse de querer ser um, porque nas brincadeiras em que eu representava um menino, ou um personagem masculino, era repreendido pelos adultos, portanto achava que aquilo era errado. Conforme cresciámos, eu as crianças mais próximas, tornou-se um acordo secreto que eu brincaria sendo personagens masculinos, mas quando questionados, responderíamos que eu era alguma outra personagem feminina. Mas eu sabia que não era apenas uma vontade durante as brincadeiras. Eu me via dessa maneira, buscava os poucos homens de cabelos longos que encontrava em filmes e novelas, para me sentir um pouco mais representado, pois cortar o cabelo curto não era “coisa de menina”. Assim, é possível perceber que “a heteroCISsexualidade torna-se compulsória pelas estratégias culturais, que deslizam e impregnam-se pelos veios educacionais, formais e informais.” (NAVARO-SWAIN, 2012, p. 48) E é como forma de confortar a criança que fui, que compus a obra Dúplice em forma de carta: Curitiba, fevereiro de 2022 Amada criança sonhadora, Hoje entrei pela porta do apartamento 202 e fui recepcionado por você. Quando me viu, seus olhos brilharam. Me abaixei e te recebi em um longo abraço. Sabe que somos íntimos. Você me perguntou sobre minhas tatuagens. Contei o significado de cada uma delas, ouvindo você tagarelar entre uma e outra. Conversamos sobre seus personagens favoritos e você me contou um segredo.
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Disse que quando crescer, queria ser igual a mim. Com cabelos longos, brincos, tatuagens e uma barba legal. Eu ri. Te ergui em meus braços. Mais um longo abraço e a promessa de que sempre estarei ao seu lado te cuidando. Digo que preciso ir. Você segura minha mão e me leva até a porta. Com um sorriso desdentado me pergunta: Como você se chama? Eu respondo, com os olhos marejados: Paulo. Eu menti. Menti porque você precisa de mim ao seu lado. Precisa que eu te conforte antes de dormir. Precisa de um melhor amigo. Nós precisamos. Você tem um longo caminho a percorrer. Eu sinto muito por não poder evitar as coisas ruins. Sinto por todas as noites que você irá dormir chorando. E principalmente por não poder aparecer quando você precisar de mim. Mas uma hora você verá que sou o homem que você sempre teve como referência. Vai se achar uma pessoa linda. Terá coragem de gritar quem é para o mundo. Olhará no espelho e saberá meu nome. Escreverá com orgulho nosso nome em seus documentos. Matteo.
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\ CARTA 8 - CARTAS PARA NÃO MORRER No início deste trabalho imaginei que essa seria a grande arte final, mas ao longo de meu processo criativo, vi que ela tinha de ser mais uma obra, pois compreendi que esta pesquisa não se encerra aqui. A pretexto de ter me aprofundado nos conhecimentos sobre arte de rua, esta obra se dá por meio de uma performance-intervenção, visando a exaltação dessas artes tidas como marginais. João Victor de Faria Rocha e Danielle Rodrigues de Moraes, no artigo intitulado Intervenção Urbana: a liminaridade entre arte e espaço público (2019), salientam que “Intervenção Urbana é o conceito usado para designar uma manifestação da arte contemporânea realizada em espaços públicos, com o objetivo de questionar e transformar a vida urbana cotidiana e envolver, geralmente, os transeuntes como seres ativos e participantes da obra de arte.” A obra intitulada Cartas Para Não Morrer, trouxe em seu texto as investigações que fiz ao longo de todo este projeto, tanto em relação às descobertas sobre mim mesmo, quanto se tratando da comunidade transvestigênere. Buscou levar para a rua duas de minhas outras obras: a primeira, já no início da performance-intervenção, se deu através da entrega de envelopes amarelos contendo a obra Eu não ando só!, com intenção também de chamar a atenção do público no local. A segunda foi a colagem do lambe-lambe Imorríveis, durante o texto, realizando assim, mais uma intervenção, que interagiu, e continuará interagindo com os transeuntes e compondo o espaço urbano. A primeira apresentação pública estava marcada para acontecer na rua, em frente ao Maricas Bar, no dia 26 de novembro de 2022, mas devido às fortes chuvas, teve de ser adiada. A segunda aconteceu sem divulgação, devido a instabilidade climática, no dia 27 de novembro de 2022, no bairro Abranches, tendo como público transeuntes que encontrava-se na rua e pararam para assistir. Dar vida a esta performance me fez refletir que a pergunta: o que faz de mim, eu? Não tem somente uma resposta, porque assim como a
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intervenção que realizei, o tempo e os acontecimentos a partir dali, a transformarão. Posso dizer que somos a essência do que já fomos e a do que seremos. Portanto, essa pesquisa, moldará meus próximos passos, rumo a descontrução do que fui e o que sou, resultando sempre em uma intervenção diferente. Deixo aqui o texto que criei para a performance-intervenção:
Cartas para não morrer figurino e adereços de cena: calça na canela branca, ecobag de tecido cheia de cartas, banquinho de madeira, placa “escrevo sua história”, linhas de crochê saindo das cartas e formando a cicatriz no peito. Personagem inicia a performance distribuindo cartas, com intuito de chamar a atenção para a cena que irá acontecer e abrir espaço em meio ao público. Dentro dessas cartas distribuídas contém uma arte e também as informações da performance. Colocando o banco no chão e prendendo a placa nele, inicia-se o texto: • Eu escrevo cartas. Certas pessoas me procuram para contar suas histórias e eu as escrevo, é como uma forma de registrar essa existência. Eu tinha 18 anos quando escrevi a primeira, também foi a primeira vez que ouvi e escrevi a palavra com T. É… - falando pausadamente - A PALAVRA COM T. Sabe? • Todas essas pessoas pertencem a essa tal palavra com t. - apontando para a sacola - Mas o resto do mundo finge que nenhuma delas existe! E é por isso que escrevo as cartas! Porque você pode até fingir que não tá vendo uma pessoa ali, mas não uma carta! Por exemplo - procurando uma carta no maço - ESSA! - mostra a carta escrita “JÕAO W NERY”
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• Essa foi a primeira carta que escrevi! Seu João Nery, essa é uma carta que muitos leram, publicaram até livro! E mesmo assim tem um punhado de gente que não conhece essa história! - colando a parte 1 do lambe - Muita gente acha que ele foi o primeiro das pessoas T. Mas eu tenho um monte de cartas aqui que mostram que não foi não, só que essas outras cartas foram escondidas! Várias foram queimadas e deslegitimadas. E ele sobreviveu! Talvez por isso que ele tenha sido o primeiro que chegou até mim?! • Depois dessa eu escrevi várias outras, mas foi só nessa aqui - mostra a carta “ Nando Maldonado”- que eu entendi que eu também era uma dessas pessoas. Enquanto Nando me contava sua história eu fui vendo o quanto de mim tinha ali, então ele falou “Você sabe né? Você sabe que você também é trans ``. - Colando a parte 2 do lambe - No começo foi difícil, eu não queria admitir não. Eu só escutava coisas ruins sobre, “isso é coisa do capeta” , “eu preferia um filho morto do que trans”. Mas quanto mais cartas eu ia escrevendo, mais eu reconhecia as linhas da minha própria história. - passando a mão nas linhas de barbante. • Eu percebi que de certa forma elas estão todas interligadas, falam muitas vezes sobre as mesmas coisas. Sobre felicidade ao finalmente se entender, algumas sobre a hormonização, as mudanças do corpo, o primeiro binder, o fio de barba que mais ninguém notava. Mas também, contam como foi difícil a infância sem referência, sobre o abandono vindo de familiares e amigos, as violências sofridas, o que para muitos fez com que interrompesse os estudos, as dificuldades para arranjar um emprego formal, as milhares de transfobias sofridas diariamente que vocês fingem que não entendem, sem falar nas inúmeras vezes que nossos corpos são fetichizados, abusados e objetificados, as agressões e o medo constante. O MEDO É CONSTANTE. • apontando para as cartas na sacola - Todas essas cartas são histórias que não são contadas, humanidades que foram tiradas, expostas em jornais com manchetes ridículas como “mulher se passou por homem” “mulher enganou a todos fingindo ser homem” “trans assassinado em
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curitiba”, como se não fôssemos seres humanos! É isso se repete tantas vezes sem vocês darem a mínima, porque afinal, vivemos no país que mais mata pessoas trans do mundo. • Mostrando a carta escrita “Demétrio Campos” - e essa morte tem milhares de maneiras de chegar. Eu conheci Demétrio primeiro pela sua arte, um multiartista assim como eu, quando me contou sua história, fui vendo seu sorriso, cara, que sorriso mais lindo, mas fui vendo se apagar, fui escrevendo as linhas que marcadas pelo racismo e a transfobia, se tornam ainda mais cruéis. Demétrio pediu socorro inúmeras vezes, mas no dia 17 de maio de 2020, dia do combate a lgbtfobia, Demétrio, foi suicidado. - colando a parte 3 do lambe - Sim! SUICIDADO. Porque Deme, assim como Paulo Vaz, e outras tantas pessoas trans, foram suicidas, por um país que ignora nossas crianças, não respeita e nem torna digna a nossa existência. E vocês não fazem NADA! -ri debochadamente - ahhhh vocês pensam que sabem, mas vocês não sabem de tudo! Pega a carta escrita Jota Mombaça e lê: “ Vocês virão para nos matar, porque não sabem que somos imorríveis. Não sabem que nossas vidas impossíveis se manifestam umas nas outras. Sim, vocês nos despedaçarão, porque não sabem que, uma vez aos pedaços, nós nos espalharemos. Não como povo, mas como peste: no cerne mesmo do mundo, e contra ele.” • colando a parte 4 do lambe - Demétrio Campos Vive! Gael, Lucca, Bernardo, Paulo Vaz e tantos outros, suas vidas serão lembradas.
Fim da performance.
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\ REFERÊNCIAS BARTLETT, Sarah. A Bíblia do Tarot: o guia definitivo das tiragens e do significado dos arcanos maiores e menores. 1 ed. São Paulo: Pensamento, 2011. BENEVIDES, Bruna. Precisamos falar sobre o suicídio de pessoas trans. Antra, 2018. Disponível em: https://antrabrasil.org/2018/06/29/ precisamos-falar-sobre-o-suicidio-das-pessoas-trans/ Acesso em: 26/11/2022. CORREIA, Mariama. Erika Hilton e a resistência transvestigênere no poder. Publica, 2022. Disponível em: https://apublica.org/2022/01/erika-hiltone-a-resistencia-transvestigenere-no-poder/#:~:text=A%20vereadora%20 tamb%C3%A9m%20usa%20o,pessoas%20que%20fogem%20do%20 CIStema%E2%80%9D. Acesso em: 26/11/2022. KILOMBA, Grada. Memórias da plantação - Episódios de racismo cotidiano - 1.ed, Rio de Janeiro: Cobogó, 2019. MARCHINI, Silvio; CAVALCANTI, Sandra M. C; DE PAULA, Rogério C. Predadores Silvestres e Animais Domésticos: guia prático de convivência. São Paulo: Ministério Público, Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade; Centro Nacional de Pesquisa e Conservação de Mamíferos Carnívoros, 2011. MOMBAÇA, Jota. O mundo é meu trauma. PISEAGRAMA, Belo Horizonte, número 11, página 20 - 25, 2017. NAVARRO-SWAIN, Tânia. Desfazendo o “natural”: a heterossexualidade compulsória e continuum lesbiano. Bagoas - Estudos gays: gêneros e sexualidades, v. 4, n. 05, 27 nov. 2012.
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OLIVEIRA, Megg Rayara Gomes. Trejeitos e Trajetos de gayzinhos afeminados, viadinhos e bichinhas pretas na educação! In: OLIVEIRA, Megg Rayara Gomes. Nem ao centro, nem à margem! Corpos que escapam às normas de raça e de gênero. 1. Ed. Salvador: Editora Devires, 2020. p. 75-110. RUBIÃO, Vitor. Neolinguagem: um futuro inclusivo e contra o cistema. TODXS, 2018. Disponível em: https://medium.com/todxs/linguageminclusiva-neolinguagem-3ec795971f5f Acesso em: 26/11/2022. ROCHA, J. V. F.; MORAES, D. R. Intervenção Urbana: a liminaridade entre arte e espaço público. Revista Ponto de Vista, [S. l.], v. 8, n. 1, p. 109–119, 2019. Disponível em: https://periodicos.ufv.br/RPV/article/view/9215. Acesso em: 26 nov. 2022. SUBSECRETARIA DE POLÍTICAS PÚBLICAS LGBT. Cartilha de direitos das pessoas trans. Mato Grosso do Sul, 2021. VERGUEIRO, Viviane. Por inflexões decoloniais de corpos e identidades de gênero inconformes: uma análise autoetnográfica da cisgeneridade como normartividade. 2015. 244f. Dissertação (mestrado multidisciplinar) - Instituto de Humanidades, Artes e Ciências, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2015.
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Nathália Albino de Souza Nathália Albino, Florianópolis (SC). Graduada em licenciatura em teatro pela Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc), é atriz, diretora de arte, diretora teatral e escritora em formação. Codiretora da Fauna Criativa, empresa de vídeos, fotos e design. nathaliaalbinos@gmail.com
retorne ao sumário
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FICHA TÉCNICA Instituição Universidade do Estado de Santa Catarina Tipo do curso Graduação Nome do curso Licenciatura em teatro Período do curso 2018-2023 Estado Santa Catarina Título do trabalho Corajosa construção teatral em tempos de cansaço Nome do autor Nathália Albino de Souza Nome do orientador Professor doutor Daniel dos Santos Colin Número de páginas 20
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\ RESUMO Este trabalho compartilha observações do processo de construção da peça teatral Corajosa sutileza em oito tempos a partir da minha percepção enquanto diretora em formação. Os pensamentos críticos são entrelaçados com os temas que atravessam a montagem: afeto, tanto no sentido coloquial quanto sua concepção para Spinoza; alienação, segundo seu significado sociológico; e cansaço, na perspectiva de Byung-Chul Han. A partir principalmente desses três conceitos, proponho uma reflexão sobre o fazer teatral em um Brasil capitalista neoliberal. Palavras-chave: Processo de montagem teatral; Cansaço; Afeto.
\ ABSTRACT This work shares observations of the process of creating the theatrical play Corajosa sutileza em oito tempos from my perspective as a director in formation. Critical thoughts are intertwined with the themes that permeate the production: affect, both in its colloquial sense and as conceived by Spinoza; alienation, according to its sociological meaning; and burnout, from Byung-Chul Han’s perspective. Mainly based on these three concepts, I propose a reflection on theatrical creation in neoliberal capitalist Brazil. Keywords: Theatrical Montage Process; Burnout; Affect.
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\ RESUMEN Este trabajo comparte observaciones del proceso de construcción de la obra teatral Corajosa sutileza em oito tempos desde mi percepción como directora en formación. Los pensamientos críticos se entrelazan con los temas que recorren el montaje: el afecto, tanto en el sentido coloquial como en su concepción para Spinoza; alienación, según su significado sociológico; y cansancio, desde la perspectiva de Byung-Chul Han. Principalmente a partir de estos tres conceptos, propongo una reflexión sobre la creación teatral en un Brasil capitalista neoliberal. Palabras llave: Proceso de Montaje Teatral; Cansancio; Afecto.
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1 \ PONTO DE PARTIDA E COORDENADAS INICIAIS Nesta pesquisa pretendo expor um pouco da minha percepção de forma poética enquanto diretora do processo de construção da peça Corajosa sutileza em oito tempos e entrelaçar as considerações com três temas que são importantes para sua construção: afeto, alienação e cansaço. O foco da escrita, portanto, é provocar reflexões críticas de cunho não só artístico, mas também filosófico, sociológico, antropológico e político. Assim, registra-se sobre o fazer artístico teatral e suas adaptações para a sobrevivência em meio à crise na sociedade contemporânea. No início deste trabalho, conto um pouco sobre o projeto para mim e seus primeiros passos no coletivo. Para isso, também explico o que entendo sobre os principais temas que o atravessam, bem como as relações entre eles. Por fim, exponho algumas considerações nada finalizadas sobre o processo, a pesquisa e sobre o cansaço, que aqui é ao mesmo tempo alvo e matéria-prima. A versão completa deste trabalho, com relatos, mais fotos, mídias e a dramaturgia completa, pode ser encontrada no acervo digital da biblioteca da UDESC1 e deixo aqui o convite para lê-la. Três condições foram determinantes para o objeto de estudo desta presente pesquisa: (1) a humanidade acaba de enfrentar um período de pandemia da Covid-192, uma crise sanitária inimaginável em que o isolamento social foi uma das principais medidas de mitigação do contágio; (2) Há cerca de quatro anos, um político violento e fascista foi eleito chefe de Estado do Brasil – posteriormente se revelando ainda um genocida –, fato este que demonstra, no mínimo, a ingenuidade de uma parte grande demais da população; (3) Enquanto isso, no sul do país, a artista e estudante que escreve estas palavras se via na obrigação de trabalhar oito horas por dia em um emprego formal bastante dispendioso para poder continuar estudando e fazendo arte. É neste terreno cinzento e árido que nasce a peça teatral Corajosa sutileza em oito tempos. A montagem surgiu no início de 2022 a partir de um projeto de encenação teatral na disciplina de Prática de Direção Teatral I, da grade curricular
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1. O trabalho completo pode ser acesso através do link: https://sistemabu. udesc.br/pergamumweb/ vinculos/0000a8/0000a8f3. pdf 2. A Covid-19 foi caracterizada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) em março de 2020 como uma pandemia. 3. A disciplina aconteceu durante o primeiro semestre de 2022 e foi ministrada pelo Prof. Dr. Daniel Colin. O objetivo era que cada pessoa da turma dirigisse uma cena, focando principalmente na direção de atrizes e atores. 4. Apesar de não ter apenas integrantes que se identificam como mulheres no coletivo, refiro-me ao grupo no gênero feminino por algumas razões paralelas, sendo elas: por encontrar dificuldades na escrita formal, visto que esta não abraça as questões de gênero (ainda – espero); pela oportunidade de ressaltar o lugar da pessoa não homem no teatro, na arte e na academia; e por todas as integrantes concordarem com essa escolha.
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5. Atriz, cantora, capricorniana e estudante de Licenciatura em Teatro da UDESC. 6. Atriz, cantautora (termo utilizado pela própria artista para se referir ao seu trabalho como cantora e compositora), pisciana e licenciada em Teatro pela UDESC. 7. Ator, diretor, dramaturgo, produtor, virginiano e licenciado em Teatro pela UDESC.
do curso de Licenciatura em Teatro da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC)3. Foi-nos proposto àquela época que escrevêssemos e executássemos um projeto de encenação teatral. A partir daí, convidei algumas4 artistas com quem eu tinha um pouco de afinidade e por quem eu tinha bastante admiração para criarmos uma cena ou um conjunto de cenas em coletivo. Como atrizes e ator, compuseram o grupo Andresa Lima5, Bruna Ferracioli6 e Nicolas Lopes7. É no coletivo formado por mim junto dessas três pessoas que se dá grande parte da construção teatral.
Figura 1 – Andresa Lima, Bruna Ferracioli e Nicolas Lopes.
8. Diretor de fotografia, músico, estudante autônomo de psicologia, canceriano e meu companheiro. 9. Além disso, Juan desde o início também foi peça fundamental no apoio à diretora em suas ansiedades, planos, desabafos e choros. 10. Artista visual nãobinárie, ator, pesquisador das tecnologias cênicas, geminiano e estudante de Licenciatura em Teatro da UDESC. 11. @ciacorajosa no Instagram.
Fonte: fotografias por Karol Duarte e edição pela autora (2022).
Posteriormente, por volta de outubro e novembro de 2022, entraram para o grupo Juan Castro8, responsável pelo som e por algumas demandas técnicas em geral9 e Lucy Pina10, que se debruçou sobre a iluminação. Desde que entraram, Lucy e Juan passaram a frequentar boa parte dos ensaios e a integrar efetivamente o coletivo, responsabilizando-se por outras funções e participando das decisões da companhia. O grupo oficializou-se como Cia Corajosa11 em julho de 2022.
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Figura 2 – Juan Castro, Lucy Pina e Nathália Albino.
Fonte: fotografias por Juan Castro (2023).
2 \ ATERRAR COM ANTIPSICÓTICOS OU O QUE ESTOU FAZENDO AQUI? Dentre outras tentativas, este estudo se propõe a ser uma reflexão sobre o seu tempo, a sua sociedade e como o imperativo cansaço contemporâneo afeta diretamente o fazer sensível. Ou um grande outdoor em uma metrópole insana com dizeres como FAÇA JÁ, VÁ MAIS RÁPIDO, EXTRAPOLE SEU LIMITE na esperança de que se entenda a ironia. Onde, às cinco horas da tarde de uma terça-feira nervosa, uma mariposa pousa, sem fazer, sem ir, sem extrapolar nada além dessa lógica insustentável. Sei que em seus objetivos ideais, esta pesquisa tende indefinidamente ao fracasso. Desde que está ela própria inserida em um sistema alienante, mecanizado, e é escrita por uma artista que além de ser estruturalmente alienada, está cansada. Tirando o peso de algum possível sucesso, parafraseando o dramaturgo Samuel Beckett (2012), agora, ela é mais livre para tentar, errar, falhar e tentar de novo, descobrindo novos afetos em seu percurso.
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Que este texto em si mesmo, em sua forma, seja um momento minimamente desalienante, de questionamento sobre o fazer artístico na contemporaneidade, de pausa para o descanso, de permissão das subjetividades, para mim e para você. Se não for assim, por favor, não continue. Eu me comprometo a seguir a mesma indicação. A tríade de condições – mundial (1), nacional (2) e pessoal (3) – que citei no início do texto sugere uma justificativa dos três assuntos que orbitam a peça: afeto, alienação e cansaço. Esses temas nasceram nos primeiros ensaios do coletivo e criaram raízes de forma espontânea e, aparentemente inocente, mas que denunciava com profundidade as circunstâncias em que se encontravam as artistas ali presentes. Em seguida, conceituo os temas a fim de estabelecer um lugar comum de compreensão.
Figura 3 – Uma fotografia do primeiro ensaio, na UDESC em 11 de maio de 2022, onde Nicolas e Bruna estão vendados e seguem os sons feitos por Andresa.
Fonte: fotografia pela autora (2022).
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2.1. Afeto Ao citar o afeto, não me refiro somente ao substantivo – o afeto – que pode ser sinônimo de carinho, de ternura e de amor (DICIO, 2021). Mas também me refiro ao verbo na voz ativa – afetar algo ou alguém – e na voz passiva – ser afetada por algo ou alguém. O conceito aqui tratado aproxima-se do afeto, afetação ou ainda afecção de Baruch Spinoza. Na Terceira Parte de sua obra Ética – A origem e a natureza dos afetos – o filósofo traz brevemente esse complexo conceito. Na Definição 3: “Por Afeto compreendo as afecções do corpo, pelas quais sua potência de agir é aumentada ou diminuída, estimulada ou refreada, e, ao mesmo tempo, as idéias dessas afecções” (SPINOZA, 2009, p. 98). Reserva-se aqui a liberdade de não categorização dos afetos, deixando de lado as questões relevantes ao seu valor no sentido binário, como alegria e tristeza. Ou seja, aqui não nos interessa a qualidade do afeto, mas sim a sua existência e grandeza em si e sua consequente potência de ação. Sendo assim, o que tomo por afeto talvez aproxime-se ainda mais da visão do filósofo, escritor e professor Peter Pál Pelbart, para quem as categorizações não são tão importantes quanto para Spinoza. Além disso, Pelbart traz mais a perspectiva social e política dos afetos (PELBART, 2003) e para ele talvez seja mais possível conceber o não-afeto. Aproximandome desses conceitos, posso afirmar que os afetos são influências aos corpos a partir das quais eles são transformados. Então, o afetar é o que causa a alteração a partir do encontro entre os seres. Sendo o afeto o vetor de transformação sofrido que acarreta em alguma mutação, a ausência dele acarretaria na não transformação, ou seja, no status quo. O não afeto aproxima-se do alheamento, da evitação, da separação. Se um corpo bloqueia o afeto no encontro com outro corpo, a mudança torna-se difícil ou mesmo impossível.
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2.2. Alienação Já a alienação enação é alienaçáaJáa um tema que alienaçãoa me inquieta desde a minha adolescência çãoJáa, quando descobri, nas alienaçãa aulas de Filoalieação a sofia, o seu conceito ação Já a sociológico. Para o reval çãoolucionário alia Karl ao Já lienaçãolienaçãolienação Marx, Já a são processos de alheamento do alienaçalienação indivíduo na alienação Já a alienação Já a alienação Já a vida social, interferindo na alieJá a capacidade dos alienaJá indivíduos sociais de alienação Já a agirem e a alienação Já a alienação Já a pensarem alienaçãonação Já a por si próprios alia a (ão Já aMão Já aAão Já aRão Já aXão Já a,ão Já a ão Já a2ão Já a0ão Já a0ão Já a4ão Já a). É um ão Já Já a conceito ão a aplicável em ão Já aão o Já a vários ão Já aão Já aão Já aão Já aão Já aão Já aão Já aão Já aão Já aão Já a âmbitos, ão aão Já aão Já a como a ão Já a alienação ãoJá aão Já a política, Jáaão Já aão Já aão Já a a alienação ão Já aão Já aão Já Já aão Já aão Já aão Já a religiosa, ão Já aão Já aão Já aão Já aão Já aão Já aão Já aão Já aão Já aão Já aão Já aão Já aão Já aão Já aão Já a a alienação ão Já aão Já Já aão Já aão Já aão Já aão Já aão Já aão Já aão Já aão Já aão Já aão Já aão Já aão Já aão Já aão Já aão Já aão Já aão Já aão Já aão Já aão Já aão Já a afetiva, Já aão Já aão Já aão a a alienação Já aão Já aão Já aão Já aão Já aão Já aão Já aão Jáão Já aão Já aão Já aão Já aão Já aão Já aãá aão Já aão Já aão Já aão Já aá aão Já aão Já aão Já aão Já aão Já aão Já aão Já aão Já aão J Já aão Já aão virtual, Já aão Já aão Já aão Já aão Já aão Já aão Já aão Já aão Já aão Jaão Já aão Já aão Já aão Já aão Já aão Já aão Já aão Já aão Já Já aão Já aão Já aão Já aão Já aão Já aão Já aão Já aão Já aão Já aão Já a etc. Já aão Já aá aão Já aão Já aJá aão Já aão Já aão Já aão Já aão Já aão Já aão Já aão Já aão Já aão Já aão Já a e nesta pesquisa me interessa sua abordagem de forma geral. Já aão Já aão Já aão Já aão Já aão J aão Já aão Já aão Já aão Já aão Já aão Já aão Já aão Já A alienação conforme surge nas primeiras escritas de Marx, que são referentes ao capitalismo da Era Industrial, refere-se à
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impossibilidade de gozo do trabalhador e da trabalhadora em relação a sua produção. Ao trazer para o presente, no maquinário do capitalismo neoliberal, esse conceito desloca-se e alastra-se: em vez da alienação em relação ao fruto concreto do trabalho, agora ela é bem mais perigosa. Visto que o mercado contemporâneo tem concentrado seu valor em bens imateriais como marcas, imagens, informações, experiências e criptomoedas, a alienação do trabalhador e da trabalhadora atinge também o imaterial, a sua subjetividade (ROLNIK, 2018). Suely Rolnik, filósofa brasileira, atualiza o que trouxe Marx em relação ao próprio corpo no capitalismo: Se a tradição marxista, originada no capitalismo industrial, nos trouxe a consciência de que a expropriação da força vital humana em sua manifestação como força de trabalho é a fonte de acumulação de capital, a nova versão do capitalismo nos leva a reconhecer que tal expropriação não se reduz a esse domínio. É que em sua nova dobra, radicaliza-se e torna-se mais evidente o objeto da expropriação que permite a acumulação de capital: é do movimento pulsional em seu nascedouro que o regime se alimenta. Ou seja, ele se nutre do próprio impulso de criação de formas de existência e de cooperação nas quais as demandas da vida concretizam-se, transfigurando os cenários do presente e transvalorando seus valores (ROLNIK, 2018, p. 107). Portanto, a alienação que há quase dois séculos afastava o sujeito trabalhador de sua produção, na sociedade contemporânea afasta-o de si mesmo.
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Convido à seguinte reflexão ilustrativa: sendo a alienação um alheamento, podemos imaginá-la como uma linha que é alheia a algo, que evita ou é impedida de tocar outra coisa. Considerando que esta outra coisa seja uma segunda linha, o conceito de alienação então se aproxima da ideia de ausência de afeto. Desde que o afeto trataria do próprio encontro entre as linhas, em que uma afeta o caminho da outra. A alienação impossibilitaria o afeto por manter as linhas afastadas o suficiente para não se encontrarem, mantendo-se paralelas. Sendo assim, os dois primeiros temas, afeto e alienação, podem apresentar uma correlação.
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Figura 4 – A alienação usa vários sapatos. Primeiro cartaz de Corajosa sutileza em oito tempos.
Fonte: fotografia por Karol Duarte e design gráfico pela autora (2022).
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12. A peça chama-se Amor, Negro Amor, do Coletivo Ação Zumbi, grupo que no ano de 2023 comemora 20 anos de existência e resistência.
2.3. Cansaço Aqui, cabe um pequeno aprofundamento no contexto das integrantes do grupo. No início do processo, Bruna trabalhava 8 horas por dia em uma gráfica, além do seu trabalho como cantautora e atriz independente. Andresa trabalhava como bolsista do Departamento de Artes Cênicas (DAC) da UDESC, cursava algumas matérias e estava em processo de desenvolvimento do seu Trabalho de Conclusão de Curso (TCC). Nicolas também escrevia seu TCC e frequentava algumas matérias, trabalhava como professor e estava envolvido com outros projetos de criação e produção artística, remunerados e não remunerados. Eu trabalhava 8 horas por dia em uma agência de marketing, fazia algumas matérias do Curso de Teatro e realizava a assistência de direção de outra peça teatral12. Ou seja: todas as artistas tinham trabalhos alheios ao fazer artístico por questões financeiras que serviam simplesmente para o sustento básico. Além disso, no pouco tempo restante envolviam-se em projetos diversos para saciar a necessidade do fazer artístico. Essas condições definem uma classe que dita bastante sobre nossos corpos. Estávamos, no mínimo, cansadas. Eu não saberia dizer se esse cansaço que sentíamos seria muito diferente caso as circunstâncias práticas fossem outras. E apesar do cansaço individual da vida de trabalhadoras incontestavelmente atravessar as cansadas artistas e, logo, impactar sua arte cansada, o cansaço que me interessa aqui na verdade é outro cansaço. O cansaço que quero adentrar nesta cansada pesquisa se aproxima do cansaço abordado pelo filósofo, ensaísta e cansado Byung-Chul Han em Sociedade do Cansaço (2015), um ensaio em que o autor reflete o cansaço
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a partir do texto de outro autor cansado, Peter Handke, Ensaio Sobre o Cansaço (1989). Han explica que esse cansaço que surge a partir do excesso de positividade é Um cansaço solitário, que atua individualizando e isolando. [...] Só o eu possui a totalidade do campo de visão: “eu não deveria ter-lhe dito ‘estou cansado de ti’, nem sequer um simples ‘cansado!’ (o que, como um clamor comum, poderia ter-nos liberto talvez do inferno individual): esses cansaços consumiram como fogo nossa capacidade de falar, a alma”. Eles são violência porque destroem qualquer comunidade, qualquer elemento comum, qualquer proximidade, sim, inclusive a própria linguagem: “Aquele tipo de cansaço, calado, como teria de permanecer, forçava à violência. Essa, talvez, só se manifestava no olhar que desfigurava o outro” (HAN, 2015, p. 71 e 72). Conforme afirma o autor, esse cansaço estrutural não permite a comunidade e a aproximação, pelo contrário: tende a distanciar os seres. A meu ver, ele parece se opor impecavelmente ao teatro, uma arte do encontro, da aproximação e do coletivo. Pois então de que forma poderia nascer e crescer essa arte em meio a uma sociedade que estruturalmente é oposta à sua composição? Corajosa sutileza em oito tempos é um experimento teatral para buscar responder a essa pergunta. Nesse estado, Han afirma que a criatividade não encontra lugar. Em meio ao bombardeio de informação, de afirmações, de imagens, de deveres, de acontecimentos, onde aguarda a emoção? Não há espaço para profundidade, para o tempo da sensibilidade, da subjetividade, do afeto. Não há tempo ocioso, tédio, descanso. Não há tempo para a vida. Estamos apenas sobrevivendo.
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3 \ AFETOALIENAÇÃOECANSAÇO Esses três conceitos, a meu ver, interrelacionam-se sumariamente da seguinte maneira: o estado de cansaço nos aliena das afetações. Na busca por equilíbrio, o corpo sobrecarregado evita o encontro com mais estímulos, enlouquecido por esvaziar-se para voltar à saúde. Pelbart (2013, p. 32) acredita que [...] seria preciso retomar o corpo naquilo que lhe é mais próprio, sua dor no encontro com a exterioridade, sua condição de corpo afetado pelas forças do mundo e capaz de ser afetado por elas: sua afectibilidade. Como o observa Barbara Stiegler em seu notável estudo sobre Nietzsche e a biologia, para o filósofo, todo sujeito vivo é primeiramente um sujeito afetado, um corpo que sofre de suas afecções, de seus encontros, da alteridade que o atinge, da multidão de estímulos e excitações que lhe cabe selecionar, evitar, escolher, acolher... Nessa linha, também Deleuze insiste: um corpo não cessa de ser submetido aos encontros, com a luz, o oxigênio, os alimentos, os sons e as palavras cortantes – um corpo é primeiramente encontro com outros corpos, poder de ser afetado. Submetido à sociedade do cansaço, o corpo diminui sua condição primária de ser: não se encontra mais com outros corpos. Foge da transformação causada a partir da afetação. Submersas em um sistema que nos tira a vida, tentar manter nossos corpos vivos é resistir. Theodor Adorno (2002) alega que o tempo livre existe para recarregar as energias e manter certa saúde para alcançar um estado possível de trabalhar. Existindo, então, em função do trabalho, para o trabalho. Sendo as horas assalariadas e as não assalariadas subordinadas à ocupação.
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A vida, então, é trabalho. Nas palavras de Adorno (p. 103): “Nem em seu trabalho, nem em sua consciência dispõem de si mesmas com real liberdade”. Afetadas pela sociedade que esgota nossas possibilidades de sermos afetadas, nossa potência criativa é brutalmente reduzida. Ao dedicar nossas energias ao trabalho nas horas oficialmente dedicadas a ele e nas restantes também, o tempo livre não passa de uma ilusão. O ócio, a força vital, o ânimo, responsáveis por recarregar as energias da criação, extremamente banhados pelo suor do cansaço de Han, são ínfimos. E essa é a maior alienação nesse processo. No entanto, se por um lado nossa potência criativa se encontra exausta, por outro, a necessidade de criar me parece inerente às nossas existências: precisamos fazer arte para nos sentirmos minimamente vivas. Esta crise paradoxal debruçou seu suor cansado sobre a construção de Corajosa sutileza em oito tempos.
4 \ DIREÇÃO AFETIVA Há um ponto que atravessa a minha prática como diretora em formação que chamou a atenção de algumas pessoas que acompanharam um pouco do processo. Após presenciar um ensaio, o orientador desta pesquisa, Dr. Daniel Colin, também conhecido como cara de cu13, chamou a minha prática de “direção afetiva”. Abracei o conceito e modelei como bem quis. Na minha experiência, a direção afetiva é uma conduta que envolve afeto tanto no sentido de carinho quanto no sentido das afetações de Spinoza, conforme explicado no subcapítulo Afeto. Essa atitude surge na tentativa de dispensar as barreiras entre as pessoas, em permitir tocar e ser tocada pela outra e principalmente, em ter como prioridade, antes mesmo do processo artístico, o bem-estar dos seres humanos. Assim, ela envolve o método de planejamento e condução dos encontros, que prioriza a saúde e o bem-estar de cada integrante acima mesmo do trabalho coletivo.
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13. Apelido que o pesquisador carinhosamente ganhou a partir de seu tema na tese de doutorado: o cu. Apesar do que pode parecer, a cara dele é bem simpática.
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Nas nossas práticas, esse direcionamento afetivo também reflete em ensaios de curta duração – visto as agendas apertadas das integrantes – e outros ensaios mais demorados, quando possível. Também inclui a percepção dos estados das artistas em cada encontro e, logo, abraços inesperados, pausas para choros quando o corpo grita durante o exercício, entre outros acontecimentos sensíveis. O afeto sincero foi abraçado e praticado pelo grupo desde o início e constitui um modo bastante presente nas nossas trocas.
Figura 5 – Aquecimento, desastre e diversão. Registro do ensaio de 05 de novembro de 2022, no SESC do Centro de Florianópolis.
Fonte: fotografia por Lucy Pina (2022).
A direção afetiva tornou o processo, num geral, leve e divertido. Eram frequentes as risadas antes e durante os ensaios. E algumas
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vezes estendíamos o encontro para os corredores, apenas para ficar conversando, ou nas épocas em que estávamos menos pobres, para uma lanchonete ou um bar, para continuarmos juntas. No entanto, também vejo que essa conduta teve seu peso no atraso no levantamento da peça completa: em dez meses, apesar da dramaturgia concebida, criamos apenas duas cenas e ainda abrimos mão de uma delas. Juntando às duas outras cenas que já havíamos levantado entre maio e julho de 2022, tínhamos um total de três. Ou seja, utilizando termos da indústria, nossa produtividade estava baixíssima. Essa foi uma estratégia adotada a partir do árduo contexto político em que nos encontramos, vide o crescimento de uma intolerância e alienação popular assustadoras no Brasil, junto à recente ascensão de um fascismo na caquistocracia do governo brasileiro. Num âmbito mais pessoal, também gritam a enxurrada de afazeres, a superocupação e o cansaço, um estado coletivo que tem associação direta com a sociedade do cansaço. Somos seres humanos imersos em um meio doente, logo, também enfermos. E por isso, por vezes, dou preferência a nós e ao nosso bem-estar do que ao trabalho que realizamos. Longe de ser uma forma ideal, trata-se de um método de emergência para situações hostis. Como a sobrecarga de afazeres para a própria sobrevivência, o desgoverno Bolsonaro e a sociedade do cansaço em si. Uma direção sensível a uma sociedade doente com condições insalubres para artistas e trabalhadores da cultura sobreviverem, ou (porque não?) viverem bem. Compreendo que passamos por um extenso momento em que a sobrevivência é muito mais comum do que a vida em si, e que estamos cansadas, e apresentando sintomas depressivos e ansiosos. Era meu desejo que o processo não fosse mais uma atividade que pressionasse as integrantes. Entendo a dificuldade em burlar esse mecanismo, no entanto, por mais que o fracasso seja inevitável, não vejo outra opção senão tentar.
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Posto isso, invisto em uma proposta discordante – que seja mínima, que seja o que for possível – que busca inflar-se o suficiente para que não caiba tão confortavelmente nessa camisa de força.
5 \ FAZER TEATRO CANSA E NÃO FAZER TAMBÉM: CORPOS CIBORGUES FAZEM TEATRO Para a filósofa e zoóloga estadunidense Donna Haraway, autora do Manifesto Ciborgue, por sermos ao mesmo tempo animais e robôs e habitarmos lugares tanto naturais quanto produzidos, já somos ciborgues (HARAWAY, 2009), com os acoplamentos digitais dos quais dependemos. Haraway (Ibid, p. 36) explica que Um ciborgue é um organismo cibernético, um híbrido de máquina e organismo, uma criatura de realidade social e também uma criatura de ficção. Realidade social significa relações sociais vividas, significa nossa construção política mais importante, significa uma ficção capaz de mudar o mundo. [...] a fronteira entre a ficção científica e a realidade social é uma ilusão ótica. Sem necessidade da certeza de Haraway sobre sermos humanos ou ciborgues, frequentamos as salas de ensaio e, cansadas como estávamos, construímos uma peça de teatro. Esse estado do corpo cansado que se propõe a fazer arte me foi e é desconfortável por afetar muito a arte que sinto que sou capaz de fazer. O corpo que cria é um corpo descansado, esvaziado, que pode partir do ócio ou da negatividade. É um corpo cujas necessidades básicas já foram supridas, e agora pode dedicar-se à arte. Esse corpo não existiu em Corajosa. E ouso dizer que esse corpo não existe em quase nenhuma peça contemporânea brasileira. Os corpos que levantaram a peça em questão eram corpos oprimidos por uma política de biopoder que “segundo a singular interpretação de Agamben, já não
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se incumbe de fazer viver, nem de fazer morrer, mas de fazer sobreviver. Ele cria sobreviventes. Ele produz a sobrevida” (PELBART, 2013, p. 26). Ou seja, eram sobreviventes que, sob essa condição, realizam a imprudência de dedicar-se a outra coisa que não suas próprias vidas. Na dramaturgia escrita por mim há um núcleo que se passa durante um passeio turístico particular, com o personagem Jorge apresentando a cidade à Senhora. Na primeira cena desse núcleo, esses corpos sobreviventes que somos são retratados: A TOUR - CHINA Estamos em 2043. Jorge é um guia turístico. Ele mostra a cidade à Senhora, uma estrangeira. Estão caminhando e conversando, quando: JORGE
E descendo essa ladeira tem o aterro de
enfermos, a penitenciária de pássaros selvagens e o esgoto orgânico. SENHORA Olha! Vocês fazem compostagem? JORGE
Não exatamente. Na verdade, Senhora,
nós realizamos um procedimento bastante complexo que envolve o arremesso das pessoas lá. Com o tempo o extrato vai diminuindo, perceba, parece ser um fenômeno físico, mas é um fenômeno químico! E o procedimento é extremamente sustentável: nunca precisamos limpar e nunca precisamos acelerar o processo. Até porque nem sabemos a qualidade do chorume que sairia de lá, risos. SENHORA E as pessoas fazem o que lá? JORGE
Perdão, senhora?
SENHORA As pessoas que são arremessadas. Fazem o quê lá? JORGE
Ah, terminam de viver.
SENHORA Jorge, eu não estou entendendo.
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JORGE
É simples: quando as pessoas não conse-
guem mais fazer, elas são jogadas lá, para que ninguém precise fazer por elas. E lá ficam. Até desaparecer. SENHORA Até morrer. JORGE
Hm?
SENHORA Você quer dizer “até morrer”. Partindo do princípio que a lógica de coerção desse biopoder é comprimir a nossa saúde em níveis baixos a ponto de Agamben considerar a vida uma sobrevivência, no universo fictício de Corajosa essa sobrevivência seria descartada. Conforme explica Jorge, a vida que não é útil para a retroalimentação desse sistema é arremessada em uma grande vala, onde pode “não fazer” até sua sobrevivência se tornar uma ausência completa de ânimo, de vida. Para ele, esse mecanismo faz parte do sistema, lhe é natural, contribui para aquela lógica social. Jorge pode ser um humano ou um ciborgue, mas não há dúvidas de que é alienado. Já Senhora, sendo uma estrangeira, compreende a absurdez do descaso, explicitando a ironia do texto. No decorrer da peça, nas cenas posteriores desse núcleo, Senhora mostra sinais de revolta, como nesse trecho de A Tour - Brasil. SENHORA Mas como que pode? Uma religião que o deus é um mosquito? JORGE
É um pernilongo, Senhora.
SENHORA Quem que inventou isso? JORGE
Religião não se inventa, se acredita.
SENHORA Tem razão, Jorge. Por favor, eu quero falar com o representante. Com o chefe, com o papa, com o líder, com o messias dessa religião. JORGE
Você quer falar com um mosquito?
Apesar de sua perturbação perante o que vê, Senhora é ridicularizada pelo próprio Jorge no texto. Por meio desse diálogo, busca-se transmitir a sensação de debilidade daqueles que se revoltam contra o sistema.
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Na terceira e última cena do núcleo, Uma Última Esperança, Jorge já se transformou em um completo alienado digital, quando Senhora encontra uma criança que, para ela, era a esperança. Nessa alegoria, Senhora representa aqueles que percebem absurdos sociais, como o descarte dos corpos sobreviventes e a alienação religiosa, e tentam tomar atitudes frente a eles. No entanto, sua impotência acarreta um desespero furioso e isso provoca a sua retirada e o seu próprio fim.
6 \ MEDROSA DUREZA EM OITO TEMPOS NEGATIVOS: ENFIM, A HIPOCRISIA Apesar da resposta positiva e emocionada do público em suas cinco apresentações até então, havia indícios de que a peça não se aproximava tanto do público quanto queríamos. Que parava no proscênio, antes de cair, que ficava em uma distância segura, dificultando o afeto. Quando tivemos a oportunidade de ter nosso trabalho comentado por Denis Camargo14 dentro da programação do Festival CéU, em Brasília de novembro de 2022, Denis explicou que a peça tinha um grande refinamento estético, mas que não permitia o encontro verdadeiro entre público e artistas, o que seria interessante, tendo em vista que se trata de um acontecimento teatral. Foram inúmeros os momentos em que vi nós mesmas – principalmente a mim – praticando sem querer o não afeto, o empanturramento de funções em meio ao cansaço, a alienação digital. Uma vez ouvi que temos interesse em estudar os assuntos que temos que trabalhar em nós mesmos. Essa questão sempre voltava como uma terapeuta que chega sem ser convidada. Percebi que estávamos frequentemente trabalhando as dicotomias de forma muito presente. Que o que queríamos denunciar sobre a sociedade
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14. Prof. Dr. Denis Camargo é professor da IESB, ator, diretor teatral e pesquisador de palhaçaria.
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e as pessoas afetava diretamente a nós mesmas e o nosso processo. Isso se torna material quando, em uma atividade teatral de caminhada em que oriento o coletivo, sinto a necessidade de que elas realizem um contato mais próximo, permitindo olhares, encontros, toques, afetações diversas. No entanto, antes de incentivá-las a permitir que a relação e o afeto aconteçam, meu corpo, que também estava caminhando no espaço, caminha para fora do lugar em que acontece o jogo. Ou seja, eu incentivo o afeto, mas pessoalmente, fujo dele. Bogart (2011, p. 122) me lembra que a diretora não tem muito como se esconder: Na arte, a verdade sempre se manifesta por meio da experiência. O público terá, por fim, a experiência mais direta da extensão ou da falta de seu interesse. Os espectadores perceberão quanto de verdade existe em suas intenções e em você, em quem é você, em quem você se tornou. Eles saberão instintivamente o que você pretende. É tudo visível. Ciente dessa transparência, continuo dançando com meus demônios e buscando transformar minhas limitações. Longe de querer expor as respostas que alcançamos ou alguma verdade absoluta, o que eu pretendia nos encontros com o público era fazer o que já fazíamos e nos divertir. Medrosa Dureza em Oito Tempos Negativos porque não superamos as temáticas que mergulhamos, mas convidamos a um mergulho conjunto. Na espera de que compreendam a humildade daquele que aprende enquanto faz. Enxergando por uma ótica política, o que fazíamos era encontrar uma das várias formas de resistir. Como nos lembra Albuquerque, “arte é invenção constante da vida e o capital cria permanentemente dispositivos contra esse afeto quando se mercantilizam os encontros com suas taxas e impostos; nesse sentido, os afetos seriam de ordem revolucionária” (ALBUQUERQUE, 2015, p. 701).
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7 \ CONSIDERAÇÕES QUE NÃO CONCLUEM NADA, APENAS CONSIDERAM, CANSADAS A conduta combativa à sociedade do cansaço traduziu-se em uma dinâmica com mais compreensão em vez de opressão. Assim, a peça cresceu lentamente sob baixa pressão, o que na prática não foi uma condição ideal, mas preferível. Essa talvez seja a característica mais corajosa na condução do processo. Que a prática artística estabelecesse, como diria Krenak (2020, p. 34), uma “instituição que aceita sonhadores”. Entendendo o sonho como a sensibilidade humana, que o momento do encontro não exija saúde incondicional, como faz o sistema atual, mas abrace as artistas sonhadoras e sensíveis como quer que estejam. Para contribuir com o motor anticansaço – ou com o desligamento do motor do cansaço – também parece importante que as sensibilidades das integrantes não sejam ignoradas. Dessa forma, quando um choro, um riso ou o próprio cansaço demasiado irrompe o ensaio, ele tem liberdade para ser. Com a maior leveza e profundidade possível é encarado e abraçado. Assumindo essas sensibilidades inclusive como parte da criação, quando adequado. Longe de querer propor um modelo de criação artística coletiva como se houvesse uma fórmula, esta pesquisa tem o intuito de compartilhar um pouco do processo que foi e refletir sobre sua intersecção com a sociedade do cansaço. Eu pretendia com que o próprio processo em sua forma fugisse dessa mecanização, tão antagônica ao teatro, acreditando que isso, além de contribuir para a saúde das artistas envolvidas, refletia em cena. Assim, esta pesquisa constitui um registro teatral escrito no pósisolamento social que acompanha momentos refletidos durante a criação artística de Corajosa sutileza em oito tempos, afetando e sendo afetada por ela e encarando seus limites e fracassos. Um deles, inclusive, aconteceu durante essa escrita. No início deste texto, comprometi-me a seguir a indicação desse momento ser uma pausa para o descanso, entre outras coisas. Consegui seguir grande parcela da minha
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parte do acordo – principalmente por ter tido condições de pedir demissão dos meus empregos. Como legítima escorpiana, eu gosto de mergulhar nas profundezas dos assuntos, e todos os temas, artistas e conceitos abraçados aqui me interessam verdadeiramente. No entanto, é uma tremenda ilusão acreditar que um processo de escrita, por mais prazeroso que seja – e foi – possa configurar uma pausa para o descanso. O ócio contrapõe qualquer atividade, ainda mais aquelas que estão fadadas a um limite de tempo. Continuo sem conseguir descansar. Ao menos, depois de me debruçar sobre essa causa na escrita, entendo em meu corpo ainda mais intensamente a necessidade de cavar pausas para o descanso. Tanto o ingênuo individual quanto o coletivo, estrutural e revolucionário. E espero que essa afetação espalhe-se para além de mim. Sobre Corajosa sutileza em oito tempos, infelizmente as adversidades aqui tratadas, além de outras relacionadas, impediram o encontro e, logo, a construção completa da peça. Logo, o coletivo também parou suas atividades em 2023, um mês antes da defesa do meu TCC sobre a peça. Sobre mim, cansada ou não na esfera ordinária, mas provável e infelizmente cansada na esfera estrutural durante os próximos oito ou infinitos tempos, seguirei resistindo com o restante de saúde que consigo praticar no meu corpo. E farei isso por meio da arte. Além disso, buscarei desalienar-me, afetar, ser afetada e descansar. Vou descansar. Tentarei descansar.
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\ REFERÊNCIAS ADORNO, Theodor. Indústria cultural e sociedade. São Paulo: Paz e Terra, 2002. AFETO. In: DICIO, Dicionário Online de Português. 7GRAUS, © 2009 - 2019. Disponível em: https://www.dicio.com.br/afeto/. Acesso em: 30 maio 2023. ALBUQUERQUE, Nycolas. Estética Relacional e as Marcas na Superfície: Corpo-Afeto-Cidades-Arte-Política. In: DE JESUS, Samuel José Gilberto (Org). Anais do VIII Seminário Nacional de Pesquisa em Arte e Cultura Visual: arquivos, memórias, afetos. Goiânia: UFG/Núcleo Editorial FAV, 2015. Disponível em https://files.cercomp.ufg.br/weby/up/778/o/2015. GT3_nycolasalbuquerque.pdf. Acesso em: 16 maio 2023. BECKETT, Samuel. Companhia de outros textos. São Paulo: Globo, 2012. BOGART, Anne. A preparação do diretor: sete ensaios sobre arte e teatro. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2011. HAN, Byung-Chul. Sociedade do Cansaço. Petrópolis: Vozes, 2015. HARAWAY, Donna Jeanne. Manifesto Ciborgue: Ciência, tecnologia e feminismo-socialista no final do século XX. In: TADEU, Tomaz (Org.). Antropologia do ciborgue: as vertigens do pós-humano. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2009. KRENAK, Ailton. A Vida não é útil. São Paulo: Companhia das Letras, 2020. MARX, Karl. Manuscritos econômico-filosóficos. São Paulo: Boitempo Editorial, 2004.
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\ visibilidade e representatividade de mulheres lésbicas em As sereias da Rive Gauche: pioneirismo e desdobramentos na cena teatral do séc. XXI Rafaela Jacomini Souza Rafaela Jacomini Souza, Diadema (SP). É graduada em bacharelado em artes cênicas no Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (IA/Unesp). Atua como atriz e pesquisadora, dedicando-se, há três anos, ao tema da inserção da lesbianidade na cena teatral. Desde 2022, faz parte do projeto Cena Feminista. rafaela.jacomini@unesp.br
retorne ao sumário
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FICHA TÉCNICA Instituição Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp) Tipo do curso Graduação Nome do curso Bacharelado em artes cênicas Período do curso 2020-2024 Estado São Paulo Título do trabalho Visibilidade e representatividade de mulheres lésbicas em As sereias da Rive Gauche: pioneirismo e desdobramentos na cena teatral do séc. XXI Nome da autora Rafaela Jacomini Souza Nome da orientadora Professora doutora Lúcia Regina Vieira Romano Número de páginas 18
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\ RESUMO Este trabalho1 busca enfatizar a importância da visibilidade e representatividade lésbica nas peças teatrais de São Paulo nos séculos XX e XXI. A peça As Sereias da Rive Gauche (2002), de Vange Leonel, foi tomada como estudo de caso, somando-se às entrevistas com Regina Galdino e Malu Bierrenbach, participantes da montagem. Referências de Butler (2003), Foucault (2014) e Wittig (1980) fundamentam a reflexão sobre a identidade lésbica. Gomillion e Giuliano (2011), Grillo (2019), Nunes (2020), Rea (1996) e Romano (2017) contribuem para associações entre artes cênicas e processos de identidade, permitindo análises da presença lésbica no teatro e abordando o “Teatro Lésbico”. Tratar deste trabalho é importante para não reproduzirmos paradigmas que marginalizam, mas sim ampliam diferentes expressões de vida. O teatro que tem enfoque nas temáticas de As Sereias da Rive Gauche é fértil, pois indica potências estéticas e políticas de ação disruptiva sobre o campo social no Brasil. Palavras-chave: Visibilidade, Teatro Contemporâneo, Cena Lésbica.
\ ABSTRACT This essay seeks to emphasize the importance of lesbian visibility and representation in theatrical plays in São Paulo in the 20th and 21st centuries. The play As Sereias da Rive Gauche (2002), by Vange Leonel, was taken as a case study and was added to the interviews carried out with Regina Galdino and Malu Bierrenbach, members of the production. References from Butler (2003), Foucault (2014) and Wittig (1980) support the thoughts on lesbian identity. Gomillion and Giuliano (2011), Grillo
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1. Este projeto foi desenvolvido com o apoio do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica da Unesp (PIBIC), com início em 2021 e finalização em 2022.
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(2019), Nunes (2020), Rea (1996) and Romano (2017) add to associations between performing arts and identity processes, allowing the analysis of the lesbian presence in theater and addressing the “Lesbian Theatre”. When addressing this group, it is important not to reproduce paradigms that marginalize, but rather to expand different expressions of life. The theater that addresses the themes of As Sereias da Rive Gauche is fertile, as it has aesthetic and political powers for disruptive action in the social field in Brazil. Keywords: Visibility, Contemporary Theater, Lesbian Scene.
\ RESUMEN Este trabajo busca enfatizar la importancia de la visibilidad y representación lésbica en las obras de teatro de São Paulo en los siglos XX y XXI. La obra As Sereias da Rive Gauche (2002), de Vange Leonel, fue tomada como estudio de caso y se sumó a entrevistas con Regina Galdino y Malu Bierrenbach, participantes de la producción. Referencias de Butler (2003), Foucault (2014) y Wittig (1980) sustentan la reflexión sobre la identidad lesbiana. Gomillion y Giuliano (2011), Grillo (2019), Nunes (2020), Rea (1996) y Romano (2017) contribuyen a las asociaciones entre artes escénicas y procesos identitarios, permitiendo analizar la presencia lésbica en el teatro y abordar el “Teatro Lésbico”. Tratar con este grupo es importante no reproduciendo paradigmas que marginan, sino ampliando diferentes expresiones de vida. El teatro que aborda los temas de As Sereias da Rive Gauche es fértil, ya que tiene poderes estéticos y políticos para la acción disruptiva en el campo social en Brasil. Palabras clave: Visibilidad, Teatro Contemporáneo, Cena Lesbiana.
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1 \ INTRODUÇÃO A cena teatral proporciona espaço para a abordagem de questões que estão presentes no dia a dia de quem a faz. Dessa maneira, ela possui um potente caráter de transformação, pois possibilita que estas situações cotidianas, as quais muitas vezes são vistas como “naturais” ou “engessadas” à natureza humana, possam ser/ sejam rearticuladas e destrinchadas, expondo assim seu caráter artificial. Contudo, o teatro é uma instituição cultural criada pela e para a sociedade, a qual se constroi sobre um campo de forças hierarquizado por posições sociais e fluxos de poder. Logo, ele está submetido à posição de reprodutor de discursos que permeiam o local e o tempo em que se estabelece até mesmo de maneira implícita. Entende-se assim que, no decorrer da representação de certas questões em cena, discursos dominantes nocivos a certos corpos, grupos e vivências podem ser propagados, o que contribui para possíveis más representações, ampliação de estereótipos incondizentes com a realidade e outros casos. Michel Foucault se aprofunda no estudo da forma em que esta reprodução se dá, como ela é alimentada e a quem ela beneficia. Ele entende que os discursos e fórmulas são forças que compõem o que chama de “Mecânica do Poder”, a qual se mantém ativa por meio de suas repetições minuciosas. Elas se infiltram em instituições e em discursos, atuando de maneira a se incrustar “naturalmente” na expressão humana. (FOUCAULT, 2014) Dentre estes grupos afetados pela propagação de discursos domintantes estão as lésbicas, que, devido à lógica heteronormativa incrustrada na sociedade e que serve de base para o desenvolvimento de grande parte das peças de teatro da cidade São Paulo, são alvo tanto da invisibilidade quanto de representações incondizentes com suas experiências e atravessamentos. Esta pesquisa se baseia no desejo de afirmar que tornar esse grupo visível não somente valida sua existência e luta, mas também o coloca como ativo
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em sua expressão de gênero e identidade, fortalecendo sua presença no mundo. Além disso, assume que visibilizar é uma forma de reafirmar a memória e contar histórias que seguem marginalizadas por não se encaixarem no padrão normativo vigente. Isso abre espaço para a criação de novas realidades não agressivas à vida de grupos que se identificam hoje como marginalizados. (NUNES, 2020) Em primeira instância, este artigo levantará pensamentos acerca da identidade lésbica, observando a origem do termo “lésbica” e propondo reflexões acerca da construção das subjetividades deste grupo em meio às estruturas de poder, principalmente o sistema da heterossexualidade, que dão base à sociedade na qual vivem. Em seguida, as bases de um possível “Teatro Lésbico” são estruturadas junto dos questionamentos acerca da invisibilidade da lésbica na cena teatral paulistana. Além disso, artistas e grupos importantes para a cena lésbica internacional e nacional serão aqui introduzidos.
2 \ A IDENTIDADE LÉSBICA Antes de tratar dos locais que as peças que representam a comunidade lésbica ocupam na cena teatral de São Paulo, é interessante examinar brevemente alguns pontos das referências teóricas usadas para pensar o conceito de “lésbica” trazido por esta pesquisa. Historicamente, o surgimento da palavra “lésbica” tem relação com a figura de Safo, poetisa grega que habitou a ilha de Lesbos durante o séc. VII a.C, conhecida como primeira a escrever sobre o amor e relações entre pessoas que se identificam com o gênero feminino. Contudo, é aproximadamente a partir do séc. XX que o termo passa a ganhar força devido ao surgimento das ondas de movimentos identitários. (GRILLO, 2019)
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Ainda de acordo com Foucault, voltar a atenção para as instituições, práticas e discursos que constroem as identidades destacaria as políticas articuladas por estas instituições, fazendo com que percebamos que muitos atributos considerados naturais são, na verdade, construídos e, assim, passíveis a rearticulações. (FOUCAULT apud BUTLER, 2003, p. 9) A noção de “lésbica” pode ser entendida como um marcador da identidade de sujeitos. De acordo com Butler (2003), marcadores são construídos socialmente, sendo assim resultantes do tempo e local nos quais os indivíduos se colocam. Com isso, é possível entender que noções como gênero e sexualidade estão em constante rearticulação, se alterando conforme a sociedade se altera. Além disso, Butler também destaca que categorias que dizem respeito à identidade são articuladas de acordo com a ideologia e os valores relativos às estruturas de poder que possuem influência na sociedade. Ao usar bases do pensamento de Foucault em seu livro Problemas de Gênero (2003), Butler assume que “[...] a heterossexualidade compulsória e o falocentrismo são compreendidos como regimes de poder”. (BUTLER, 2003, p. 10) A partir disso, entende-se que a heterossexualidade e seus mecanismos podem ser categorizados como estruturas de poder que influenciam o pensamento e as práticas sociais dominantes, atuando de maneira compulsória, e “de dentro” dos sujeitos. Questões sobre o discurso também são tratadas pela teórica Monique Wittig, em sua obra O Pensamento Hetero (1980), na qual ela o identifica como uma arma capaz de moldar a concepção de realidade de cada pessoa. Ela também destaca a necessidade de atentar-se aos símbolos usados pela linguagem, que podem ser (e são) facilmente manipulados. Além disso, a teórica também coloca a heterossexualidade como uma instituição produtora de discursos, ao dizer que possui “[...] tendência para imediatamente universalizar a sua produção de conceitos em leis gerais que se reclamam de ser aplicáveis a todas as sociedades, a todas as épocas, a todos os indivíduos.” (WITTIG, 1980, s/p.)
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Assim como o discurso, o corpo também é “docilizado”, nos termos de Foucault. Em Vigiar e Punir (2014), o filósofo assume que “[...] o corpo também está mergulhado em um campo político; as relações de poder têm alcance imediato sobre ele [...]” e que “[...] o corpo só se torna força útil se é ao mesmo tempo corpo produtivo e corpo submisso” (FOUCAULT, 2014, p. 29). Aqui, Foucault traz à tona a discussão da utilidade do corpo, o que permite a conclusão de que existem alguns aspectos que são aceitos em sociedade e outros que não são, da mesma forma como ocorre com o discurso. Quem define o que é válido ou não, portanto, são as estruturas de poder, que explicitam os interesses e valores das classes dominantes. De acordo com os discursos produzidos pela estrutura da heterossexualidade, a comunidade lésbica é tida como marginalizada, desviante da norma. De acordo com Wittig (1980), são os discursos que assumem a heterosexualidade como base de qualquer sociedade que oprimem e excluem a existência da lésbica. No mundo ideal desejado por essa estrutura heterossexual, não somente a presença da lésbica, mas também a possibilidade de que esta exista se tornaria inviável, já que o discurso heterossexual não dá abertura para que essas pessoas criem suas próprias categorias e locais de pertencimento, da mesma maneira que permite a aqueles que se enquadram na norma. Diante disso, a existência da lésbica gera desconforto. Isso acontece não somente quando estas se colocam presentes por meio do discurso e da articulação de suas ideias, mas também quando expressam seu afeto e desejo de maneira física, ou quando afirmam sua identidade no espaço público, como seus locais de trabalho, de estudo, em suas casas e diversos outros. Sua existência coloca as instituições pautadas na heterossexualidade e o próprio sistema heterossexual em situação de ameaça. Assim, assumir que categorias que dizem respeito às identidades se alteram é também entender que a noção de “lésbica” apresenta caráter plural e mutável, sofrendo variações de acordo com cada indivíduo, lugar e tempo na qual é evocada. Por isso, é fundamental não pensá-la a partir de
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uma perspectiva reducionista e monolítica, que desconsidere a existência de lésbicas plurais quanto a questões de raça, classe, idade, nacionalidade, formação e vivências afetivas, ou que resuma uma comunidade rica em subjetividades a somente uma ideia pré-concebida de sujeito.
3 \ UM POSSÍVEL TEATRO LÉSBICO A discussão sobre a presença lésbica no teatro já possui um percurso histórico nos estudos acadêmicos. Apesar dos desafios que a carência de materiais e dados promovem, pesquisadoras como Charlotte Rea, Lúcia Romano e Camila Grillo, entre outras, desenvolvem projetos a fim de mapear obras, sujeitos e contextos históricos em que lésbicas têm sido trazidas à luz na cena teatral. Entretanto, é possível afirmar que, mesmo já sendo um tema em debate, a questão da visibilidade e da forma em que este grupo é representado em cena continua sendo uma problemática atual, ainda mais se considerarmos o contexto do séc. XXI e de como a comunidade lésbica se vê e é vista. Ao pensar na história do movimento lésbico e de sua expressão artística, entende-se necessário destacar a influência dos movimentos feministas, os quais promoveram a abertura de espaços para a discussão de questões sobre gênero e sexualidade, principalmente em meados de 1970. Essa conquista é importante, pois destaca e valida a existência de mulheres plurais quanto às questões de raça, classe e expressão dos desejos; cria comunidades, fortalecendo uniões e a construção de universos que representam os grupos; e combate violências e estigmas. (ROMANO, 2017) Contudo, a invisibilidade continua a ser um dos principais pontos a serem pensados com relação à temática trazida por esta pesquisa. Por que não vemos tantas peças protagonizadas por lésbicas, ou que traduzem suas vidas na cena? Por que somente a partir de fins do século XX essas pessoas passaram a ser mais retratadas no teatro brasileiro?
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A escassez de materiais históricos sobre lésbicas no teatro e o próprio reconhecimento dessas pessoas em cena é influência das relações de poder que permeiam a questão de gênero. De acordo com Nunes (2020, p. 2), “[...] quando versamos sobre a escrita da história das mulheres, tratar da disponibilidade de fontes se torna uma questão extremamente sensível”. Isso ocorre pelo fato de que a história das mulheres não tem sido contada por elas no decorrer da história, mas sim por homens, que priorizam sua própria perspectiva do mundo, posta como universal, e que têm decidido o que contar e sobre quem contar. Com isso, cabe concluir que a questão não é que as pessoas deste grupo não existiam no decorrer da história, mas sim que elas foram mantidas em posição de invisibilidade, o que pode ser confirmado na falta de discursos, histórias, materiais e dados sobre suas existências. Invisibilizar pessoas é uma estratégia para apagar existências, silenciar e tornar irreconhecível um grupo plural e rico em suas expressões. Além disso, a invisibilização implica dificultar a construção daquilo que Grillo (2019) chama de “memória lésbica”, a qual tem capacidade de, segundo a autora, “[...] evidenciar a importância da representatividade capaz de gerar engajamento entre os sujeitos” (GRILLO, 2019, p. 40). Há força no grupo, na união e também no encontro dos semelhantes. De acordo com Gomillion e Giuliano (2011), a autoestima, o sentimento de orgulho e de conforto, os conceitos de si próprio e de autoeficácia são características aprimoradas a partir da identificação de um indivíduo com pessoas que são consideradas como modelos a serem seguidos. Esses pesquisadores também sugerem que membros da comunidade LGBTQ+ são mais influenciados por modelos que também são desta comunidade que outros modelos que não o são, devido às similaridades que dividem. Neste cenário, o teatro se porta como uma ferramenta que promove visibilidade às lésbicas, pois não somente torna possível representar em cena suas vidas e visões de mundo, mas também oferece a elas espaço para rearticularem suas expressões de identidade a partir da “[...] fundação de um novo vocabulário simbólico compatível com a criação de um imaginário diverso”. (ROMANO, 2017, p. 142) A partir de seu poder
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disruptivo e transfomador, o teatro propõe processos que reafirmam a existência e a identidade da lésbica, reafirmando estas como sujeitos ativos no mundo. Além disso, por meio do diálogo e da inserção do tema da lesbianidade nas produções teatrais, o público e os envolvidos nas produções das obras podem ser levados a refletir criticamente sobre a temática. Contudo, é importante retomar que o teatro está inserido e é produzido pela sociedade, sempre influenciada por discursos produzidos pela estrutura da heterossexualidade. Com isso, entende-se que o teatro também está passível à reprodução de falas e conceitos que ferem aqueles que não se encaixam nos preceitos propostos pelo sistema, como as lésbicas. A partir disto, cabem algumas questões a serem pensadas: como o tema da lesbianidade passa a ser abordado em cena? Como se faz teatro indo além do discurso heterossexual dominante, e/ou criticando sua presença? O que pode vir a ser a representatividade positiva da lésbica no palco? Existe uma maneira de fazê-la? Questões como estas estão incluídas naquilo que algumas pesquisadoras definem por “Teatro Lésbico”. De acordo com Romano (2017), apesar de ter caractéristicas próprias, o Teatro Lésbico não anda completamente afastado de outras expressões teatrais, podendo ser assim associado com alguns atributos do teatro gay, já que ambos tratam de questões relacionadas a homossexualidade, assim como do teatro contemporâneo e do teatro feminista. Na realidade, tratar do surgimento das primeiras bases do Teatro Lésbico também é fazer alusão às influências das primeiras peças do teatro feminista, pois muitas destas abriram campo para a discussão de questões que também diziam respeito à comunidade lésbica. Assim, entende-se que o teatro feminista e o teatro lésbico andam paralelamente, ainda que tenham suas particularidades. Contudo, a reivindicação do termo “Teatro Lésbico” veio da necessidade de fundar um modo de fazer próprio, que entrelaça questões de gênero e sexualidade, para colocar a lésbica em cena, dialogando sobre suas
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experiências, vidas e dilemas. Ao usar muitas vezes símbolos próprios da comunidade lésbica, esse teatro tem como uma das características o estabelecimento de diálogo e a busca por fazer com que espectadores que se identificam com esta comunidade se sintam representados por aquilo presenciam em cena. De acordo com Rea (1996), os membros da audiência possuem expectativas com relação ao que assistem. Particularmente, ela destaca, “[...] as mulheres lésbicas esperam ver seus problemas e suas vidas retratadas no palco.” (REA, 1996, p. 37, tradução nossa.) Além disso, há uma forte e clara tendência política no Teatro Lésbico, pois este procura repensar as noções socialmente canônicas de desejo, as relações binárias de gênero e a expressão dos corpos colocados em cena, assim como os processos e formas de fazer e fruir teatro. Ao lado desses interesses, tem a potência (e o compromisso) de denúncia e de conscientização acerca de situações que oprimem e ferem a comunidade lésbica. (ROMANO, 2017) Este posicionamento político permite que o Teatro Lésbico proponha a rearticulação de imaginários, criticando e ampliando os marcadores de identificação e desidentificação que marcam os corpos colocados em cena. Como pensa Romano (2017), esses símbolos são dados como “neutros”, mas acabam carregando marcas da heterossexualidade e estão centrados na masculinidade. Afastar-se disto é uma das propostas do teatro lésbico, o qual dá espaço para a experimentação de novas propostas de corporeidade na expressão de emoções, falas, movimentos e modos de interação. Isso também implica na quebra de expectativas com relação às formas com que o corpo da mulher deve se expressar e aparentar fisicamente em sociedade. Outras características acerca da linguagem estética deste teatro estão relacionadas à rearticulação de aspectos da linguagem, conforme diz a pesquisadora e atriz Lúcia Romano: [...] formas teatrais alternativas, numa mistura de polêmica e humor, revendo, dessa forma, a própria
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tradição teatral. [...] Procura fundir elementos da cultura teatral erudita, de formas teatrais menos valorizadas (o cabaré, o vaudeville, o agitprop e arte performática), do teatro de entretenimento (rotinas do stand-up comedy, números musicais e dançados, etc.) e da cultura de massas. (ROMANO, 2017, p. 306). Na história desse teatro, alguns grupos que começaram a atuar durante a década de 1970 nos Estados Unidos recebem destaque pelo seu pioneirismo. Lavender Cellar Theatre, fundado em 1973 e The Red Dyke Theatre, de 1974, são dois nomes frequentemente citados. No Reino Unido, durante a mesma época, os grupos The Gay Sweatshop, Women’s Theatre Group e o Siren são parte da história do teatro lésbico, pois iniciaram trabalhos que traziam a temática e a cruzavam também com as lutas do feminismo. (ROMANO, 2017) O WOW - Women’s One World foi um festival internacional, realizado pela primeira vez em 1980, nos Estados Unidos, a partir de encontros do grupo WOW Cafe. Esse marco na história do teatro lésbico permitiu o diálogo e o intercâmbio entre grupos de diversos lugares do mundo, estreitando a convivência entre eles. Foi também uma forma de visibilizar e reunir o trabalho de artistas que participaram do projeto, as quais, de acordo com Romano (2017, p. 288.): “[...] grande parte [...] eram artistas lésbicas, que buscavam a representação de sua realidade homossexual em seus trabalhos, voltados para um público predominantemente lésbico.” O festival teve Peggy Shaw e Lois Weaver2 como principais membros organizadores e foi um completo sucesso, sendo repetido em anos seguintes. O WOW Café cresceu tanto que acabou por se tornar um “supercoletivo” de artistas, dando espaço e liberdade para que outros grupos pudessem se desenvolver, como o Split Britches. Essa reunião de artistas acabou por definir algumas bases estéticas do início desse teatro, como a invenção criativa com materiais de baixo custo, a atenção ao detalhe, os métodos de
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2. Artistas da cena que fundaram o grupo Split Britches em 1980, na cidade de Nova Iorque. São referências na história da abordagem de questões de gênero e sexualidade na cena teatral.
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trabalho coletivos e não hierárquicos, a formação de uma plateia crítica e etc. (ROMANO, 2017) Além dos grupos, algumas mulheres também se destacam na história do teatro lésbico internacional, ainda nos anos de 1980. Jane Chambers é uma delas, que conquistou tanto o público em geral quanto uma plateia especificamente homossexual com sua peça Last Summer at Bluefish Cave. Sarah Daniels também se destaca, como dramaturga. Uma de suas principais obras é Neaptide (1986), que discute o tema da lesbianidade e propõe a discussão de questões como a maternidade e a custódia fora dos padrões heterossexuais. (ROMANO, 2017) No Brasil, mais especificamente na cidade de São Paulo, onde centramos nossa análise, o tema da lesbianidade passou a ser muito mais levado à cena durante a transição dos séculos XX e XXI. Uma das primeiras manifestações do teatro lésbico é a peça As Sereias da Rive Gauche (2000), escrita pela dramaturga Vange Leonel, estudo de caso desta pesquisa. Peças como Joana Dark - A Re-Volta (2000), Um Porto Para Elizabeth Bishop (2001), A Loba de Ray-Ban (2009), Tem alguém que nos odeia (2013/2018), Alice, o retrato de uma mulher que cozinha ao fundo (2016) e L, o Musical (2017), ELAS (2021), entre outras, também podem ser citadas em uma tentativa de mapear alguns casos que tratam da questão da lesbianidade em cena. (GRILLO, 2019) Mesmo apresentando algumas peças que ocorreram em São Paulo de 2012 a 2018, a pesquisadora Grillo (2019) afirma que “[...] é inegável que exista uma invisibilidade das temáticas lésbicas no teatro.” (GRILLO, 2019. p. 60). Em seu trabalho, Grillo realizou uma série de entrevistas com participantes de alguns dos espetáculos supracitados, colhendo informações acerca da visibilidade lésbica na cena paulistana. Como parte de seus resultados, destaca as falas das atrizes com relação às estratégias encontradas para arrecadar verbas, a fim de financiar suas produções independentes; às relações com o mercado; à marginalização da discussão da lesbianidade e ao potencial de público interessado na temática.
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É possível assumir que o teatro lésbico possui força e potencialidade. Isso nos permite circunscrever espetáculos e processos criativos que se voltam ao tema da lesbianidade para levá-los à luz. É interessante também perceber que, mesmo com todas as desavenças que enfrentam, o teatro lésbico resiste, e a lésbica resiste. Tornar visível o diálogo sobre o lugar da lésbica nas artes cênicas fortalece a luta pela conquistas dos espaços de direito desta comunidade.
4 \ AS SEREIAS DA RIVE GAUCHE (2000): PIONEIRISMO E DESDOBRAMENTOS DA CENA LÉSBICA DE SÃO PAULO. A peça As Sereias da Rive Gauche (2000), escrita pela dramaturga, cantora e poetisa Vange Leonel, trata da história de Natalie Barney, Djuna Barnes, Romaine Brooks, Radclyffe Hall, Thelma Wood, Lady Una Troubridge e Dolly Wilde, mulheres históricas, influentes na Paris da década de 1920. Artistas visuais, escritoras e poetisas, essas mulheres eram conhecidas na Europa e na América não só pelas grandes festas que participavam às sextas-feiras na Rive Gauche (as quais recebiam grandes nomes da cena da época, a exemplo de Sarah Bernhardt, Ezra Pound, Alice Toklas, Ernest Hemingway e outros), mas também por suas realizações e vidas pessoais ditas “escandalosas”, que rondavam em torno de paixões, traições, trabalho, fama, dependência química, reclusão e preconceito. A história se passa no ano de 1928, mesmo período em que uma das personagens, Radclyffe Hall, lança uma de suas mais famosas obras, O Poço da Solidão. O processo de escrita e lançamento de O Almanaque das Senhoras, de Djuna Barnes, também é tratado na peça. Ambas as obras foram alvos de críticas ferrenhas e leituras preconceituosas, por serem umas das primeiras a retratar mulheres que lidavam com suas sexualidades e desejos por outras mulheres. A circulação de O Poço da Solidão chegou até a ser banida na Inglaterra, país que já havia passado por uma situação semelhante com Oscar Wilde e suas obras acerca da homossexualidade em anos anteriores. (LEONEL, 2002)
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Na peça, o público acompanha o relacionamento e a vida dessas sete mulheres em seu ciclo social. Natalie Barney, americana e herdeira de fortuna significativa, era uma salonnière muito influente na época, o que dava a ela condição de ser anfitriã de várias festas em sua propriedade, na Rue Jacob, no coração da Rive Gauche. Assumidamente lésbica, ela é uma das mulheres que mais falam orgulhosamente de sua sexualidade e que se interessa por propagar o assunto, citando muitas vezes a poetiza Safo, uma de suas musas. Durante a história, envolve-se romanticamente com Romaine Brooks e com Dolly Wilde. (LEONEL, 2002) Já Romaine Brooks era uma artista visual apegada às suas pinturas. Conheceu Natalie, por quem se apaixonou, em 1915. Reclusa, ciumenta e quieta, era o contrário de sua amada, o que a atraia ainda mais, mas também gerava inúmeros conflitos. Ela encontrava dificuldade em lidar com os recorrentes “casos” da parceira, que não se alinhava com a monogamia. Dolly Wilde foi um deles; envolvimento que também não acabou tendo um final feliz, já que a nova eleita era viciada em álcool e drogas. Sobrinha do escritor Oscar Wilde, Dolly também foi apaixonada pela escrita, porém faleceu sem conseguir conquistar espaço, ou produzir tanto quanto o tio famoso. (LEONEL, 2002) Outras mulheres de destaque na obra são Djuna Barnes e Thelma Wood, casal igualmente famoso e problemático. A primeira era jornalista e desejava depender somente da literatura para viver. Seu humor ácido e beleza chamaram a atenção de Thelma Wood, uma desenhista americana, que a conheceu em um breve encontro em Berlim. Elas se casaram e permaneceram juntas por dez anos, mesmo com as traições de Thelma e seu vício em álcool. (LEONEL, 2002) A partir desta introdução do contexto da peça, é perceptível que a dramaturgia de As Sereias da Rive Gauche não apresenta somente a história de uma personagem lésbica, mas entrelaça a vida várias mulheres diferentes, que se atraem e se relacionam com outras mulheres de maneiras diversas. Apresentar em cena essas múltiplas histórias é
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importante, pois ressalta o caráter plural que embasa as vidas de mulheres lésbicas, sem se ater ao lugar do estereótipo. Para tratar da produção e recepção do espetáculo, não suficientemente debatidas nas publicações conhecidas, duas artistas que participaram da criação de As Sereias da Rive Gauche foram entrevistadas. Regina Galdino, encenadora da montagem realizada em 2000, afirma com relação à relevância da discussão do tema da lesbianidade na peça e no teatro em geral: O amor entre mulheres não era mais um tema secreto, mas ainda havia e é preconceito. A peça abriu um caminho. Cada discussão é um tijolo na construção da defesa da diversidade sexual. [...] a temática lésbica no teatro era rara e as personagens abordadas eram desconhecidas, por isso foi uma montagem importante para dar visibilidade ao tema e às lésbicas “históricas” que viveram nos anos vinte em Paris. (GALDINO, 2022, s/p.)3 Regina Galdino também comenta a forma como o tema foi discutido pelas artistas na montagem. Ela identifica um formato de ensaio que chama de “franqueza rude”, realizado geralmente de vinte a quinze dias antes da estreia (quando as artistas já possuem maior intimidade entre si e a encenação já possui um “corpo”), no qual ela convida pessoas conhecidas para assistirem a uma apresentação do espetáculo, com papel e caneta em mãos, a fim de que o critiquem. As críticas são recebidas apenas pela encenadora, que pondera sobre possíveis mudanças no espetáculo. Ela conta: Como ensaiamos As Sereias da Rive Gauche na Sala Guiomar Novaes, um teatro na Funarte, o “franqueza rude” tinha cento e cinquenta pessoas assistindo, e foi um quebra pau enorme, com torcidas e debates acalorados. Como tivemos muito público
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3. Entrevista on-line, realizada em 3 de fevereiro de 2022.
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4. Entrevista on-line, realizada em 3 de fevereiro de 2022.
no Centro Cultural São Paulo, na Sala Jardel Filho, com sessões lotadas, realmente deu para notar que era um assunto que interessava a uma parcela da sociedade que não se sentia contemplada pelas peças e filmes que estavam em cartaz na época, predominantemente com temáticas heterossexuais. (GALDINO, 2022, s/p.).4 É interessante notar a forma que o público recebeu o espetáculo tanto no “franqueza rude” quanto no decorrer das apresentações. No primeiro, há debates, brigas e até mesmo “torcidas”. Com isso, é possível entender que as histórias colocadas em cena chegaram aos espectadores e os impactaram de diversas formas, além de gerar debates. A ligação público-espetáculo promovida pela peça levou a plateia a refletir sobre a temática da lesbianidade e sobre a vida das personagens, o que reafirma a colocação do teatro como instrumento facilitador de diálogo e de visibilidade de temáticas que não correspondem ao que é “socialmente aceito”. De acordo com Romano (2019), o estabelecimento de relações diretas entre público-espetáculo é uma marca do Teatro Lésbico. Isso não significa que as opiniões geradas pelo espetáculo foram totalmente positivas e/ou negativas. A encenadora destaca o enorme rebuliço durante o “franqueza rude”, mas não há relatos na mídia ou indicações de que os debates e críticas tenham sido francamente favoráveis à abordagem do tema. Ainda assim, é possível entender o valor das reações, uma vez que, segundo Rea (1996), mesmo “[...] uma resposta negativa ao material que está sendo apresentado é muitas vezes um indicativo do efeito do material nas audiências” (REA, 1996, p. 35). A entrevista com a atriz Malu Bierrenbach, que interpretou Djuna Barnes em 2000, retorna à questão da representatividade lésbica. A atriz acredita que o tema da lesbianidade é bem representado no espetáculo: [...] a peça trata o tema sob uma visão histórica, isto é, nos revela mulheres lésbicas do começo do séc. XX
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e que foram pessoas reais, que existiram. Me parece que o que a autora queria dizer é “Estão vendo, sempre estivemos aqui, sempre fomos funcionais, estamos em todas as esferas da sociedade e somos parte da população também” (BIERRENBACH, 2022, s/p.).5 Malu Bierrenbach também recorta esse arco histórico, delimitando o início do século XXI e os dias atuais para apontar mudanças ocorridas na sociedade e, assim, também na forma em que a história de membros da comunidade LGBTQIA+ passa a ser tratada em cena. Ela pontua: Naquele começo de anos 2000, falava-se sobre isso, mas não se compara com os dias atuais – onde todas as questões LGBTQIA+ estão sendo discutidas, até na TV aberta. Me parece que hoje em dia existe um movimento de colocar personagens lésbicas nas peças, novelas, filmes, enfim, na arte de uma forma mais orgânica; isto é, as personagens são, sem terem que ficar fazendo altos monólogos para se explicar (BIERRENBACH, 2022, s/p.).6 Bierrenbach destaca que a visibilidade das lésbicas na sociedade atual favorece um teatro menos “prolixo”, sugerindo que este teria sido um problema da dramaturgia de Vange Leonel. Esta excessiva necessidade de explicação, entretanto, parece não ter sido reforçada pela encenação: a atriz comenta a proximidade que a montagem estabeleceu com o público que frequentou as sessões do espetáculo. Para a atriz, as plateias sempre se ligavam ao que era contado, e as pessoas procuravam as atrizes para conversar depois do espetáculo e até as presenteavam. Em um desses eventos, ela ganhou uma bonequinha de Sereia. A partir do estudo do espetáculo As Sereias da Rive Gauche (2000) e das entrevistas, como destacar a peça no conjunto das produções do Teatro Lésbico em São Paulo? De acordo com Romano (2019), “A criação de Vange
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5. Entrevista on-line, realizada em 7 de fevereiro de 2022. 6. Entrevista on-line, realizada em 7 de fevereiro de 2022.
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Leonel aproxima-se de uma tendência central da dramaturgia feminista internacional, representada pelo teatro feminista lésbico.” (ROMANO, 2019, p. 383). Ao colocar personagens lésbicas, seus relacionamentos e suas vidas em cena para representar essa comunidade, As Sereias da Rive Gauche (2000) pode ser considerada uma das primeiras produções teatrais paulistanas (quiçá, nacionais) a abordar o tema da lesbianidade e representar a comunidade lésbica. Escrito por Vange Leonel, artista que falava assumidamente de sua sexualidade, o texto é uma fonte de representações de vivências de mulheres que não se sentiam parte da sociedade em que viviam. Cada uma delas enfrenta seus próprios desafios, e encontra lar em suas relações, o que contribuiu para que o público se sentisse representado pelos dilemas de mulheres lésbicas, mesmo que de um cenário completamente diferente do qual viviam. Isso vai ao encontro com a necessidade destas de “[...] ver seus problemas e vidas retratados no palco”. (REA, 1996, p. 37, tradução nossa.) Além disso, as personagens principais são bem desenvolvidas no espetáculo, e não só mencionadas superficialmente. Por isso, acabam se afastando de conceitos prontos do que é “ser lésbica”. O espaço que a peça conquistou é de valor, pois abriu caminhos para que outras obras pudessem explorar a lesbianidade em cena sem necessariamente se ater a justificativas para que isso fosse feito no decorrer do século XXI, realizando experimentações e rearticulando linhas estéticas próprias.
5 \ CONCLUSÃO O teatro está inscrito na sociedade e é escrito por ela, e por isso abre-se à discussão de temas que a atravessam. Contudo, mesmo ao destacar grupos tidos como minorias, o teatro também está sujeito à reprodução de discursos dominantes. Por isso, é importante criticar ativamente
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aquilo que produzimos enquanto artistas e aquilo que recebemos como espectadoras, pois muitas vezes os temas podem estar permeados por concepções errôneas sobre aquilo que está sendo colocado em cena. É fato concluir que visibilizar e representar são ações de extrema necessidade e importância, porém precisam ser feitas de maneira a evitar reproduzir paradigmas que oprimem e marginalizam. Além disso, pensar em uma denifição de lésbica não é reduzir esse grupo a uma única noção de identidade. Por isso, as articulações das temáticas que cercam esta população devem ser feitas a partir de uma perspectiva que amplie suas possibilidades de expressão no mundo. Isso permite que este grupo crie universos próprios que os representem de maneira ativa e potente no mundo. No campo dos estudos teatrais, pensadoras como Rea, Grillo e Romano têm contribuído para a formulação teórica do Teatro Lésbico. Alguns grupos citados que inauguram o percurso deste na contemporaneidade são o Lavender Cellar Theatre (fundado em 1973) e o The Red Dyke Theatre (de 1974), na cena teatral dos Estados Unidos. No Reino Unido, aproximadamente na mesma época, os grupos The Gay Sweatshop, Women’s Theatre Group e o Siren constroem os fundamentos dessa poética. Vale destacar as dramaturgas Jane Chambers e Sarah Daniels, em língua inglesa. No Brasil, o tema da lesbianidade passou a ser discutido majoritariamente na virada do século XXI, com menções de montagens como Joana Dark - A Re-Volta (2000), Um Porto Para Elizabeth Bishop (2001), A Loba de Ray-Ban (2009), Tem alguém que nos odeia (2013/2018), Alice, o retrato de uma mulher que cozinha ao fundo (2016), L, o Musical (2017), e ELAS (2021). Esse movimento teve a peça As Sereias da Rive Gauche (2000) como uma de suas pioneiras. Escrita pela artista Vange Leonel, As Sereias da Rive Gauche (2000) colocou em cena a vida de sete mulheres que se relacionavam com outras mulheres, em 1928, em Paris. A dramaturga desenvolve parte das trajetórias de Natalie Barney, Djuna Barnes, Romaine Brooks, Radclyffe
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Hall, Thelma Wood, Lady Una Troubridge e Dolly Wilde, abordando temas como amor, relacionamentos, arte, repressão, drogas e traições, entre outros. É possível entender o texto de As Sereias da Rive Gauche (2000) como um dos precursores desse teatro, já que tem como temática a lesbianidade; coloca em cena mulheres que mantém relacionamentos amorosos com outras mulheres; busca representar a comunidade lésbica de maneira plural e tenta contribuir assim para sua visibilização. Além disso, considerando também as entrevistas realizadas com duas participantes da montagem do espetáculo, Regina Galdino e Malu Bierrenbach, é possível comentar a recepção do espetáculo pelo público e a importância dessa montagem. A peça dialogou com um público de mulheres lésbicas, representando-o em suas temáticas e pontos de vista. Os caminhos abertos pela peça de Vange Leonel deram espaço para que outras peças explorassem o tema da lesbianidade e colocassem a vida de personagens lésbicas em cena, o que é de extrema importância para o movimento da cena lésbica nacional. Com isso, a peça é consideravelmente plural quanto à quantidade de histórias e questões as quais abordam em sua dramaturgia. Por último, é possível concluir que o teatro lésbico brasileiro, em suas bases teóricas e produções, possui potência estética e política de ação disruptiva sobre o campo social. A fim de fortalecê-lo ainda mais, é importante trazê-lo à luz, mencionando sua história e propondo rearticulações de suas bases, para que se expanda e transforme em conjunto com a sociedade.
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\ REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. 42 ed. Petrópolis: Vozes, 2014, p. 9-302. NUNES, Alina. Arte longa, vida breve: Rita Moreira, feminismo em cena. Aedos, Porto Alegre, v. 11, n. 25, p. 1-24, 2020. GRILLO, Camila Karla. A visibilidade lésbica nos espetáculos teatrais da cidade de São Paulo/SP entre 2012 e 2018. f. 184. Dissertação (Mestrado em Filosofia) - PPGEC, USP, São Paulo, 2019. BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. 21 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. p 7-287. WITTIG, Monique. O Pensamento Hetero (1980). Mulheres Rebeldes, 6 de julho de 2021. Disponível em: http://mulheresrebeldes.blogspot. com/2010/07/sempre-viva-wittig.html. <Acesso em: 8 jun. 2021.> ROMANO, Lúcia Regina Vieira. De Quem É Esse Corpo? - A Performatividade do Feminino no Teatro Contemporâneo. São Paulo: Ed. Unesp, 2017. GOMILLION, Sarah C.; GIULIANO, Traci A. The Influence of Media Role Models on Gay, Lesbian and Bisexual Identity. Journal of Homosexuality, v. 58, n. 3, p. 330-354, 2011. REA, Charlotte. Women for women. In: MARTIN, Carol (ed.) A sourcebook of feminist theatre. London; New York: Routledge, 1996. p. 31-41. LEONEL, Vange. As sereias da Rive Gauche. 1 ed. São Paulo: Brasiliense; Aletheia, 2002, p. 9-143.
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\ o teatro com criança se faz brincando: o desenvolver teatral na comunidade do bairro Tuiuiú, em Primavera do Leste – MT Raquel Elias dos Santos Raquel Elias, Primavera do Leste (MT). Graduada em licenciatura em artes cênicas pela Universidade de Brasília (UnB), com ênfase na pedagogia para crianças, é atriz e professora. Iniciou seus estudos e pesquisas como atriz do Grupo Primitivos, no qual atua hoje em dia. raquelelias2pva@gmail.com
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FICHA TÉCNICA Instituição Universidade de Brasília (UnB) Tipo do curso Graduação Nome do curso Artes cênicas Período do curso 2020-2024 Estado Distrito Federal (polo em Cuiabá/MT) Título do trabalho O teatro com criança se faz brincando: o desenvolver teatral na comunidade do bairro Tuiuiú, em Primavera do Leste – MT Nome da autora Raquel Elias dos Santos Nome do orientador Professor mestre Guilherme Bruno de Lima Número de páginas 20
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\ o teatro com criança se faz brincando: o desenvolver teatral na comunidade do bairro Tuiuiú, em Primavera do Leste – MT.
\ RESUMO A presente monografia tem como objetivo apresentar o teatro feito por crianças na comunidade do Bairro Tuiuiú, na cidade de Primavera do Leste – MT. A pesquisa O Teatro com Criança se Faz Brincando: O Desenvolver Teatral na Comunidade do Bairro Tuiuiú, em Primavera do Leste – MT. utiliza-se de relato de experiência para refletir sobre processos de ensinoaprendizagem em teatro, na Escola Municipal de Teatro – Sistema Faces de Ensino. Relatam-se as oficinas e construções deste grupo de teatro infantil, com crianças de 06 a 09 anos de idade, que desenvolvem suas práticas teatrais numa comunidade afastada do grande centro da cidade. A conclusão aponta para uma compreensão do ensino-aprendizagem teatral na infância que visa a formação das crianças enquanto sujeitos de suas experiências, em um processo de desenvolvimento de sua autonomia. Além disso, é investigado dentro dessa pesquisa como o processo cênico “Eu Chovo, Tu Chove, Eles Elas Chovem” surge dentro da sala de ensaio. Palavras-Chave: ensino de teatro; brincadeira; teatro na comunidade.
\ ABSTRACT The present monograph aims to present the theater made by children in the community of Tuiuiú Neighborhood, in the city of Primavera do Leste - MT. The research “Theater with Children is Done Playing: The Theatrical Development in the Tuiuiu Neighborhood Community, in Primavera do Leste - MT.” uses experiential reports to reflect on theater teachinglearning processes at the Municipal School of Theater - Faces Teaching System. The workshops and constructions of this children’s theater group are reported, with children aged 06 to 09, who develop their theatrical
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practices in a community away from the city center. The conclusion points to an understanding of theatrical teaching-learning in childhood that aims at forming children as subjects of their experiences, in a process of developing their autonomy. Additionally, within this research, the scenic process “I Rain, You Rain, They Rain” is investigated within the rehearsal room. Keywords: theater teaching; play; community theater.
\ RESUMEN La presente monografía tiene como objetivo presentar el teatro realizado por niños en la comunidad del Barrio Tuiuiú, en la ciudad de Primavera do Leste - MT. La investigación “El Teatro con Niños se Hace Jugando: El Desarrollo Teatral en la Comunidad del Barrio Tuiuiú, en Primavera do Leste - MT.” utiliza relatos de experiencia para reflexionar sobre los procesos de enseñanza-aprendizaje teatral en la Escuela Municipal de Teatro - Sistema de Enseñanza Faces. Se relatan los talleres y construcciones de este grupo de teatro infantil, con niños de 06 a 09 años, que desarrollan sus prácticas teatrales en una comunidad alejada del centro de la ciudad. La conclusión apunta a una comprensión del enseñanza-aprendizaje teatral en la infancia que busca formar a los niños como sujetos de sus experiencias, en un proceso de desarrollo de su autonomía. Además, dentro de esta investigación, se investiga cómo surge el proceso escénico “Yo Lluvia, Tú Lluvias, Ellos Llueven” dentro de la sala de ensayo. Palabras clave: enseñanza de teatro; juego; teatro comunitario.
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\ INTRODUÇÃO A presente pesquisa apresenta uma investigação na comunidade do bairro Tuiuiú, em Primavera do Leste - MT, tendo como foco uma experiência teatral vivenciada por crianças de 6 a 9 anos de idade. Proponho que tal investigação se dê a partir da inquietação em vivenciar as criações cênicas que venho desenvolvendo nesta localidade desde 2019 até o presente momento, visando proporcionar alguma transformação qualitativa na vida dessas crianças por meio cultural e social. Motiva-me a referida investigação, pois também fui uma aluna da Escola Municipal de Teatro do município e anseio dar continuidade às pesquisas artístico-pedagógicas já realizadas pela atual geração de teatro de Primavera do Leste, MT. Ademais, meu interesse em trabalhar com crianças sempre foi uma grande paixão carregada por desafios, despertando assim um interesse em pesquisar como se dá a criação cênica, a partir das vivências das crianças no bairro Tuiuiú. Compreendo que o tema levantado carregue questões socioculturais a serem abordadas e que se embrenha no ambiente em que essa comunidade vive. Além disso, como essas crianças interagem umas com as outras? E como o teatro feito com crianças atinge outras crianças, também? Nesse sentido, levanto como questionamento da pesquisa o seguinte problema: como o teatro com crianças se comunica com o bairro e o ressignifica mudando suas perspectivas culturais e sociais no fazer artístico e no brincar?
1 \ BRINCANDO DE TEATRO NO BAIRRO TUIUIÚ Brincar de teatro é um meio que encontrei para entender e refletir sobre a região do bairro Tuiuiú, explorando como a criança e seu bairro estão interligados e dialogam todos os dias. Além de perceber e entender o teatro como um grande marco de transformação social dentro da comunidade, os alunos e alunas trazem suas experiências para a aula
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1. Doutoranda no Programa de PósGraduação em Teatro da Universidade do Estado de Santa Catarina com a pesquisa: Experimentos de encenação da Peça Didática - Brecht está sendo relido. Mestra no Programa de PósGraduação em Teatro da Universidade do Estado de Santa Catarina (2019) com a pesquisa UM VOO SOBRE O OCEANO - A peça didática de Brecht encenada na Pista Municipal de Skate em Primavera do Leste/MT,
através de brincadeiras de roda e jogos, e assim realizamos o teatro brincando. Este capítulo busca refletir sobre o lugar onde esses artistas mirins moram na cidade de Primavera do Leste – MT. Para isso, exponho o percurso histórico de formação da Escola Municipal de Teatro – Sistema Faces de Ensino, que proporciona visibilidade e condição de um polo cultural dentro do bairro. Também apresento o bairro através das minhas memórias como moradora desse município e instrutora de teatro atuante em Tuiuiú.
1.1. História – aulas/oficinas de teatro do projeto escola municipal de teatro – sistema faces de ensino nos bairros de Primavera do Leste – MT. A Escola Municipal de Teatro – Sistema Faces de Ensino foi fundada em fevereiro de 2010 com o intuito de desenvolver práticas da linguagem teatral com crianças, jovens e adultos. O projeto acontece no município de Primavera do Leste/MT, a 250 km de distância de Cuiabá, capital do estado de Mato Grosso. Atualmente, o projeto atende mais de 500 crianças semestralmente, com 12 polos na região urbana e rural. Os polos contam com mais de 25 turmas, em período matutino e vespertino, e as aulas são gratuitas, atendendo uma faixa etária de 04 a 50 anos de idade. Alguns desses alunos e alunas nunca tiveram contato com o teatro e o vivenciam pela primeira vez através de jogos e encenação. A Escola Municipal de Teatro reflete a visão da pesquisadora e mediadora Ana Paula Dorst1, atualmente coordenadora da escola. Segundo ela: [...] a Escola de Teatro um espaço onde artistas formam outros artistas, por se apropriar de uma dinâmica que viabiliza a ação participante das crianças e dos jovens nas montagens cênicas. Entendemos a linguagem teatral como uma forma de conhecimento, para que assim os alunos possam
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se reconhecer e identificar com as práticas teatrais realizadas com eles mesmos, seja, como espectador e/ou como atuante. Portanto, acreditamos que o teatro praticado com crianças e jovens se torna uma ferramenta pedagógica importante, capaz de transformar a sociedade que estão inseridos, modificando seu espaço, sendo construtores de sua autonomia e participantes do ato teatral (DORST, 2019, p. 11). Desde muito cedo, as crianças são incentivadas a ingressar no teatro para despertar seu lado criativo, desenvolver a fala e o corpo de modo expressivo. Além disso, o teatro sempre foi uma ferramenta potencial de transformação social que, dentro dos respectivos bairros descentralizados, ganha força e potencializa toda a região do município. A Escola Municipal de Teatro busca transformar vidas e é pensada a longo prazo pela gestão atual, que felizmente viabiliza e incentiva o projeto a crescer cada vez mais, atendendo atualmente os respectivos polos: Centro Cultural, Novo Horizonte, Mauro Weis, Cras Mabília dos Santos Furtado, Cras Extensão Mabilia Furtado (Tuiuiú), 13 de Maio, Cras Ivone Agnes, Cremilda, Vila União, Carlos Drummond, PVA II, Creju. Os alunos e alunas da Escola Municipal se preparam durante o ano para participar do Festival FETRAN2 – Festival Estudantil Temático Teatro para o Trânsito e Festival Velha Joana, sendo este atualmente um dos maiores festivais da região Centro – Oeste e do país. Os alunos e alunas da Escola Municipal de Teatro – Sistema Faces de Ensino podem ser destacados nos festivais como melhores atrizes e atores, além de receberem prêmios de figurino, maquiagem, iluminação ou até mesmo uma viagem até Cuiabá para competir na etapa regional do Festival FETRAN. No Festival Velha Joana3, os alunos e alunas participam do festival sem o intuito de competição, e sim com destaques, fortalecendo as práticas e tendo a participação de grupos de outras regiões do país, grupos profissionais e crianças do município que estão tendo seu primeiro
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2. FETRAN (Festival Estudantil Temático Teatro para o Trânsito) está na sua 18º Edição em 2023, é promovido pela Superintendência da Polícia Rodoviária Federal em Mato Grosso (SPRF/ MT), com fundamento no art. 20, incisos VIII e IX, art. 76 do Código de Trânsito Brasileiro, com apoio da Secretaria de Estado de Educação de Mato Grosso (SEDUC/ MT), com o Departamento Estadual de Trânsito de Mato Grosso (DETRAN/ MT) e com a Secretaria de Estado de Cultura, Esporte e Lazer (SECEL/ MT), Prefeituras Municipais e o apoio de vários outros parceiros que se inserem no âmbito dos projetos de Educação para o Trânsito, de acordo com as diretrizes do Código de Trânsito Brasileiro. 3. O Festival Velha Joana foi realizado, pela primeira vez, em Primavera do Leste, no ano de 2007 com o objetivo de disseminar o teatro no município. É realizado pela Associação Cultural Teatro Faces e conta com o apoio da Prefeitura Municipal de Primavera do Leste – MT.
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contato com teatro, desenvolvendo assim a prática da igualdade dentro do festival. Assim, ainda dentro do Festival Velha Joana há o destaque de 06 espetáculos na categoria infantil, infanto juvenil e Juvenil, sendo dois por categoria, esse destaque é premiado com uma circulação dentro do município e os alunos e alunas recebem seu primeiro cachê, ou seja, uma criança de 04 anos é paga para circular e fazer teatro em seu município. Além disso, o corpo docente da Escola Municipal de Teatro sempre trabalhou com dramaturgia própria, fomentando o surgimento de novos dramaturgos através de oficinas e pesquisas. Assim, instiga a criação de textos dentro da sala de ensaio com as crianças, em um exercício de construção da autonomia, dando liberdade para que exponham novas ideias e reflitam sobre as escolhas dramatúrgicas oferecidas pelo professor/mediador. Para aprofundar a história deste movimento cultural no município de Primavera do Leste, cito alguns pesquisadores das artes da cena e apresento um pouco do desenvolvimento das gerações que aqui surgiram.
Foto 01: Centro Cultural Antigo
Fonte: Google Street View
Primavera do Leste – MT, em sua cena cultural expandida durante muitos anos, não teve espaço amplo e adequado para apresentações. Esse fato
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foi documentado em pesquisas desenvolvidas até o ano de 2021, pela autora primaverense Ana Paula Dorst, Edilene Rodriguez, André Sontak , 4
Yuri Lima5 e Wanderson Lana6, que também são integrantes e fundadores da Escola Municipal de Teatro – Sistema Faces de Ensino, citam em suas respectivas pesquisas que não havia espaço adequado para apresentações em Primavera do Leste – MT. Cabral nos conta, por exemplo, que os ensaios teatrais na cidade ocorriam em espaços alternativos improvisados, em função da falta de estrutura: “Alguns ensaios aconteciam em salas de aulas, pavilhões, refeitórios, espaços que eram cedidos para os grupos nos finais de semana, assim como durante a semana no contraturno escolar (CABRAL, 2018, p. 19).” Em Dorst, podemos perceber como essa característica estrutural da cidade encaminha a prática de teatro-educação a que aqui nos referimos para um vínculo estreito com a cidade e seus moradores, o que nos faz não apenas olhar para o problema de modo negativo, mas perceber nas soluções encontradas potencialidades e sementes de poéticas e práticas pedagógicas posteriormente desenvolvidas: Os ensaios aconteciam nos finais de semana e ao entardecer do dia, na Escola Estadual Getúlio Dorneles Vargas. Quando não conseguíamos o espaço da escola para ensaio, o grupo formado por crianças e jovens era conduzido para ensaiar na praça central. Dessa maneira, vieram as primeiras montagens teatrais, apresentações, oficinas e a repercussão do grupo se espalhou pela cidade, atingindo diversas pessoas que se interessaram pela arte (Dorst, 2019, p. 19). Apenas recentemente, na virada do século XXI é que tal quadro apresenta uma profunda mudança: Foi apenas no ano de 2001 que o primeiro espaço dedicado exclusivamente ao segmento cultural
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4. André Sontak é mestre no Programa de PósGraduação em Estudos de Cultura Contemporânea da Universidade Federal de Mato Grosso (2020) com a pesquisa: Corposlugar na criação de teatralidades sobre a morte. Graduado em Licenciatura em Teatro pela Universidade de Brasília (2014). Atualmente é Professor de Artes na Prefeitura Municipal de Primavera do Leste-MT. Tem experiência na área de Artes, com ênfase em Teatro. 5. Yuri Lima, Possui graduação em Teatro pela Universidade de Brasília (2015). Mestrando em Teatro pela Universidade do Estado de Santa Catarina (2017). Tem experiência na área de Artes, com ênfase em Interpretação Teatral. 6. Wanderson Lana é Ator, Diretor, Escritor, Roteirista e Dramaturgo. Graduado em Licenciatura em História pela Universidade Federal de Mato Grosso (2007); Especialista em História da América Latina Contemporânea pela UFMT Campus de Rondonópolis com um TCC sobre &quot; “Brincadeiras e Causos”; na Poxoréo de 1990; Mestre em Estudos de Cultura Contemporânea pela UFMT Cuiabá com pesquisa sobre dramaturgia para infância
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e juventude; e Doutor em Estudos de Cultura Contemporânea pela UFMT Cuiabá propondo a tese a respeito da existência de uma Dramaturgia Mestiça que dialoga com a existência latino-americana. Fundador da Escola Municipal de Teatro, fundador do Grupo Teatro Faces, Faces Jovem e Primitivos.
foi inaugurado no município de Primavera do Leste. O Centro Cultural, como foi nomeado, foi idealizado num primeiro momento para receber acervos históricos, que remontassem a trajetória política e social do município, sendo projetado com apenas uma sala. Inicialmente o Centro Cultural foi projetado para receber exposições artísticas, entretanto, devido ao limitado número de espaços culturais no município, também passou a receber oficinas de desenho, ensaios de bandas, 16 apresentações de dança, entre outras atividades. O Centro Cultural acabou se transformando num equipamento cultural multiuso, recebendo diferentes atividades e coletivos culturais (Sontak, 2020, p. 15) Jesus aborda a mudança de espaço dos ensaios e das aulas de teatro jogando luz para uma questão muito recorrente em cidades menores: o uso de espaços culturais para eventos de publicidade. E desse modo, passamos a buscar uma forma de valorizar o teatro feito para a infância e juventude no interior do Estado, falando sobre nossa gente nos processos cênicos e construindo pontes que culminaram em uma parceria com a Secretaria Municipal de Educação, Cultura, Esportes e Lazer de Primavera do Leste. Com essa parceria instaurada, deixamos de ensaiar na Escola Getúlio Vargas para ensaiar no espaço do Centro Cultural, destinado até então apenas para ações de fotografia de modelos (Misses de Primavera do Leste), exposição de quadros e aulas de desenho. Com o espaço do Centro Cultural, não precisávamos mais usar os intervalos entre as aulas para ensaiar ou a praça da cidade (Jesus, 2021, p. 26).
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A mudança mais radical no sentido de infraestrutura é a construção de um edifício teatral tradicional. É de se questionar, entretanto quais os ganhos e quais as perdas se fazem na utilização desse espaço em detrimento da criação que se dá em espaços públicos originalmente criados para outros fins e funções sociais. Primavera do Leste ainda não possui um edifício teatral tradicional, mas está em processo de construção e a data de entrega para a obra é de março de 2022. Sem um espaço físico tradicional, o grupo fez com que os espaços alternativos da cidade se transformassem em ambientes para as apresentações: arvores, casas, praças, terrenos, galpões parquinhos piscinas, quintais e a própria rua. O teatro pulsa em inúmeros lugares da cidade (Lana, 2021, p. 58). Podemos observar que, nesses trechos, todos os autores citam a carência de espaços específicos para as práticas cênicas e, que, agora, depois de longos anos de batalha das três gerações (Teatro Faces7, Faces Jovem8 e Grupo Primitivos9, oriundas da Escola Municipal de Teatro), conseguimos um edifício amplo, arejado e que comporta dois espaços, sendo um Anfiteatro com capacidade para 206 pessoas e um Centro Cultural10, onde acontecem aulas/oficinas, ensaios e apresentações. Sinto a gratidão de ser a última geração que integra o grupo Primitivos enquanto atriz e está usufruindo de um espaço que demorou tantos anos para ser desenvolvido e hoje atende toda a comunidade. Vejo que a força das três gerações e, principalmente, a importância do Teatro Faces como o pilar dessas gerações, fez com que o desejo de ter um espaço adequado aumentasse ainda mais e pudesse se reverberar, tornando-se o sonho de todos, o sonho de um grande coletivo que atualmente é composto por 27 pessoas. Esse sonho não se cessou até ser concretizado e hoje podemos ter a certeza de que a construção desse espaço se deve não apenas a essas três gerações, mas principalmente a
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7. O Teatro Faces foi fundando em 20 de março de 2005 com intuito de construir uma cena teatral, ainda inexistente, em Primavera do Leste – Mato Grosso, cidade de apenas 36 anos de emancipação política e 56.000 mil habitantes. O grupo ainda mantém sua primeira formação e sua pesquisa sobre a morte e seus desencadeamentos seja em trabalhos para infância e juventude, seja nos trabalhos para o público adulto. 8. O grupo Faces Jovem surgiu através de jovens que faziam teatro em projetos sociais em comunidades. 9. Grupo de teatro e dança Primitivos vem deste projeto “Escola de Teatro Faces” onde um dos objetivos é trabalhar assuntos que devem ser debatidos e discutidos. Trazendo de uma forma cativante jovens que transmitem com suas obras (espetáculos no caso) emoção através de suas próprias vivências para o público infantil e juvenil. Onde tem como base o jovem transmitir para o jovem aquilo que vivenciam. 10. Um centro cultural é um espaço arquitetônico destinado à apresentação de manifestações culturais das mais diversas modalidades.
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Wanderson Lana, idealizador, fundador, diretor e dramaturgo, que sempre acreditou na força do teatro dentro e fora desse município, fazendo despertar dentro de cada um o desejo de nunca desistir.
Foto 02: Centro Cultural Professora Evangeline Alcântara Takeuchi
Fonte: Fred Gustavos, 2022.
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Foto 03: Teatro Municipal
Fonte: Fred Gustavos, 2022.
1.2 Brincar de teatro? em 2019, quando iniciei meus trabalhos no CRAS Extensão Mabília Furtado, que anteriormente ficava afastado cerca de 2 km do bairro Tuiuiú, por ainda não haver um Centro Cultural que pudesse atender dentro do bairro. Dessa forma, foi pensado em conjunto com a Secretaria de Cultura uma solução para que as oficinas de teatro continuassem acontecendo, mesmo que distante do bairro. Assim, foi disponibilizado um transporte que as buscavam de carro às sete horas da manhã na praça principal, localizada dentro do próprio bairro, e as levavam de volta ao bairro às dez horas e trinta minutos da manhã. Dessa forma, eram feitas de três a quatro viagens para transportar uma média de 16 a 22 pessoas. As crianças que frequentavam as aulas tinham uma faixa etária de 6 a 8 anos de idade. Minhas primeiras experiências em sala de aula foram com alunos de 12 a 15 anos de idade. Por não ter experiência ainda com
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crianças dessa idade, comecei a me adaptar dentro da sala, utilizando como base jogos teatrais das autoras Viola Spolin, Ingrid Koudela, Augusto Boal e jogos que foram adaptados dentro da Escola Municipal de Teatro. Esses jogos tinham como objetivo trabalhar a ludicidade e, acima de tudo, ser uma brincadeira acompanhada de diversão e aprendizado. A brincadeira e, especificamente, o jogo são fundamentais na construção da experiência teatral, visto que estabelecem relações de grupo, possibilitam o aprendizado de situações que se organizam por regras e trabalham com a imaginação dos jogadores.
Foto 03: Jogo das Cadeiras – Arquivo Pessoal, 2021
Essa compreensão do jogo é significativa para mim, pois nela encontrei um caminho pedagógico para trabalhar com meus alunos e alunas. Naquele ano, 2019, as aulas aconteciam duas vezes na semana, às segundasfeiras e sextas-feiras. Os alunos e alunas iniciavam as aulas com um
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aquecimento breve, corporal e vocal. Nas primeiras aulas, senti dificuldade em atender aquele público e, depois de algumas semanas, percebi que precisava experimentar alguns jogos e aquecimentos que aprendi ao longo dos anos como aluna. Esses mesmos jogos me desafiavam e, além disso, me instigavam a retornar nas próximas aulas, por isso, mediei o aquecimento “Galinha Maluca”, um aquecimento que antecede a etapa do alongamento corporal. Ao buscar compreender o motivo pelo qual iniciei meu trabalho com os jogos, percebo que foi em função de ser essa a abordagem que eu possuía em meu repertório. Assim, repliquei aquilo que aprendi, compartilhando meu conhecimento. O aquecimento acontecia através de uma contagem decrescente, movimentando as duas pernas e os dois braços. Iniciava-se a contagem com o número 8 e eram feitos 8 movimentos com o primeiro braço jogando-o para cima, tudo muito rápido e dinâmico. Ao finalizar a contagem desse primeiro braço, já era feito com o outro e em seguida com a perna esquerda e depois com a direita. Assim, eram feitos até chegar no último número, o 1. O objetivo era preparar o corpo para os jogos daquela aula, através de um aquecimento que é divertido, simples e dinâmico, gerando boas risadas e preparando os corpos antes de irmos para os jogos. Foi ali que percebi a importância de trazer um planejamento de aula diverso, visto que a idade dos alunos me permitia muitas brincadeiras e, por esse motivo, poderia explorar também o território deles, procurando saber quais são seus jogos preferidos, a cor que mais gostam, e o local que mais frequentam no fim de semana. Viola Spolin (1986, p. 19) ressalta: “Cada jogo teatral é uma varinha de condão e, como tal, desperta o intuitivo, produzindo uma transformação não apenas no ator/jogador como Também no diretor/instrutor”. Essa intuição foi uma espécie de escuta que desenvolvi para entender os meus alunos e alunas e a mim no momento da aula. O que queríamos e podíamos naquele momento?
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Dessa forma, trazendo nesse planejamento contribuições dessas crianças, pude me entender em sala de aula e consegui visualizar as aulas com menos cobranças, me deixando disponível para ser moldada pela energia que ela tinha, trazendo diversidade, planejamento e brincadeira. No final das aulas, percebia a dificuldade em avaliação, mesmo que as perguntas fossem, como foi a aula? Quais foram as dificuldades durante os jogos? E qual foi o jogo preferido? As respostas eram curtas e geralmente finalizavam com um simples e singelo “legal, bacana, divertido”, e com muito esforço, às vezes, um “interessante”. Aquelas crianças só tinham 8 anos de idade e estavam vivenciando sua primeira experiência dentro do teatro, era possível notar a vergonha, retração e timidez. Durante o mês de agosto de 2019, trouxe para a sala de aula uma fruta e um texto teatral, era uma uva verde e uma criança me disse que essa era a fruta preferida dela. Naquele momento apenas olhei e sorri, continuei a aula e tivemos nossa primeira leitura com muita dificuldade, pois a maioria não sabia ler e por este motivo foi necessário realizar duplas e trios para que assim pudessem se ajudar. É importante ressaltar que o teatro naquele momento auxiliou as crianças no processo de leitura, pois com a aplicação de outras ferramentas como a mímica e a pantomima, conseguimos construir sentido para o texto. No final da aula, fomos ao lanche e para encerrar aquela aula, fizemos um bate papo, decidi fazer de uma maneira diferente, perguntando sobre a aula, mas além disso, qual era a fruta preferida de cada criança e qual era a fruta que definia aquela aula. A turma se animou. Alguns disseram que parecia um limão e faziam caretas, pois o azedo remetia à dificuldade com a leitura e que aquele momento tivesse sido muito chato. Outros, no entanto, disseram que a aula para elas parecia uma melancia, morango, manga, pois havia sido muito doce e divertida. Foi ali, naquela troca que consegui perceber que a avaliação poderia ter outros meios e que isso diferenciava as aulas de uma maneira positiva.
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As aulas foram ficando cada vez mais divertidas e era possível observar que a brincadeira era presente durante e após os jogos, em roda de conversa. Nesse sentido, Meirelles destaca: o brincar como linguagem universal da criança. Independentemente de sua condição social, a criança brinca como forma de se apropriar do mundo, do outro e de si mesma. O brincar é um ato genuíno e intrínseco a essa fase da vida. Logo, as crianças brincam não porque um adulto ou uma instituição definiu que brincar é um conteúdo curricular importante, mas porque é a forma como ela expressa seus sentimentos, pensamentos e desejos (Meirelles, 2015, p. 65). Assim, as brincadeiras foram se tornando aula, jogo, despertando ainda mais o lado criativo daquelas crianças e facilitando todo o entendimento no decorrer do processo. Os ensaios eram acompanhados de jogos e a cena se complementava com a visão daquelas crianças, tornando o processo colaborativo e dinâmico.
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Figura 04 – Roda de conversa, finalização da aula.
Fonte: Arquivo pessoal
2 \ OS CAMINHOS DO TEATRO NA COMUNIDADE Neste segundo capítulo, busco demonstrar como o teatro acontece na comunidade do bairro Tuiuiú e como as políticas públicas fortalecem este espaço, através da cultura. Além de trazer a importante discussão sobre como se deu a montagem do espetáculo “Eu chovo, tu choves, Eles Elas Chovem”, que foi um grande desafio durante a minha trajetória enquanto professora/mediadora, e um grande disparador para que esta pesquisa se consolidasse.
2.1 A prática teatral na comunidade tuiuiú. O bairro, que está a cerca de 5 km de distância do grande centro da cidade, já atendeu mais de 100 crianças anualmente desde que as práticas
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\ o teatro com criança se faz brincando: o desenvolver teatral na comunidade do bairro Tuiuiú, em Primavera do Leste – MT.
teatrais se potencializaram dentro desta comunidade. As aulas de teatro acontecem desde 2007, onde os primeiros instrutores foram membros do grupo Teatro Faces, grupo que movimentou e formou os primeiros artistas de Primavera do Leste – MT. As aulas já aconteceram em praças, fundos de quintal, igreja, pátio de escola e atualmente acontecem dentro do CRAS e do Centro Cultural Tuiuiú. É importante ressaltar que dentro do município, a prática teatral pulsa em diferentes bairros, trazendo a descentralização, levando o teatro até a zona rural e atendendo mais de 500 alunos e alunas por ano. A Escola de Teatro é fonte de conhecimento e referência municipal e estadual, contando com o apoio de políticas públicas que movimentam a cidade. A participação e o apoio da atual gestão municipal são inspiração para os jovens; a arte foi ressignificada e hoje o bairro conta com um espaço adequado para receber alunos e alunas de teatro, balé e literatura. O prédio conta com o auxílio de profissionais da área de psicologia, pedagogos e uma equipe excelente que auxilia as crianças diariamente. A participação efetiva e o engajamento da comunidade nas atividades desenvolvidas nos dispositivos culturais é o que mantém a continuidade das políticas públicas do município. A utilização dos espaços coloca luz sobre as demandas daquela população com relação às ações ali desenvolvidas, dando a elas o caráter de ferramentas de transformação social. (Moura, 2012), em uma referência ao CCBJ11, em Fortaleza, nos diz que: É através deste espaço público e das opiniões formuladas em seu contexto, que, por exemplo, as reivindicações da sociedade civil por investimentos na área da cultura, bem como as de grupos locais por suas memórias, e outras necessidades do coletivo ativadas através da memória, poderão ser proferidas, escutadas e pensadas (Moura, 2012, p. 54).
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11. Centro Cultural Bom Jardim, que fica localizado no bairro Bom Jardim, em Fortaleza.
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Em outras palavras, a população, com sua participação, tende a se manifestar dentro desses locais, trazendo visibilidade e reivindicando seus direitos, sugerindo, levando suas necessidades à gestão pública e reforçando a importância de espaços culturais dentro de suas comunidades, manifestando também um contentamento ou não com o espaço ali presente. É interessante frisar que o engajamento em ações, atividades e dispositivos culturais não se circunscreve ao bairro. A comunidade do Tuiuiú, mesmo que não esteja inserida e não tenha a necessidade de estar próxima ou dentro do grande centro, tem uma participação assídua nas ações culturais que acontecem na região central ou em outras regiões da cidade de Primavera do Leste – MT. Todas as ações que acontecem no bairro contam com um grande número de pessoas participando, seja assistindo ou atuando. No decorrer de minha experiência na condição de educadora, assim como de aluna, pude perceber que a participação de crianças nos programas educativos culturais fornece a elas um espaço seguro em que encontram escuta para suas questões, onde se abrem para diálogos. Por vezes, as crianças chegaram a encontrar na arte um propósito para a vida, dado que os demais espaços que frequentavam e habitavam não lhes davam a sensação de pertencimento e/ou segurança, mesmo com a própria família. As aulas de teatro não se restringem aos jogos teatrais ou a exercícios de improvisação e atuação, mas se prolongam em outros campos do fazer teatral. Na Escola Municipal de Teatro, temos o costume de trabalhar com os alunos e alunas a construção dos figurinos e cenários, assim como os demais elementos da cena. Essa prática visa apresentar panoramicamente o ofício teatral, além de servir como laboratório de composição de personagem, na medida em que durante essas construções, elaboram melhor as personagens que estão criando, imaginando-as e as contextualizando.
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Deste modo, utilizando-se de papelão, tintas, tecidos, cortes, colagens e amarrações, experimentam e constroem o universo ficcional que experimentarão pela cena. Na esteira da criação colaborativa, nossos alunos e alunas contribuem também na direção, participando com sugestões e pontuações feitas no decorrer da construção do processo cênico. Muitas ideias são utilizadas durante a marcação e essa contribuição fortalece o espetáculo. As marcações, apesar de essenciais na montagem de um espetáculo teatral, não se impõem ao brincar. Aliás, elas se constroem, se dissolvem e se reconstroem de modo lúdico, pelo jogo e pela diversão. Maria Edilene de Jesus13, nesse sentido, nos diz que vê: [...] o brincar como inerente à infância, presente no desenvolvimento infantil, que colabora com a construção de valores e na organização de conceitos frente à realidade de cada criança, pois cada uma em seu processo de autonomia, pelo brincar, aos poucos, no seu próprio tempo, vai construindo processos de aprendizagem (Jesus, 2021, p. 43). De certo modo, a experiência teatral está posta com o intuito de colaborar nos processos de construção de si e de produção de autonomia desses sujeitos. A finalidade não é a obra, o espetáculo teatral. Este se dá como um resultado possível, uma desculpa para o encontro lúdico mediado pela arte da presença. Essas percepções fizeram com que eu, enquanto professora/mediadora, pudesse enxergar que o trabalho duro da construção artística do cenário e figurino enquanto um fazer coletivo, prazeroso e divertido, colaborava para o desenvolvimento de outras potencialidades artísticas, como as ligadas ao espaço e às visualidades, em um longo processo de educação estética.
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12. Edilene Rodriguez é Doutoranda em Estudos de Cultura Contemporânea pela ECCO na Universidade Federal de Mato Grosso, é Mestra em Teatro pelo Programa de Pósgraduação em Teatro da Universidade do Estado de Santa Catarina com a pesquisa: Espaços do Brincar: experimentos teatrais com crianças em Primavera do Leste - MT. Graduada em Licenciatura em Teatro pela UNB Universidade de Brasília (2018) com intercâmbio em Theatre e Fine Arts na University of Tampere - Finlândia. Graduada em Letras - Português - Inglês pela Unicesumar.
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Nesse sentido, é importante salientar que todas as idas e vindas do processo, as dúvidas, as mudanças de rotas, os momentos de sensação de desnorteamento e as pequenas descobertas foram essenciais e contribuíram, também, de diferentes maneiras, no desenvolvimento da coordenação motora, no estímulo sensorial, no senso crítico e estético, no desenvolvimento da criatividade e até mesmo na fala. O teatro possibilitou na vida dessas crianças uma oportunidade de se desenvolver ainda mais dentro do ambiente escolar, afetivamente e em casa, fazendo com que fossem vistos sem tantas rotulações de seres frágeis e incapazes, que podem sim contribuir e serem responsáveis pelas suas artes, repletas de brincadeiras, poesia e amor.
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\ REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS DORST, Ana Paula Neis – Um voo sobre o oceano: a peça didática de Brecht encenada na Pista Municipal de Skate em Primavera do Leste/ MT. 116 f. 2019. Dissertação (Mestrado em Teatro) – Centro de Artes, Universidade do Estado de Santa Catarina. Florianópolis, p. 116, 2019. CABRAL. Yuri Lima. O espetáculo Alice: Pedagogia do Teatro em discussões de gênero com a juventude. 116 f. 2019. Dissertação (Mestrado em Teatro) – Centro de Artes, Universidade do Estado de Santa Catarina. Florianópolis, 2019; JESUS, Maria Edilene de. Espaço do Brincar: Experimentos teatrais com crianças em Primavera do Leste/MT. Dissertação (Mestrado em Artes Cênicas) – Centro de Artes, Universidade do Estado de Santa Catarina. Florianópolis, 2021. LANA, Wanderson Alex Moreira de. Boé e Concreto contra-flexa: o cerrado e a floresta na construção de uma dramaturgia mestiça. São Paulo: Hucitec, 2021. MEIRELLES, Renata. Território do Brincar – diálogo com escolas. São Paulo: Instituto Alana, 2015. MOURA, Gyl Giffony Araujo - A construção da memória social como política pública: o caso do Centro Cultural Bom Jardim, em Fortaleza, Ceará. 180 f. 2012. Dissertação (Mestrado em Memória Social) – Centro de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, 180 f., 2012.
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SPOLIN, Viola. O Jogo teatral no livro do Diretor. São Paulo: Pespectiva, 2008. SONTAK, André Francisco. Boé: corpos-lugar na criação de teatralidades sobre a morte. 94 f. 2020. Dissertação (Mestrado em Estudos da Cultura Contemporânea) – Faculdade de Comunicação e Artes, Universidade Federal de Mato Grosso, 94 f., 2020.
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\ código (não)binário: o objeto técnico enquanto processo potencializador na criação cênica Ravena Sena Ravena Sena, Macapá (AP). Negra e não binária. Graduada em licenciatura em teatro pela Universidade Federal do Amapá (Unifap), possui experiência em direção, cenografia, atuação e produção de eventos. É cofundadora da recém-criada Cia. Caleidoscênico, na qual atua como diretora, cenógrafa e atriz. benaiacarvalho1408@gmail.com
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FICHA TÉCNICA Instituição Universidade Federal do Amapá (Unifap) Tipo do curso Graduação Nome do curso Licenciatura em teatro Período do curso 2018-2024 Estado Amapá Título do trabalho Código (não)binário: o objeto técnico enquanto processo potencializador na criação cênica Nome da autora Ravena Sena Nome do orientador Professor doutor José Flávio Gonçalves da Fonseca Número de páginas 22
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\ código (não)binário: o objeto técnico enquanto processo potencializador na criação cênica
\ RESUMO O artigo propõe contribuir para os estudos sobre criação cênica, especialmente no contexto da cena intermedial, enfatizando o papel do objeto técnico no desenvolvimento artístico. Os autores, incluindo Gilbert Simondon, Fernanda Areias, Marta Isaacsson, Ludovic Duhem e Gabriela Monteiro, são referenciados para esclarecer os termos e perspectivas empregados no processo criativo do corpo-mídia. Esse enfoque é ilustrado através do experimento cênico autobiográfico intitulado Código (Não) Binário, conduzido em laboratório. Palavras-chave: Objeto técnico, Imagens técnicas, Corpo-Imagem
\ ABSTRACT The article aims to contribute to studies on scenic creation, specifically focusing on intermedial scenes and the role of technical objects in artistic development. Authors such as Gilbert Simondon, Fernanda Areias, Marta Isaacsson, Ludovic Duhem, and Gabriela Monteiro are referenced to clarify terms and perspectives used in the creative process of the mediabody. This approach is exemplified through an autobiographical scenic experiment titled “Non-Binary Code,” conducted in a laboratory setting. Keywords: Technical Object, Technical Images, Body-Image.
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\ RESUMEN El artículo tiene como objetivo contribuir a los estudios sobre la creación escénica, especialmente en el contexto de la escena intermedial, destacando el papel del objeto técnico en el desarrollo artístico. Se hacen referencias a autores como Gilbert Simondon, Fernanda Areias, Marta Isaacsson, Ludovic Duhem y Gabriela Monteiro para aclarar los términos y perspectivas utilizados en el proceso creativo del cuerpo-medio. Este enfoque se ilustra a través del experimento escénico autobiográfico titulado “Código (No) Binario”, realizado en laboratorio. Palabras clave: Objeto técnico, Imágenes técnicas, Cuerpo-Imagen.
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1 \ INTRODUÇÃO Este trabalho se caracteriza como uma pesquisa exploratória, resultante de desdobramentos de um processo criativo que orientaram os desenvolvimentos desta pesquisa e culminaram em um experimento cênico prático-teórico. Ele se enquadra na linha de pesquisa dedicada aos Processos de Criação e Expressão Cênica. A questão investigativa desta pesquisa é compreender: como o objeto técnico, por meio da projeção de imagens técnicas, pode se relacionar com o ator em cena para potencializar o processo criativo cênico? Quais possibilidades poderão surgir?
2 \ A TECNOLOGIA ADENTRANDO NO TEATRO Antes de adentrarmos no contexto histórico no que diz respeito ao caminho que o teatro realizou concernente ao uso da técnica até chegar de fato ao uso da tecnologia dentro de sua poética e estética, é de suma importância perpassarmos pelas análises de ambos os termos, entendendo sua origem e seus conceitos intrinsicamente aplicados nesta pesquisa.
2.1. Da técnica à tecnologia Existem variadas óticas sobre a origem e as concepções voltadas à técnica e tecnologia. André Leroi-Gourhan, Oswaldo Spengler e Gilbert Simondon, buscam no mais íntimo, imergindo na biologia e filosofia para compreender a gênese da técnica e seu caminho até a tecnologia. O francês Leroi-Gourhan (1911-1986), também discute conceitos a estes termos em sua obra O gesto e a Palavra, e compreende a técnica enquanto habilidade que o ser humano possui de confeccionar objetos ou até mesmo a possibilidade de mudar o meio ambiente, utilizando de seu próprio corpo para isto (LEITE, 2021, p. 24). Régis Ouvrier-Bonnaz (2010) menciona o francês em sua tese, e aponta um referencial importante no qual Leroi-Gourhan se baseia para iniciar seus estudos: 438
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1. Termo cunhado por Georges Canguilhem em sua obra “Máquina e organismo” (1952).
Para ele [Leroi-Gourhan], se se procura um ‘parentesco real da tecnologia é para a paleontologia, para a biologia que precisamos de nos orientar’. Na articulação do social com o biológico tenta definir uma ‘biologia da técnica’, nisso seguindo o seu mestre Mauss (1936) para quem ‘o corpo é o primeiro e o mais natural instrumento do homem. Ou mais rigorosamente… o primeiro e o mais natural objecto técnico do homem, e ao mesmo tempo meio técnico’. (1936/1960, p. 372. apud.: OUVRIER-BONNAZ, 2010, p. 3) Neste sentido, ele defende a ideia de que a técnica é uma projeção biológica do corpo. Vê o homem enquanto objeto técnico primordial, sendo ele natural, e a técnica – entendendo-a como capacidade de criar e mudar no/o meio – como essa forma de expressar essa extensão corporal. Não obstante, Oswald Spengler (1941) também analisou as relações entre biologia e tecnologia para formular sua “filosofia biológica da técnica”1, descrita em sua obra O Homem e a Técnica (1941), onde afirma que: Para entender a essência da técnica não devemos partir da técnica da era da máquina e muito menos da ideia enganadora de que a construção de máquinas e utensílios seja o objetivo da técnica. (...) Se vamos então atribuir um significado à técnica, devemos partir da alma, apenas dela. (...) A técnica é a tática de vida; é a forma íntima cuja expressão exterior é a conduta no conflito – no conflito que se identifica com a própria vida. (SPENGLER, 1941, p. 25 e 26) Muito para além de um resultado de desenvolvimento histórico e projeção do corpo, Spengler vê a técnica como uma “tática de vida”, no qual o objetivo da técnica não está ligado apenas na fabricação de utensílios, visto que há inúmeras técnicas pelas quais não se utilizam necessariamente objetos, então, a técnica está ligada ao método que 439
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se usa para resolver um conflito. A invenção e produção de objetos são apenas elementos que fazem parte de um todo, ou seja, fragmentos de um processo maior, no qual a tática é um elemento decisivo. Ele cita: Existem as técnicas da guerra química e de gases. Há ainda das pinceladas do pintor, a de equitação e a de pilotar dirigíveis. Não se trata de coisas, mas sim de uma atividade que tem um propósito. E é precisamente por isso que tantas vezes tem sido esquecido no estudo da pré-história, em que se presta exagerada atenção nas coisas dos museus e se dá pouquíssima importância aos processos que devem ter existido, mesmo que não hajam deixado menor vestígio. (SPENGLER, 11, p. 27) O ser humano cria impulsionado pelo desejo de uma vida ativa, transformando seu ambiente. Segundo Spengler, a evolução requer um propósito para alcançar o progresso. A técnica surge do pensamento sobre processos, em que a finalidade é a tática para sua realização. Assim, a técnica é resultado da aplicação do conhecimento. As variantes relações estabelecidas entre biologia e tecnologia citadas anteriormente, serviram de base para que uma nova perspectiva fosse evocada pelo filósofo Gilbert Simondon (1924-1989). Uma visão em que se há pontos de contraposição e convergência aos pensamentos de Spengler e Leroi-Gourhan no que tange as concepções ligadas a ontologia da técnica. Sinto-me na necessidade de citá-lo não apenas com a finalidade de estender a compreensão da origem da técnica mediante a uma nova ótica, mas também pela importância que sua visão de pensamento exerceu no desenvolvimento de meu trabalho prático. Simondon considera a técnica como derivada de sua origem biológica, concebendo um “ser técnico” como um processo de individuação. Para compreender essa filosofia biológica da técnica, a perspectiva de Wendell Lopes (2015) destaca três problemas fundamentais: visualizar o objeto
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técnico como um ser em si, refletir sobre sua evolução e reconhecer sua origem na invenção vital. Esses conceitos são essenciais para a construção da tese ontológica da técnica de Simondon. Quando consideramos o objeto técnico como um ser técnico, o afastamos de uma ótica tipológica e nos concentramos em sua gênese e processo de individualização. Segundo Simondon, essa individualização ocorre por meio de um processo evolutivo, onde o ser técnico se unifica internamente por meio de uma ressonância interna. Ele propõe que a resolução desse processo ocorre por meio da adaptação e convergência do próprio objeto. Para alcançar essa resolução, é necessário mergulhar nas divergências e convergências das direções funcionais do objeto técnico e refletir sobre elas. Lopes diz que É, inclusive, a partir da diferença entre divergência e convergência funcionais que o filósofo estabelece a distinção entre objeto técnico abstrato (objeto técnico primitivo) e objeto concreto, sendo este último a versão do objeto técnico liberado progressivamente dos resíduos abstrativos do objeto técnico primitivo. A convergência e a adaptação são justamente formas de redução progressiva desse resíduo. (LOPES, 2015, p. 309) Este processo de redução progressiva de “resíduos de abstração” no objeto técnico – ou, como Simondon chama, “problema técnico” – a qual Lopes cita acima, chama-se de “concretização”. Esta concretização utiliza da individualização da técnica e de seu modo de existência para evidenciar o mais legítimo avanço tecnológico. Diante deste panorama apresentado em relação a técnica, podemos entender que ela está intrinsicamente ligada ao ser humano, seja em sua forma de extensão biológica do corpo, seja na aplicação de seu saber, seja ela como fator determinante na transformação do meio ambiente nas esferas sociais e políticas. Portanto, até que se chegue à tecnologia a
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técnica percorre variados processos de evolução, concretização e transformação.
2.2. O uso de objeto técnico na cena teatral Conforme vai se dando a evolução dos diversos objetos técnicos para fins de comunicação, o ser humano vai encontrando novas formas de expressão a partir do uso dessas tecnologias imersas em seu cotidiano. Assim como na vida, no teatro não seria diferente. No subtópico anterior abordamos diversas concepções e perspectivas ligadas aos processos que a técnica perpassa até chegar à tecnologia que vemos hoje. Isto posto, a partir de agora levaremos esta discussão sob a luz da ótica de Marta Isaacsson (2011). Por conseguinte, a cena teatral, atualmente, é cercada e imersa em várias formas de tecnologias, em especial, as mídias. Com o avanço da ciência, também vieram as ampliações dos recursos técnicos que contribuíram no desenvolvimento da composição do espaço cênico. A tecnologia foi adentrando no teatro sutilmente, começando por sua mais puro e simples forma de existência, a técnica, a exemplo disso temos: roldanas, polias, pequenas maquinarias empregadas por trás das coxias. No entanto, para Marta Isaacsson, é a partir do surgimento da eletricidade que as relações entre tecnologia e teatro passaram a ganhar um estreitamento significativo. Ela diz que Na verdade, graças à introdução da eletricidade no teatro, a cena se abriu a novas experimentações de ilusão ótica, à realização de jogos de luz e sombra, permitindo aos atores descobrir, inclusive, novos modelos de deslocamentos sobre o palco. No início do século XX, André Antoine reconhece também com entusiasmo o potencial da luz para uma nova estética da representação” (ISAACSSON, 2011, p. 10)
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Neste caso, podemos perceber que a energia elétrica foi uma aliada importantíssima para que se abrissem caminhos para novas experimentações concernente à composição da cena teatral. Pois, além de contribuir para a consolidação do efeito de ilusão no teatro, ela contribuiu, posteriormente, na criação de novas tecnologias de imagem como, por exemplo, a câmera fotográfica, a televisão, o projetor. Ademais, segundo Isaacsson, a partir dos anos vinte se iniciou os primeiros entrelaçamentos do teatro com o cinema a partir de alguns cenógrafos e encenadores que em suas produções resolveram utilizar dentro de suas composições cênicas projeções de fotografias e filmes. Embora Meyerhold seja bastante conhecido pelo emprego de projeções em cena – a exemplo disto, sua montagem da peça A terra erguida (1923), uma adaptação da peça A noite de Marcel Martinet –, Isaacsson destaca Piscator, visto que ele desenvolveu maneiras bastante elaboradas na operação destas tecnologias, visando uma integração das imagens técnicas ao palco. Isto é, em contraposição à cena ilusionista burguesa, ele passa a utilizar recursos técnicos áudio visuais mais avançados e, consequentemente, aprimora os modos de operação destes objetos técnicos na cena. Peter Brook também ganhou notoriedade em suas composições cênicas por meio da inserção de mídias no palco. Mas diferente de Piscator que utilizou o objeto técnico (projetor de imagens) enquanto função didática para abordar temas voltados à Revolução Russa. Brook utiliza uma tecnologia de imagem (televisão) para difundir imagens de seus atores, capturadas em tempo real, na intenção de “retratar os movimentos interiores e exteriores do homem contemporâneo, seus traumas neuropsicológicos” (ISAACSSON, 2011, p. 18), no qual uma das suas principais características é que a supremacia do ator sobre a cena em relação ao objeto técnico, não é colocado em xeque. Atualmente, imersos em um mundo repleto de aparatos tecnológicos, estamos familiarizados com a existências dessas e outras mídias bem mais avançadas. A par disto, o artista canadense Robert Lepage, explica que foi
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mediante a esta familiarização do expectador com os objetos técnicos que ele optou em utilizá-las em seus espetáculos, pois, na sua perspectiva, isto tornaria mais forte a comunicação sensorial da cena com o espectador. Partindo desse pensamento, Isaacsson destaca que Diferentemente das primeiras montagens com tecnologia, a imagem virtual não vem constituir veículo de informações da realidade social a ser estampada sobre um telão, nem aparece empregada na construção de uma espetacularidade mágica, até porque, como bem coloca Lepage em citação aqui já mencionada, a familiaridade do espectador com os equipamentos de produção de imagem esvaziou o poder de espetacularização da tecnologia. Dáse então início ao desenvolvimento de um teatro multimídia, no qual a imagem dos corpos reais convive sobre a cena com a imagem tecnológica em favor da teatralidade. (ISAACSSON, 2011, p. 21) Este “teatro multimídia” pelo qual Isaacsson aponta acima, se caracteriza pelo encontro entre mídias. Esse encontro se denomina como cena intermedial. Esta Intermedialidade que ela apresenta, é determinada pelas formas de articulação e dinâmica de interatividade, sob a qual elas vão se estabelecendo em cena. Mais especificamente, Quando a presença física dos corpos em cena se articula efetivamente com os efeitos de presença das imagens virtuais, a cena interroga o olhar do espectador. A intermedialidade cênica instaura um nível de tensão perceptiva, seja borrando os limites do real e do virtual por meio de procedimentos inusitados de entrelaçamento, seja destacando o diferencial natural existente entre as mídias. (ISAACSSON, 2011, p. 2)
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No espetáculo Le Projet Anderson, de Lepage, é possível perceber a dissolução das fronteiras existentes entre a imagem real (orgânica) e a imagem virtual surgindo durante o acontecimento da cena. O que uma hora distinguia uma da outra, agora passa a abrir caminhos para dialogar com outras práticas oriundas da arte. Desde modo, podemos compreender que a cena contemporânea é, portanto, a inter-relação entre os meios.
3 \ O OBJETO TÉCNICO COMO PROCESSO CRIATIVO 3.1. Objeto técnico na poética teatral Na cena teatral contemporânea, a introdução da tecnologia de imagem gera tensões entre a imagem real e virtual, modificando a percepção do evento teatral. A interação e hibridização das linguagens midiáticas na composição cênica complexificam as relações entre as mídias, impactando a percepção do espectador. A presença mediada pela tecnologia de imagem desempenha um papel crucial na intermedialidade teatral. No entanto, vale ressaltar que a proposta desta pesquisa não está reduzida à uma produção contemporânea de uma cena intermedial. Pelo contrário, o que se visa aqui é um experimento cênico no qual o objeto técnico assume um caráter processual que contribuirá fortemente para surgimento de uma poética. Ou seja, o objeto técnico é visto para além de um meio para fins estéticos e até mesmo técnicos de um cenário. Neste sentido, é fundamental destacar que ele desempenha um papel importante na criação de uma poética cênica intermedial. Ademais, segundo Gabriela Monteiro (2014), para que se compreenda e analise a poética existente por trás de espetáculos intermediais é necessário que, inicialmente, se entenda que o processo de criação do ator diferencia-se quando o dispositivo é usado na sala de ensaio. O dispositivo é processo e não simples recurso para criação;
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ele não é autônomo e não pode ser analisado isoladamente, não se dissociando do que se cria.” (MONTEIRO, 2014, p. 97). Neste sentido, o objeto técnico não se dissocia da criação, pois ele faz parte dela. Não é recurso, visto que ele interage e se relaciona diretamente com o corpo do ator. Dentro da cena intermedial, onde as linguagens presentes na cena coexistem de forma híbrida, a ponto de não conseguirmos dissociá-las, o corpo do ator ganha uma nova ótica, pois ele é visto enquanto uma espécie de “dispositivo” – que aqui entendemos enquanto objeto técnico – pelo qual se relaciona com outro dispositivo, que, neste caso, seria a tecnologia de imagem utilizada na cena. Nesse sentido, o corpo do ator é também dispositivo e suas ações surgem na interação com as imagens projetadas. Um corpo-imagem que nasce do encontro entre o virtual e o real, como um amálgama. O corpo é tradutor dessa inter-relação, por vezes é atravessado por elas, fragmentado, como nas experiências do Wooster Group e, mesmo, potencializado e expandido, em Brook, Lepage e Bausch. (MONTEIRO, 2014, p. 97) Isto é, a partir das relações que se estabelecem entre as ações produzidas pelo corpo do ator em interação com imagens projetadas no espaço cênico, um novo corpo se apresenta. A partir das reverberações oriundas dos atravessamentos desta hibridização, que o objeto técnico é capaz de fazer com que o corpo do ator alcance, encontre, desperte no âmago de suas emoções, uma poética cênica intermedial. Assim, a poética vai surgindo e aos poucos ganhando um corpo, um corpo pelo qual Monteiro nomeia enquanto um corpo-imagem.
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3.2. O uso das tecnologias de imagem no processo de criação cênica A exemplo disto podemos citar o espetáculo autobiográfico (Trans)midiático do pesquisador Kai Henrique (2019). No qual, o ator, para sua composição cênica, utilizou tecnologias de imagens e seu próprio corpo para relatar seu processo de autodescoberta enquanto um homem transexual no mundo. Na cena, são dispostos no espaço uma cadeira e uma mesa – e sobre ela, fotos do ator e da sua família para ilustrar recortes de sua memória e história – um suporte contendo uma câmera apontada para a superfície e apontado para o fundo do palco, um projetor que transmite as imagens capturadas em tempo real pela câmera. No decorrer do espetáculo o ator interage gradativamente com os objetos técnicos da cena. Enquanto conta sua história sentado sobre a cadeira, suas mãos apoiadas em cima da mesa interagem com as fotos postas sobre ela. Na parede atrás do ator, a ação de suas mãos é projetada simultaneamente aos seus movimentos. Em outro momento de cena, agora com o ator já de pé e fora da mesa, ele continua seu relato, porém ora direcionando sua fala ao público, outro momento direcionando sua fala para a câmera à sua frente, sob a qual era conectada a um dispositivo técnico que projetava a imagem de seu rosto em tempo real na parede que ficava às suas costas. No espetáculo, o corpo do ator atua como um tradutor da interação entre o real e o virtual, potencializando a cena e promovendo a ideia de cena expandida, que altera a forma como a obra artística é recebida. As relações entre as formas de imagens em cena exigem uma atenção especial do espectador, provocando uma percepção de nova dimensionalidade do espaço. O espectador se vê confrontado com uma dupla percepção da obra, tentando distinguir entre as experiências sensoriais do espaço virtual e do espaço real, o que o leva a um processo de recriação de seus próprios sentidos.
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Na cena intermedial, percebe-se a presença do que Gilbert Simondon chama de “tecnoestética”, uma fusão entre o técnico e o estético. A integração inseparável do objeto técnico e do processo criativo pode potencializar a criatividade poética intermedial, gerando novas percepções para o espectador e concebendo um corpo midiático que interage com o espaço cênico.
4 \ PROCESSO CRIATIVO DO EXPERIMENTO CÊNICO CÓDIGO (NÃO)BINÁRIO 4.1. O objeto técnico no processo de criação cênica O primeiro contato que tive com espetáculos que trazem novas perspectivas referente ao uso do objeto técnico em cena – neste caso, fora de um contexto cenográfico – ocorreram no ano de 2019, durante uma disciplina denominada “Imagem e Mídia”, ministrada pelo professor Dr. Flávio Gonçalves, no curso de Licenciatura em Teatro da Universidade Federal do Amapá. Boa parte dos espetáculos trazidos por ele faziam o uso de projetores em suas produções, foi então que resolvi iniciar minha pesquisa acerca das possibilidades que se poderia encontrar por meio deste objeto técnico como processo de criação cênica. Desde 2020, venho pesquisando sobre o manuseio de objetos técnicos dentro da cena teatral. Cheguei a participar de oficinas voltados a teatro e tecnologia, como por exemplo, as oficinas: Teatro Digital, ministrado pelo Dr. Flávio Gonçalves; e Vídeo Mapping, ministrado pela Ma. Luciana Ramin. Ambas as oficinas foram realizadas pela Oficina de Arte Teatro & Cia (OFICARTE) de forma online, via google Meet, devido a pandemia em decorrência da Covid 19. Vale ressaltar que essas oficinas foram fundamentais para a realização deste trabalho. O curso de Teatro Digital, me trouxe várias referências bibliográficas que contribuíram fortemente para a compreensão dos termos técnica e tecnologia, além de poder conhecer vários exemplos de trabalhos artísticos
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que mostravam possibilidades de criação artísticas em que o objeto técnico era a válvula impulsionadora do processo criativo. Já o curso Vídeo Mapping, contribuiu para construção prática do meu trabalho, pois me ensinou como manusear o projetor multimídia de forma mais criativa por meio do procedimento de mapeamentos do espaço em que se deseja projetar as imagens técnicas. Após a pesquisa bibliográfica deste trabalho, dei início a experimentação cênica na sala de ensaio. Para iniciar o processo criativo deste experimento cênico, usei um projetor multimídia – uma tecnologia de imagem bem conhecida e utilizada em apresentações de eventos corporativos e cinemas – na sala de ensaio para realizar algumas experimentações práticas com ele. Na sala de ensaio, me sentei de frente para o projetor multimídia, ainda desligado, e passei a observá-lo de forma analítica. Assim como eu, ele também possui uma história sobre sua origem, então passei a refletir sobre sua ontologia. Para que isto acontecesse, o primeiro passo foi olhá-lo enquanto ser técnico, assim como sugere Simondon (explicado no tópico 2.1), ou seja, não reduzir o objeto técnico à sua funcionalidade, mas entendê-lo enquanto um “ser” – que não é biológico, pois não é feito de matéria orgânica, mas sim técnico, pois é uma máquina. Queria estabelecer um relacionamento, uma comunicação com o objeto. Neste sentido, o projetor multimídia, deixou de ser um aparato técnico para assumir o caráter de colega de cena e ao mesmo tempo processo. Deste modo, questões começaram a surgir em minha mente, servindo como caminhos para entender este ser técnico posto em minha frente: a) qual a origem do projetor multimídia? b) De qual técnica ele teve influência para que chegasse nesta tecnologia atual? c) Qual é a linguagem que ele utiliza para sua comunicação? Com base nessas questões levantadas, dei início ao segundo passo, também proposto por Simondon, que é refletir sobre a evolução deste objeto técnico para entender a história que provem desse ser técnico.
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O termo multimídia faz parte de seu nome pelo fato desse objeto técnico processar arquivos provenientes de outras mídias, como o celular, a TV, o computador, entre outros. Segundo a redação do site da Conecte Já Proteste o projetor multimídia (...) é um equipamento eletrônico que projeta imagens como fotos, vídeos, apresentações, planilhas ou qualquer outro recurso visual. As imagens podem ser projetadas pelo equipamento em uma parede, um telão, uma lona ou qualquer outra superfície que favoreça o contraste de cor com a imagem projetada. (...) De forma resumida, um projetor multimídia serve para reproduzir imagens em tamanho ampliado. (PROTESTE, 2022, n. p.) Neste sentido, podemos compreender que o objetivo do projetor multimídia é ampliar imagens técnicas. Isso sugere que sua origem pode estar ligada à evolução da imagem. De acordo com as análises de Douglas Orben (2013) em sua obra “Imagens técnicas: origem e implicações segundo Vilém Flusser”, para Flusser, a máquina fotográfica é um modelo crucial para analisar a sociedade contemporânea. O universo das imagens está intrinsecamente relacionado ao desenvolvimento histórico das formas de significar o mundo por meio de imagens. Flusser divide essa evolução em três períodos históricos: pré-histórico (pinturas e figuras pictóricas), histórico (símbolo conceitual, escrita linear/texto) e pós-histórico (criação de aparelhos produtores de imagens técnicas). Segundo Orben Flusser denomina o universo das imagens técnicas de “pós-histórico”, pois ele é a síntese entre uma pré-história dominada por imagens pictóricas e o universo histórico, o qual se inicia com a escrita linear e culmina com os mais abstratos textos científicos. (...) Em tal domínio, a sociedade encontra-se orientada pelas imagens técnicas, pois
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são estas que determinam o sentido do mundo póshistórico. (ORBEN, 2013, p.114) Deste modo, o que podemos entender é que o projetor multimídia tem sua origem atrelada ao processo evolutivo da produção da imagem. Dentre os três períodos históricos elucidados por Flusser, o projetor multimídia se encontra no pós-histórico, visto que é qualificado enquanto aparelho produtor de imagens técnicas. Neste sentido, podemos entender que as técnicas de produção de imagens que influenciaram na criação do projetor multimídia, foram a pintura e as figuras pictóricas, que Flusser nomeia enquanto imagens tradicionais. Ademais, dando seguimento ao pensamento de Flusser, Orben fala que As imagens técnicas nascem da tentativa de recuperar a capacidade imaginativa, negada pela textolatria. (...) Segundo Flusser, “imagens técnicas são, portanto, produtos indiretos de textos – o que lhes confere posição histórica e ontológica diferente das imagens tradicionais” (FLUSSER, 2002, p. 13). Enquanto que as imagens tradicionais são préhistóricas, pré-alfabéticas, as imagens técnicas, por sua vez, são o produto de textos científicos, digitalmente codificados. (ORBEN, 2013, p. 118-119) O homem pós-histórico diminuiu significativamente seu interesse por textos, devido às extensas explicações presentes nos textos científicos. Agora, em vez de passar um longo tempo decodificando símbolos no seu processo de leitura, ele possuía a magia presente nas imagens técnica, ou nas palavras de Flusser: “Explicações nada adiantam se comparadas com o que se vê” (2002, p. 57. Apud.: ORBEN, 2013, p. 120). Ademais, concernente a linguagem desses objetos técnicos, segundo a redação do site XP Educação, é nomeada como Código Binário. Ele está presente em celulares, TVs, computadores etc. Mas o que seria esse código binário? A XP Educação explica que
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O código binário é uma linguagem de máquina. Ele é usado para que as máquinas possam interpretar as informações que são enviadas por meio dos comandos – como um texto digitado no teclado, por exemplo, que se transforma em uma letra. (...) Ao observar o termo “binário”, podemos ter uma ideia do que ele é. “Bi” é igual a dois e “nário” significa número. O código binário é composto por dois números, o 0 e o 1. Isso significa que somente esses dois números são usados para representar todos os caracteres do computador, incluindo as letras, caracteres especiais e números. (XP Educação, 2022, n.p.) Então, o código binário é um alfabeto composto por duas letras, representadas pelos números 0 e 1. Isto acontece porque estes objetos técnicos, por serem máquinas eletrônicas, só conseguem fazer a leitura de duas informações, que é a presença e a ausência de energia. Embora possua apenas dois algarismos para se comunicar, este código é capaz de representar as mais diversas coisas utilizando uma ilimitada variação de combinações desses números. Retomando o seguimento dos ensaios mencionados no início deste tópico, nos primeiros dias na sala de ensaio, não me envolvi imediatamente em uma prática corporal. Como mencionado anteriormente, eu me sentava em frente ao projetor multimídia e tentava familiarizar-me com ele. Quando surgiam perguntas, eu as anotava para futuras pesquisas. Afinal, se eu planejava iniciar um processo criativo com esse objeto técnico, era essencial conhecê-lo e estabelecer um primeiro contato. Vale ressaltar que Simondon não desenvolveu sua teoria sobre os processos de individualização do objeto técnico com fins teatrais ou de criação cênica. No entanto, seus conceitos foram fundamentais para orientar minha prática na sala de ensaio, proporcionando uma nova perspectiva em relação ao objeto técnico, mais especificamente, ao projetor multimídia.
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Dando seguimento, após entender e refletir sobre alguns processos evolutivos e atravessamentos pelo qual o projetor multimídia passou, em outro dia de ensaio, resolvi ligar o projetor multimídia, ficar na sua frente de pé e deixar sua luz projetando em mim, sem nenhuma imagem. Deste modo, o primeiro insight surgiu: pensar a “projeção de imagem” de forma metafórica, por meio de perguntas direcionadas a mim. “Qual a imagem que a sociedade projeta em mim?”, “qual a imagem que a sociedade quer que eu tenha socialmente?” Dentre as variadas questões sociais que giram em torno dessas perguntas, as questões de gênero foram a que ficaram, pois elas me atravessam de um jeito muito sensível. Há quase um ano, me descobri enquanto uma pessoa não-binária, é algo bem recente para mim e pelo qual ainda me encontro em processo de transição. A priori, a ideia era criar um experimento cênico a partir de memórias de amigos que já partiram, como forma de homenageá-los. Abro um parêntese aqui para pedir desculpas àqueles que me olham lá de cima pela promessa quebrada. Mas conforme a interação entre mim e o objeto técnico se dava na sala ensaio, mais ainda ela me conduzia para esta temática de gênero. Meu corpo pedia por isso. No ensaio seguinte, resolvi escrever uma lista com frases que passei, boa parte da minha vida, escutando de familiares, colegas, professores e conhecidos quando meu padrão de comportamento, segundo eles, não era “condizente” com o gênero que escolheram para mim quando nasci, baseado no sexo que possuo. Ninguém chegou a me perguntar se eu me sentia confortável em ser mulher. Mas todo dia havia alguém opinando sobre como eu deveria ser, como deveria andar, falar, vestir. Em um dos encontros com meu orientador, refletimos sobre a estética presente em festas de chá revelação de bebês. Nessas festas, as cores azul e rosa são geralmente associadas ao sexo da criança que está para nascer, reforçando ideias socialmente utilizadas para perpetuar a noção errônea de que o gênero humano é binário e de que cores têm sexo, além de sugerir que a criança não tem controle sobre seu próprio corpo. Decidi incluir em minhas experimentações as cores azul e rosa, além de vídeos da
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Barbie, de homens em academias e jogadores de futebol - considerados socialmente como padrões de comportamento “feminino” e “masculino” com o objetivo de problematizá-los. A cada novo ensaio, novos objetos foram sendo inseridos em cena para experimentação, como por exemplo, um biombo, dois manequins vestidos com roupas brancas, um tecido branco, um refletor de luz, um notebook, um projetor multimídia, um Arduino2 e um sensor ultrassônico3. Alguns programas de mapeamento de imagem e design computacional também foram experimentados durante o processo criativo. A partir das várias experimentações realizadas por meio das interações entre o projetor multimídia e ator(e) em cena, as cenas passaram a ganhar vida, e a dramaturgia do trabalho foi nascendo por meio dessas interações realizadas com projetor multimídia. Vale ressaltar, que embora eu utilize variados objetos técnicos, o projetor multimídia é o único que não possui caráter de recurso técnico na cena, apenas os demais assumem este papel de recurso técnico. Quanto ao nome deste experimento, ele surgiu em um dos ensaios, quando estava experimentando algumas projeções em meu corpo. Enquanto a luz do projetor multimídia projetava imagens das cores rosa e azul em mim, lembrei que a linguagem das máquinas, seguem uma configuração binária. Então, assim como eu, aquele ser técnico ali, que estava interagindo não possuía liberdade de escolha. Pois ele foi programado para desempenhar uma função específica. Se você tentar utilizar códigos diferentes da linguagem do código binário nas máquinas, certamente dará “erro de configuração”. E na sociedade, uma máquina desconfigurada não serve para uso, é inútil se ela não realiza a função pela qual foi programada para fazer. Portanto, é vista como lixo, algo a ser descartado. É uma excelente analogia para ilustrar como a sociedade cisheteronormativa me vê por ser uma pessoa não-binária. Passei 25 anos de minha vida com pessoas cristãs tentando configurar meu gênero para que ele seja feminino, com a justificativa de ser “a vontade de Deus” para mim.
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2. É uma placa de prototipagem eletrônica que, segundo o site oficial do Arduino, projeta, fabrica e suporta dispositivos eletrônicos e software, permitindo que pessoas ao redor do mundo acessem facilmente tecnologias avançadas que interagem com o mundo físico. 3. Segundo o site Mecânica Industrial, é um dispositivo que utiliza alta frequência de som para medir a distância entre itens determinados.
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Tentaram me programar para ser heterossexual, pois era a sexualidade dita como “normativa”, condicionam minha existência a um binarismo pelo qual eu nunca fiz parte. A sociedade cisheteronormativa tenta nos moldar, nos robotizar com seus padrões de gênero, suas crenças homofóbicas e intolerantes. Quando não atendemos seus padrões, somos descartados como lixo ou nossas vidas ceifadas. Segundo a CNN Brasil, o Brasil ainda é o país que mais mata pessoas da comunidade LGBTQIAP+, só em 2022 este número chegou a 273 mortes. Por um ato de resistência, de direito à vida e liberdade de existência, nomeei este experimento cênico, autobiográfico, enquanto Código (Não)Binário.
4.2. Poética Cênica Intermedial O espaço escolhido para a apresentação do experimento cênico foi o Bloco do Departamento de Letras e Artes, na parte térrea do prédio, mais especificamente, onde ficam os dois corredores finais deste bloco, que juntos se configuram em um formato de “L”. Como o espetáculo faz uso de projeções de imagens técnicas, foi necessário colocar uma cortina para fechar o corredor de um lado para o outro, deixando o espaço menos iluminado possível e, ao mesmo tempo, demarcando o espaço que seria utilizado para a realização da prática e o espaço onde as demais pessoas do bloco poriam trafegar regularmente. Na cena, foram dispostos vários objetos espalhados de modo organizado no espaço. Usando o “L” como referência espacial do lugar, no corredor de sentido vertical, foi posto um projetor multimidia (Projetor 01) no chão, com sua lente apontada para a parede que fica à sua extremidade; um tecido branco preso na parede, a qual recebe a projeção das imagens técnicas; e uma câmera de celular (Câmera 01) presa a um suporte. No corredor de sentido horizontal, possui outro projetor multimídia (Projetor 02) no chão com sua lente apontado para a parede que fica a outra extremidade; e dois manequins encostados na parede, os quais junto com ela recebem as projeções das imagens técnicas. Há um terceiro projetor (Projetor 03) de mídias – porém este, diferente dos anteriores,
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é um modelo portátil – que foi posicionado no ponto de cruzamento dos corredores, a “quina” da parede externa da sala preta , com sua lente 4
aponta para a parede, em sentido diagonal e oposto à linha de projeção feita pelos outros projetores citados. Também foi usado um sensor ultrassônico preso na parede a qual será projetada as imagens técnicas desse terceiro projetor. Diante disto, podemos perceber que há três zonas onde ocorrem a interação entre o objeto técnico e ator(e) presentes no espaço – que aqui serão divididas em zona “A”, zona “B” e zona “C”. Neste sentido, a zona “A” fica no corredor onde o projetor 01 está; a zona “B” fica no corredor onde o projetor 02 está; e a zona “C” fica no espaço que se configura a interseção entre os dois corredores, ou seja, onde o projetor 03 está. Uma parte do público estará na zona “A” e a outra parte estará na zona “B”. De antemão, é bom ressaltar que quando a cena ocorre na zona “A”, a câmera 01 captura a imagem e o projetor 02 transmite em sua tela a cena em tempo real para os espectadores presentes na zona “B”. A mesma coisa acontece quando a cena passa a ocorrer na zona “B”. A câmera 02 captura a imagem e o projetor 01 transmite em sua tela a cena acontecendo em tempo real para os espectadores presentes na zona “A”. Na zona “C” é o que chamo de ponto zero ou ponto de equilíbrio, pois ela é a interseção entre as zonas “A” e “B”. Quando a cena acontece nela, tanto os espectadores da zona “A” quanto os espectadores da zona “B” poderão assistir a cena ao vivo, sem nenhum veículo de transmissão se pondo entre a ator(e) e eles. Seguindo para as cenas, o experimento começa com a cena inicial na zona “A”, onde imagens técnicas são projetadas em um tecido branco na parede. Um corpo vivo está envolto nesse tecido, reagindo aos movimentos e à respiração em resposta às imagens. Conforme a projeção avança, os movimentos do corpo aumentam até que ele se liberta do tecido. Agora livre, o corpo inicia um processo de autoconhecimento. No entanto, ao encontrar o projetor à sua frente, seus movimentos são influenciados pelas imagens projetadas. O corpo tenta se adequar às imagens, aludindo àqueles que buscam aceitação ao tentar se conformar a padrões comportamentais impostos pela sociedade, marcada por machismo, sexismo, transfobia e patriarcado. 456
4. Laboratório de Experimentações Cênicas do Curso de Teatro da UNIFAP.
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Após um tempo, o corpo anda em direção à luz do projetor, e prossegue seu caminho no espaço – ou seja, atravessa a zona “C” e segue em direção à zona “B”. Os espectadores que começaram vendo este corpo de forma virtual, agora passam a vê-lo de forma real. A partir da chegada desde corpo alterado pelo projetor 01 na zona B, inicia-se uma nova interação com o projetor 02, porém com mais dois corpos presentes em cena, os manequins. Conforme ele se aproxima dos manequins, seu corpo vai enrijecendo, até que de fato ele se torne um corpo endurecido. A partir de então, o projetor passa a adquirir um certo controle sobre esse corpo. Se o projetor anterior assumiu a função de configurar seus comportamentos. O projetor de agora tem o objetivo configurar sua imagem perante todos que estão ali o vendo. A reviravolta ocorre quando o corpo, antes rígido, inicia uma luta contra o processo de modelagem de gênero pelo projetor 02. Gradualmente, o corpo retoma o controle, causando uma falha no “cistema”, termo que alude ao sistema imposto por pessoas cisgênero para controlar corpos trans, gays, lésbicos e outros que não se encaixam em normas impostas socialmente. Enquanto o corpo recupera seus movimentos, ele se arrasta até ficar de frente para a câmera e o projetor. Em um gesto de liberdade, desliga o projetor e vira a câmera de cabeça para baixo. Então, se dirige ao outro projetor e faz o mesmo, deixando apenas o projetor 03 no espaço. Após desligar os projetores 01 e 02, o corpo, exausto, se dirige à zona C. Ao chegar em frente ao terceiro projetor, o corpo cansado tenta tranquilizar-se através da respiração. Virando-se de costas para o projetor 03, ele se aproxima da parede onde o sensor ultrassônico está preso. À medida que se aproxima, as imagens projetadas na parede começam a se agitar, e o corpo passa de um estado de cansaço para vigor, com movimentos fluidos surgindo dessa nova interação. Vejo a zona C como uma “habitação do indeterminado”, onde não há binarismo. Não é uma zona neutra, pois isso implicaria em indecisão entre uma coisa e outra. Na verdade, está além do conceito binário, sendo uma zona “não-binária”.
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Em seguimento à cena, o ator(e) anda em direção ao projetor portátil e assume seu controle. A partir disto, o corpo passa a ter domínio completo sobre a imagem que o projetam. Agora com as coisas sobre o seu controle, uma nova imagem é projetada no espaço, vindo do corpo do ator(e), quase como se estivesse saindo de dentro de si. Trata-se de um pequeno vídeo, um recado direcionado aqueles que me deram a vida, meu amado pai e minha preciosa mãe. Enquanto o vídeo é transmitido, sua imagem projetada vai caminhando pelo espaço conforme a mão que segura o projetor vai se movendo. O vídeo finaliza com um efeito de interrupção e desliga. Fim de apresentação. O experimento cênico Código (Não)Binário é caracterizado como um teatro multimídia, composto por cenas intermediais. Conforme apontado por Marta Isaacsson (2011) - e detalhado no tópico 2.2 -, quando a presença física de um corpo em cena se articula efetivamente com os efeitos de presença das imagens virtuais, cria-se uma tensão na percepção do espectador em relação à obra. Isso porque o que se percebe em cena é a tensão entre os limites do real e do virtual através da interconexão desses corpos. Há uma hibridização de mídias, e, consequentemente, um novo corpo se monstra em cena a cada interação feita nas zonas A, B e C. Em seu trabalho Corpo-imagem: o jogo do ator na cena intermedial, Gabriela Monteiro (2018) nomeia esta hibridização entre o corpo real e virtual enquanto “corpo-imagem”. Concernente a isto, ela afirma que Em espetáculos intermediais, a interação entre corpo virtual e corpo em carne e osso redimensiona o processo de criação do artista, que busca novas estratégias para se relacionar com imagens projetadas em tempo real e/ou pré-gravadas. Atravessado por imagens intermediais, o corpo do ator é expandido, não apresenta limites delineados; reinventa-se a todo momento, porque não fixa uma única forma. Em constante
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transformação, é corpo-imagem, multissensorial e fractal. (MONTEIRO, 2018, p. 259) Neste sentido, a introdução dos projetores multimídia nas cenas do experimento Código (Não)Binário interferiu diretamente na percepção do espectador em relação ao corpo do ator(e) interagindo em cena. No momento em que o corpo do ator provoca uma hibridização entre orgânico e tecnológico, a presença dos projetores foi decisiva para uma mudança significativa no modo de atuação, embora por vezes passe despercebida. (...) à transmutação do corpo do ator que, em tempo real, dialoga consigo mesmo e/ou com seu duplo digital por meio de uma tela interativa. Trata-se, em muitos casos, de um corpo híbrido. Nos espetáculos imersivos, a interação ocorre, ainda, entre imagem e espectador, que se apresenta como operador/agente de uma transformação permanente. (MONTEIRO, 2018, p.263) Monteiro (2018) apoia o uso de imagens em cenas intermediais para complexificar o espaço cênico e potencializar a dramaturgia da imagem, atribuindo-lhes novas funções como transmutação, percepção e memória. Embora este trabalho explore algumas percepções estéticas e poéticas com base em Isaacsson e Monteiro, não pretende abordar todas as questões estéticas do experimento. A ideia central é não impor limites de interpretação ou definir uma metodologia específica para o uso de projetores em cena, dada a variedade de abordagens nos processos de criação cênica. O que qualifica de forma diferenciada seu uso na cena intermedial são “ligação e corte simultâneos entre dois espaços: o virtual, o da imagem; e o atual, o lugar de sua exposição” (Bustros; Aurtenèche, 2008, p. 77, tradução minha). A especificidade do uso do dispositivo na cena intermedial
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contemporânea é dada por meio do corte e/ou da ligação entre os dois espaços, construídos a partir da interação entre as ações físicas do ator e as imagens digitais. (Monteiro, 2018, p. 264) Quando o corpo do ator atravessa diferentes zonas, não apenas as noções de espaço são tensionadas, mas também as de passagem do tempo, já que as imagens projetadas representam um registro do passado próximo. As interações entre as câmeras configuram diferentes tempos, o que se reflete na experiência tanto dos participantes quanto da plateia. Essas experimentações com objetos técnicos podem resultar em diversas formas de criação cênica, enriquecendo a experiência tanto para os realizadores quanto para o público.
5 \ CONCLUSÃO Neste sentido, o hibridismo e as relações que se estabelecem a partir do encontro entre o corpo virtual (Objeto técnico) e o corpo real (ator em cena), nos fazem repensar o corpo na cena contemporânea, visto que geram esse novo ser – o corpo imagem – e ampliam a experiencia estética do espectador. Vejo no objeto técnico, quando posto enquanto processo, um elemento disparador/potencializador de processos criativos cênico. Embora tenha muitas questões técnicas envolvidas aqui, acredito que a poética deste trabalho seja o fruto colhido das experimentações técnicas, estéticas, dramatúrgicas e conceituais realizadas em laboratório por meio do objeto técnico, que tornaram possíveis e concretos a construção deste trabalho.
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\ performação de espectadores: mediação cultural na região da baixada da Sobral Rylary Karen Targino da Silva Rylary Targino, Rio Branco (AC). Graduada em licenciatura em artes cênicas pela Universidade do Acre (Ufac), é atriz, dançarina, performer e brincante de cultura popular. Além de cantar, toca xequerê e pandeiro. Também utiliza a pintura como forma de expressão – um espaço de conexão, reflexão e inspiração. Escreve peças e textos que refletem sobre o contexto regional. rylarytargino@gmail.com
retorne ao sumário
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FICHA TÉCNICA Instituição Universidade Federal do Acre (Ufac) Tipo do curso Graduação Nome do curso Licenciatura em artes cênicas: teatro Período do curso 2018-2024 Estado Acre Título do trabalho Performação de espectadores: mediação cultural na região da baixada da Sobral Nome da autora Rylary Karen Targino da Silva Nome do orientador Professor doutor Leonel Martins Carneiro Número de páginas 20
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\ performação de espectadores: mediação cultural na região da baixada da Sobral
\ RESUMO A pesquisa se propôs a desenvolver ações de mediação cultural, a partir do Sistema Integrado de Performação de Artistas e Espectadores - SIPAE, na Associação de Arte em Movimento do Idoso de Rio Branco – AMIRB, em Rio Branco - Acre. Buscou-se compreender como a mediação cultural atua na relação espectador-espetáculo e também investigar, na prática, o desenvolvimento de uma ação de mediação. O projeto constituiu-se em acompanhamentos das atividades promovidas pela associação e com ações propostas pela pesquisa, que aconteceram no Teatro Barracão Matias, CRAS da Sobral e na Praça da Semsur. Utilizamos como referencial teórico as propostas de um Sistema Integrado de Performação de Artistas e Espectadores Leonel Carneiro (2021) e as Estratégias de mediação cultural para a formação de público de Ney Wendell (2014). Concluímos que a mediação cultural proporciona experiências ao espectador que possibilitam o acesso a linguagem do teatro e que a performação proposta evidenciou a importância da inclusão de temáticas regionais nas ações de mediação cultural. Palavra-Chave: Experiência, Mediação Cultural, Performação de espectadores
\ SUMMARY This research proposed to develop cultural mediation’s actions, based in the Sistema Integrado de Performação de Artistas e Espectadores - SIPAE, at the Associação de Arte em Movimento do Idoso de Rio Branco – AMIRB, at Rio Branco - Acre. We seek to understand how cultural mediation acts in the spectator-spectacle relationship and also to investigate, in practice, the development of a cultural mediation action. The project consisted of monitoring activities promoted by the association and actions proposed by this research at Teatro Barracão Matias, CRAS da Sobral and Praça da
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Semsur. We use as a theoretical reference the proposals for an Sistema Integrado de Performação de Artistas e Espectadores Leonel Carneiro (2021) and Estratégias de mediação cultural para a formação de público de Ney Wendell (2014). We conclude that cultural mediation provides experiences to the spectator that enable access to the theater’s language and that performação proposed highlighted the importance of including regional themes in the cultural mediation actions. Keyword: Experience, Cultural Mediation, Spectator performance
\ RESUMEN La investigación propuso desarrollar acciones de mediación cultural, basadas en el Sistema Integrado de Performação de Artistas e Espectadores- SIPAE, en la Associação de Arte em Movimento do Idoso de Rio Branco – AMIRB, Rio Branco - Acre. Buscamos comprender cómo la mediación cultural actúa en la relación espectador-espectáculo y también investigar, en la práctica, el desarrollo de una acción de mediación. El proyecto consistió en el seguimiento de las actividades promovidas por la asociación y de las acciones propuestas por la investigación, que tuvieron lugar en el Teatro Barracão Matias, CRAS da Sobral y Praça da Semsur. Utilizamos como referente teórico las propuestas de un Sistema Integrado de Performação de Artistas e Espectadores Leonel Carneiro (2021) y las Estratégias de mediação cultural para a formação de público de Ney Wendell (2014). Concluimos que la mediación cultural brinda al espectador experiencias que le permiten acceder al lenguaje teatral y que la performação propuesta destacó la importancia de incluir temas regionales en las acciones de mediación cultural. Palabra clave: Experiencia, Mediación Cultural, Performance del espectador
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1 \ INTRODUÇÃO O presente projeto de pesquisa se iniciou em 2020, impulsionado por questionamentos que surgiram a partir de ações realizadas com o Grupo de Teatro da Ufac - GRUTE1, em escolas de Rio Branco, Acre. Ao realizar as mediações culturais como parte do projeto de extensão citado, houve a percepção de que tais movimentações poderiam aproximar espectadores de produções artísticas que aconteciam na cidade, especialmente moradores que vivem em lugares periféricos. As inquietações relacionadas às metodologias que poderiam ser desenvolvidas, dentro das mediações, que se conectassem ao contexto regional do estado, começaram a surgir e possibilitaram a criação de um projeto de pesquisa dentro da Universidade Federal do Acre2. Ao longo da pesquisa buscamos estudar os múltiplos conceitos de formação de público, as metodologias realizadas e o motivo pelo qual se desenvolvem tais ações. Realizamos entrevistas com representantes de instituições e de coletivos de teatro de Rio Branco para poder compreender quais as estratégias de formação de público/espectadores adotadas por cada uma delas. Nos aprofundamos também em leituras sobre o José Marques de Sousa, mais conhecido como Matias, que é uma personalidade histórica importante do Acre, principalmente para a região da Baixada da Sobral. Destaca-se que a atuação de Matias é vasta e possuía diversas ações relacionadas com a formação de público. Assim, adentramos um pouco no contexto de ações de mediação cultural no Acre, evidenciando o como os espectadores rio-branquenses participavam dos espetáculos e como os fazedores de cultura enxergavam o espectador. A partir dos estudos anteriores, propomos discussões sobre a mediação cultural e buscamos desenvolver ações de mediação cultural na Baixada da Sobral3. Considerando o contexto cultural acreano, a palavra “formação” passou a ser questionada dentro da pesquisa, pois a relação histórica da população acreana com a mediação cultural vai além de formar espectadores: é uma troca de aprendizagens entre aqueles que estão
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1. O Grupo de teatro da Ufac é um projeto de extensão desenvolvido na Universidade Federal do Acre que visa a vivência teatral, a formação de plateias, a formação do professor-artista de teatro, técnicos e multiplicadores do teatro, através de cursos livres (vivências) e da montagem e circulação de espetáculos teatrais em espaços públicos. Mais informações podem ser obtidas em: https://www. teiaufac.com.br 2. O presente trabalho se originou do projeto de pesquisa de iniciação científica intitulado “Perfomação de espectadores de teatro: por um olhar sobre a mediação cultural no Acre”, desenvolvido nos anos de 20222023, na Universidade Federal do Acre, sob a orientação do Prof. Dr. Leonel Martins Carneiro e com financiamento do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq. 3. Bairro periférico da cidade de Rio Branco, Acre.
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como mediadores e aqueles que são mediados, dentro de uma proposta de “formação de público”. No Acre, segundo Marilia Gonçalves (2022) não há distinção de artista e mediador, os dois estão atuando no processo de mediação e espetáculo, e isso vemos acontecer historicamente na região, possibilitando assim uma troca diversa de saberes entre artista-mediador e espectador e entre os artistas-mediadores que estão aprendendo juntos como mediar. Em nossa pesquisa, compreendemos que as ações de mediação cultural foram desenvolvidas pelos grupos teatrais muito antes da chegada formalmente do conceito e do estudo da mediação cultural. A mediação, no contexto do estado do Acre, é fruto de um processo de resistência e luta, é uma troca de saberes. No Acre, por mais que se desconheçam estudos acadêmicos que tratem especificamente dessa temática, posso afirmar, a partir de meus estudos, que na prática, a mediação cultural existe. (...) O hábito de debater, no entanto, é uma característica do povo acreano, talvez herança dos movimentos sociais, ou mesmo da influência da tradição oral enraizada em sua cultura. O certo é que a presença dos debates após as apresentações é uma constante que empolga e enriquece artistas e plateia. Para exemplificar esse costume, podemos relatar a experiência vivida na Reserva Extrativista Chico Mendes, em Xapuri-AC (Imagem 105), quando, após a apresentação da peça Os Saltimbancos (1998), o próprio público propôs o debate, antes mesmo de ser convidado pelo grupo. Homens e mulheres fizeram perguntas ao elenco sobre os temas abordados na peça e, em seguida, iniciaram uma série de depoimentos, relacionando a exploração dos animais por seus patrões (em uma relação com as personagens de Os Saltimbancos) com a luta do
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homem da floresta há anos é explorado por seringalistas e madeireiros. (GONÇALVES, 2022, p. 89) O projeto Performação de espectadores: mediação cultural na região da Baixada da Sobral, em um primeiro momento da pesquisa, se desenvolveu por meio de estudos relacionados à mediação cultural, aos trabalhos teatrais desenvolvidos em comunidades e sobre o contexto histórico que a Baixada da Sobral está inserida. A minha inserção em grupos de cultura popular como Jabuti Bumbá4 e Maracatu Pé Rachado5, ainda nesse estágio inicial, foi fundamental, pois possibilitou a percepção do envolvimento do público com os espetáculos que trazem elementos regionais em seu repertório, auxiliando assim o estágio posterior da pesquisa. Na sequência, desenvolvemos ações de performação de espectadores a partir do Sistema Integrado de Performação de Artistas e Espectadores, proposto por Leonel Carneiro (2021), dentro da Associação de Arte em Movimento do Idoso de Rio Branco - AMIRB. A pesquisa se propôs a realizar ações que possibilitaram pensar uma metodologia de ação que evidenciasse os saberes regionais, e assim, desenvolver uma mediação cultural pensando nos moradores da região amazônica. Para tal empreitada, foi necessário conhecer a comunidade escolhida para desenvolver o projeto de pesquisa. O primeiro estágio da pesquisa de campo, que intitulamos de “Sensibilização”, consiste no processo de ouvir as demandas que o público alvo traz, em relação à sociedade, junto com a percepção do envolvimento com a arte que possui, conhecê-los, para, assim, partindo das experiências da comunidade, propor uma ação que possa se conectar com uma mediação cultural adaptada às especificidades do local. Encontramos, dentro da AMIRB, a contação de história como caminho para uma metodologia de mediação cultural. Percebemos que as aprendizagens, em relação com os idosos da associação, aconteciam de
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4. O grupo de cultura popular Jabuti Bumbá nasceu em 2005 na cidade de Rio Branco, Acre. Em suas apresentações são levantadas reflexões em defesa da floresta e fortalecimento da cultura acreana. 5. O grupo Maracatu Pé Rachado nasceu em 2017 na cidade de Rio Branco, Acre, inspirado na manifestação artística de cultura popular maracatu de baque virado, e segue realizando ensaios abertos, se apresentando em eventos e ministrando oficinas.
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forma mais presente a partir de diálogos de suas vivências. A última etapa do projeto foi desenvolver performances em contações de histórias para apresentar aos idosos, e, em seguida possibilitar um momento de rodas de diálogos dos quais suas vivências foram sendo ouvidas.
2 \ PRIMEIROS PASSOS: O ENCONTRO COM A COMUNIDADE DA BAIXADA DA SOBRAL Guiada pela temática de mediação cultural, iniciamos um levantamento bibliográfico para suprir as dúvidas em relação às ações de mediação cultural em Rio Branco, Acre. Trazendo na bagagem os aprendizados das pesquisas anteriores, nas quais coletamos informações a partir de representantes de instituições, grupos teatrais e fazedores de cultura que trabalham a relação espectador-espetáculo, acrescentamos estudos que envolviam atividades em comunidades, especialmente na Baixada da sobral, em Rio Branco, Acre, tais como A Pedagogia Social, de Maria Stela Santos Graciani, Teatro em comunidade, de Zeca Ligiéro, Memória e Sociedade - Lembrança de velhos, de Ecléa Bosi, Mediação no Acre, existe?, de Marília Bomfim e A cidade encena a floresta de Maria do Perpétuo Socorro Calixto. Nos primeiros anos de pesquisa, nos debruçamos sobre os conceitos de mediação cultural, livros e artigos como Ação Cultural e Ação Artística: territórios movediços de Maria Lúcia Pupo e Verônica Veloso e Estratégias de mediação cultural para a formação de público de Ney Wendell foram guias para se pensar estruturas da mediação cultural. Alguns outros termos e conceitos porém tomaram conta de nossas discussões e nos fizeram refletir sobre como a mediação cultural acontece em Rio Branco. Percebemos que alguns termos, como, por exemplo, “Formação de Público”, não contemplavam a mediação cultural que queríamos propor para a região rio-branquense. Encontramos no SIPAE uma linha de estudos e objetivos que melhor integra nosso pensamento em relação a mediação cultural e as ações de mediação, ou melhor, ações de performação, que são propostas dentro da pesquisa.
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Performa-ação é uma ação performativa que promove a experiência focada em um tempo presente, mas que não desconsidera as demais dimensões da temporalidade. Ao mesmo tempo, o prefixo per, de origem latina, indica que através de algo se forma uma ação. Pode-se pensar então que a forma se constitui, assim, através do meio cultural em que o espectador está inserido. Por outro lado, a própria palavra espectador demonstra que a ação busca um diálogo pessoal e intersubjetivo com o sujeito que vivencia a experiência. Diferente de outras abordagens o SIPAE tem foco na experiência, considerando não só o momento presente da oficina, da apresentação ou do debate, mas a experiência de vida desse espectador (assim como dos artistas/docentes/pesquisadores). A ação não está focada na quantidade de pessoas atingidas ou no hábito de consumo e passa a observar as qualidades de experiências possíveis a partir de um dispositivo disparador. (CARNEIRO, 2021, p. 69-70) A partir da proposta do Sistema Integrado de Perfomação de Artistas e Espectadores, propusemos ações de performação, escolhendo como campo a região da Baixada da Sobral, que é um bairro periférico de Rio Branco, Acre. A construção do bairro aconteceu através de invasões e ocupações de terras, a partir de pessoas que vieram ao município em busca de melhores condições de vida e, assim, vivendo à margem dos igarapés, rios, florestas, formando suas casas e suas famílias. O processo de ocupação das terras que hoje compõem o bairro Aeroporto Velho é resultante da expansão da fronteira com seus feitos a estrutura fundiária a partir da segunda metade do século
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XX, o crescimento populacional urbano da cidade de Rio Branco que aliado a falência dos seringais acreanos que transformaram-se em grandes fazenda e pastagens para a criação de gados em meados na década de 60 e início de 70 durante o governo de Francisco Wanderley Dantas que contribuíram com a intensificação da pecuária. Os seringueiros expulsos foram obrigados a se retirarem de suas terras a se dirigirem para outras localidades, sendo gradativamente levados para a zona urbana, ocasionando o surgimento de vários “apossamentos” “invasões” e ocupações de grandes hectares de terras que anos mais tarde constituíram grande números de bairros na capital acreana. (ACRENEWS, 2022.)
Imagem 1: Sede da Fazenda Sobral, 1953
Fonte: Site AcreNews
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O primeiro movimento que fiz dentro da comunidade se deu a partir de visitas aos espaços culturais da Baixada. Tal ação é atrelada ao princípio de conhecer a região em que a mediação vai ser realizada, para que assim os caminhos percorridos estivessem mais interligados com o público-alvo das ações. As visitas nos espaços culturais da Baixada da Sobral possibilitaram encontrar dois lugares para um primeiro contato: Teatro Barracão Matias e o Restaurante Popular José Marques de Sousa, ambos homenageiam o seringueiro, poeta e contador de histórias que residia no bairro. José Marques de Sousa, mais conhecido popularmente como Matias, é uma personalidade importante dentro da comunidade, presente na memória e nas histórias que os mais velhos contam. Matias movimentou a população ao redor da baixada, para lutar pelos seus direitos do povo, evidenciando as violências que sofriam, através da arte. Trazendo Matias para a pesquisa, pudemos notar que há muito tempo a contação de história está presente na baixada. José Marques de Sousa, o Matias, seringueiro e ativista cultural fez uma trajetória longa e diversificada, dos seringais do Vale do Juruá até sua participação em movimentos sociais, em Rio Branco (Acre), como teatrólogo. Utilizava o teatro para denunciar e reivindicar melhores condições de vida para as comunidades menos favorecidas. Homem seringueiro – castanheiro, extrativista – década de 1970 – Rio Branco – Acre. Matias e sua família, já moradores da “periferia”, baixada, Aeroporto Velho, Baía, Palheral, bairros de invasão. De ex-seringueiros, expulsos dos seringais pelos fazendeiros e seus jagunços. Conflitos das terras adquiridas por esses fazendeiros do sul do país dos antigos seringalistas. Transações consideradas “empreendimentos” e receberam incentivos do governo federal, a partir do governo Médici: ocupação da Amazônia. (FILHO, 2010)
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No planejamento, havia a possibilidade de trabalhar com dois grupos específicos de público: adolescentes e idosos. Foi com esse pensamento em mente que fui até esses lugares, porém as demandas em relação à comunidade são diferentes do nosso pensar quando adentramos nela. Ao visitar o Teatro Barracão Matias conheci um pouco sobre o espaço e, a partir das conversas com os funcionários, cheguei até a Associação de Arte em Movimento do idoso de Rio Branco, espaço onde aconteceu a parte prática da pesquisa.
3 \ SENSIBILIZAÇÃO Ao adentrar na comunidade, e a partir de visitas em diversos espaços públicos, encontramos a Associação de Arte em Movimento do Idoso de Rio Branco - AMIRB, na qual todas as ações de performação aconteceram com os participantes da associação e com a comunidade da região. A associação, como relata Raimundinha Antunes Dias da Silva, presidente da AMIRB, [...] surgiu da iniciativa de um grupo de pessoas com intuito de formalização e criação de uma associação que desenvolvesse atividades diretamente com os idosos que residem na região da baixada e em outras localidades de Rio Branco. A partir desse contexto, foi criada a Associação de Arte em Movimento do Idoso de Rio Branco (AMIRB), uma entidade sem fins lucrativos, que tem por objetivo principal, promover qualidade de vida social e emocional aos idosos, que residem em Rio Branco, inclusive na Baixada da Sobral, idosos estes oriundos de lares com problemáticas diversas, como violência psicologias, pobreza, negligências familiar e institucional. Ressaltando que o projeto avançou de 2016 a 2022, e hoje acompanha 243 idosos
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cadastrados, e mais de 600 pessoas, entre idosos e seus familiares. A associação oferece através da associação e parcerias atendimentos individuais e coletivos, dentre eles sociais, psicológicos, jurídicos, saúde, cultura, roda de conversa com temas relevantes e atuais, por exemplo educação alimentar direitos humanos, café da manhã, alfabetização, oficina de artesanato, teatro, dança, aula de violão, passeio e procurando sempre a valorizando suas histórias e habilidades fortalecendo os laços familiares e comunitário. (SILVA, 2023) A primeira etapa da prática na pesquisa ocorreu em forma de acompanhamento das atividades que estavam sendo realizadas na associação, tendo como principal objetivo conhecer os idosos, o espaço, entender melhor o que era a AMIRB e como se dava seu funcionamento em meio à comunidade. Como dito anteriormente, essa etapa foi chamada de Sensibilização, pois ao finalizar o projeto percebemos o quanto essa primeira etapa foi de extrema importância para o processo das intervenções acontecerem e uma recepção significativa ocorrer. Foi nesse espaço que adentramos melhor na associação, estabelecendo relações de afeto com os idosos, nos proporcionando o conhecer um pouco sobre cada um que estava ativamente participando da associação. O acompanhamento das atividades da AMIRB ocorreu semanalmente (aos sábados) entre os meses de janeiro a março de 2023. Nesse percurso, participei de reuniões de coordenação da associação, com o Centro de Movimentos Populares - CMP, estive presente no carnaval que a associação estava em parceria com o governo, levando o forró, participei dos ensaios para a apresentação na Arena da Floresta, de louvores, de dança, de alongamentos e de cantorias. Alguns dos idosos frequentadores da associação tentaram me ensinar a tocar instrumentos, então tive pequenas aulas de violão, cavaquinho e muito mais. Não pude participar dos eventos em outros municípios, em que a associação estava presente, por conta de agenda.
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As aprendizagens com as pessoas idosas na associação foram inúmeras: pude ouvi-los em reuniões realizadas para lutar pelos seus direitos; perceber a forma como estavam ligados à arte, junto com as instâncias de governo, estando à frente do forró, cantando, tocando cavaquinho, sanfona, teclado, triângulo e pandeiro. São muitos os idosos envolvidos, não citando ainda aqueles que somente vão para dançar, esses são apenas alguns exemplos de movimentações onde as aprendizagens foram sendo construídas com a associação. Uma situação interessante aconteceu logo que adentrei ao espaço, uma das recepções que eles fazem quando chega alguém novo é cantar uma música, perguntando sobre o nome: “Como é o seu nome/ eu preciso saber/Se dizer o seu nome/eu vou gostar de você”. Os idosos não conseguiam me chamar por Rylary, se enrolavam todos ao falar, então comecei a me apresentar como Karen, que é meu segundo nome, e esse sim conseguiram pronunciar, na associação sou conhecida por Karen. A relação dos idosos com a arte é constante, como eles mesmo dizem: é saúde.
Imagem 2:
Imagem 3:
Sensibilização no forró.
Sensibilização no forró (2)
Fonte: Acervo pessoal. Foto: Rylary Karen Targino da Silva
Fonte: Acervo pessoal. Foto: Rylary Karen Targino da Silva
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Imagem 4: Sensibilização no forró
Imagem 5: Sensibilização no forró
na AMIRB
da AMIRB na Praça da Semsur
Fonte: Acervo pessoal. Foto: Rylary Karen Targino da Silva
Fonte: Acervo pessoal.
Imagem 6: Sensibilização
Imagem 7: Aula de violão
na AMIRB
com os idosos.
Fonte: Acervo pessoal. Foto: Rylary Karen Targino da Silva
Fonte: Acervo pessoal.
A partir da sensibilização, os aprendizados e as relações de afetividade com os idosos foram sendo construídas. Com isso, notou-se a conexão que os idosos tinham com a contação de histórias, desenvolvendo assim o caminho para uma metodologia e para uma criação artística, voltadas para o contar histórias em cena, dentro da proposta de mediação cultural que iria ser proposta.
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4 \ O CONTAR HISTÓRIAS A partir da observação, realizada durante a sensibilização, as temáticas que guiaram as performances foram sendo construídas. A contação de histórias foi um dos elementos que mais se destacou, durante o percurso dentro da associação, os idosos contavam muitas histórias e havia sempre ensinamentos que estavam dispostos a oferecer. Partindo desse processo de escuta identificamos os assuntos que mais eram recorrentes, como os seres encantados da floresta, a relação com a família e o bairro que moram. Assim, os ensaios, a criação da dramaturgia, as músicas, a confecção dos objetos a serem utilizados, todo o plano das ações de performação foi sendo desenvolvido, a partir da interação com os idosos participantes do projeto. A contação de histórias é algo que está presente na comunidade, eu particularmente cresci ouvindo histórias sobre a Matinta Perera, Cobra grande, Mapinguari, histórias de como minha família foi sendo construída, como era antigamente, dentre várias outras histórias. Atualmente os idosos da associação relataram o quanto é difícil ser ouvido pelos seus filhos, netos, os mesmos não querem mais escutar histórias e muitas vezes os idosos optam por ficar em silêncio. O processo de contar histórias é um movimento de resistência, de acolhimento e de se conhecer o mundo em que vivemos. Sua importância vai muito além do que possamos imaginar, o conhecer e adentrar no vínculo de afeto, de conexão, de pertencimento, de se ver no mundo e de pertencer a ele conhecendo sua história, a história do lugar onde vive, das florestas, dos rios, da força da natureza, essa movimentação gera valorização perante a um passado por parte daqueles que as escutam e traz sentido ao presente. Adentrando na importância do contar histórias, durante o planejamento, elegemos três temas que os participantes da associação me presentearam em conversas. A primeira temática que percebemos surgir foi em relação a “Família”, que nesse coletivo sempre esteve presente nas atividades da
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associação, na qual o idoso sempre era incentivado a trazer toda a família e fazer essa interação com os demais participantes; Netos e netas dos idosos, ainda criancinhas, estavam presentes nos espaços dançando, cantando, tocando. E em suas histórias faziam questão de falar sobre sua família, trazendo lembranças e fazendo conhecer um pouco mais sobre sua história. A segunda temática é a “Comunidade”, muitas foram as reuniões realizadas para tratar sobre as políticas em relação à comunidade, em relação à pessoa idosa, em como poderiam ocupar artisticamente os espaços da região da Baixada da Sobral, saindo assim várias parcerias com o CRAS, com o Teatro Barracão e a Praça da SEMSUR, sempre com o intuito de interagir com a comunidade e levar questionamentos em relação à pessoa idosa. A terceira temática versou sobre os “Seres encantados da floresta”, foi uma das temáticas que surgiram por justamente os idosos terem muitas histórias sobre a floresta. Muitos deles viveram em regiões de mata e resgatar essas vivências trazendo para criações artísticas, mostrando em uma outra perspectivas suas histórias, valoriza os saberes e fazeres da comunidade da Sobral. Ficou evidente que a percepção dos idosos é que as histórias sobre as vivências de cada um, de maneira geral, não são valorizadas no meio em que estão vivendo. Dessa maneira, realizar a pesquisa e proporcionar um espaço para os idosos contarem suas histórias é uma forma de resistência e de compreender processos relacionados à história cultural da Baixada da Sobral.
5 \ PERFORMAÇÃO: AÇÕES DESENVOLVIDAS NA AMIRB Desenvolvendo o planejamento das intervenções seguimos para as performações de espectadores. A relação de afetividade e companheirismo construída com os idosos em meses anteriores foi essencial para a recepção dos mesmos em relação às propostas que foram oferecidas a eles. Notou-se que, por nos conhecermos, os idosos
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6. Rafael Wöss é graduado em Letras, pelo Instituto Federal de São Paulo (2017), graduado em Artes Cênicas: Teatro, pela Universidade Federal do Acre, e estudante do Mestrado em Artes Cênicas, pela Universidade Federal do Acre. Atua em experimentações por espaços da cidade, como palhaço malabarista de rua e como brincante, no grupo de cultura popular Jabuti Bumbá, no grupo Maracatu Pé Rachado e no Grupo Brincante de Histórias.
estavam mais abertos a um diálogo e que as rodas de conversa, de grupo e
7. Espetáculo do Grupo Brincante de Histórias. O grupo foi criado por Rylary Targino e Rafael Wöss, em 2023, dentro do curso de Artes Cênicas:Teatro da UFAC, trabalhando com contação de histórias, por meio da performance, trazendo aspectos da cultura popular, da oralidade e do brincar.
construída estava presente nas intervenções também: dançar com os
individual se tornaram trocas mais presentes e afetivas. Ao todo foram quatro intervenções propostas dentro do Programa de Ações de Performação. Em relação às contações de histórias, duas delas são de minha autoria, uma é pertencente ao Matias e a outra é de minha autoria junto com Rafael Wöss6. A participação dos idosos foi sendo construída em todas as intervenções, na troca de diálogos e contação de histórias, estiveram à frente de filmagens e fotografias de algumas das intervenções. Os espaços dados para realizar as ações foram interessantes: estava acontecendo o forró em dois dias de intervenção, no outro foi apenas a ação em si, e o último foi no dia de comemoração do dia das mães. A rotina idosos e com os netos deles, cantar, resolver algumas coisas da própria associação, participar das atividades do dia e, quando era minha hora, contar histórias. O primeiro dia de intervenção aconteceu no Teatro Barracão Matias, com a contação de história intitulada Uma viagem encantada pela floresta7, que abordava histórias regionais fortemente ligadas à floresta. A temática desse dia de intervenção foi sobre os seres encantados da floresta, por ter conexão com as vivências dos idosos, que em boa parte da vida viveram dentro da mata. A história contada era guiada pela personagem Ana, personagem que eu interpretava, e Rafael Wöss, estava em cena também, trabalhando na sonoridade do espetáculo, com o palhaço dele, Pimpompum. A dramaturgia criada, junto com Rafael, vem desse contato com os idosos no processo de sensibilização e de outras experiências em diferentes espaços. A história se passa com Ana conhecendo a floresta, os seres encantados da floresta, a partir de um momento familiar de realizar a refeição junto com seus avós e primos. Quando eu era criança eu vivia na casa da minha avó, ela morava numa casa de madeira, em frente
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ao igarapé, que quando chovia alagava tudo [...] ao redor da casa da minha avó tinha uma floresta gigantesca, tão linda.8 A região da baixada da Sobral é um dos lugares em que os moradores são mais atingidos pelas cheias do rio Acre9 e trazendo essa contação de história percebemos a aproximação dos idosos em relação ao que estava sendo apresentado. Ao final do espetáculo se propôs uma roda de conversa, onde os idosos contaram histórias regionais da floresta. O processo de conversar, contar histórias, é um passo importante e pouco acontece com os idosos, houve alguns estranhamentos na hora da apresentação por parte dos idosos, mas, por ter tido esse contato na etapa de sensibilização, os idosos permaneceram no processo de recepção, interagindo, rindo, e, às vezes, com feições sérias.
Imagem 8: Primeiro dia de
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encantada pela floresta”
Teatro Barracão Matias.
no Teatro Barracão Matias. (2)
Fonte: Acervo pessoal. Foto: Luar Maria Fernandes
Fonte: Acervo pessoal. Foto: Luar Maria Fernandes
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8. trecho de dramaturgia de autoria de Rafael Wöss e Rylary Karen Targino da Silva, da peça intitulada Uma viagem Encantada pela floresta. 9. Ao longo da última década o Estado do Acre vem sofrendo cheias extremas na bacia do Rio Acre com prejuízos locais e regionais de grande vulto. Os estudos de LATUF (2010) indicaram que o avanço do desmatamento agravaria a magnitude das cheias do Rio Acre. Mais informações em: https://files.abrhidro.org. br/Eventos/Trabalhos/4/ PAP019370.pdf
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10. Dramaturgia de autoria de Rylary Karen Targino da Silva
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Teatro Barracão Matias. (3)
Teatro Barracão Matias. (4)
Fonte: Acervo pessoal. Foto: Luar Maria Fernandes
Fonte: Acervo pessoal. Foto: Luar Maria Fernandes
No segundo dia de intervenção a temática era sobre a família, trouxe então uma contação de história com música, a dramaturgia de minha autoria, colhendo as histórias que a minha bisavó me contava, e musiquei algumas partes. um certo dia a cantar minha bisavó me olhou/e através desse olhar uma história surgiu no ar/de como no rio acre ela veio parar A história que eu vou contar vem de um navio em alto mar/onde minha bisavó ana veio a navegar/ nesse navio seu olhar era de mar/pois só havia água a se olhar/todos os dias um boi morria para a tribulação se alimentar/dias e dias a navegar / Qual o motivo de se aventurar?/minha bisavó ana estava a fugir de uma guerra que no Brasil estava a se achegar/e foi então que ela seu pai e sua irmã gêmea no rio acre veio se refugiar/época distante/ em que nossa árvore seringueira /seu leite estava a jorrar/e uma multidão inteira viera lhe explorar.10
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A intenção era contar a história para cada idoso presente na associação, um por um, em uma troca de histórias, mas, ao perceber o espaço, que estava acontecendo o forró, a decisão no momento foi de contar a história para todas as pessoas que estavam ali. Então, a história foi contada para todos, dancei com os idosos, inclusive com a neta de um deles, e depois sai com a minha caixa de contação de histórias, chamando idosos para conversar na praça da SEMSUR. Ao todo foram quatro idosos que participaram, conversamos sobre sua família, trocamos histórias e nesse dia começou a surgir histórias do bairro. Ao terminar, concluímos com todos cantando parabéns para um idoso que estava fazendo aniversário no dia. O terceiro dia de intervenção foi a partir da temática sobre a comunidade do bairro da Sobral e aconteceu no CRAS da Sobral. Para este dia, a
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Fonte: Acervo pessoal. Foto: Rafael Wöss Correa
Fonte: Acervo pessoal. Foto: Luar Maria Fernandes
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Fonte: Acervo pessoal. Foto:Rafael Wöss Correa
Fonte: Acervo pessoal. Foto: Rafael Wöss Correa
contação de história é de autoria do poeta seringueiro Matias, intitulada O Tatu. Quem é o tatu? O tatu é um bichinho que vive da terra. Como minhoca, cupim, formiga e todas as coisas que nascem na terra ou moram na terra. Tem até gente que diz que ele não é de carne: é batata. Sua casa é feita na terra que de início a gente até acha que ele vai para o centro da terra, depois volta e faz sua dormida bem razinha, qualquer barulho ele entra para o fundo da terra, ou melhor, para o centro de sua casa. Dessa maneira fica muito difícil de se matar ele. O tatu canastra é um animal muito conhecido no Amazonas, mesmo sem ofender ninguém, está sendo extinto. A sua extinção deve-se às derrubadas- com a chegada das brocas nas matas acreanas, o tatu que é muito medroso ao sair de sua casa topa com a derrubada ele volta para o centro do chão depois o barulho da moto-serra ele entrou
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ainda mais. Aí veio o fogo e foi o fim do tatu, o cemitério do tatu é o centro do chão das derrubadas (MATIAS, s/d) Matias foi uma personalidade muito importante para a comunidade, seu processo de contar história era de resistência e luta pelos direitos do povo. Neste dia, antes de contar as histórias, fui conversar com os idosos, novamente com o auxílio da caixa de histórias. Participei do forró, da atividade de educação física e do coral. Depois, fui chamando os idosos para a praça, para conversarmos sobre o bairro, todos os quais conversei conheceram o Matias, e tinham histórias interessantes para contar sobre o bairro. Teve um idoso que inclusive conheceu o meu bisavô, ele e meu bisavô foram os primeiros moradores da região da Baixada da Sobral, informação esta que eu não sabia, ele tinha tantas histórias que pediu para que fosse até a casa dele um dia para terminar de contá-las. Foi um dia que, apesar das várias atividades, consegui contar a história do Tatu ao final da manhã, para as pessoas que restaram no espaço.
Imagem 16: Terceiro dia de
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performação no CRAS da Sobral
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Fonte: Acervo pessoal.
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Fonte: Acervo pessoal.
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Fonte: Acervo pessoal.
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No quarto e último dia da intervenção, retomamos a relação com a floresta e seus seres encantados com a contação de história da Matinta Pereira, que aconteceu na praça da Semsur, local da festividade do dia das mães. A história da Matinta Perera foi criada a partir de uma história que minha avó me contou. Com elementos musicais, contei a história com o apoio sonoro de Rafael Wöss, quando estava quase finalizando a manhã. Houve forró, processos com dança, sorteios, café da manhã e muito mais, em comemoração ao dia das mães que a associação promoveu. Ao contar a história pude perceber a energia dos idosos e o como a interação foi sendo construída. Eles conheciam a história e atentamente escutaram. Ao final, vieram me cumprimentar e até mesmo uma neta dos idosos os acompanhou, foi um momento interessante, mesmo não sendo a proposta desse dia houve uma pequena troca de histórias. Com isso foi percebido que a partir das ações de performação anteriores o espaço de abertura para a contação de histórias se estabeleceu, os idosos se sentiram confortáveis para contar mais histórias.
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Imagem 20: Quarto dia
Imagem 21: Quarto dia
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Fonte: Acervo pessoal.
Fonte: Acervo pessoal.
6 \ REFLEXÕES SOBRE UMA METODOLOGIA DE MEDIAÇÃO CULTURAL REGIONAL A AMIRB possui diferentes produções artísticas e, ao participar de suas atividades, a percepção dos temas norteadores de seus espetáculos chamou a atenção, por serem produções voltadas para o forró, para dança, cortejos etc. No primeiro contato com os idosos, na sensibilização, notou-se que as histórias que eles contavam poderiam ser transformadas em dramaturgias para peças teatrais, as quais poderiam provocar várias discussões interessantes juntamente com a população. A metodologia que foi se construindo com os idosos tem sua base em um conjunto de elementos: o contato com o grupo de cultura popular, as várias formas de produção e realização de atividades artísticas vindas dos idosos da associação e, principalmente, a contação de histórias. Pensando em uma metodologia de mediação cultural a partir da contação de histórias pudemos evidenciar o processo de valorização do contexto regional, que aproxima o público-alvo da arte a partir de elementos vindo dos próprios espectadores e valoriza as temáticas voltadas para a
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Amazônia. O projeto de pesquisa buscou desenvolver uma metodologia que mais se aproximasse da população acreana, com os assuntos que mais foram evidenciados pelos idosos, e, a partir das performações, estabelecer formas de mediar a arte entre eles. A associação possuía um processo de construção artística interessante, que trazia elementos que os idosos construíram há muito tempo, auxiliando assim a pensar em toda a construção dos elementos que compuseram a mediação, ou melhor, performação. Pudemos notar o passado e o presente funcionando em harmonia. Em uma das intervenções, idosos confidenciaram que não são escutados pelos seus filhos, netos, e que as histórias que estavam me contando fazia um bom tempo que não relembravam. Assim, trazer essas histórias para cena, em performances, trouxe uma participação presente dos idosos após as apresentações, pois eles contaram outras histórias que lembravam e, ao final, a apresentação motivou o momento de rodas de contação de histórias. Todo o percurso da pesquisa foi necessário e importante para que as propostas de mediação pudessem acontecer. Assim, refletindo sobre uma metodologia de mediação cultural que traga o contexto regional, pudemos evidenciar a contação de história como um dos caminhos a serem trilhados para construir mediações que aproximem a população de espetáculos teatrais.
7 \ CONCLUSÃO Adentrar na comunidade a partir de pessoas idosas traz campos em relação a resistência da população em diversas instâncias na sociedade. O trabalho que realizamos com as performações na AMIRB fez emergir a história de vida dos participantes da associação e, a partir desse processo, possibilitar criações artísticas. Produzir a partir dessas histórias, de vivências, criar músicas, figurinos, adereços, foi uma forma de performação artística que só foi possível desenvolver pela movimentação
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da recepção, de sensibilização do espaço, proporcionando resultados significativos, positivos, e relevantes, em relação a construir, com os idosos, uma percepção artística mais abrangente. A junção da produção e recepção foi um dos elementos mais importantes dentro da pesquisa, pois guiou todo o percurso, fazendo dar certo as intervenções e suas recepções. Trazer a arte e as vivências das pessoas que carregam a cultura regional em sua existência potencializou as ações de resistência que a associação vem construindo e persistindo em relação a arte, as políticas públicas, etc. A mediação cultural presente na própria associação é algo potente, sendo evidenciado pela energia e vida, que transmitem na dança, no tocar, no cantar e no contar histórias para toda a comunidade. Refletir sobre o percurso da pesquisa na AMIRB e na comunidade se torna importante para os processos do teatro e mediação cultural na cidade, oportunizando ligações entre a comunidade e espaços culturais e artísticos.
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\ REFERÊNCIAS AcreNews, Páginas históricas acreanas, no Facebook, conta a história completa da Baixada da Sobral, 2022. Disponível em:https://acrenews.com. br/paginas-historicas-acreanas-no-facebook-conta-a-historia-completada-baixada-da-sobral/. Acesso em 20/03/2024. ALMEIDA, Débora de. Matias: linguagem e teatro popular do Acre. Dissertação (mestrado) - Universidade Federal do Acre, Rio Branco, AC, 2019. BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: lembranças de velhos. Companhia das Letras, 1994. CARNEIRO, Leonel Martins. Mediação cultural e teatro: História, experiências e propostas para um sistema integrado de Performação de Artistas e Espectadores. Textura - Revista de Educação e Letras, V23, N. 54, 2021. Disponível em http://www.periodicos.ulbra.br/index.php/txra/ article/view/6232 . Acesso em 20/03/2024. DOI: 10.29327/227811.23.54-4 GRACIANI, Maria Stela Santos. Pedagogia social. São Paulo: Cortez Editora, 2016. GONÇALVES, Marilia Bomfim Melo. Mediação Cultural no Acre, Existe? A ação cultural e sua influência na experiência do espectador teatral. Orientador: Leonel Martins Carneiro. 2022. 113 f. Dissertação (Mestrado) – Curso de Artes Cênicas, Universidade Federal do Acre, Rio Branco, Acre, 2022. Disponível em: https://ppgacufac.com.br/dissertacoes. Acesso em: 20/03/2024. FILHO, Francisco Gregório. Matias, o seringueiro poeta. Além da Letra, 2010. Acesso em 20/03/2024. Disponível em: http://www.celpcyro.org.br/ joomla/index.php?option=com_content&view=article&id=53:matias-oseringueiro-poeta-&catid=40:depoimentos
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\ o BAILE CÚIER: a cultura ballroom e os corpos dissidentes dos padrões cis heteronormativos na criação de uma encenação Sidnei Mauro de Melo Junior Sidnei Mauro de Melo Junior, Santa Maria (RS). Graduado em artes cênicas pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), é diretor teatral e artista-pesquisador cúier dedicado à encenação e a práticas teatrais acessíveis a pessoas cúiers e/ou com deficiência. Os seus temas de interesse surgiram durante a graduação e em grupos de pesquisa, como o Laboratório de Criação [Lacri/Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq)] e o Teatro Flexível: práticas cênicas e acessibilidade (CNPq/UFSM). sidnei.junior@acad.ufsm.br retorne ao sumário
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FICHA TÉCNICA Instituição Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) Tipo do curso Graduação Nome do curso Artes cênicas – direção teatral Período do curso 2020-2023 Estado Rio Grande Do Sul Título do trabalho O BAILE CÚIER: a cultura ballroom e os corpos dissidentes dos padrões cis heteronormativos na criação de uma encenação Nome do autor Sidnei Mauro de Melo Junior Nome da orientadora Professora doutora Mariane Magno Ribas Número de páginas 20
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\ RESUMO Neste artigo, apresento de modo sintetizado o conteúdo de meu TCC. Ele teve como principal objetivo a utilização da cultura Ballroom e os corpos dissidentes dos padrões cis heteronormativos na concepção da encenação O BAILE CÚIER, que foi dirigida por mim no Curso de Artes Cênicas Direção Teatral da Universidade Federal de Santa Maria no ano de 2023. Entre os referenciais teóricos destaco Pelúcio (2014), Bertolotti e Medeiros (2019), Santos (2018) e Dos Santos e Scudeller (2020). Para a realização deste artigo, selecionei quatro das oito cenas da encenação para exemplificar como o processo de criação tornou possível a junção dos dois conteúdos principais da pesquisa para a construção de O BAILE CÚIER. Palavras-chave: Encenação; Cultura Ballroom; Corpos dissidentes.
\ ABSTRACT In this article, I summarize the content of my TCC. His main objective was to use Ballroom culture and dissenting bodies from cis heteronormative standards in the conception of the production O BAILE CÚIER, which was directed by me in the Performing Arts Course in Theater Direction at the Universidade Federal de Santa Maria in 2023. To carry it out, a project was created based on methodological guidelines that served as a guide for the entire TCC. Among the theoretical references I highlight Pelúcio (2014), Bertolotti and Medeiros (2019), Santos (2018) and Dos Santos and Scudeller (2020). To carry out this article, I selected four of the eight scenes from the production to exemplify how the creation process made it possible to combine the two main contents of the research for the construction of O BAILE CÚIER. Keywords: Staging; Ballroom culture; Dissident bodies.
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\ RESUMEN En este artículo, resumo el contenido de mi TCC. Su principal objetivo fue utilizar la cultura Ballroom y los cuerpos disidentes de los estándares heteronormativos cis en la concepción de la producción O BAILE CÚIER, que fue dirigida por mí en Curso de Artes Cênicas Direção Teatral de la Universidade Federal de Santa Maria en el año 2023. De los referentes teóricos destaco Pelúcio (2014), Bertolotti y Medeiros (2019), Santos (2018) y Dos Santos y Scudeller (2020). Para realizar este artículo seleccioné cuatro de las ocho escenas de la producción para ejemplificar cómo el proceso de creación permitió combinar los dos contenidos principales de la investigación para la construcción de O BAILE CÚIER. Palabras clave: Escenario; Cultura Ballroom; Cuerpos disidentes.
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1 \ INTRODUÇÃO Este artigo traz um recorte do Trabalho de Conclusão do Curso intitulado O BAILE CÚIER1: A CULTURA BALLROOM2 E OS CORPOS DISSIDENTES DOS PADRÕES CIS HETERONORMATIVOS NA CRIAÇÃO DE UMA ENCENAÇÃO3 do Curso de Artes Cênicas Direção Teatral da Universidade Federal de Santa Maria. Neste TCC mobilizei minhas pesquisas estéticas e teóricas para o processo de criação da encenação O BAILE CÚIER, no ano de 2023 que foi dirigida por mim e construida a partir dos estudos teórico-práticos sobre a cultura Ballroom e os corpos dissidentes dos padrões cis heteronormativos. Para isso, contei com um elenco formado por pessoas LGBTQIAP+, as quais suas corporeidades e vivências pessoais também serviram como base para a criação da encenação. No presente artigo não será possível expor o conteúdo integral do TCC. Por este motivo, buscarei destacar as cenas que representam mais explicitamente a criação poética da cena, entre a estrutura da cultura Ballroom e os corpos dissidentes dos padrões cis heteronormativos. Nas quatro cenas selecionadas para este trabalho, buscarei descrever seus conteúdos, relacionando-as às referências da pesquisa, a revisão das metodologias e reflexões que foram produzidas durante o processo de criação da encenação O BAILE CÚIER. Antes, acredito ser necessário falar sobre a dramaturgia da encenação de modo a contextualizar alguns conceitos e como a encenação se organiza.
2 \ A DRAMATURGIA A dramaturgia foi criada coletivamente (ARAUJO, 2009, p.49), utilizando conteúdos do Teatro do Real (MENDES, 2017, p.31) como relatos, levantamento de dados e situações sociais em que a imposição dos padrões cis heteronormativos se apresentam aos corpos de pessoas
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1. Este termo é uma antropofagização do termo “queer” utilizado para definir pessoas que extrapolam dos padrões cis heteronormativos. A escolha pelo uso do termo “cúier” se justifica, nas palavras de Pelúcio: “Também em português “queer” nada quer dizer ao senso comum. Quando pronunciado em ambiente acadêmico não fere o ouvido de ninguém, ao contrário, soa suave (queer), quase um afago, nunca uma ofensa. Não há rubores nas faces nem vozes embargadas quando em um congresso científico lemos, escrevemos ou pronunciamos queer. Assim, o desconforto que o termo causa em países de língua inglesa se dissolve aqui na maciez das vogais que nós brasileiros insistimos em colocar por toda parte.” (PELÚCIO, 2014, s.p.) 2. Movimento que surge em guetos da cidade de Nove Iorque a partir da década de 1960, criada por pessoas cúiers negras e latinas que precisavam de um espaço seguro para expressar suas performatividades dissidentes dos padrões cis heteronormativos. Deste movimentos surgem os eventos chamados de balls em que essas pessoas competiam entre si em diversas categorias temáticas.
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3. Ver completo em: https://repositorio.ufsm. br/handle/1/31242
LGBTQIAP+. Como não poderia ser diferente, a cultura Ballroom também
4. A cultura Ballroom assumiu termos e posições que remetem a estrutura familiar padrão e assim, partindo dessa intenção foram criadas as houses. Nessa outra construção familiar, pessoas cúier podem ocupar funções que lhe foram - e ainda são - negadas pelo padrão social. Seguindo nesse mesmo sentido da criação das houses, a cultura Ballroom também cria figuras, entre elas, a materna e a paterna (SANTOS, 2018, p. 18).
estruturação das cenas entre outras inúmeras contribuições. Além disso,
5. É a expressão drag de Carlos Márcio José da Silva, nascida na década de 1980 em boates de São Paulo. A drag é considerada a criadora do Bate Cabelo, que é uma ação cúier e expressão tipicamente brasileira em que são feitos movimentos de cabeça que provocam o balanço dos cabelos no ritmo das batidas da música. 6. Silvetty Montilla é considerada junto de Marcia Pantera, uma das maiores drag queens do Brasil - conhecidíssima como a noite de Paris. Silvetty é atriz, repórter e apresentadora de boates paulistanas babadeiras e já comandou o seu próprio reality show drag, o Academia de Drags.
influenciou na criação da dramaturgia da encenação como nas músicas e vídeos utilizados, as categorias que serviram de base para a criação e alguns conteúdos dramatúrgicos foram criados a partir de improvisações que foram trabalhadas e integradas no texto da cena. Com tais referências e materiais produzidos, selecionamos e criamos a dramaturgia da encenação. Por essa via, foram utilizadas as categorias e a organização familiar presente na cultura Ballroom, e além disso utilizei como referência duas figuras icônicas da cultura cúier brasileira para criar as duas Houses4 que competem entre si na encenação. Na encenação, as chamamos de Casa Pantera e Casa Montilla, buscando evocar duas personalidades cúiers brasileiras, sendo elas Marcia Pantera5 e Silvetty Montilla6. Desse modo, em O BAILE CÚIER, temos a encenação de uma disputa entre a Casa Pantera, que é formada por Divona Pantera e Burnin Pantera, e Casa Montilla, composta por Banks Montilla e Pussyvinny Montilla. Além dessas quatro, temos Natasha Caldeirão de Albuquerque Pampi de Gaspari e Ariel Vêkanandre Stephany Smith Bueno de Ha Ha Ha de Raio Laser de Bala de Icekiss, que são as apresentadoras e são responsáveis por introduzir, guiar e explicar as categorias ao público, evocando a figura do Chanter ou Host (Anfitrião e Narrador) presentes também na cultura Ballroom. Em O BAILE CÚIER as Casas Montilla e Pantera competem em diversas categorias inspiradas pela cultura Ballroom, entre elas estão: Voguing, Runway, Face e Realness. As categorias citadas foram utilizadas criativamente para a criação das cenas que irei apresentar neste artigo. Junto destas apresento a seguir o roteiro das cenas: - Cena 1. INTRO - Cena 2. A CATEGORIA É: CINCO ELEMENTOS - Cena 3. A CATEGORIA É: PASSARELA - Cena 4. A CATEGORIA É: BATEKABELLO, BATEKOO E BATEBOKA
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- Cena 5. A CATEGORIA É: FACE - Cena 6. A CATEGORIA É: LIPSYNC - Cena 7. A CATEGORIA É: REALIDADE - Cena 8. RESULTADO FINAL As cenas que serão apresentadas e refletidas a seguir, serão: cena 2. A CATEGORIA É: CINCO ELEMENTOS, cena 3. A CATEGORIA É: PASSARELA, cena 5. A CATEGORIA É: FACE e cena 7. A CATEGORIA É: REALIDADE.
3 \ CENA 2. A CATEGORIA É: CINCO ELEMENTOS Nesta cena, as personagens se apresentam com movimentos retos, gestos precisos e passos firmes com elementos coreográficos da dança voguing, como posar para uma foto, caminhadas estilosas e “servindo” um rosto digno de capa da revista Vogue, de onde vem seu nome e principal inspiração para a dança (SANTOS, 2018, p.18). Sobre ela: Segundo o relato do dançarino e coreógrafo Willi Ninja (1961-2006), em “Paris is Burning”, considerado um dos precursores da Vogue – esta dança mistura pantomima, trejeitos de manuseio de estojos de maquiagem, passos de break, movimentos de ginástica, hieróglifos do Egito antigo, desfile de moda e imagens de poses de revistas, articulando linhas corporais sinuosas ou retilíneas e posições rebuscadas. Segundo Willi Ninja, o nome da dança foi tirado da revista “Vogue”, porque alguns dos passos são das poses que vemos na revista. (Paris is Burning, LIVINGSTON apud BERTE; MARTINS, 2014, 869) A cena que utilizamos criativamente a dança voguing, na dramaturgia da encenação recebe o nome de A CATEGORIA É: CINCO ELEMENTOS, fazendo alusão aos cinco elementos da dança voguing, sendo eles: hands, cat walk, duck walk, floor performance e spin and deep. Nesta cena, acontece uma
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batalha coreografada ritmada pelo instrumental do remix da música Break my Soul da Beyoncé (2020) que, é importante dizer que possui o sample da música Vogue da Madonna (1992).
Imagem 01: Elemento deep por Banks Montilla - Cena A CATEGORIA É: CINCO ELEMENTOS
Fotógrafo: Paulo Baraúna
Durante a segunda parte da coreografia, acrescenta-se à música, interpolações de áudios com frases repetitivas que colocam em cena uma figura masculina opressora, homofóbica e violenta. Essa figura, que se integra à cena pelos áudios, também evoca memórias de um garoto impedido de dançar, de modo insistente pelo pai que diz: “Eu não quero filho meu dançando igual viadinho”; “Eu achei que tava criando um homem”; “Eu vou te tirar daí, moleque”.
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Esses personagens, pai e garoto, foram inseridos na dramaturgia a partir do processo de improvisação com o elenco, que utilizou como referências para a criação da cena relatos pessoais, o filme Billie Elliot (2000)7 e o repertório da dança voguing. Ao fim desta cena, as Casas Montilla e Pantera, com o domínio técnico da dança voguing, adquirido pelo processo de criação, colocam em cena o sambar8 sobre a imposição dos padrões cis heteronormativos representada pelos áudios opressores.
4 \ CENA 3. A CATEGORIA É: PASSARELA Na cultura Ballroom, a categoria Runway exige que as competidoras desfilem sua criatividade, estilo e habilidades de moda, criando propostas de roupas de luxo que seguem um tema específico. Além disso, os looks criados também se referem a apropriação dos corpos negros e latinos cúiers sobre a moda da alta costura mundial. Esta referência e apropriação são fundamentais na cultura Ballroom, pois a maioria dos nomes das Houses reproduz o nome de grandes marcas de luxo, como a Haus of Balenciaga, Haus of Gucci e Haus of Versace.
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7. Billy Elliot é a história triunfante e comovente de um menino de 11 anos de uma família da classe trabalhadora que descobre uma paixão pela dança que mudará a vida dele e de sua família para sempre. Segundo bio no Google Play. Disponível em: <https://play.google.com/ store/movies/details/Billy_ Elliot?id=AfNRd3hdpiY& hl=pt_BR&gl=US> 8. Gíria usada pela comunidade cúier para definir o ato de afrontar ou arrasar em determinada situação desafiadora.
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Imagem 02: Burnin e Divonna Pantera com figurinos de papel - Cena A CATEGORIA É: PASSARELA
Fotógrafo: Paulo Baraúna
Em O BAILE CÚIER, a concepção dos figurinos, na cena 3. A CATEGORIA É: PASSARELA, foi desenhada por mim, a partir da referência de bonecas de papel de modo a unir a alta costura com materiais de baixo orçamento, como papelão, E.V.A, cartolina, papel laminado e cola quente. Tais escolhas provocam um tensionamento quanto ao que é considerado alta costura no mundo capitalista. E ao criar a cena com referência às bonecas de papel também buscamos questionar sobre quais corpos estão autorizados a brincar com tal brinquedo. Discussões essas, que potencializam o tema da cena e estabelecem relações com as vivências pessoais dos atores que já foram questionados e repreendidos por brincarem com determinados brinquedos ou ao vestir roupas socialmente entendidas como pertencentes ao gênero feminino.
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Imagem 03: Referência, Croqui e figurino em cena - Cena A CATEGORIA É: PASSARELA
Fotógrafo: Paulo Baraúna
O desafio proposto pela personagem Natasha Caldeirão nesta cena é que as Casas apresentem ao público recriações de looks de duas divas pop. Sendo assim, as Casas Pantera e Montilla vestem figurinos inspirados em looks icônicos de Madonna e Beyoncé criados em materiais diversos que se tornam alta costura a partir da concepção da cena e seus elementos constituintes, entre eles, a iluminação, sonoridades, cenografia, configuração palco plateia e o trabalho técnico dos atores e a atriz que sustentam suas personagens em seu catwalk. Quanto à estrutura dramatúrgica, na primeira parte da cena, os integrantes das casas brincam com roupas “masculinas” de cor azul e “femininas” da cor rosa. Com isso, a cena expressa de modo ironico a ideia padrão cis heteroronormativa de que existem cores, roupas e brinquedos específicos relacionados ao gênero e sexualidade. Segundo Pocahi, Silva e Silva (2022):
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[...] brinquedos, roupas e objetos infantis ganharam uma divisão de cores que deixa claro para qual público estão destinados em sua produção, estereotipando seus usos e possibilidades no contexto da infância. Se meninos querem ganhar cozinhas, casinhas ou panelinhas, dificilmente encontrarão em outro tom além do rosa, já que se acredita que brincadeiras com fins domésticos são destinadas às meninas, que gostam ou usam apenas rosa. Se meninas querem bolas ou jogos de ação, encontrarão apenas na seção de brinquedos “de meninos” que, por sua vez, estará na parte azul das lojas. (p.50-51) Ao sustentarem os diferentes looks, os integrantes das Casas Pantera e Montilla também reivindicam e ocupam o espaço de auto afirmação de suas performatividades cúiers e todas as intersecções possíveis aos seus corpos no universo da moda.
5 \ CENA 5. A CATEGORIA É: FACE Na cultura Ballroom, Face é uma das categorias de competição que se concentra na habilidade dos(as) competidores(as) de apresentarem uma expressão facial cativante e memorável com seus movimentos e gestos que buscam realçar e valorizar os seus traços faciais. No reality show Legendary (2020-2022) é dito que nessa categoria os competidores precisam apresentar de modo exuberante seus dentes, olhos, nariz, pele e estrutura óssea facial. Em nosso BAILE CÚIER, a cena 5. A CATEGORIA É: FACE começa com a voz em off da palavra face, que é o início da música Face/Look at that de Be3k (2015). Ao mesmo tempo, em frente de cortinas de fitilhos presentes na cenografia, Divonna Pantera e Banks Montilla entram cada uma segurando uma ring light presa a um celular conectado à internet. Divonna Pantera
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\ o BAILE CÚIER: a cultura ballroom e os corpos dissidentes dos padrões cis heteronormativos na criação de uma encenação
direciona a câmera de seu celular para a entrada de Burnin Pantera. Banks Montilla faz o mesmo para a entrada de Pussyvinny Montilla. Os celulares conectados às ring lights transmitem os rostos de Burnin Pantera e Pussyvinny Montilla em tempo real em um telão localizado ao fim da passarela que separa as entradas das duas casas.
Imagem 04: Projeção de Burnin e Pussyvinny Cena A CATEGORIA É: FACE
Fotógrafo: Paulo Baraúna
O enquadramento das duas câmeras tem uma estrutura em que a cena começa do seguinte modo: Banks Montilla fecha com um super zoom no rosto de Pussyvinny Montilla e Divonna Pantera com um plano mais aberto em Burnin Pantera. Pussyvinny Montilla e Burnin Pantera começam a preparação da pele, aplicação da base, corretivo e contornos, aplicação da sombra e cílios nos olhos e passagem de batom, enquanto é projetado seus “tutoriais” simultaneamente no telão do palco. A escolha pela estrutura de tutorial se dá pois embora o universo da maquiagem seja
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reconhecido pelo senso comum heteronormativo como campo das mulheres e do feminino ganha novos contornos no YouTube. Apesar da preponderância de mulheres como produtoras de tutoriais de maquiagem, alguns jovens rapazes vêm se destacando nesse campo. [...] Eles rompem assim com limites cis heteronormativos em relação ao campo da maquiagem e do corpo: são jovens maquiadores que se maquiam em frente às câmeras para ensinar mulheres a se automaquiarem (mas há também tutoriais destinados a maquiagens masculinas), o travestimento pode acontecer, mas não é recorrente. (BERTOLOTTI; MEDEIROS, 2019, p.164-165) Em O BAILE CÚIER, os “tutoriais” são interrompidos por sons em off de batidas em uma porta de madeira, insistentes opressores e violentos. Na dramaturgia, essas batidas atuam como vozes do real que geram desespero nos quatro competidores, eles assustados procuram espaços para fugir. Não conseguem. Após as batidas, eles se restabelecem e continuam a maquiagem, porém, são novamente interrompidos pelas mesmas batidas, agora mais violentas. Dessa vez, as batidas são seguidas de uma voz masculina, opressora, homofóbica e violenta que diz: “Ei, a gente vai se atrasar! Por que essa porta tá trancada”. Novamente, o desespero dos competidores das casas se presentifica com as câmeras e corpos desorientados no pequeno espaço em que a cena se desenvolve. A cena continua e mais uma vez o ato de maquiar-se diante câmera sofre interrupção, as batidas, desta vez, são ainda mais intensas, e a voz masculina ainda mais agressiva. Na quarta interrupção, retornam apenas a interrupção das batidas, mas agora são seguidas por uma voz cúier que avisa que está na hora de entrar no palco para arrasarem. A fala reverbera em uma sensação de alívio entre os integrantes para concluir seus tutoriais e maquiagens. Assim, Burnin
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e Pussyvnny apresentam seus perfeitos rostos ao público, com gestos e expressões que realçam seus traços faciais.
Imagem 05: Banks filma as expressões faciais de Pussyvinny Cena A CATEGORIA É: FACE
Fotógrafo: Paulo Baraúna
É necessário dizer que na primeira versão, a cena era realizada sem as câmeras e com projeção simultânea. Dessa forma, após cada batida, os atores e a atriz corriam pelas marcações por diversos pontos do palco, o que deixava a dinâmica da cena criada sem atuação do digital. Ao limitar o espaço de atuação dos atores - reduzidos a cerca de 2m² na entrada das casas - e inserir a câmera e a projeção ao vivo, foi possível concentrar as ações em um espaço pequeno. Com o conteúdo dos áudios a cena buscou remeter paralelamente a um quarto e um camarim. Ambos, espaços privados e seguros. Na encenação,
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o quarto representa um esconderijo para experienciar algo que pode desencadear ações de repressão de uma família que respeita e reproduz os padrões cis heteronormativos. Já o camarim, está como a libertação e autonomia adulta e profissional ao exercer a sua performatividade cúier a seu modo e que apesar dos traumas, ainda é possível viver, brilhar e arrasar. Para concluir, sobre esta cena, gostaria de apresentar um feedback que tive de uma pessoa da plateia que se alinha com uma das ideias trabalhadas no processo de criação. Essa pessoa cúier assistiu ao primeiro dia de apresentação. Para ela, a cena despertou lembranças de quando se maquiava escondida em seu quarto por medo da reação de seu pai ao vê-la fazendo algo que extrapolasse as expectativas de gênero que são impostas sobre seu corpo pela cis heteronormatividade. Além disso, infelizmente outras pessoas, que também estavam na plateia, relataram que tal cena despertou lembranças semelhantes de opressão, dentro e fora do universo cúier. Depoimentos que revelam o quanto a LGBTQIAP+fobia não pode mais ser entendida como um problema somente para pessoas cúiers, visto que, os padrões cis heteronormativos são impostos sobre todos os corpos dentro dessa sociedade machista, misógina, LGBTQIAP+fóbica, capacitista e racista.
6 \ CENA 7. A CATEGORIA É: REALIDADE O termo Realness é utilizado para definir o máximo de ilusão que os competidores da cultura Ballroom devem alcançar em determinadas categorias. Dessa forma, os competidores devem interpretar modelos muito definidos pela sociedade, podendo ser desde masculinidade ou feminilidade até profissões. Na cultura Ballroom, segundo Dos Santos e Scudeller (2020, p.9), ao colocar o termo Realness nas categorias os competidores não podem desviar ou deixar “escapar” falhas dissidentes em sua representação.
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Além disso, notamos uma dimensão que perpassa não somente as condições econômicas e sociais dos personagens, mas também, e principalmente, que as imagens e o imaginário relacionados a essas condições são intensamente atreladas às lógicas de consumo. Nesse sentido, entendemos algumas categorias dos balls que se referem especificamente a representações de classe, como homens de negócios, socialites e modelos, como uma estratégia de acesso simbólico a posições sociais negadas a esses corpos subalternizados na partilha do sensível tal como está dada fora da cultura Ballroom. Nessas categorias, qualquer corpo pode acessar lugares sociais de sucesso e prestígio, desde que, reiteramos, performatize conforme as representações hegemônicas. Ou seja, não é preciso ter, de fato, sucesso, desde que seja capaz de se criar a ilusão do sucesso emulado nas representações que circulam no mainstream. (DOS SANTOS; SCUDELLER, 2020, p.14) As categorias ligadas ao Realness podem estar relacionadas à capacidade de se performar determinados padrões sociais de modo a passar despercebido em situações cotidianas. O que acontece nos Ballrooms, nessa categoria, é a exposição do caráter performático da sexualidade e do gênero que é percebido, principalmente a partir da aparência corporal, performatividade e vestuário (SANTOS, 2018, p. 39). Realness, então, refere-se às categorias onde o competidor deve “apagar” de sua performance qualquer traço que demonstre algum grau de desvio de gênero ou sexualidade daquilo que consta como aceitável dentro da sociedade cis heteronormativas. Almeja-se, portanto, uma performance onde o indivíduo não seria diferenciado do resto da
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sociedade cis heteronormativas, e, portanto, não seria tratado como desviante e afins. Por exemplo, entre as categorias Realness, existe a The Athletic Man onde o júri deve olhar para o competidor e enxergar ali nada mais do que um indivíduo atleta que está conforme às regras cis heteronormativas da sociedade a qual faz parte. Já a categoria Femme Queen Realness requer que o competidor dê uma impressão “real” de ser uma mulher, ou seja, a competidora deve apagar qualquer traço que lembre ao júri que ela não é uma mulher cisgênero, ou seja, que esse indivíduo não seria apontado como transgênero no mundo exterior ao Ballroom. (SANTOS, 2018, p.40) Dessa forma, a participação da categoria Realness funciona como um treino para os membros da cultura Ballroom testarem sua passabilidade na sociedade cis heteronormativa. Essa possibilidade é usada como forma de proteção, principalmente, para pessoas transexuais que ao exercer com perfeição os padrões ao gênero o qual se identificam pode passar despercebida entre as pessoas cisgêneras e dessa forma, visaria a diminuição da violência física ou mental (SANTOS, 2018, p.49). Tal ideia, poderia criar expectativas, já inalcançáveis, sobre padrões físicos e comportamentais compreendidos como masculinos e femininos, colocando pessoas cúiers como falsas responsáveis pela violência que sofrem. Ao não alcançar parâmetros de gênero inventados e reproduzidos pela cis heteronormatividade, pessoas cúiers serão violentadas ao menor dos desvios dessas normas, acreditando que o problema está na dissidência e não nos padrões impostos desde o seu nascimento. Como nos exemplifica Preciado: Com as novas tecnologias médicas e jurídicas de Money, as crianças “intersexuais”, operadas no nascimento ou tratadas durante a puberdade,
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tornam-se as minorias construídas como “anormais” em benefício da regulação normativa do corpo da massa straight. Essa multiplicidade de anormais é a potência que o Império Sexual se esforça em regular, controlar, normalizar. (PRECIADO, 2011, p. 13) Dessa forma, nos é tirado o direito experenciar a potencialidade múltipla de nossos corpos, pois a fluidez deles vai contra a ideia de normalização e dualidade cis heteronormativas da segunda metade do século XX, ou seja, eles são vistos como “mostruosos”: Não existe diferença sexual, mas uma multidão de diferenças, uma transversalidade de relações de poder, uma diversidade de potências de vida. Essas diferenças não são “representáveis” porque são “monstruosas” e colocam em questão, por esse motivo, os regimes de representação política, mas também os sistemas de produção de saberes científicos dos “normais”. (PRECIADO, 2011, p. 18) Em O BAILE CÚIER a categoria Realness potencializa a cena A CATEGORIA É: REALIDADE que tem como tema “O que você quer ser quando crescer?”. O tema parte da ideia impositiva de que existem trabalhos específicos relacionados ao gênero, sexualidade e raça. Desse modo os integrantes das Casas Montilla e Pantera devem apresentar com o máximo de realidade algumas profissões. Na encenação utilizamos essa premissa de maneira que as personagens interpretadas por três atores, pessoal e socialmente reconhecidos pelo gênero masculino, apresentassem profissões socialmente impostas e compreendidas como másculas viris e até fetichizadas. Desse modo, as representações acontecem da seguinte forma: Pussyvinny está de mecânico, Burnin Pantera está de policial e Banks Montilla de bombeiro.
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Na primeira parte de cada apresentação, os três atores interpretam suas profissões de modo socialmente sexualizado, estereotipado e vulgar, enquanto são recebidos com comentários grotescos e indecentes que relacionam a atuação com atos sexuais. Quando os concorrentes chegam em frente dos personagens apresentadores, todos são totalmente contaminados pelas performatividades cúiers que transgridem os padrões de comportamento impostos pela cis heteronormatividade. Nesse momento, Banks, Burnin e Pussyvinny, fazem uso de caminhadas afetadas e sexualizadas, elementos do voguing, do deboche e ironia ao saírem de cena. A seguir é exposto alguns comentários feitos pelos apresentadores durantes as representações das profissões: MECÂNICO- PUSSYVINNY Natasha Caldeirão: Vem dar uma olhadinha no meu capô. Ariel Vêkanandre: Posso te ajudar na chupetinha? Natasha Caldeirão: Bate no meu capô, com força! Natasha Caldeirão: Deixa eu passar essa tua marcha! POLICIAL- BURNIN Natasha Caldeirão: Que distintivo de respeito. Ariel Vêkanandre: Vai, aponta essa pistola pra mim! Natasha Caldeirão: Aiii, eu me rendo! Ariel Vêkanandre: Me arromba assim também! Natasha Caldeirão: Me chama de bandida, e me bota na parede! Ariel Vêkanandre: Deixa eu lamber essa pistola! BOMBEIRO- BANKS Ariel Vêkanandre: Tá pegando fogo? Natasha Caldeirão: Chama o bombeiro! Ariel Vêkanandre: Que mangueirão é esse?
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Ariel Vêkanandre: Ai que calor! Natasha Caldeirão: Me faz gritar igual sirene… Ariel Vêkanandre: (grito sirenístico) (MELO JUNIOR, 2023, p. 84-85). Tais comentários entram na encenação partindo de dados do real sobre discursos de teor assediador e violento, proveniente da cultura machista em que vivemos. A personificação dessas atitudes estão representadas aqui pelas profissões socialmente aceitas como másculas e viris. O que fazemos é inverter a lógica, ampliar e repetir o comportamento não aceito que direcionam a criação da cena para uma ironia que intenciona provocar algum estranhamento e reflexão sobre os padrões impostos. Essa ironia se faz risível pelo modo como foi construída a relação da atuação dos competidores com os comentários dos apresentadores. Além disso, todos os participantes e até mesmo público tornam-se cúmplices dessa comicidade, que parte de textos esdrúxulos e violentos coletados a partir de dados do real. O mesmo não acontece durante a apresentação de Divonna Pantera que representa a profissão de médica. Divonna compartilha de características de uma atriz que se reconhece como mulher negra bissexual. Tais características relacionadas a profissão de médica, bem como os comentários feitos durante a performance de sua profissão, acrescentam novas problematizações à cena e não poderiam ser ignorados. Para falar sobre Divonna nessa cena, é importante dizer que inicialmente a encenação contava apenas com pessoas que se reconheciam com o gênero masculino e por isso, toda a pesquisa, coleta e processo de criação das primeiras profissões foram de mecânico, policial, bombeiro, juiz e pedreiro. As quais foram pensadas de acordo com o que já foi exposto nos parágrafos anteriores.
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Imagem 06: Divonna representando a médica com objeto Cena A CATEGORIA É: REALIDADE
Fotógrafo: Paulo Baraúna
Com a chegada da atriz Victória Leal que começou a atuar como Divonna Pantera, em agosto de 2023, percebemos juntos, que ao optarmos pela inserção de sua personagem na disputa da cena, estaríamos adentrando outros conteúdos que não constavam inicialmente no projeto de TCC e na dramaturgia da encenação. Agora, vêm a tona e entram em cena outros conteúdos que também estão presentes na hegemonia cis heteronormativa, que não tinham sido abordados anteriormente. Isso fica evidente quando os comentários escritos para essa cena, que seria atuada só por corpos masculinos, quando atuada por uma mulher, se revelando um teor ainda mais violento e misógino sobre o corpo da atriz.
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Nos primeiros ensaios com Victória, a partir do diálogo constante com a atriz, optamos em experimentar que o contraste entre o significado dos comentários para os corpos masculinos, e agora sobre um corpo feminino, fossem a principal camada da cena. Desse modo, Divonna representaria a profissão de pedreira e ainda receberia os comentários sexualizados de uma voz masculina em off, e não pela voz dos personagens apresentadores, como acontece para os outros integrantes das Casas Pantera e Montilla. O que muda de fato, nessa nova composição, é a presença do corpo feminino negro, que altera o conteúdo dramatúrgico formatado anteriormente por atores. Mais adiante, na semana anterior aos dias de apresentação, resolvi experimentar uma outra possibilidade para a profissão de Divonna. A ideia era que ela inicialmente entrasse com objetos que reforçam a imposição de padrões misóginos e racistas e que Divonna, deixaria tais objetos e assumiria a profissão de médica ao chegar próximo dos apresentadores, sendo uma dissidência ao machismo e racismo, imposto socialmente sobre seu corpo. No dia 27 de setembro, optamos por representar a médica com um estetoscópio, desde sua entrada na passarela. No entanto, os outros objetos que representam o padrão social racista, misógino e machista seriam distribuídos ao público de modo que estivessem no trajeto da sua performance, assim, ela “receberia” os objetos - socialmente impostos a sua aparência - da platéia, enquanto um áudio com conteúdos misóginos, machistas e racistas, direcionam a sua atuação. A estrutura pretendida era que Divonna entra, ouve da voz em off “chegou o elevador de serviço” ao mesmo tempo alguém do público entregaria uma vassoura. O próximo áudio “você tem que se arrumar mais” e ela arruma a roupa e pega um espelho na bolsa entregue por outra pessoa do público. Ao final o áudio diz “arruma esse cabelo” e ela recebe uma chapinha de uma terceira pessoa presente na plateia. E ao chegar próxima dos apresentadores, aí sim, assumiria a função de médica plenamente,
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9. Egresso do Curso de Teatro Licenciatura da Universidade Federal de Santa Maria e atual estudante do Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. 10. Estudante do Curso de Teatro Licenciatura da Universidade Federal de Santa Maria.
desprezando os objetos que representam a imposição dos padrões machistas e racistas. Ao assistir a cena no primeiro dia de apresentação, reconheci sua fragilidade quando percebi que o público evitou sentar nas cadeiras que tinham os objetos, inviabilizando a entrega deles para Divonna. A atriz, resolveu a cena pegando tais objetos que estavam sobre as cadeiras da plateia e os utilizou. A dramaturgia criada e reconhecida por mim a partir dessas ações naquele momento, representaram uma submissão de uma mulher negra às imposições elitistas, misóginas e racistas. Certamente, não era pretendido tal imagem durante o processo de criação, visto que, queriamos colocar a potência do corpo negro em cena, afinal estavamos utilizando criativamente a cultura Ballroom como materia prima da encenação e que foi criada, majoritáriamente, por pessoas negras. Avançando nesse sentido, o corpo negro é “uma matriz/corpus de reminiscências de memória coletiva que são evocadas quando o corpo do negro se vê em performance em sua acepção enquanto rito, trabalho performativo ou ação espetacular” (ALEXANDRE, 2017, p. 40 apud SANTOS, 2023, p. 79). No dia seguinte, expus tais percepções para a atriz Victória Leal e para dois amigos negros ligadas ao curso de Teatro Licenciatura da UFSM, como Diordinis Baierle dos Santos9 e Andrielle Razeira10. Ambos direcionam suas pesquisas para o estudo de práticas teatrais antirracistas e que valorizem e celebrem o Teatro Negro (ALEXANDRE, 2017).
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Imagem 07: Divonna acena para o público ao finalizar sua performance - Cena A CATEGORIA É: REALIDADE
Fotógrafo: Paulo Baraúna
Após tal diálogo e respeitando a ponderação de Victória Leal, decidi para o segundo dia, orientar o público para que sentassem nas cadeiras com objetos e aguardassem o momento de entregá-los a Divonna. O que também deixou a cena frágil e insatisfatória, visto que, a atriz, uma mulher negra, ao aceitar os objetos da mão da plateia e não retirálos das cadeiras, também representava ainda mais a mulher negra se submetendo a imposição dos padrões elitistas, misóginos e racistas. Para o último dia, optei por retirar da cena, todos objetos que representavam a imposição social sobre o corpo da mulher negra. A decisão veio da percepção que entende que independentemente de Divonna pegar os objetos da cadeira ou das mãos da plateia, a submissão estava em cena, e não era esta a intenção. Esta decisão, ainda não
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resolveu a dramaturgia da cena, mas retirou a submissão elitista e misógina sobre a mulher negra. Dessa forma, a entrada de Divonna na cena 7. A CATEGORIA É: REALIDADE, não ocorreu com a interrupção dos áudios e objetos que expressavam a imposição dos padrões misóginos e racistas. Mas sim, somente com sua atuação como médica enaltecida por comentários feministas, antirracistas e emancipadores feitos pelas personagens Natasha Caldeirão e Ariel Vêkanandre. Portanto, os temas evidenciados na cena pela presença da Victória Leal, exigem mais pesquisa e construção dramatúrgica. Agrego a isto, que a cultura Ballroom é uma expressão proveniente da negritude cúier, ao perceber o corpo social da atriz em relação à cena, é urgente a necessidade de aprofundar meus estudos, a pesquisa e reflexões sobre as interseccionalidades em um Teatro Cúier. Nesse sentido, abre-se espaço para a reescrita desta cena, bem como para estudos teóricos.
7 \ CONCLUSÃO Neste artigo apresentei um recorte de meu TCC de modo a destacar como foi possível a utilização da cultura cultura Ballroom e os corpos dissidentes dos padrões cis heteronormativos na construção da encenação O BAILE CÚIER que foi dirigida por mim com a orientação da Profª Dra. Mariane Magno Ribas no ano de 2023. Ao trazer quatro das oito cenas da encenação busquei exemplificar como o processo de criação ocorreu de modo que tornou possível a criação de uma encenação partindo dos dois temas principais, sendo eles a cultura Ballroom e os corpos dissidentes dos padrões cis heteronormativos. Tal percepção se prova pelos conteúdos reflexivos sobre a estética, técnica e a potência social produzidos em diferentes esferas relacionadas ao processo, como no público, em mim e nas pessoas que me rodeiam.
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Reconheço na cultura Ballroom, originada em Nova York na década de 1960, não só a estrutura e estética utilizada criativamente nessa encenação, como também a valorizo por suas contribuições sociais aos corpos dissidentes dos padrões cis heteronormativos. Em seu interior, as Houses, se tornam um refúgio seguro para pessoas cúiers negras e latinas que foram e ainda são expulsas do convívio familiar de origem. Sendo nos Balls, junto de seus semelhantes a possibilidade para expressar sua identidade de gênero e sexualidade de maneira autêntica e glamourosa. Em O BAILE CÚIER, realçamos tais características investigando paralelamente as categorias que compõem a estrutura da cultura Ballroom e a coleta de dados do real, notícias, relatos reais e ficcionais que expressassem a imposição dos padrões cis heteronormativos sobre os corpos dissidentes. Essa tarefa, como já era esperado quando pensamos no caráter impositivo dos padrões citados em nossa sociedade, evidenciou certa contaminação deles sobre a cultura Ballroom, como na categoria Realness, explicada anteriormente. É necessário expressar minha gratidão aos corpos cúiers negros e latinos que criaram a cultura Ballroom como forma transgressora aos padrões impostos da cis heteronormatividade sobre os nossos corpos dissidentes. Espero que o processo criativo e O BAILE CÚIER inspire mais artistas cúiers a buscar expressões estéticas, técnicas e sociais que nos representam, assim como eu busquei na cultura Ballroom, para construir essa criação teatral cúier. Portanto, reconheço que O BAILE CÚIER é a celebração dos corpos CÚIERS, não só daqueles que estão em cena, mas também dos que se sentem representados ao participar dessa experiência. O BAILE CÚIER é uma celebração do que nos formou e nos forma como pessoas CÚIERS. O BAILE CÚIER se faz pela celebração dos corpos que conseguimos construir apesar de toda imposição violenta que nos é colocada desde que nascemos pela cis heteronormatividade. O BAILE CÚIER é sobre celebrar os que vieram antes de nós, não só pelas suas dores, mas pela sua força, glamour e potência artística.
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concluo que O BAILE CÚIER é a afirmação e celebração de um Teatro Cúier, um teatro que pode reconhecer em nossos corpos a potência social, estética e poética na arte. Marcando assim, o começo do meu caminho como artista pesquisador de expressões teatrais cúiers em futuros estudos na pós-graduação, na produção de artigos e, quem sabe, como docente, firmando a minha presença cúier na formação de novos artistas da cena.
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\ o BAILE CÚIER: a cultura ballroom e os corpos dissidentes dos padrões cis heteronormativos na criação de uma encenação
LEGENDARY [reality show]. Rik Reinholdtsen. HBO Max. Estados Unidos: 2020. Nova Iorque: HBO Max. HBO Max. Colorido. MELO JUNIOR, Sidnei Mauro de. O BAILE CÚIER: A CULTURA BALLROOM E OS CORPOS DISSIDENTES DOS PADRÕES CIS HETERONORMATIVOS NA CRIAÇÃO DE UMA ENCENAÇÃO. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Artes Cênicas Bacharelado- Direção Teatral) - Universidade Federal de Santa Maria. Santa Maria, 91p. 2023. Disponível em:<https:// repositorio.ufsm.br/handle/1/31242>. Acesso em: 14 mar. 2024.
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\ corpo e literatura: aproximações dançadas da Odisseia por diferentes gerações na escola Thiago Prado Neris Thiago Prado Neris, São Paulo (SP). Graduado pela Universidade de São Paulo (USP), integra desde 2019 o Laboratório de Pesquisas e Estudos em Tanz Theatralidades (Lapett), da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da instituição. Cursa mestrado no Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da USP, pesquisando respostas artísticas a temas e aproximações contemporâneas da Odisseia. thiagoneri@usp.br
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FICHA TÉCNICA Instituição Universidade de São Paulo (USP) Tipo do curso Graduação Nome do curso Artes cênicas – licenciatura Período do curso 2022-2023 Estado São Paulo Título do trabalho Corpo e literatura: aproximações dançadas da Odisseia por diferentes gerações na escola Nome do autor Thiago Prado Neris Nome da orientadora Professora doutora Maria Lúcia de Souza Barros Pupo Número de páginas 20
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\ corpo e literatura: aproximações dançadas da Odisseia por diferentes gerações na escola
\ RESUMO Como realizar uma mesma proposta teatral envolvendo corpo e literatura com estudantes de diferentes idades? A partir da Odisseia atribuída a Homero (928-898a.C.), e de algumas aproximações clássicas e contemporâneas da história, o autor propõe experiências artísticopedagógicas relacionadas a elas a estudantes do 8º ano do ensino fundamental, e a pessoas que cursam o último termo do ensino médio, na modalidade de educação de jovens e adultos (EJA). Em busca da ampliação e transformação de valores éticos e estéticos na educação básica, pelo estudo da beleza e do heroísmo presentes no cotidiano, o autor faz considerações sobre a experiência e levanta questões que norteiam sua atuação no ensino de artes, refletindo trabalhos de Pina Bausch (SONHOS, 2010), e pesquisas como a educação pelo binômio experiência/sentido (BONDÍA, 2002), teatro e literatura (PUPO, 2005), e mitologia universal (CAMPBELL, 1991). Palavras-chave: odisseia, educação básica, artes
\ ABSTRACT How to carry out the same theatrical proposal involving body and literature with students of different ages? Based on the Odyssey attributed to Homer (928-898 B.C.), and on some classical and contemporary approaches to the story, the author proposes artistic-pedagogical experiences related to them to students in the 8th grade of elementary school, and to people who are in the last term of high school, in the modality of youth and adult education (EJA). In search of the expansion and transformation of ethical and aesthetic values in basic education,
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through the study of beauty and heroism present in everyday life, the author makes considerations about the experience and raises questions that guide his performance in art teaching, reflecting works of Pina Bausch (SONHOS, 2010), and research such as education through the experience/meaning binomial (BONDÍA, 2002), theater and literature (PUPO, 2005), and universal mythology (CAMPBELL, 1991). Keywords: odyssey, basic education, arts
\ RESUMEN ¿Cómo llevar a cabo una misma propuesta teatral que involucra cuerpo y literatura con estudiantes de diferentes edades? A partir de la Odisea atribuida a Homero (928-898 a.C.), y de algunas aproximaciones clásicas y contemporáneas a la historia, el autor propone experiencias artísticopedagógicas relacionadas con ellas a estudiantes de 8º grado de primaria, y a personas que se encuentran en el último semestre de la escuela secundaria, en la modalidad de educación de jóvenes y adultos (EJA). En busca de la expansión y transformación de los valores éticos y estéticos en la educación básica, a través del estudio de la belleza y el heroísmo presentes en la vida cotidiana, el autor realiza consideraciones sobre la experiencia y plantea preguntas que orientan su desempeño en la enseñanza de las artes, reflejando obras de Pina Bausch (SONHOS, 2010), e investigaciones como la educación a través del binomio experiencia/sentido (BONDÍA, 2002), teatro y literatura (PUPO, 2005), y mitología universal (CAMPBELL, 1991). Palabras clave: odisea, educación básica, artes
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1 \ A GUERRA DAS ARTES: PROFESSOR A CONTRAGOSTO (O quê, quem, quando, onde, para quem, por quê) No dia primeiro de agosto de 2023, o professor de artes da modalidade de educação de jovens e adultos “sobe uma aula” para o 3º termo, semestre equivalente ao 3º ano do ensino médio. A expressão significa que aquela turma não terá todas as aulas a que teria direito naquela noite e será liberada mais cedo, por falta de professores naquela escola estadual de São Paulo. Enquanto dá uma aula para o 2º termo, sobre como nossas experiências influenciam a leitura de obras de arte, ele passa um questionário aos estudantes do 3º, relacionado a eventuais conhecimentos que tenham sobre teatro. Quando ele sai, a turma conversa entre si ou apanha seus telefones celulares. O professor, na verdade, diz que deseja trabalhar como ator mas, para garantir sua sobrevivência, há mais de dez anos leciona artes na escola. No entanto, para assegurar um salário digno, também dá aulas de disciplinas em que não tem formação, autorizado pelo sistema público de ensino em vigor no estado. O professor integra, como preceptor, um programa de residência pedagógica vinculado ao governo federal e à Universidade de São Paulo, assim como eu, no papel de residente. Com o objetivo de aprimorar a docência na escola pública, as pessoas vinculadas ao programa fazem estudos e reuniões para planejar e reger aulas ao longo de um ano e meio. A situação vivida por ele me chama a atenção, pois muitas pessoas que enveredam pelo ensino de artes também desejam se expressar artisticamente, mas não conseguem viver desse tipo de trabalho. No entanto, essa frustração nos autorizaria a “subir aulas?”. Não seria melhor que a turma tivesse a presença integral do docente em sala de aula, mesmo tendo de enfrentar uma aula vaga? Incomodado com essa defasagem sofrida pelo 3º termo, que já durava meses, proponho-me a reger algumas aulas de artes para esta turma ao longo do bimestre em curso, planejado pelo professor preceptor para o estudo da linguagem teatral. Meu desejo também provém de uma pesquisa iniciada no ano anterior, envolvendo corpo e literatura: a
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1. LAPETT - Laboratório de Pesquisa e Estudos em Tanz Theatralidades, sediado na Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, fundado e coordenado pela coreógrafa, professora e artista da dança Sayonara Pereira. O grupo promove encontros teóricos e práticos a partir de paradigmas do movimento Tanztheater, impulsionado pela dança moderna alemã de Kurt Jooss (19011979), em diálogo com a contemporaneidade do Brasil e do mundo. 2. Peça com direção de Leonardo Moreira.
convite de professores da universidade onde me encontrava, dirigi uma peça inspirada no episódio 7 de Ulysses, romance de James Joyce (18821941), chamada ULYSSES: ÉOLO. Como também participo de um grupo de pesquisa em dança teatral1, usei esta e outras linguagens na montagem, como a fotografia e a música. Ainda sem muita consciência, descobriria que meu desejo de regência também resgata temáticas de um enredo que despertara minha atenção por meio de Ulysses, mas em sua versão “ancestral”: a Odisseia. Quase três mil anos depois, a narrativa atribuída ao poeta grego Homero (928-898a.C.) ainda reverbera culturalmente no mundo, dialogando com diversas linguagens ao longo da história. Pinturas, peças de teatro, filmes, desenhos animados japoneses, canções. Ulysses talvez seja uma das aproximações da história mais conhecidas. No entanto, em vez de narrar a saga do rei de Ítaca Odisseu, também conhecido como Ulysses, ao retornar da Guerra de Tróia, na qual um povo e sua cidade são destruídos para que uma rainha que fugira com um troiano seja resgatada, Joyce conta a volta atribulada para casa de um irlandês comum, vivendo uma crise conjugal. Em vez de mostrar a tripulação de Odisseu o traindo, abrindo um saco contendo ventos que atrasarão em anos a viagem de volta, Joyce traz, no capítulo 7 de Ulysses, a tempestade e o caos metaforicamente para uma redação repleta de jornalistas frustrados com a dependência estrangeira. Assim como Joyce apresenta como pano de fundo de seu romance a luta da Irlanda contra o domínio britânico, uma espécie de Tróia moderna, dois exemplos brasileiros contemporâneos reagem em algum grau e de forma singular ao poema atribuído a Homero: em Doramar ou a Odisseia, Itamar Vieira Jr. (1979-) conta histórias de superação de limites impostos a personagens desta terra, que vivem em meio a contextos históricos e sociais como colonialismo e escravidão. Em Odisseia (ou o desaparecimento do público) (2022)2, a Cia. Hiato se baseia, entre outras coisas, na espera da rainha Penélope por Odisseu e na rejeição da deusa Calipso por ele, para oferecer versões teatrais que deslocam o protagonismo e os pontos de vista para personagens femininas da narrativa clássica e trazendo, assim como Joyce, o heroísmo ou a beleza dos temas presentes na história para nossa contemporaneidade.
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Assim como a artista da dança Pina Bausch (1940-2009) dirigira pessoas de diferentes gerações em uma mesma peça , incluindo adolescentes, 3
retratados em Sonhos em Movimento (2010)4, elaborada a princípio para ser dançada por sua companhia profissional, meu sonho artístico-pedagógico inicialmente proporia algo semelhante na educação básica brasileira, mostrando que somos pessoas capazes de dançar, e expandindo nossos valores éticos e estéticos à beleza presente no cotidiano, como fizera a companhia. Tudo isso na contramão da cultura das celebridades, que nos chega pelos celulares, e de valores individualistas e narcísicos típicos do neoliberalismo e do capitalismo digital, ressoando movimentos apontados ao longo da história pela artista, pesquisadora e docente Andréia Nuhr (CAMARGO, 2021), em Comunicação com comunidade: mover e soar para recobrar o rito. No entanto, apesar de heroicas intenções, a realidade costuma ensinar algo a nossas expectativas. Além de “jovens e adultos”, a outra geração com quem escolho trabalhar, no caso, tem 13 anos, pouco ou nenhum interesse no que proponho. Na observação das aulas de artes anteriores do professor preceptor para este 8º ano em questão, presencio igualmente o desdém e o deboche dirigidos a ele, agravados por uma intimidade de anos de convivência. A turma tem poucos alunos, e quase todos se dispersam em seus telefones celulares, enquanto ele passa burocraticamente por temáticas do livro didático fornecido pelo estado. Mesmo quando exibe algum vídeo na TV ou escreve na lousa, é bastante ignorado. Quando cobra atividades para serem vistadas ou dá broncas, recebe uma atenção muitas vezes forçada, ilusória. Além da questão didática e disciplinar, do lado docente seria necessário um planejamento e avaliação de cada aula, e um replanejamento das aulas seguintes se necessário, o que não ocorre. Muitas vezes, a aula seguinte é usada para que as pessoas terminem atividades enquanto o professor preceptor realiza tarefas como vistar atividades e fechar de notas, “porque o tempo previsto em lei é insuficiente para o trabalho”, diz ele em algumas ocasiões.
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3. Em Kontakthof, a bailarina e coreógrafa alemã Pina Bausch, discípula de Kurt Jooss e expoente do Tanztheater fortemente conhecido no mundo, convida três gerações para dançar a mesma peça, estreada em 1978. Concebida para profissionais da companhia, Bausch monta a mesma Kontakthof com pessoas de mais de 65 anos, em 2000, e com adolescentes, em 2008. 4. SONHOS em Movimento. Filme documentário. Direção: Anne Linsel, Rainer Hoffmann. Produção: TAG/TRAUM. Alemanha: Imovision, 2010.
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Como realizar uma mesma proposta teatral envolvendo corpo e literatura com gerações diferentes na escola? A pergunta que me norteia no início desta pesquisa já não faz tanto sentido, tendo em vista a defasagem daquelas turmas, em diversos aspectos. Entre eles, a simples capacidade de se concentrar. Como enfrentar o deboche, o descaso e a própria estrutura que torna a escola um espaço onde não se quer estar? Como resistir aos encantos do capitalismo que chegam às pessoas a todo momento pelos celulares? Faz sentido se trabalhar com a Odisseia hoje em dia? Enxergando a escola, assim como a filósofa alemã Hannah Arendt (19061975) em A crise na educação (1974), como um espaço de transição entre a família e o mundo, em que é possível se errar ao longo da travessia sem grandes prejuízos, e elegendo-se politicamente o que transmitiremos a quem chega à vida e ao mundo, defendo a educação, especialmente artística, pensada a partir do binômio experiência-sentido, e não pela relação ciência-técnica, ou teoria-prática, como defende o pesquisador Jorge Larrosa Bondía, em Notas sobre a experiência e o saber de experiência: “Se o experimento é repetível, a experiência é irrepetível, sempre há algo como a primeira vez.”, (BONDÍA, 2002). Tendo em vista a lógica produtivista que correntes políticas tentam implementar na escola, seja pela retirada da obrigatoriedade de disciplinas do ensino médio, seja pela introdução de outras como “empreendedorismo”, a escola ainda é o último reduto social em que não é necessária a produção econômica, sendo possível a aprendizagem de “ciências humanas” e diferentes maneiras de ser no mundo. Ciências que não sejam “humanas”, ou seja, em prol da humanidade, mas pensadas e ensinadas para beneficiar apenas “objetos científicos”, no fundo apenas mascaram interesses privados. Apesar de selecionar alguns clássicos de origem europeia para o trabalho em sala de aula, julgo importante o conhecimento destes textos na formação de estudantes no Brasil. As aproximações artísticas selecionadas, bem como a história e repertório pessoal em relação ao
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tema do heroísmo (e da beleza) do cotidiano, reafirmam a premissa de que não devemos banir da escola produções culturais simplesmente por sua origem. A grande questão seria como nos aproximarmos delas. Podemos ser totalmente antipedagógicos com conteúdos democráticos. Podemos igualmente condenar outros conteúdos por simplesmente exaltarem “homens brancos europeus”, como também são interpretadas a Odisseia e Ulysses, mas ignorar que qualquer conteúdo em artes pode ser trabalhado de maneira acrítica. Isso quando estes conteúdos não são julgados como uma valoração desnecessária da intuição humana e da ficção, em detrimento da importância da ciência e tecnologia, ou da chamada economia criativa, que supostamente nos levarão ao progresso. Sobre posicionamentos semelhantes, o professor Joseph Campbell (1904-1987) ressalta em O poder do mito: “Não é disso que trata a jornada do herói. Não é para negar a razão. Ao contrário, pela superação das paixões tenebrosas, o herói simboliza nossa capacidade de controlar o selvagem irracional dentro de nós.”, (CAMPBELL apud MOYERS, 1991). Ainda assim, como diabos realizar a proposta nesta escola?
2 \ CICLOPES, SEREIAS E MAIS HEROÍSMO COTIDIANO (Como) Novamente incomodado pela dinâmica presenciada nas aulas de artes daquela escola estadual, proponho–me a reger algumas aulas para aquele 8º ano, na esperança de trazer propostas que tirem a turma da inércia, por meio do movimento. Como sugere o educador e artista da dança Ivaldo Bertazzo (1949-), em Cidadão corpo: identidade e autonomia do movimento, seria injusto cobrar desempenho cognitivo simplesmente desprezando-se nossos corpos: A dança poderia aprimorar as possibilidades psicomotoras no desenvolvimento do estudante, diminuindo sua hiperatividade e levando-o a níveis de concentração mais profundos em consequência
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5. RUDOLF Laban: Corêutica e Eucinética, sabe a diferença? Vídeo. 2019. Disponível em <https://youtu. be/SItRvB19K9c? si=fetOy33PeoXVxoZo>. Acesso em: 24 jul. 2024.
de exercícios estruturantes. É muito desgastante exigir do aluno uma psicomotricidade fina, domínio da escrita, lógica, etc., mantendo-o dentro de uma “morbidez motora”. (BERTAZZO, 1998). Assim, planejo algumas aulas que envolvam o corpo em movimento, tendo em vista que o bimestre então em curso para aqueles alunos de 8º ano deveria tratar de danças de matrizes indígenas e africanas. Percebendo a resistência da turma em participar de uma aula do professor preceptor, que exibia vídeos de algumas destas danças, ao final da aula peço a palavra para um comentário que de certa maneira me apresenta ao grupo: “danças que hoje são lidas como festivas ou tradicionais, como o frevo e o samba, ocultam elementos de resistência cultural e discriminação, como os guarda-chuvas e os pandeiros, antigamente usados para autodefesa, ou como motivos disfarçados para o encarceramento racista, sob a alegação de que poderiam ser usados como armas.”. Esta afirmação surpreende alguns. Quem seria esta nova pessoa participando da aula? Já no papel de regente, quando proponho a realização da aula seguinte na sala de leitura, espaço raramente usado na escola, há mais resistência. O exercício é aparentemente simples, para que nos apresentemos: dizer nossos nomes, seguidos de um movimento corporal. No entanto, a proposta causa deboche e nervosismo. A turma é pequena, unida e pré-adolescente, o que às vezes leva certas pessoas mais desconfortáveis a sabotar algumas tentativas das que se arriscam. Após muita insistência e pedidos de colaboração, ignorando-se diversos comentários impertinentes, surge ali uma breve dança, um diálogo corporal entre a turma, como nunca antes havia ocorrido, segundo o professor preceptor. Na aula seguinte, novamente na sala de leitura, a resistência dos alunos às propostas de movimentação baseadas na metodologia de Rudolf Laban (1879-1958)5 é quase total. Pela primeira vez, altero o tom de voz para pedir colaboração e para que guardem os telefones: “não estou cego!”, digo, quando a turma consulta os aparelhos e se apoia com displicência nas mesas ao redor do espaço. Ainda que celulares sejam permitidos por lei para fins pedagógicos, docentes não
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podem confiscar aparelhos de pessoas que eventualmente estejam atrapalhando. No máximo, podem encaminhá-las para a direção, o que em certo grau também afeta o desenvolvimento da turma e as relações de grupo. “Por que estamos fazendo isso?!”, perguntam a todo momento. “Não faz nenhum sentido esse barulho de floresta!”, dizem no fim da aula, referindo-se ao som tocado durante a atividade, ao que questiono com mais calma, resgatando alguma dignidade tão preconizada por mim no início daquela residência pedagógica: “e por que ele não faz sentido?”. Nenhuma resposta. No filme Green book: o guia (2018)6, por meio de uma amizade improvável entre um pianista negro e seu segurança branco, em uma sociedade altamente segregada no sul dos Estados Unidos dos anos 1960, temos bons exemplos sobre como lidar com situações de tensão, inclusive para se trabalhar com estudantes de diferentes faixas etárias e histórias de vida. Além disso, o tema da dignidade presente no filme inspira minha prática docente: mesmo se encontrando em situações adversas, o musicista mostra ao segurança que a violência nunca vence, pois mesmo quando é agredido, sua dignidade sempre prevalece. Mesmo quando ninguém aceita nossas propostas como docentes, temos de prosseguir, com dignidade. Não será pela força que as pessoas chegarão onde desejamos. Percebendo o desgaste e o desconforto do 8º ano, trazido pelo uso do corpo e de um novo espaço, trago nas aulas seguintes alguns exemplos em vídeo de como a movimentação por nós experimentada nas aulas anteriores aparece ao redor do mundo. Seja no diálogo corporal entre Susanne Linke e Koffi Koko (2014)7, artistas da dança, seja em peças famosas como a Sagração da Primavera, dançada pela companhia senegalesa École des Sables (2020)8, algumas pessoas relatam surpresa, especialmente quando se veem capazes de se movimentar de maneira semelhante, ou até mesmo que as propostas que realizaram em aula poderiam ser consideradas dança. No entanto, há um tom de ironia no ar, agravado pela insistência para que participem. O professor preceptor e eu muitas vezes nos vemos sós, apesar de cercados por alunos.
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6. GREEN Book: O Guia. Direção: Peter Farrelly. EUA: Universal Pictures, 2018. 7. SUSANNE Linke und Koffi Koko in der Akademie der Künste. Vídeo. 2014. Disponível em: <https://youtu. be/djRXqPn7yIo?si= Tjj8qrZ6lzfRVPLQ>. Acesso em: 24 jul. 2024. 8. DANCING at Dusk – A moment with Pina Bausch’s The Rite of Spring (Excerpt). Vídeo. 2020. Disponível em: <https://youtu.be/ Q22Zdh8w4q4?si= lBJzYvtOGRe-aBup>. Acesso em: 24 jul. 2024.
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9. A ODISSEIA Cíclope (The Odyssey - Cyclops). Direção Andrey Konchalovsky. 2011. Disponível em: <https://youtu.be/ k5OERqTniro?si= dPXC5BG2dwTQpEwG>. Acesso em: 24 jul. 2024.
Após o período das férias de julho, o desafio por mim idealizado se intensifica: realizar a mesma proposta teatral com gerações diferentes, agora envolvendo a Odisseia e também o 3º termo da educação de jovens e adultos. Esta turma tem apenas uma aula de artes por semana, às terças-feiras à noite, contra duas para o 8º ano, uma às segundas e outra às sextas-feiras à tarde. Meu planejamento inicial consiste em seis aulas para cada turma. Em resumo, estas aulas visam estudos do movimento e de princípios de dança para experimentação e construção de repertório, em diálogo com aproximações artísticas da Odisseia, para criação, compartilhamento e avaliação de cenas. A partir da resistência verificada no 8º ano para as propostas anteriores envolvendo movimento, e de sugestões de colegas da Universidade de São Paulo que regem aulas de artes para crianças, aproximo a história da realidade da turma e inicio o programa por uma ordem diferente da prevista. Por exemplo, digo que é possível ver narrativas clássicas refletidas em produções contemporâneas: “Um príncipe que vinga a morte do pai pelo tio. Você nota alguma semelhança com O Rei Leão?”, pergunto a uma aluna que havia lido Hamlet. Ela se espanta, sorrindo. “Será mesmo que as sereias foram sempre assim como Ariel, da Disney?”, digo enquanto exibo uma gravura da versão devoradora de marinheiros, do livro Odisséia (2005), de Adrian Mitchell, emprestado pelo professor preceptor. Expressões de espanto. Notando algum interesse da turma na Odisseia clássica, trago o foco para três pontos da narrativa: o enfrentamento do ciclope por Odisseu, sua resistência ao canto das sereias, e o suposto heroísmo do protagonista. “O ciclope é um gigante que usa da violência para dominar os outros. A violência é a força que nos obriga a fazer o que não queremos”. Com esta fala, apresento à turma uma cena do filme A Odisseia (1997)9, em que Polifemo, ciclope filho do deus dos mares Poseidon, aprisiona Odisseu e parte de sua tripulação em sua caverna, para então devorá-los. Após algumas mortes, o rei de Ítaca não mata o gigante, mas se aproveita do sono da criatura para cegá-la. Desesperado, Polifemo retira a enorme pedra que cobre a entrada da caverna para pedir ajuda a seus irmãos
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ciclopes, abrindo caminho para a fuga de Odisseu e seus homens, disfarçados em meio ao rebanho de cabras do monstro. Em seguida, exibo o trecho correspondente do filme inspirado em Ulysses, de James Joyce, mas em que o ciclope é um valentão de bar que usa um tapaolho. O protagonista Leopold Bloom o enfrenta, mas apenas com suas palavras, em Alucinação de Ulisses (1967)10. Em outro momento da aula, munido da gravura no livro emprestado a mim, evoco a passagem em que a tripulação, de ouvidos tapados por advertência divina, amarra Odisseu ao mastro do navio, a seu pedido. Assim, o rei de Ítaca ouve o canto das sereias, mas sem se entregar ao destino fatal que o aguardaria se a ele cedesse. Em seguida, exibo um trecho da cena que corresponde a esta passagem no filme baseado em Ulisses, quando os protagonistas Leopold Bloom e Stephen Dedalus entram em um bordel, mas resistem a seus “encantos”. Com estes exemplos de superação, pergunto ao 8º ano: “A que ciclopes enfrentamos no cotidiano? Algo mais forte que nós, mas que é possível vencer?”. “A escola.”. “Minha mãe.”. “A louça.”, respondem, após alguma insistência. Vou além: “A que tentações vocês devem resistir para não serem devorados? Os celulares, talvez?”. “Nossos videogames, professor.”, alguns meninos dizem rindo, sugerindo outro tipo de distração. “Odisseu foi mesmo um herói?” pergunto. “Não, pois salvou somente a si mesmo.”, uma aluna responde. “Como essas histórias se relacionam à vida de vocês? Fiquem com essa questão na cabeça.”, digo por fim. Estas três ideias que emergem da aula, baseadas em enfrentar, resistir e do heroísmo em si norteiam um replanejamento das aulas seguintes. No entanto, no encontro seguinte apenas dois alunos aparecem. Dizem que a turma havia combinado uma falta coletiva, prática comum segundo o professor preceptor e já percebida por mim. Respiro fundo e reviso o conteúdo da aula anterior, já que ambos também haviam faltado na ocasião. Tendo em vista as ausências, a resistência a propostas corporais mais abstratas, como as baseadas em Laban, o tempo insuficiente para se
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10. JAMES Joyce Ulysses, 1967, Stefan Classic Films. Vídeo. Direção Joseph Strick. 2021. Disponível em: <https://youtu. be/h7xAM_eXuuk?si= l0Pe3jAtRzELYCrT>. Acesso em: 24 jul. 2024.
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estudar mais a fundo todas as partes da Odisseia, bem como a importância simbólica de se expressar artisticamente os desafios e lutas de nossas vidas, proponho ao 8º ano no próximo encontro jogos teatrais adaptados às temáticas abordadas até então. No caso, os jogos do “samurai” e da “medusa”: em vez de guerreiros que tentam golpear com suas espadas a pessoa ao lado, tripulantes que devem furar o olho do ciclope, enquanto este deve se abaixar e em seguida arremessar uma grande pedra para seu irmão, emitindo um som; em vez de um ser que transforma com o olhar invasores que se aproximam em pedra, uma sereia, que devora marinheiros que se ainda se movem quando seu canto cessa. A adesão à proposta é praticamente total. Animado pela participação, na aula seguinte proponho que a turma crie cenas baseadas nas ideias de enfrentar, resistir, ou em algum “heroísmo cotidiano”, relacionando-as com sua própria realidade e sem falas, para incentivar a movimentação corporal. Quando proponho um aprofundamento das cenas criadas, muitas reclamações: “para que repetir se já fizemos?”. Ainda assim, surge novamente uma fada que enfrenta aquela que a traiu, e um garoto que enfrenta a mãe para ter o celular de volta. Neste último caso, trata-se de uma situação autobiográfica e possivelmente sensível para um dos integrantes do grupo, tendo em vista seus relatos pessoais e histórico disciplinar na escola. Apesar da grande resistência e impaciência, o aluno em questão é um dos que mais se entrega e participa das propostas, ainda que demonstre irritação. “Vocês já fizeram teatro? Não? Pois levam jeito até para a direção.”, digo a ele e a um colega de comportamento semelhante, propositalmente quando estão longe da turma. O comentário leva ambos a uma reflexão silenciosa. Na aula seguinte, proponho um jogo de criação de imagens corporais, em que as pessoas devem entrar em cena sucessivamente para compor uma imagem e ao final dar um título para a composição, mas baseando-se nas passagens do ciclope e das sereias. Após longa resistência, a turma toda participa, com ajuda do professor preceptor. Ao final, peço a alteração de um elemento de umas das imagens criadas, e um dos alunos mais
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inquietos no dia-a-dia altera a posição dos braços do arremesso de uma pedra pelo ciclope, sugerindo um jogo de basquete. No encontro posterior, a proposta de criação de imagens se baseia em trechos literários de A floresta do Adeus, conto de Doramar ou a Odisseia (2021), escrito por Itamar Vieira Jr., em que um grupo de pessoas encontra um prisioneiro membro da família, para entregar pães a ele. Os diferentes pontos de vista da narração, em terceira e primeira pessoa, são um desafio a meu ver. No entanto, “o que importa é que haja leituras e que elas sejam explicitadas”, sugere a professora Maria Lúcia Pupo quanto às cenas e imagens criadas, em uma aula de que participo, ao longo da graduação. Em seu livro Entre o Mediterrâneo e o Atlântico, uma aventura teatral (2005), igualmente tenho mais exemplos de como trazer a literatura para o corpo. Tento propor alguns deles à turma, como leituras ao pé do ouvido, a pessoas de olhos fechados. A dificuldade de abstração e o cansaço com as aulas práticas aparecem, apesar de um “até que foi legal”, ao fim da aula, por uma das alunas mais resistentes. Para modificar o ambiente e atenuar o desgaste verificado, na aula seguinte exibo gravações da peça ULYSSES: ÉOLO (2022)11, para fruição, estudo de repertório e debate. Por fim, proponho na última aula do bimestre e como forma de revisão, um jogo de imagem-ação, baseado em passagens estudadas da Odisseia. Ironicamente, a participação é total, provavelmente pela omissão dos termos “teatro” ou “dança”, ao longo da atividade. A partir de uma sugestão do professor preceptor quanto ao 3º termo da educação de jovens e adultos, para que eu foque na movimentação corporal relacionada à realidade da turma, adapto algumas das propostas feitas ao 8º ano, tendo igualmente em vista o tempo dado de apenas uma aula por semana, além da nova faixa etária. Assim, às terças à noite, apresento já na primeira aula parte da metodologia sistematizada por Laban: fatores de movimento como peso, tempo, fluxo e espaço, e ações de esforço, como pressionar, sacudir, flutuar, socar, deslizar, chicotear, pontuar e torcer. Pergunto sobre ações similares presentes nos trabalhos dos estudantes, e aparecem algumas relações. Por exemplo, quando um deles diz que passeia com cachorros, identificamos a ação de pressionar,
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11. Peça com direção do autor.
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mesmo que o sentido da ação seja inverso, ou seja, quando ele puxa as coleiras para controlar os animais. Outro identifica a ação de pontuar, quando digita algo no computador. Ele também aplica esta assimilação até o final do bimestre, em outras situações. Na aula seguinte, para apresentar alguns princípios de dança clássica e moderna ao 3º termo, exibo trechos em vídeo de versões de A Sagração da Primavera, como a da École des Sables, mas também de outras companhias pelo mundo, para também tratar da importância de novos pontos de vista sobre um mesmo assunto. Pergunto como podemos analisar os movimentos das coreografias a partir de fatores expressivos e ações de esforço sistematizados por Laban, após uma rápida revisão dos mesmos. Noto que há atenção à aula, mas alguma dificuldade de abstração para responder às perguntas. Também percebo alguns atrasos e novas pessoas na turma, e me pergunto como envolver eventuais estudantes que faltam ou se dispersam em celulares, sem prejuízo das demais pessoas que prestam atenção. No encontro posterior, trago novamente as cenas cinematográficas de A Odisseia (1997) e Alucinação de Ulisses (1967), para apresentar as temáticas envolvendo o ciclope, as sereias e o heroísmo em si. “Levantar cedo. Ir ao bar”, a turma menciona em relação ao que deve enfrentar ou resistir em seu cotidiano. “Nem sempre heroísmo é salvar alguém. Se a pessoa for um bom pai, por exemplo, já pode ser considerado um herói para o filho.”, diz um estudante. Para a aula de criação de cenas baseadas em enfrentar, resistir, ou em algum heroísmo cotidiano, os três grupos formados pela turma propõem uma confusão em uma loja, um salvamento após um assalto, e a descoberta de algo valioso em uma mina. É notável também o enfrentamento coletivo da vergonha de estar em cena, dos risos nervosos de si e de colegas. O fato de cada grupo ter uma sala apenas para si para a criação das cenas, dado o baixo número de turmas à noite, provavelmente os ajuda para o ganho da intimidade e da coragem necessárias para o compartilhamento das propostas cênicas, ao final da
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aula. Após alguma resistência, todos os grupos apresentam as cenas e se divertem com isso. Na semana seguinte, proponho um estudo de alguns fatores expressivos de movimento presentes em certas ações de cada cena apresentada, como pontuar, flutuar e torcer no escolher; chicotear, pressionar e chacoalhar em bombear; e socar e deslizar, ao se minerar. A proposta também visa desenhar melhor a corporeidade para, por exemplo, não se encobrir colegas em cena, além de se ganhar amplitude de movimentação e se praticar alguma abstração nos movimentos, desejavelmente, experimentando-se o que entendemos por dança. Peço para que escolham o lugar, para uma maior cumplicidade, e vamos à sala de leitura. Relembro as cenas criadas com senso de humor, para “quebrar o gelo”. Sorteio a cena inicial, para despertar uma mentalidade mais “lúdica”. Faço uma revisão rápida de ações de esforço e fatores expressivos de movimento e finalmente pergunto: “como salvamos alguém?” Conto sobre quando fiz um curso de primeiros socorros. “O que está envolvido em bombear?”, continuo. Percebendo a tendência do grupo em fazer um gesto de arma com as mãos, digo: “como fazer um assalto sem arma?”. Da pergunta, proponho um jogo em que devemos “furtar” os celulares um dos outros com um gesto pontuado. Mais adiante, pergunto: “como mineramos algo? Em que direções isso pode acontecer? Onde está esse objeto de valor?”. Noto a importância das perguntas para além das afirmações, que provavelmente anulariam a experiência. “Posso só olhar?” indagam, com timidez. “Vamos experimentar isso no corpo”, encorajo. “Como tirar, pegar para si? Experimentem puxar um colega, gentilmente, com diferentes acelerações”. Pela primeira vez, estudantes se tocam no exercício, com alguma vergonha e risos nervosos, mas prosseguindo. “Como escolher? Vamos experimentar, escolhendo algum livro desta sala”, prossigo. “Na discussão na loja, levei um empurrão”, alguém relembra. “Vamos experimentar esse empurrão com algum colega, mas gentilmente. Ao empurrar, aquela parte do corpo é mobilizada. Agora de olhos fechados”, sugiro. Notando o desconforto trazido pelo desconhecido, digo: “ agora vamos fazer de maneira coletiva cada movimento, dentro de cada cena”. Surge então um pequeno coro de assaltantes, outro de salva-vidas, e
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algumas “vítimas” risonhas, que se levantam e fogem antes de serem salvas. Acompanho as pessoas mais tímidas. Como salvá-las desse desconforto com o próprio estar no mundo? “Sem vítimas, o que esses gestos se tornam, voltados um para o outro?”, pergunto. Ao deslocar os movimentos de suas intenções originais, entre as poucas pessoas que se arriscam nesta proposta, surgem danças, diálogos corporais e relações entre colegas, mas tão breves como no 8º ano. Estas ações são vistas por algumas pessoas com novos sentidos. “Parece um jogo de tênis.”, diz um estudante, quando o movimento da picareta na mina se desloca pelo espaço, nas mãos de outras pessoas. “O que isso se torna quando usamos fluxos indiretos, pesos e velocidades diferentes? Para demonstrar algo pesado precisamos fazer força? O que esses movimentos se tornam, enfim? Dança? Teatro? Cada pessoa oferece um sentido, quando não se é literal.” digo. Alguns concordam. A maioria fica em silêncio. Um colega residente aponta uma certa confusão didática minha, após a aula. Penso em como revelar a beleza e o heroísmo do cotidiado àquela turma de jovens e adultos, o que provavelmente não está sob meu controle. Apesar de uma menor resistência a propostas mais abstratas, como as relacionadas a fatores expressivos de movimento, pergunto-me se esta turma também não poderia ter se beneficiado de jogos teatrais adaptados, como os baseados no do “samurai” e no da “medusa”. Minha ideia inicial era a de oferecer uma base de movimentação sistematizada, como a feita por Rudolph Laban, para que ambas as gerações de estudantes pudessem ampliar seu repertório corporal, a fim de experienciá-lo nas aulas seguintes, desejavelmente ampliando seus valores éticos e estéticos, gradativamente. No entanto, talvez os jogos com instrução, foco e avaliação ainda sejam um caminho mais prático para uma perda da inibição e para a descoberta do prazer em se mover e em tornar algo teatral. Estes desafios, como se enfrentar a vergonha e se repetir algo já feito, são universais. Apesar de se tratar de um trabalho com diferentes gerações, talvez o caminho possa, na verdade, ser o mesmo: o do jogo.
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Mesmo assim, e principalmente por conta do tempo mais limitado, não proponho ao 3º termo da EJA os jogos teatrais adaptados do 8º ano. No entanto, a mesma proposta de leitura e criação de imagens corporais a partir de trechos de Doramar ou a Odisseia, na aula seguinte, provoca engajamento inusitado, diferentemente do que ocorrera com os préadolescentes. Como quando um dos estudantes mais inquietos e tímidos decide ler para dois funcionários da escola, que observavam de longe a aula. Ou, perto dali: “estou me sentindo uma pastora, pregando”, diz uma aluna que lê para outra, que está de olhos fechados. A aula tem como objetivo trabalhar abstração, criação de imagens corporais e coletividade. Também visa reconhecer alguma mitologia presente na Odisseia em outros espaços e tempos. Apesar da resistência e do desconforto, há momentos de concentração, como em algumas leituras ao pé do ouvido. A criação coletiva das imagens mobiliza os dois grupos formados. No entanto, ao se ver observada por colegas de outra turma que transitavam pelo pátio, a maioria desiste de compartilhar as cenas ali. Na semana seguinte, a turma se nega novamente a compartilhar as cenas criadas na aula anterior, por timidez e pela falta de algumas pessoas. Assim, neste que também é nosso último encontro previsto, assistimos a trechos das gravações de ULYSSES: ÉOLO (2022), em que inclusive algumas das ações vistas nas cenas trabalhadas anteriormente vêm à tona, como minerar. “E se ganha para isso?”, alguém pergunta, quando menciono que a peça é fruto do trabalho do grupo de pesquisa do qual participo. “Às vezes. Vocês acham que isso é pesquisa?”, respondo. “Sim, pesquisar não precisa envolver só papel e caneta”, diz uma aluna. Lembro-me de quando decidi entrar para o grupo, movido pelo desejo de tornar inúteis fronteiras entre linguagem, arte e vida. “Alguém teria coragem de participar de uma peça assim?” indago, no sentido de enfrentarem o desconhecido, a timidez e o inusitado. “Eu teria”, uma aluna responde.
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3 \ O PROFESSOR É UM HERÓI? (Considerações finais) A história é mais ou menos conhecida: Odisseu constrói uma armadilha para vencer a Guerra de Tróia. Escondido com soldados gregos em um cavalo de madeira, entram pelas muralhas da cidade onde está Helena. À noite, saem do esconderijo e massacram qualquer pessoa que se oponha ao resgate da rainha. O que não se sabe ao certo é se ela queria ser resgatada. Também é controverso o desejo de Odisseu por estar na guerra: sua maior habilidade era a de cuidar: de Ítaca, da esposa Penélope, do filho Telêmaco. Um astuto rei que não passava de um homem da terra. Com Odisseu, doze navios partem de Tróia, em uma viagem de volta que não deveria durar mais que algumas semanas, mas não. No caminho, lotófagos: um povo viciado em algo que lhe afeta a memória e dá prazer. Ciclopes: pastores gigantes de um único olho. Éolo: deus que presenteia Odisseu com os melhores ventos, mas o vê traído pela desconfiança da tripulação. Canibais: devoradores de marinheiros que usam suas filhas para atraí-los e que destroem seus navios a pedradas. Circe: feiticeira que transforma homens em animais de estimação. Hades, o mundo dos mortos. Sereias: seres que cantam para devorar os iludidos que se aproximam. Cila e Caribde: mulher transformada em monstro de muitas cabeças e um redemoinho que devora embarcações inteiras. Calipso: ninfa que aprisiona Odisseu por sete anos ao se apaixonar por ele. Nausica: princesa que se compadece e ajuda Odisseu juntamente com a deusa Atena. Vinte anos depois, o rei é o único que chega a Ítaca com vida. Ainda assim, encontra um exército de pretendentes que deseja sua esposa e seu trono. Pela compaixão de alguns deuses e deusas, e pela astúcia de Penélope, que desmancha uma mortalha à noite enquanto a tece durante o dia, Odisseu é o único capaz de vergar o arco e disparar uma flecha pelos aros de 12 machados, revelando seu disfarce de mendigo. Enfrenta e vence os usurpadores, ao lado do filho e dos servos. Parentes das vítimas e sobreviventes voltam para se vingar mas, pelo sacrifício de animais a deuses ainda em fúria e pela intercessão de Atena, Odisseu é deixado em paz para viver e morrer ao lado da mulher, do filho e da terra que ama.
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Há quem também conheça esta: o professor constrói uma armadilha para trabalhar com o que gosta e enfrentar a guerra pela sobrevivência. Enquanto faz bicos em outras áreas, dá aulas em mais de uma disciplina, em mais de uma escola, em mais de um horário. De dia, ensina crianças e adolescentes. À noite, encontra seus alunos jovens e adultos, também cansados do dia de trabalho, para ensinar o que for possível. O que não se sabe ao certo é se todo mundo ali deseja aprender. Também é controverso o desejo do professor por estar na escola: sua maior habilidade era a de escrever: com palavras, luz, sons e corpos. Um astuto artista que não passava de alguém tentando trabalhar com outras linguagens, mas que não conseguia viver disso. Com o professor, doze semestres de formação universitária partem em uma tranquila viagem de alguns anos até a estabilidade financeira. Mas não. No caminho, dependentes digitais: vítimas recentes de uma crise sanitária global e de grande exposição a estímulos que afetam a concentração e dão prazer. Escola: uma gigante secular que, apesar dos avanços, ainda obriga a estar onde não se quer, por anos a fio. Inteligência artificial: mecanismo que poderia ajudar a educação, mas que realiza trabalhos escolares inteiros. Polarização política: discursos extremistas e sedutores que mascaram interesses privados e também devoram desavisados. Telefones celulares e fones de ouvido: dispositivos que enfeitiçam por sua capacidade de entreter e tornam alunos e estudantes em gamers. Educação de jovens e adultos: o mundo dos que não tiveram “mérito”. Redes sociais: armadilhas que oferecem a seus “usuários” prazer instantâneo em troca do comércio de produtos, serviços ou atenção. Famílias e fake news: supostos espaços de proteção, transformados em lugares de negação e doutrinamento, e um redemoinho de desinformação que engole instituições inteiras. Pósgraduação: entidade que aprisiona o professor por sete anos ao encontrar valor em suas habilidades. Coordenação pedagógica: profissionais que se compadecem e ajudam o professor juntamente com licenças de saúde e férias remuneradas. Vinte anos depois, ele chega à idade da suposta aposentadoria com vida. Ainda assim, encontra um exército de contas a pagar, editais e concursos que rejeitam seu trabalho. Pela compaixão de governos mais ou menos progressistas, e pela astúcia da companheira, que estudava para cargos melhores à noite enquanto trabalhava de dia,
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o professor também consegue um salário digno, trabalhando por mais 12 anos e revelando seu disfarce como artista. Enfrenta a competição por editais, verbas de pesquisa e vence a burocracia e a pressão por produtividade acadêmica, ao lado de seus alunos e orientandos. Artistas, professores e estudantes que invejam seu sucesso tentam difamá-lo, mas pelo sacrifício de seu ego e de seu medo, e pela intercessão da dignidade, o professor é deixado em paz para viver e morrer ao lado das artes, de quem ama e onde quer. Esta jornada sugere uma característica marcante do trabalho com educação: para chegar onde desejamos, quase sempre devemos fazer o que não queremos. Ela poderia resumir minha experiência e projetar outras como professor, artista e pesquisador ao longo dos anos, mas também poderia abarcar a história de muitas pessoas, especialmente da área de artes, que enfrentam o sistema e outros desafios da vida cotidiana, resistindo a muitas de suas tentações, para chegarem onde desejam. Esta metáfora também tem a ver com o processo educacional: se educar é conduzir, e se estamos em constante movimento, no mesmo barco, dificilmente chegaremos onde desejamos se os ventos não forem propícios: se não houver dignidade no trabalho, ou se houver tripulantes remando contra, sem confiança. Odisseu nunca foi mais herói do que quando decidiu que iria sozinho atrás de sua tripulação em perigo. Ou será que tinha medo de ficar só? O professor em formação que enfrenta sozinho o desconhecido e o sistema onde se insere também corre o risco de não chegar onde pretende. Corre o risco de dar aulas tecnicamente possíveis, seguindo o livro didático, mas vazias de experiência e sentido. Ou mesmo de assumir a responsabilidade de outros profissionais, pois, parafraseando-se uma professora orientadora do programa de residência pedagógica: “às vezes, é mais fácil fazer nós mesmos do que mexer nas estruturas.”. No entanto, quando esta pessoa docente é percebida como autoridade pela turma, a partir da confiança construída no cotidiano, por seu dever para com o
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ensinar, e o afeto pelo que ensina, sua “tripulação” dificilmente a deixará só na jornada. Esta autoridade nada tem a ver com autoritarismo. Ela se cria à medida que nos responsabilizamos pelo que dizemos e fazemos em aula, sem delegar esta tarefa a quem quer que seja. A confiança também não pode ser imposta. Ela simplesmente surge à medida que a relação pedagógica se desenvolve no tempo. Ensina-se por dever. Aprende-se por amor, parafraseando-se outros professores que marcaram esta jornada. Sereias, assim como muitos artistas, no fundo, cantam para saciar a fome. O ciclope é um monstro que usa da força para igualmente matar a fome. No entanto, também sabe cuidar de seu rebanho e pedir ajuda quando se sente em perigo. O ciclope pode ser um professor que grita em sala de aula, ou um aluno que se torna violento, ao ser exposto e excluído pela turma. A violência é cega, como um gigante ferido. Ela põe em risco a dignidade. Quem seria meu ciclope? Seria o 8º ano, que mal sabe a que está sujeito quando retira o celular do bolso a cada cinco segundos? Ou seria o celular em si? Seria o mercado artístico fora da sala de aula um afinado canto de sereias? As metáforas proporcionadas pela mitologia para nossas vidas cotidianas são infinitas. São dotadas de uma sabedoria ancestral que nos convida a revisitá-las e a transformá-las em arte desde sempre, desde antes da Odisseia. Não se pode prever o resultado de um convite, a menos que se use da força ou da ilusão. Com dignidade, é possível, a cada aula, convidarmos nossas turmas a embarcarem rumo ao conhecer, ao fazer, ao fruir. Com um toque de “malandragem”, podemos evitar a tirania docente, canalizando nossa força vital e nossos “truques” educacionais de acordo com cada realidade enfrentada.
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Dignidade, malandragem. Força e ilusão. No ensino de artes, o lúdico é vento importante para se atravessar o caminho proposto. Às vezes, a confiança é traída, o saco dos ventos é rasgado e a tempestade perfeita se forma. Novos anos se passam para que se encontre o rumo, o sentido. Mas educar é conduzir. É entrar no barco e remar, quando não há vento. Apesar da resistência e do desconforto, tanto 8º ano quanto 3º termo participam das propostas envolvendo corpo e literatura. Esta participação, mesmo repleta de timidez, deboche, ou incompreensão aponta para algo que afeta. Desejavelmente, este afeto abre portas para outros valores éticos e estéticos, como a beleza do comum. O heroísmo possível no ordinário. Partir de uma realidade hostil e superá-la, à sua maneira. As temáticas presentes na Odisseia como enfrentar, resistir e do heroísmo em si abrem portas para proposições artístico-pedagógicas ainda mais profundas. Entre os resultados observados, vejo o enfrentamento da inibição e da inércia por estudantes de diferentes gerações, com alguma resistência ao uso abusivo do celular. Estes fatores são a meu ver determinantes para o estudo das artes pelo viés do corpo e em diálogo com a literatura. Esta linguagem nos auxilia a ver o mundo pela perspectiva de outras pessoas, contribuindo para o desenvolvimento de nossos valores éticos, estéticos, e de nossa sensibilidade e humanidade. A dança, ou ainda timidamente, as imagens corporais e os jogos teatrais, contribuem para que tudo isso se torne parte do corpo. Ou, como define este 8º ano: “A dança é uma cultura de movimentos do corpo que começou como uma brincadeira.”. Restam algumas questões críticas sobre o trabalho desenvolvido. Houve empobrecimento das propostas iniciais em função da resistência e da inibição? Como enfrentar a cultura capitalista que chega às turmas pelo celular? Devemos engajar quem falta às aulas ou focar em quem participa delas? O professor é um herói? Algumas pistas novamente aparecem no trabalho do professor Joseph Campbell:
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Uma das muitas distinções entre a celebridade e o herói, ele dizia, é que um vive apenas para si, enquanto o outro age para redimir a sociedade. (CAMPBELL apud MOYERS, 1991). Assim, estudamos e lecionamos o que aprendemos em um ciclo sem fim, não com o intuito de nos tornarmos célebres, mas para servir à sociedade, a nossos Telêmacos, Penélopes e Ítacas. Talvez esta seja a síntese do que finalmente percebi nesta iniciação à docência, enfrentando ciclopes, resistindo ao canto de sereias e, cotidianamente ampliando meus próprios valores, no fim das contas. O feitiço virando-se contra o feiticeiro, como em uma boa história. O professor é um herói!
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\ REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 1974. BERTAZZO, Ivaldo. Cidadão corpo: identidade e autonomia do movimento. 3. ed. São Paulo: Summus, 1998. BONDÍA, Jorge Larrosa. Notas sobre a experiência e o saber de experiência. Rev. Bras. Educ. 2002, n.19. Disponível em: <ttps://doi. org/10.1590/S1413-24782002000100003>. Acesso em: 1 abr. 2024. CAMARGO, Andréia V. A. Comunicação com comunidade: mover e soar para recobrar o rito. Rebento, São Paulo, n. 15, p. 90-103, Jul-Dez 2021,. Disponível em: <https://www.periodicos.ia.unesp.br/index.php/rebento/ article/view/699>. Acesso em: 27 out. 2023. CAMPBELL, Joseph & Moyers, Bill. O poder do mito. São Paulo: Palas Athena, 1991. MITCHELL, Adrian. Odisséia. São Paulo: Companhia das Letrinhas, 2005. PUPO, Maria Lúcia de Souza Barros. Entre o Mediterrâneo e o Atlântico, uma aventura teatral. São Paulo: Perspectiva, 2005. VIEIRA JÚNIOR, Itamar. Doramar ou a Odisseia. São Paulo: Todavia, 2021.
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\ ficha técnica
\ conselho editorial
\ diagramação
Andréa Martins
Iara Pierro de Camargo (terceirizada)
Annie Martins Carlos Gomes
\ supervisão de projeto gráfico
Galiana Brasil
Guilherme Ferreira
Kleber Lourenço Natalia Souza
\ produção editorial
Renata Pimentel
Bruna Guerreiro
\ comissão de seleção Annie Martins Carlos Gomes Kleber Lourenço Renata Pimentel
Dados internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Fundação Itaú | Itaú Cultural A Ponte / organizado por Itaú Cultural, Annie Martins, Carlos Gomes, Kleber Lourenço e Renata Pimentel ; vários autores . - São Paulo : Itaú Cultural , 2024. PDF ; 554 p. ISBN: 978-85-7979-176-5 1. Artes da Cena. 2. Teatro. 3. Circo. 4. Estudos de gênero. 5. Corporeidades. I. Instituto Itaú Cultural. II. Fundação Itaú. III. Título. CDD 790 Bibliotecária Ana Luisa Constantino dos Santos CRB-8: 10076/O
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foto: foto :Agência AgênciaOphelia Ophelia
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