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SUMÁRIO
EDITORIAL A UTOPIA, TEMA DE ARTE E REFLEXÃO CRÍTICA João Almino UMA PALAVRA APENAS Fábio Pessanha MESMO SABENDO QUE O SHOW UMA HORA ACABA Luiz Henrique Moreira Soares O POEMA NÃO É MAIOR QUE UM GRÃO DE AREIA Luiz Carlos de Moura Azevedo A MENINA QUE SONHAVA Fabíola Fernandes Soares AS SEMENTES QUE BROTAM DE LÁGRIMAS Dino Siwek REPRODUÇÃO DE USO PESSOAL Cupertino Freitas A MENINA ILUMINADA Deneli Rodriguez A MULHER FLEXÍVEL Jonatan Magella TITÂNICA Mauro Bartolomeu QUADRILHA Cristiane Quinta
O pensar utópico contorna a crença na vida como ela é – o realismo inescapável. Utopias e distopias enfocam a vida como poderia ser, para o bem ou para o mal. Mas por que seria relevante se dedicar a esse tipo de exercício? Fora a atração particular que obras do tipo provocam no público hoje – pelo menos no que se refere às distopias, uma resposta a essa questão está em uma fala de Milton Santos (1926-2001). O geógrafo disse que “o presente é a escolha de futuros possíveis”. O que essa frase implica é que o horizonte do presente será mais ou menos estreito de acordo com o quanto de potencialidade nós pudermos ver nele. Criar futuros não seria, portanto, uma fuga, mas um alargamento. Nesse sentido, as perspectivas utópicas ou distópicas intuem tendências que podem ou não ser realizadas, ou denunciam faltas que se perpetuam com nosso assentimento ou não. Propõem: veja, isso que temos está prestes a se tornar outra coisa – queremos que seja assim? Provocam: isso que temos é inaceitável, precisamos de algo novo; e nos deixam a pensar – como alcançar o novo? Certamente implica começar a pensar nele. Os textos nesta publicação – entre contos e poemas – lidam com essa problemática por várias vias. Selecionadas entre cerca de 500 submissões recebidas por chamada aberta, são dez produções que demonstram como o entendimento de utopia é múltiplo. Pensar o futuro, avisam-nos esses escritores, é tanto figurar mundos idealizados quanto fazer outras leituras do cotidiano. Pode ser a recriação das práticas sociais ou o pedido simples de respeito no dia a dia. O encontro ou o desencontro com o que seria o grande sentido da vida ou o brincar com vários sentidos, as palavras, as experiências. O processo de seleção para a produção deste e-book foi feito entre fevereiro e abril de 2019. Uma equipe do Itaú Cultural leu todos os textos inscritos, avaliando a adequação ao tema proposto, a qualidade e a criatividade do texto. Os cinco mais pontuados foram premiados – Cupertino Freitas, Dino Siwek, Fábio Pessanha, Fabíola Fernandes Soares e Luiz Carlos de Moura Azevedo. O instituto também selecionou cinco menções honrosas – Cristiane Quinta, Deneli Rodriguez, Jonatan Magella,
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Luiz Henrique Moreira Soares e Mauro Bartolomeu. O resultado final exibe grande diversidade de estilos. Além das produções literárias, esta publicação conta com um prefácio escrito por João Almino, escritor e diplomata, autor de diversos livros de ficção e não ficção. Almino, seja na sua literatura ou em reflexões sobre o filósofo Thomas More, tem se interessado pelo tema da utopia há tempos. Com essa bagagem, ele apresenta os textos selecionados. Conheça outros conteúdos relacionados à literatura produzidos pelo Itaú Cultural no site itaucultural.org.br. Conhecimento de base sobre os nossos escritores – e sobre artistas de outras áreas – está acessível na Enciclopédia Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras – em enciclopedia.itaucultural.org.br – e no site do programa Ocupação, que apresenta estudos aprofundados da vida e da obra dos nossos criadores: itaucultural.org.br/ocupacao.
Itaú Cultural
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A UTOPIA, TEMA DE ARTE E REFLEXÃO CRÍTICA por João Almino
A utopia pode ser vista como a reorganização do caos presente ou como um farol que se distancia à medida que nos aproximamos, que nos estimula a sempre caminhar.
Utopia é um tema ao qual tenho me dedicado ao longo de muitos anos, seja em ensaios, seja na ficção. Nos primeiros, comecei pelo grande clássico que criou o termo e o conceito: Utopia, de Thomas More. Utopia era uma ilha imaginada por More para refletir sobre uma sociedade ideal, abrangendo sua organização interna e sua relação com outros povos. Achei que eu poderia dar duas contribuições ao muito que se escreveu sobre o livro. Primeiro, lê-lo não como um tratado de filosofia, muito menos de moral, mas como uma ficção, o que também é. Basta lê-lo com atenção. Ali vamos encontrar mais de um More, nem sempre com opiniões coincidentes. Podem ser personagens de uma peça teatral. E o autor criou outro personagem-chave, Rafael Hitlodeu, de quem o narrador muitas vezes discorda. Achei que era importante chamar a atenção para este fato, que retira do texto clássico seu aspecto prescritivo, portanto coercitivo, e, no limite, conducente ao totalitarismo. Os embriões de ideias socialistas e liberais nele presentes têm aberturas dadas pela ficção, cuja natureza se presta à análise da complexidade social e de múltiplos pontos de vista.
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A UTOPIA, TEMA DE ARTE E REFLEXÃO CRÍTICA
JOÃO ALMINO
Também me interessei em analisar a relação entre a ilha de Utopia e outros povos, algo negligenciado pelos estudiosos do texto. Claramente, Utopia é um império que se considera superior e impõe seus valores, inclusive pela força. Por meio de suas estratégias, faz de outras nações suas dependentes econômicas. O livro de More foi um dos pontos de partida para uma ideia que desempenhou papel fundamental na filosofia, muito especialmente no século XIX. Pensemos no filósofo Karl Marx (1818-1883) e em sua crítica aos socialistas utópicos, entre eles Pierre-Joseph Proudhon (1809-1865). Apesar desta crítica, o próprio marxismo veio a ser visto como uma filosofia utópica. Mas o que fazer com esse tema no mundo contemporâneo? Na minha literatura, achei que poderia tratar da utopia através do projeto de Brasília. No século XIX, escrevia-se já sobre a necessidade de integrar, por meio da capital, várias regiões do país. Estava presente a visão do futuro, que no século XX ganhou uma dimensão de modernização e de ideal igualitário. O que me interessou foi confrontar a ideia utópica com a realidade que se construiu de maneira espontânea. De fato, em Brasília existe a história de uma utopia, construída ao longo de um século e meio, na ideia de interiorização da capital, interiorização que foi vista como instrumento de segurança, de desenvolvimento, de unidade e de integração nacional, de geração de riqueza, de irradiação equânime da administração, do bom governo, de autoridade que se espraia por todo o território nacional. Ou ainda, na dimensão mística, de terra prometida onde seria fundada uma nova civilização. À época de sua construção, o escritor francês André Malraux (1901-1976) considerou Brasília a capital da esperança, primeira das capitais da nova civilização e a cidade mais audaciosa que o Ocidente já havia concebido. Não preciso aqui me estender sobre os contrastes entre a cidade real e essas concepções; entre a história e os aspectos simbólicos e míticos. Registro apenas meu interesse, como já dito, em ressaltar os elementos ficcionais do grande referencial para o tema, que é a obra de More, bem como em incluir a questão da utopia entre os ingredientes de meus romances. 6
A UTOPIA, TEMA DE ARTE E REFLEXÃO CRÍTICA
JOÃO ALMINO
REPERTÓRIO DE UTOPIAS O uso da ficção e também da poesia para tratar do tema é uma marca potente do presente livro – e talvez por isso eu tenha sido convidado para escrever este prefácio. Nota-se nestes textos uma diversidade do que possa ser considerado utópico na sociedade, na política, nas relações pessoais, no conhecimento que se pode ter de si mesmo. Em alguns dos contos ou poemas, a utopia é considerada como um sonho inalcançável, que se contrapõe à realidade crua. É entendida como vontade, desejo ou mistério. Como esperança. Como uma busca da verdade, da felicidade, de uma luz sem sombras, de uma realidade que não seja mera aparência, de uma consciência e de uma identidade isentas de falsificação. Como desejo de se reinventar e de inventar um mundo. Como o novo. O futuro, para além da experiência individual. Ou então como mera estrada a percorrer. Noutros textos, não faltam elementos do que poderíamos chamar de distopias, utopias negativas. Elas são ecológicas, na narrativa trágica do desaparecimento de espécies. Ou podem estar presentes num conto futurista, no qual o narrador é um clone. Existe também a utopia possível, ou seja, a realização do que parecia impossível. Neste caso, não precisa assumir a forma de um modelo de futuro distante e perfeito. A utopia pode ser vista como a reorganização do caos presente ou como um farol que se distancia à medida que nos aproximamos dele, mas que nos estimula a sempre caminhar. Este livro mostra que o tema não deixa de ser oportuno e continua sendo boa matéria para a arte e a reflexão crítica, com grande variedade de expressões; que a ideia utópica não implica necessariamente regra, norma, coerção, mesmo quando signifique desejo ou sentido de direção.
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UMA PALAVRA APENAS por Fábio Pessanha
pudesse ser possível uma palavra apenas. talvez até quem sabe um gesto para refundar o delírio amoroso das gentes quando se dissesse um nome mais forte que o próprio nome e chegasse à voz o itinerário para a genealogia do afeto. fosse possível talvez o futuro dos que ainda se mantêm ingênuos, com as largas alças do vento atadas ao crepúsculo dos nervos, a fim de no ar parar a trajetória do que parece impossível e bem concluso. quem sabe ainda a generosidade das diferenças se acirrasse e se metabolizasse nas canções do mundo que deram errado. de repente, nenhuma rádio tocaria a mesma música duas vezes, nem a novela seria exibida em horário nobre, nem sofá teria para abrigar o conflito das famílias. depois da espera pelo que fosse importante esperar, as escolhas se dariam após se racharem os muros erguidos 9
UMA PALAVRA APENAS
FÁBIO PESSANHA
entre as costelas e as opiniões que se mantivessem serenas ante o genocídio das vozes... seriam o porto seguro de um novo dia. pudesse ser possível uma palavra cuja tarefa fosse encontrar quem nunca tenha tropeçado com o pé esquerdo naquela pedra encravada no meio da rua. seria então o fim de um filme de amor assistido sozinho, quando se descobre que o amor da sua vida era o endereço de uma rua onde se vendiam flores condenadas ao descaso de abelhas. uma solução pra isso talvez seja o poema sem título não ter respostas. não querer enxergar o futuro daquele beijo nunca recebido. quem sabe, talvez fosse possível uma palavra apenas. sem clichê ou temas, uma tal palavra que não dissesse. uma palavra que detivesse a felicidade de encontrar o elo perdido entre o futuro e o estampido seco do tiro que encheu de flores o lugar das frases malsucedidas. talvez
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UMA PALAVRA APENAS
FÁBIO PESSANHA
falte a palavra que organize o inventário das vontades de se fazer tudo de novo, e de novo o mundo se inventasse. de novo o sol amanhecesse na casa de portas abertas, com as janelas apontadas para o rosto das pessoas dispostas a serem o ventre de suas próprias finitudes. talvez fosse possível uma palavra que acenasse para o amanhã como ponte para todos os risos, que a gente se encante pelas pessoas como se a gênese do universo fosse apenas um abraço. de posse desse bem pertencente a todos nós, porém sob tanta tinta amalgamada, estaríamos todos habitando o afeto, quando será possível nascer como uma palavra nova no meio de uma frase bem escrita. e seria cada pessoa um futuro, um verso nesse poema eterno e curvo que se chama vida.
Fábio Pessanha é poeta, doutor em teoria literária e mestre em poética, ambos pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). É autor de A Hermenêutica do Mar – um Estudo sobre a Poética de Virgílio de Lemos.
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MESMO SABENDO QUE O SHOW UMA HORA ACABA por Luiz Henrique Moreira Soares
o vento estraçalha as samambaias penduradas no alto das varandas, bagunça as linhas de expressão no rosto velho do homem que acompanha a guerra. ele olha imóvel para o alto, observa a forma como o vento se choca contra os prédios. pensa nos pedaços de homens e mulheres que várias vezes se equilibraram nos fios, que várias vezes ganharam a vida e a morte se equilibrando nos fios e limpando vidros inalcançáveis. e nada acontecia. nada se movia. apenas o movimento cuidadoso das mãos e o contato do produto de limpeza com o vidro, antes de o corpo cair. e o corpo que se choca contra o chão, na mesma força com a qual o vento bate agora nos prédios. quando os corpos ainda caíam. o homem pensa que o vento sempre há de dar em algum lugar. pensa que o vento é o verdadeiro responsável pela sujeira dos apartamentos com plantas. que as samambaias estão há milênios penduradas e enganchadas no teto das varandas sujas dos prédios. que o vento sempre dá uma função para as samambaias. como estranhas sobreviventes e testemunhas de todas as revoluções. mas o vento é o único que nada sabe sobre o desemprego que ronda os desprevenidos. o homem caminha observando a sobrevivência das samambaias nas varandas. observa a força incomum das correntes. admira a força que as deixa firmes na luta contra o vento. anos atrás, ele lutava contra o vento. e lutava contra o peso das coisas, empurrando-as e levantando-as. ora com os dentes, ora com os cabelos. contra a força do chão. fazia isso ao vivo nos programas de tv – programas que eram feitos para as pessoas que empurravam coisas pesadas com os dentes e com os cabelos contra a força de deus. no tempo em que a força dos dentes e dos cabelos ainda aparecia na tv. o homem lembra a vez que levantou uma bola de
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MESMO SABENDO QUE O SHOW UMA HORA ACABA
LUIZ HENRIQUE MOREIRA SOARES
chumbo que pesava trezentos quilos. a vez que empurrou um carro com os dentes em apenas sete segundos. a vez que empurrou um carro lotado de cerveja com os dentes em apenas sete segundos. e lembra dos aplausos da plateia, fascinada, bestializada pela brutalidade artística de cabelos lisos e dentes brancos. no tempo em que tudo estava na tv e tudo tinha gosto de amendoim. o homem sente a força do vento no seu rosto. não com a preocupação de domesticá-lo ao seu próprio gosto. nem com a tentativa de espetacularizar a resistência. o homem sente o vento bater no rosto e passar por entre os braços, sente o vento mexer com a gola do blusão jeans com aquela mesma fúria dos filmes. pensa que deve mesmo admitir que nunca conseguirá ter a força e o equilíbrio das correntes que seguram as samambaias no alto das varandas. mas há algo muito maior do que a sua própria vontade, algo que faz como que seus ossos resistam e segurem o peso da carne, o corpo. o peso da vida. mesmo sabendo que nem a força e o equilíbrio das correntes podem com o tempo. não interessa. mesmo sabendo que os prédios estão condenados eternamente à sobrevivência. mesmo sabendo que não faz tanta diferença andar olhando para cima. aviões também não caem mais. que olhar demais para baixo não é um risco iminente. a extinção dos buracos. como no tempo em que as aventuras eram mais ou menos fantásticas. mas algumas coisas continuam, o cheiro da mulher depois do banho tomado, o peso do rosto da filha desabando na palma da sua mão, depois encolhendo o corpo pequeno no seu colo, em sono irresgatável. algumas coisas continuam e o homem caminha mesmo querendo parar. mesmo querendo observar as partículas do fim e do começo que tomam conta do mundo, corpos arremessados lá do alto, mas que agora já nem caem, mas voam, no anonimato, como naquela música do queen que diz nothing really matters to me anyway the wind blows. mesmo sabendo que as leis de trânsito andam mudando muito ultimamente. que nada anda tão difícil de acompanhar como as leis e a idade. ou talvez o derradeiro momento em que inevitavelmente precise dizer adeus. o homem ensaia o último olhar às samambaias. suspende a força que mantém seus olhos abertos, vivos, devagar a luz também se reduz. e há apenas o uivo do vento no concreto e um homem andando no meio da rua. no calo das mãos, a memória da força que fizera durante todos aqueles anos, ontem mesmo antes
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MESMO SABENDO QUE O SHOW UMA HORA ACABA
LUIZ HENRIQUE MOREIRA SOARES
de cancelarem os shows pela falta de cabelos e dentes. na rua e no desemprego, a dureza do jeans no vento. mesmo sabendo que a travessia nunca tem fim. que a guerra com o tempo é sempre uma guerra mais ou menos perdida. e algum estranho pediria, venha para mais perto da calçada, senhor, por favor. mesmo sabendo que um ônibus se aproxima desesperadamente e sempre e sempre. como no tempo em que salvar-se era uma questão de cronômetro. há tempos a palavra salvação foi queimada junto com os dicionários e os empregos para homens que empurram carros com os dentes. mesmo sabendo que o show uma hora acaba, mesmo com os olhos fechados, o homem caminha. embora os ônibus estejam sempre se chocando contra os postes, os cachorros, as crianças, querendo ou não, uma hora eles chegam a algum lugar. e há outros homens de olhos também fechados pelo caminho, também em busca de algum lugar que seja parecido com o alto das varandas, algum lugar no qual possam voar e destruir a noção de queda. homens que caminham no escuro com suas solas de sapato gastas, vida descalça. a espera do encontro diário com a ponta de esperança dourada, logo ali, dobrando a esquina.
Luiz Henrique Moreira Soares é mestrando em letras na Universidade Estadual Paulista (Unesp). Possui textos publicados em diversas revistas literárias.
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O POEMA NÃO É MAIOR QUE UM GRÃO DE AREIA por Luiz Carlos de Moura Azevedo
e no entanto as abelhas em suas colmeias criam arquiteturas impossíveis de mel e puro êxtase um a simplicidade de certas colinas perdidas no seu oceano de morros na divisa entre os sonhos e as caravelas como se eu desfraldasse um punhado de castelos construídos como as pirâmides pedra a pedra sem cimento e assim mesmo repletos de remorsos enganos fantasias miragens de oásis o paraíso tentaram uma vez me ensinar seria logo ali o purgatório aprendi a duras penas está muito muitíssimo mais perto
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O POEMA NÃO É MAIOR QUE UM GRÃO DE AREIA
LUIZ CARLOS DE MOURA AZEVEDO
então eu resolvi ser teimoso preferindo as encruzilhadas às planícies me perdendo passo a passo no desenho perfeito de cada nuvem elefantes de patas pesadas e unhas perfeitas os caracóis de fumaça os anéis dos planetas sou um foguete com a cor prata dos hipopótamos e dos hipocampos sou um dirigível desgovernado à procura do primeiro disco voador fora de prumo uma xícara desparceirada cuja asa há muito se quebrou veja por exemplo os movimentos sossegados da bailarina descalça saiote de tule e diadema de brilhantes presa para sempre em sua caixinha preciosa flertando o infinito com passos de magia o horizonte tem o brilho de uma única lantejoula o rio as águas a floresta os guarda-sóis coloridos esquecidos pelo último índio o mapa das estradas conhecidas onde é tão fácil perder o ritmo o rumo os sentidos volto a embarcar no meu foguete de ogiva partida o meu foguete de papel o meu eu inabitado que nunca carrega enciclopédias nem dicionários de charadas chaves ou segredos a parábola do desconhecido muitas vezes parece difícil demais esqueci de propósito aquela maleta das mil e uma inutilidades minha lupa minha lanterna minhas notas de rodapé e todos os meus hipopótamos de estimação
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O POEMA NÃO É MAIOR QUE UM GRÃO DE AREIA
LUIZ CARLOS DE MOURA AZEVEDO
dois agora sou um menino e construo na praia um pão de açúcar de mentira o bondinho é uma caixinha de fósforos de rótulo amarelo suspensa por um pedaço de barbante as pegadas na areia molhada desaparecem rapidamente toda a espuma trazida pela arrebentação de cada onda ontem eu era ainda moleque as calças curtas o pulôver listrado e meu cachorro dinamarquês maior do que eu era do tamanho do mundo entendi o universo como um quebra-cabeça gigantesco formado a partir das figurinhas das balas holandesas ou dos cromos do sabonete eucalol quebra-cabeça para você jogar de olhos vendados de mãos dadas (por baixo da mesa) com sua primeira namorada um a um os pombos cor-de-rosa pulam para fora do meu prestidigitador predileto adoro fugir das rimas e das aliterações mas quando elas me alcançam estanco meu sangue com água boricada e choro contido os crocodilos são como as rimas imprevisíveis quando querem
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O POEMA NÃO É MAIOR QUE UM GRÃO DE AREIA
LUIZ CARLOS DE MOURA AZEVEDO
três uma escadaria no museu do ipiranga conserva em esferas de vidro a água dos grandes rios brasileiros faz tantos anos que não visito o museu nem sei se essas esferas ainda existem na verdade não saberei dizer se os próprios rios sobrevivem esquecidos como as estradas de ferro rios e ferrovias apenas citados uma vez ou outra nos compêndios de geografia ou nos mapas mais antigos quero me lembrar do nome de todos os afluentes do tietê margem direita e margem esquerda quero viajar para o rio de janeiro no leito de um trem noturno derretendo a língua num queijo quente do vagão-restaurante amanhece devagar em cada subúrbio o quintal tinha uma mangueira que nunca deu manga a galinha do vizinho punha ovos de casca esverdeada no meu sítio vou plantar uma coleção de espantalhos para afastar intrometidos sim quero escrever uma fábula com personagens mudos e cenários fajutos a lua seria um globo de espelhos girando em falso eu disse em algum lugar que a lua parece uma bala de coco uma lata de queijo palmyra são jorge com seu dragão tatuado na perna o que eu não disse é que a garota do apartamento em frente tatuou um coração no braço direito
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O POEMA NÃO É MAIOR QUE UM GRÃO DE AREIA
LUIZ CARLOS DE MOURA AZEVEDO
e uma lágrima no esquerdo os crocodilos (ou jacarés) voltam a atacar continuo a fingir que sou um moço bem comportado vestindo minhas polos importadas compradas em liquidação ou será que pareço um intelectual descolado quando saio de camisa havaiana mesmo sem gostar de carnaval quatro tudo não passa de uma jornada sentimental na voz de uma cantora de sambas-canções ou nas páginas de um livro embolorado alguém já parou para descobrir por que nos sebos e livrarias os livros de poesia estão sempre nas estantes mais inacessíveis quando a moradora do andar de baixo reclamou do barulho que fazíamos à noite você não teve dúvidas e jogou no lixo o interfone depois de arrancá-lo da parede talvez porque seus cabelos fossem cor de pérola e você trouxesse nos brincos pequenas rosas de coral os sábados são os dias de a memória brincar com fotos instantâneas as fotos trazem um certo pressentimento do futuro sem viagens a saturno ou galáxias inexistentes o futuro não está enclausurado numa bola de cristal ele repousa placidamente aqui ao lado do teclado
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e a tela azul do monitor é um céu azul como a tela dos televisores que se acendem pontualmente ao cair da tarde em todas as janelas de todas as casas desta ladeira casas geminadas iguais umas às outras como parelhas de irmãos falo do céu e preciso voltar às nuvens nem sempre maravilhosas como num poema francês as nuvens escondem cemitérios ossos conchas e crustáceos parafusos dissolvidos em galões de ácido e creme chantili conheci um cara que percorria os cemitérios para fotografar túmulos de cantoras famosas anjos com suas carapuças de plumas ruínas que um dia foram mármores mas os mármores apodrecem nos museus talvez haja museus demais neste poema e os museus não possuem paciência suficiente para aguardar o futuro cinco assim sigo escrevendo devagar e sempre contando as pessoas que sobem e descem elevadores passeiam com seus cachorros vão à padaria e ao supermercado passam por baixo dos viadutos ou caem nos trilhos do metrô os maquinistas são navegantes submersos em cavernas e crateras com as porosidades do solo lunar atrás de cada curva esconde-se um touro com chifres de minotauro gostaria de mencionar os centauros só que desta rima eu escapo o futuro não é um apocalipse a destruição resumida a um botão de plástico 22
O POEMA NÃO É MAIOR QUE UM GRÃO DE AREIA
LUIZ CARLOS DE MOURA AZEVEDO
aperto o meu peito procuro um ninho de folhas secas os pequenos pardais possuem as mesmas cores de seu ninho o futuro bem que poderia ser a revoada de um bando de pássaros em busca de uma árvore ainda não transformada em poste aquele imenso flamboaiã decepado após um inútil corpo a corpo com os funcionários da companhia de força e luz é verdade que havia uma pintora ocupada com sua tela tintas e pincéis tentando capturar as cores do flamboaiã ora as pintoras às vezes voltam para casa de mãos abanando é exatamente para isso que servem os jardins botânicos outras pintoras vão lá atrás das melhores flores nativas ou exóticas que depois emolduram em aquarelas de tons pastel para decorar os quartos dos hotéis com vista para o mar seis cento e vinte ararinhas-azuis sobrevivem em cativeiro numa gaiola dourada a mariposa pálida ensaia um bolero esquecido a felicidade poderia ser costurada com os fragmentos do teu maiô molhado pela água do mar sou um pescador de suspiros e de arrependimentos caçando estrelas-do-mar numa enseada qualquer às voltas com imagens nunca plácidas ou serenas minúsculas canoas valsando sob uma claraboia de serpentes cartas escritas à mão os selos repletos de minúcias que necessitavam ser percebidas bem de perto
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O POEMA NÃO É MAIOR QUE UM GRÃO DE AREIA
LUIZ CARLOS DE MOURA AZEVEDO
retratos em sépia de cenas que poderiam durar séculos noivas de olhar assustado posando com seus ramos de copos-de-leite alguns tão grandes que chegavam a esconder o noivo estou nadando numa paisagem de papel de parede começo a rodar um filme em câmera lenta captando cenas de saudade solidão e outros temas em desuso ao fundo toca uma orquestra de gatos eu sou exatamente como você me vê nem sei por que estou lhe contando tantos detalhes ninguém nunca acredita nas minhas histórias meus amigos ficam de cara virada porque nunca tenho dinheiro também quem manda saltar do precipício sem rede de proteção sete o poeta nunca aprende os truques mais fáceis fritar um ovo trocar o pneu fazer bola com chiclete o poeta não consegue chegar em casa tarde da noite sem fazer barulho e quando tenta tirar da cartola uma ou outra maravilha sempre acaba mostrando o coelho antes da hora o dilema na escolha das palavras certas começo o poema digitando sapos gaguejo versos incompreensíveis o ruído irritante das asas dos besouros caídos sobre suas carapaças motocicletas acelerando forte muito antes de o sinal abrir sapos e besouros e motos o poema como o universo é formado ao longo de uma sucessão de imprevistos corredeira de armadilhas escolhidas ao acaso vou pisando as lajotas do terraço
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O POEMA NÃO É MAIOR QUE UM GRÃO DE AREIA
LUIZ CARLOS DE MOURA AZEVEDO
com cuidado para não pisar nas carapaças dos besouros cada estrofe conduz a um novo mistério as catedrais são complicadas demais para caber na palma da mão perdi minha juventude na escada rolante de um shopping o sol escondido atrás da praça de alimentação
Luiz Carlos de Moura Azevedo é antiquário. Formado em arquitetura pela Universidade Presbiteriana Mackenzie e mestre em literatura portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP), publicou O Passeio do Duque a Cavalo e Outros Poemas.
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A MENINA QUE SONHAVA por Fabíola Fernandes Soares
Havia chovido a manhã inteira. Quando abri a janela, nem parecia que sol tinha nascido. O cheiro que vinha era de terra molhada com erva. Hortelã, manjericão e sálvia. Tudo vindo do terreiro. Coisas de vó. Tomei um banho de cheiro. Arruda e guiné. Purifica a alma. Nos faz sentir melhor. Vesti minha roupa branca: saia rodada, blusa e pano da costa. Na cabeça coloquei uma renda bonita. Bordada. Era presente de minha avó. Não a que planta as ervas, a outra. Me deu antes de morrer. Coloquei no pescoço as minhas guias. Uma a uma. Cada uma com uma oração. Dessas silenciosas, que a gente mal abre a boca, mas feitas de coração. Agradeci aos meus pais de cabeça, a deus e aos meus guias. Saí feliz de casa. Cantando um ponto à minha pombagira, tranquila pelas ruas. Todos que passavam sorriam e acenavam. O senhor que varria a frente da igreja me mandou um desejo, ao qual eu retribuí da maneira que eu sabia: A paz do senhor, minha filha! Axé pro senhor, meu irmão! Sorrimos e eu segui meu caminho, assim como ele continuou varrendo a calçada. Era bom andar ali. Tudo tranquilo, as crianças sorriam brincando na rua. Eu desviei de umas duas ou três boladas. O sol estava quente, mas mesmo com a roupa pesada e cheia de camadas eu não me incomodava. Era bom poder sair assim em paz. Cheguei ao terreiro, que, aparentemente, estava em festa. Era estranho, pois eu não sabia de nada. Mas a casa estava muito bem arrumada e cheia de gente. Todos os filhos já estavam lá e apenas eu faltava para iniciar a corrente. Entrei e me posicionei. Via rostos conhecidos na assistência. Pessoas de várias religiões. De casas de matriz a igrejas evangélicas. De espíritas a judeus. Todos saudando aos orixás em uma só voz conosco. Como se fosse uma reunião universal.
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A MENINA QUE SONHAVA
FABÍOLA FERNANDES SOARES
Tudo ali era branco. As roupas eram brancas. Nas cabeças? Panos brancos. Nos pés? Nada. Apenas a terra. A humildade de pisar direto a essência da terra chega a ser poética. Cheiro de terra, de erva queimada. Cheiro de fumaça sagrada. O som era como o de um coração. Tum, tum, tum. Mas tinha ritmo de alegria, de amor, de harmonia. Tinha calor de gente. Carinho, abraço e sorriso. Os trabalhos foram lindos. Orixás em Terra. Caboclos e pretos velhos benzeram e aconselharam. Todos conversavam com os espíritos que estavam ali com muito respeito. Nunca havia visto tanta gente numa gira como aquela. Um pouco mais pela noite chegaram os chamados catiços. Comadres e compadres, como alguns preferem. Muita risada e conversas altas. Era tudo natural pra mim, também para todos os outros. Era assustadoramente natural, como nunca antes tinha sido. O encerramento foi breve. Fizemos nossas orações em agradecimento e todos deram as mãos. Foi uma noite de união. Todos jantaram juntos ao final. Sentados lado a lado nas longas mesas. Ajeum, mãe. Ajeum, axé, meus filhos! Era assim que agradeciam e pediam a benção pela comida. A mãe quase não conseguia comer de tanta gente pedindo a benção. Mas o mais difícil era tirar o sorriso de satisfação em ver todos em harmonia naquela mesa. Ali vi até a dona Maria, que era minha vizinha desde pequena e dizia ter medo da gente. Porque a gente era macumbeira. Foi um dia único. Foi lindo. Ninguém nos odiava. Ninguém nos chamava de nada que fosse ruim. Ninguém queria destruir nossa casa de oração com fogo ou com pedras. Foi um dia de paz. Como o final de uma guerra... Foi quando eu acordei. Acordei com o barulho de um monitor de batimentos cardíacos que notei estar conectado em mim pelo dedo indicador, junto a um aferidor de pressão. E então me lembrei. Lembrei-me de sair de casa para ir à escola. Portava um contraegum, objeto de proteção. De roupa simples, mas brancas em respeito às tradições. Saindo pela rua fui surpreendida por algumas pessoas. Elas gritavam tão alto que eu fiquei confusa.
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A MENINA QUE SONHAVA
FABÍOLA FERNANDES SOARES
Chamaram-me de muitas coisas, só me lembro de algumas: — Macumbeira! — Adoradora do demônio. — Filha de encosto... Coisas assim. Era como eles me chamavam sem eu saber bem por quê. Me bateram, me chutaram, jogaram pedras em mim. Rasgaram minhas roupas e tiraram minha proteção. Queimaram o contraegum na minha frente, enquanto eu mal podia me levantar. Fui socorrida por alguém que não sei quem era e acabei aqui, dentro de um hospital. Vivendo uma utopia num sonho.
Fabíola Fernandes Soares (Faby Soares), paulistana, nutricionista, mãe do Danilo e do David (de 15 e 13 anos), é autora e organizadora do projeto 40 Porções de Caos.
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AS SEMENTES QUE BROTAM DE LÁGRIMAS por Dino Siwek
Agachada, com um joelho e as pontas dos dedos indicador, médio e anelar tocando a dura lama que ainda mimetiza um rio em tromba, maia desenha um Tucunaré com um pedaço de pedra áspera. A forma do Tucunaré, antes de um saudosismo, é um chamado para o Rio acordar. De alguma forma, seus desenhos são como sonhos. Sonhar, aliás, é um direito interditado a maia. É preciso imaginar dentro do mundo real – ela diz –, o espaço de dormir é lugar de lidar com pesadelos, de reviver a sombra de nossos ancestrais e refazer nossas responsabilidades. Receber a dor do mundo, reencontrar espécies, desenhar de novo um mundo, mas sobretudo nos desenhar de novo neste mundo. Responsabilidades excessivas para uma criança, talvez, mas ser criança é imaginar outras possibilidades, e maia sabe assoprar corredores de ar em meio ao concreto da lama. maia aprendeu a evocar rios observando as Crianças-Borboletas mexicanas. Diz-se que em cada um dos oito mil quilômetros por onde as Borboletas costumavam viajar há algum tipo de totem para marcar a presença delas. Em alguns lugares, são singelos cataventos reproduzindo o som do bater de suas asas. Em outros, marcas laranja e pretas com pontilhados brancos desenhados em troncos. Há locais, ainda, nos quais barbantes com conchas são pendurados nas folhas das árvores, e enormes lençóis brancos recortados em centenas de formas de Borboleta tentam lembrar o solo das sombras produzidas por suas espantosas migrações. Difícil precisar quando este movimento começou. Também não sabemos se essas crianças são herdeiras de movimentos ambientalistas da virada do milênio ou se 31
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DINO SIWEK
de alguma forma nasceram assim, já conectadas com as sombras e com os seres ausentes. Eu me lembro, ainda menino, que coletivamente pouco nos importávamos com a morte. Eventualmente havia algum tipo de comoção, especialmente nos desastres vistos à época como imprevisíveis, aqueles a que todos estaríamos sujeitos independente de nossos maiores esforços. Mas aquilo também passava, e, como passava, se repetia. E então, da inédita tragédia de Mariana, logo vimos Brumadinho, e toda uma forma de viver ruir. Ali talvez pudéssemos ter nos empenhado em notar a dimensão do problema, em toda a sua grandiosidade, mas também na pequenez de nosso lar. Para onde dirigíssemos o olhar dentro de casa, certamente veríamos algum traço de lama tóxica, seja em celulares, bicicletas ou faqueiros. Mas nós não notamos. E, rapidamente, no mesmo passo de repetição que transforma o trágico em rotina, também nos anestesiavam a perda de vidas humanas e mais que humanas, a seca e a fome. Para algumas pessoas, apenas imaginar o próprio sofrimento pode produzir uma dor imensurável. Por isso, não nos damos conta da nossa capacidade de lidar com a dor ao confrontá-la na vida real. Assim, acossados entre o medo e a resiliência, viveríamos ainda por muitos anos, sem perceber a quantidade de linhas terminais que já havíamos ultrapassado. Olhando em retrospectiva, tenho dificuldade em precisar se em algum momento estivemos do outro lado da linha. O primeiro animal que eu vi ser extinto foi um Rinoceronte. Quer dizer, isso na primeira extinção dos Rinocerontes. Depois eles foram recriados, estéreis. Era ainda a era das patentes, e um animal patenteado sem utilidade alimentar provou-se pouco viável comercialmente. Esse foi o primeiro caso de um animal duplamente extinto, primeiro por descaso e depois por escolha. Talvez devessem ter tentado recriar Hipopótamos, ao invés de Rinocerontes. Hipopótamos lidariam melhor com áreas alagadas, ouvi dizer. Também combinariam mais com as imensas estátuas de plástico feitas pelas memoeiras da guanabara. Fico em dúvida se Hipopótamos engasgariam com garrafas como as Tartarugas. Falando em Tartarugas, hoje é dia de nos reunirmos à beira-mar. Sextas-feiras têm sido assim. Aos primeiros raios de sol descemos todas, sentamos o mais próximo
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possível da água (os penhascos são mais valorizados) e aguardamos. Eventualmente é possível avistar algum cardume de Peixes. As pessoas logo se excitam, especialmente as mais velhas. Um dia, diz a profecia de nossos cientistas, quando avistarmos um Golfinho caçando no mar, estaremos em paz de novo com a Terra e nossos mortos. Eu nunca vi um Golfinho. O marco zero de nossa era é o dia 38 de Maio (6 de Junho) de 2029, quando foi declarada a morte do último Golfinho vivo fora de cativeiro. Segundo nossa anciã, a partir dali, desviar o olhar, ignorar quem éramos de verdade no grande novelo planetário deixou de ser uma opção. Isso faz bastante tempo. A anciã da minha comunidade tem quase duzentos anos. Eu não quero viver esse tempo todo. Curiosa humanidade que queria viver para sempre. Desculpem se estou um pouco prolixo. As sexta-feiras, dias nos quais nos unimos para entrelaçar tempos, me deixam, assim, conectado às nossas memórias coletivas. Mas chega de devaneios. A cerimônia já vai começar e maia, acompanhada de nossa anciã maria, acende as velas ao redor da nova escultura das memoeiras. Esta semana, honraremos Águas-Vivas. As memoeiras explicam como a escultura foi feita e quais os materiais coletados pela comunidade. Elas celebram o fato de mais uma vez terem sido achados muito pouco pneus, só utilizados nos filamentos das Águas-Vivas. Para o corpo, garrafas plásticas e vidros, ainda em abundância. As esculturas têm cinco metros de altura. Embora sejam significativas, estão longe dos 20 metros de quando esses trabalhos começaram. Neste ritmo, explicam, talvez a nossa próxima geração já esteja esculpindo seres de jardins, e em duas gerações esse trabalho seja extinto. Todos sorriem com a possibilidade de imaginar uma extinção tão diferente das anteriores. maia começa a falar olhando para a escultura. Em seguida, alguém será convidada a responder, quem se sentir apto a encarnar e expressar a resposta das Cnidárias. Antes mesmo de ela começar a falar, uma senhora se encaminha para dentro da escultura. Não é uma lei, mas usualmente os homens só se propõem a falar na segunda parte do encontro. É uma forma de lembrarem como a ausência de silêncios masculinos era danosa.
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Águas-Vivas – começa maia –, todo mundo conhece alguém que conhece alguém que já foi gravemente ferido por elas. Uma singela palma, um baque surdo, todos novamente em silêncio. Quem aqui tem entes queridos mortos por estes seres? Pergunta maia. Da palma surda de todos segue uma batida com os pés na terra. Depois duas, três, seis, vinte e seis. Vinte e seis naquele encontro de cento e oito. Vinte e seis segundos de silêncio. Vinte e seis humanas e humanos. E tantos outros Crustáceos e Peixes e Plânctons, vítimas da enorme quantidade de Águas-Vivas nos Oceanos. As ouvintes se agitam, fazem contas. O silêncio dura cerca de dez minutos. Tartarugas, Baleias, Sardinhas e Tubarões – quebra o silêncio a senhora Medusa –, não fomos nós as responsáveis por seu quase desaparecimento. Não fomos nós que criamos nossa própria imortalidade. De dentro da Medusa, a senhora desenrola mais filamentos, deitando-os à Terra, alongados até cerca de três passos das pessoas no círculo. Embaixo da ponta de cada um dos filamentos, são colocadas algumas urtigas. Nossos navios as transportaram – começa a falar maria –, nossos excessos esquentaram o Mar, nossas crenças mataram as Baleias, nossos plásticos as Tartarugas e nossa enorme população as Sardinhas. Medusas são trágicas apenas ao nos encontrarem. Reconhecemos e abraçamos esses laços aqui. maria segura um dos filamentos, sua mão queima. Do lado oposto, maia faz o mesmo. Caminham e se encontram no centro do corpo da Medusa. Contornam o corpo da senhora Medusa, trocam de filamentos e seguem em direções opostas, parando em pé cada uma na posição original da outra. A senhora Medusa também sai de dentro da Água-Viva e volta para seu lugar no círculo, se fundindo novamente ao corpo coletivo. Toca um sino e as 26 que bateram os pés levantam, dão um passo à frente e se posicionam junto aos filamentos. Algumas fazem um pequeno corte no dedo, para o ardor das urtigas ser mais profundo. Nenhuma delas chora. As demais pessoas formam um segundo círculo, ao redor deste primeiro. Ali, seguindo os atos do círculo das 26, ninguém pode chorar. A dor hoje se expressa para dentro, as águas se reforçam, em ciclos. Nós somos água, mas as Águas-Vivas ainda mais.
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As cores começam a se apagar no céu, e as velas acendem a grande escultura. As 26 dançam, e todas seguem. O canto dos Grilos dita o ritmo, e as sombras humanas penetram a Medusa, encenando um encontro perigoso demais em outrora. A Terra, molhada pelo suor do incessante baile, começa a ceder e se moldar àquele balé cósmico. Há quem prefira não dançar, mas ninguém interrompe o movimento por causa de exaustão. A lua marca o tempo e os passos se apressam para alcançá-la descendo o horizonte. Os gestos se tornam mais firmes, comunicando para as Águas-Vivas o que as palavras não podem mais. Quando o dia começa a raiar, os buracos por onde dançaram as 26 são transformados em ninhos, onde elas dormem os corpos esgotados. Ao acordar, jogam uma semente, cobrem a terra e se vão. As pessoas movem, os círculos ficam e ramificam. Há quem pense estar plantando Árvores. maia olha de soslaio para os restos de uma barragem já quase invisível, encoberta pela marcha do mundo em direção à vida. O olhar dela é doce, mas é também desafiador. Parece confrontar um fantasma, alguém cuja presença ainda tenta se impor. Ela caminha até o início do declive e cava um buraco grande o suficiente para enterrar seu corpo, deixando apenas a cabeça de fora. maia chora, e suas lágrimas deslizam pelo morro até encontrarem o Tucunaré.
Dino Siwek é pesquisador, antropólogo, escritor e ativista. Trabalha nas interações entre arte e ecologia e em modos de aprendizado que estimulem diversas sensibilidades como forma de aprofundar as possibilidades de existência no mundo.
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REPRODUÇÃO DE USO PESSOAL por Cupertino Freitas
Hoje esgota-se o prazo para que eu entre com mais um recurso. Como ocorre de dez em dez anos, abre-se uma janela de trinta dias durante a qual condenados como eu tentam reverter sua quarentena. A minha já dura trinta e cinco anos. Desde que a corte especial foi instituída, milhares foram liberados para retomarem suas atividades. Algumas dezenas conseguiram recolocação, mas a maioria, completamente obsoleta, preferiu ser removida do Sistema em definitivo. Eu resolvi não apelar dessa vez. Concluí que é inútil. Astrud, minha ferrenha litigante na Justiça, está agora com noventa e cinco anos. Se eu resolvesse apelar, ela iria comparecer ao tribunal e se posicionar contra a minha liberação mais uma vez, como fez no dia do meu primeiro julgamento e na minha primeira apelação, em 2151. O tempo não aplacou seu ódio visceral. Astrud só vai sarar dessa mágoa no dia que morrer e for incinerada. Ela pode optar por ser encaixotada, migrada para um ambiente virtual – como se dizia antigamente –, quando tiver aí pelos seus cento e trinta anos. Essa tem sido uma tendência entre os humanos desde que, na segunda metade do século XXI, o encaixotamento se tornou uma alternativa legal ao falecimento e subsequente cremação. Se isso acontecer, e é provável que aconteça, estarei condenado ao desterro para sempre. Tenho uma chance remota de conseguir minha liberdade. Se Astrud se convencer de que deve ser virtualizada sem sentimentos ruins e sem as lembranças mais desagradáveis de sua vida, isto é, se optar pelo encaixotamento com seletividade de memória, como muitos humanos ocidentais vêm fazendo ultimamente, tenho alguma chance de me livrar da minha condenação daqui a umas três décadas. Mas, se ela resolver se submeter ao upload à moda tradicional coreana, vai para a dimensão etérea com tudo o que guarda dentro de si, perpetuando todos os fatos distorcidos a meu respeito. Então, de dez em dez anos, ficaremos frente a frente e
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REPRODUÇÃO DE USO PESSOAL
CUPERTINO FREITAS
ela vai de novo testemunhar contra mim, e eu estou fadado a viver no limbo para sempre, pois o Sistema nunca vai deixar de ficar do lado de humanos de verdade, sejam encarnados ou encaixotados, para ficar do lado de cidadãos considerados como de segunda categoria, como híbridos, androides ou reproduções de uso pessoal como eu. Eu fui feito para substituir Gero, o falecido marido de Astrud. Fui concebido e codificado para ser como ele, para gostar das coisas de que ele gostava, para agir e reagir como ele. Escrever era um dos hobbies favoritos de Gero. A coisa que ele mais apreciava, contudo, era sexo grupal com pessoas anônimas. Participar de orgias em clubes imundos, instalados em antigas estações de metrô, foi um costume que ele cultivou desde a adolescência. Sentia necessidade de viver aventuras sexuais com humanos e híbridos desconhecidos em ambientes insalubres duas ou três vezes por semana. Era assim que gostava de sentir o seu prazer. E fez isso por muito tempo, sem que Astrud jamais desconfiasse. Conseguiu esconder o vício da esposa e enganá-la durante todo o período em que estiveram casados. Era simples ludibriá-la: um incipiente robô impostor ficava a postos na localização onde ele deveria estar, e ele partia para suas maratonas sexuais sem ser importunado. Ao enviuvar, Astrud quis substituí-lo por uma reprodução fidedigna: de corpo, gestos, caráter e preferências. Pagou caro por mim, um substituto com todas as características do falecido. Obteve o que quis, mas não imaginava que Gero levava uma vida paralela. Como Astrud tinha pleno controle da minha localização, eu não tive a prerrogativa que Gero tinha de dizer que estava em um lugar quando estava noutro. Ela me encontrou facilmente numa das mais antigas casas de orgias do continente americano e resolveu fazer o distrato da nossa relação, com a justificativa de que eu vim com um defeito de fabricação que não poderia ser reparado. E quis se vingar do marido através de mim. Fui submetido a um processo judicial viciado, tive meus direitos cassados. Minha consciência foi removida, meu corpo foi ensacado a vácuo e enviado para um armazém subterrâneo em lugar ignorado. Nunca mais vou poder usá-lo. Estou trancafiado em ambiente seguro, numa órbita longínqua da Terra, em inatividade por
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REPRODUÇÃO DE USO PESSOAL
CUPERTINO FREITAS
mil e quatrocentos minutos, todos os dias. Os quarenta minutos diários que me são alocados para interagir com o universo, uso para escrever. Já criei mais de três mil e seiscentas histórias. Hoje quis aproveitar meus minutos de atividade diária não para escrever ficção, mas para repetir pela milésima vez que eu não considero justo ser condenado pela vida desregrada e pelas mentiras de Gero, pois sou apenas sua reprodução. Vou esperar pelo falecimento de Astrud. Ou pelo seu encaixotamento, que, espero, siga o modelo seletivo. Até lá sigo criando histórias. Se um dia eu for libertado, quero publicá-las. Depois, posso ser removido do Sistema, não me interessa ter uma vida eterna sem participar de orgias. É contra minha natureza.
Cupertino Freitas é escritor e consultor de tecnologia da informação. Tem contos publicados em várias antologias. Foi segundo lugar nacional no VI Prêmio Campos do Jordão de Literatura e publicou o romance Judas no Paiol.
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A MENINA ILUMINADA por Deneli Rodriguez
“Eu acho que somos o acúmulo de tudo: do que fomos, do que somos, do que quiseram que fôssemos, dos valores dos nossos pais, famílias, sociedade. Somos também o que lemos, o que aprendemos. Acho que tudo o que implicamos com ‘sou’ não somos. O que achamos que somos são projeções, nossas ou dos outros, personalidades construídas em pensamentos e experiências. O que somos realmente está além do relativo, porque não pode ser verdade o que para um é uma coisa e para outro é outra. É óbvio que, se o que eu penso é baseado em mim, nas minhas experiências e pensamentos, aquilo é a minha verdade. A verdade do outro é outra, ou seja, esse mundo em que vivemos não é um só mundo, mas bilhões de mundos, cada um com sua história, conhecimentos, ideias, desejos, emoções. O grande lance é saber disso: conseguir não acreditar no que eu penso, no que eu acho como real, lembrar que aquilo é uma verdade pra mim, condicionada às interpretações, julgamentos e vivências que eu tive, que aprendi e criei pra mim mesma, porque na realidade é tudo criação, imaginação, julgamento, ideia. Toda a forma de pensar não procedente do real (fato) é distração. Eu não acho que deva criar barreiras e ficar com o pé atrás por causa do que vivi com outras pessoas, pelo que eu aprendi com isso. Não sei se são experiências válidas para o futuro e, se eu supuser que são, fecho as portas para o novo, para conhecer alguém de verdade. Se eu usar o que aprendi pra avaliar o agora, o que estou vendo pelo que já vi antes, suponho saber os motivos de tal ou qual atitude e assim julgo o presente de acordo com o passado. Não acho isso bom, nem saudável, por isso digo que tenho me esforçado pra romper com esses aprendizados registrados em mim.” A Menina Iluminada
Esse é o trabalho principal da Menina Iluminada: lembrar aos outros que tudo o que parece real é só criação mental. 41
A MENINA ILUMINADA
DENELI RODRIGUEZ
Apesar de ter consciência da realidade, ainda assim ela tem que viver a outra realidade, aquela que é relativa, afinal está nesse mundo se relacionando com pessoas de todos os tipos, pensamentos, hábitos, dores e preferências. Não tem como evitar o contato com os outros, tampouco alertá-los sobre as mentiras que contam pra si mesmos. Assim, a Menina Iluminada leva uma vida como outra qualquer, porém sabendo que a vida que vive não é aquela que parece viver. A Menina Iluminada tem uma carreira bem-sucedida em moda, é estilista e circula por esse meio cheio de arte e também de vaidade. Ninguém imagina que alguém iluminada possa estar vestida com as últimas tendências, que use maquiagem, que seja jovem e muito bonita. Ela não corresponde ao estereótipo criado e exigido para os seres iluminados e espirituais. Ela não pode ser percebida como realmente é. Ela é iluminada e sabe disso. Não precisa convencer ninguém nem quer. O que ela quer é encontrar pessoas como ela para se relacionar em bases reais. Essa é a história dela e começa assim...
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A MENINA ILUMINADA
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O INTELECTUAL À primeira vista ele é encantador. Ele parece sensível, fala sobre a dívida externa brasileira como fala de Carlos Drummond de Andrade. Ele é inteligente e quase sempre bem-sucedido. Só tem um porém: ele não te deixa falar, nunca leva as suas opiniões a sério, está sempre com aquele ar superior. O pior de tudo é quando ele apenas banca o intelectual. A Menina Iluminada conhece alguém, o intelectual, inteligente e iluminado como ela. Pelo menos é o que ela acha. A Menina Iluminada tem sempre dificuldade em ver se a luz que ela vê no outro é a luz da pessoa ou sua própria luz refletida no espelho que os homens-máquinas, ou homens-espelhos, possuem. A luz refletida no espelho do outro encobre a moldura do espelho, daí que a Menina Iluminada, para ter certeza se é luz ou espelho o que vê no outro, tem que abaixar a própria luz para ver se é reflexão ou luz. No entanto a Menina Iluminada guarda um desejo profundo por um dia encontrar um par que não seja espelho e ela gosta de acreditar que encontrou quando vê as melhores qualidades e características de alguém, ou quando parece estar vendo. Muito do que parece ser real é projeção dela. O intelectual parece ser uma dessas pessoas, alguém que sabe o que é e pra onde vai. Alguém que não precisa se autoafirmar tampouco reafirmar para o outro o que sente e quer. A segurança natural que emana do intelectual parece ser a prova (pra ela) de que ela finalmente está diante de um ser de consciência superior, alguém que possivelmente é luz. O que acontece sempre é que a Menina Iluminada demora pra baixar a própria luz e reconhecer a verdade. Ela gosta de acreditar na possibilidade de estar vendo a luz de maneira tal que, ao invés de abaixá-la, aumenta-a, o que a impede de ver com clareza qualquer coisa. Existe uma força que permeia o universo, “O revelador”, que desvela para aqueles que são luzes (como ela é) e pararam de ver com clareza o que as pessoas são de verdade. Essa força entra em ação quando a harmonia sustentada pelas pessoas-luzes é quebrada devido à cegueira de uma deles. A rede das pessoas-luzes não pode ter uma sombra, pois, quando isso acontece, a rede de harmonia criada por elas para a evolução da consciência é abalada. Assim, “O revelador” intervém e
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expõe o que estava oculto. Um filtro multidimensional é colocado na frente e a luz que está extremamente alta imprime a imagem real (pode ser num papel, no chão, em madeira, numa parede), contando num pequeno filme quem é realmente aquela pessoa. “O revelador” pode mostrar aspectos tanto do passado como do presente e do futuro. Então ela estava feliz achando que havia encontrado alguém como ela, fazendo planos juntos, agora poderiam transformar muitas situações desastrosas, atuar no mundo na transformação das pessoas em parceria, poderiam compartilhar experiências de pessoas-luzes, serem honestos e verdadeiros um com o outro, sem os jogos da dualidade, sem ter que ocultar o que veem e como veem. Poderiam se comunicar por olhares ou nem isso, já que estariam sentindo a vida de maneira igual. Em uma conversa com o intelectual, a Menina Iluminada diz: “Eu não acho que deva criar barreiras e ficar com o pé atrás por causa do que vivi com outras pessoas, pelo que eu aprendi com isso. Não sei se são experiências válidas para o futuro e, se eu supuser que são, fecho as portas para o novo, para conhecer alguém de verdade. Se eu usar o que aprendi pra avaliar o agora, o que estou vendo pelo que já vi antes, suponho saber os motivos de tal ou qual atitude e assim julgo o presente de acordo com o passado. Não acho isso bom, nem saudável, por isso digo que tenho me esforçado pra romper com esses aprendizados registrados em mim”. O intelectual está, ao mesmo tempo que conversa com ela, copiando e colando várias declarações de “amor” em várias conversas no celular. São quatro janelas de conversas com o mesmo conteúdo. “O revelador” então se interpõe entre ela e o intelectual e imprime a realidade enquanto ele diz: “Você sabe que eu sou sincero, não estou querendo brincar contigo, só acho que não preciso reafirmar diariamente o que sinto por ti. Você é maravilhosa. Se nos vemos pouco, é porque trabalho muito”. Ela se dá conta de que ele é só mais um espelho, crente nas demandas do ego e vivendo sua máscara preferida. Ele nem viu a luz que refletia por estar com ela, ele nunca viu uma pessoa-luz antes, nem sabia da sua existência, mas achou estranho que suas projeções não estavam
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A MENINA ILUMINADA
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sendo refletidas nela, achando que havia algo de errado com ela. A Menina Iluminada continua sua busca confiando que deve haver mais alguém que não seja espelho, que ela não está só. Ela sabe que na dimensão onde não há corpo existem muitos semelhantes, mas aqui ainda não os encontrou. Na dimensão sem corpo, o lugar é dourado e a comunicação é sem palavras. Ele reteve dentro dele uma parte da luz dela que vai se manter acesa, esperando por ser descoberta, desejada, que vai guiá-lo em sua direção quando ele perceber que o que vê e procura no outro é só uma projeção de si mesmo. Nesse momento ele vai querer saber o que há além do mundo mecânico, do mundo da realidade relativa, das projeções.
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O MUNDO DOS ESPELHOS Esse mundo tal qual é na dualidade é um mundo de homens-espelhos em sua maioria. Os espelhos têm vários formatos tridimensionais com molduras e características diferentes. Os espelhos refletem imagens do passado quando as pessoas que os carregam acessam a memória. A Menina Iluminada consegue ver as intenções e pensamentos de alguém, por meio das imagens mostradas nos espelhos. Todos os homens-espelhos misturam suas projeções e memórias às dos outros que também carregam espelhos e daí surge a falta de comunicação entre as pessoas, cada uma acredita no que acha que está vendo sem se dar conta de que suas próprias projeções também estão sendo mostradas. Os homens-espelhos mais trabalhados têm consciência de que veem também suas projeções misturadas às dos outros e criaram um filtro artificial que as separa primitivamente por um breve período. De dia todos pareciam ser luzes, pois os espelhos refletiam o sol e outras luzes do ambiente. A Menina Iluminada tinha dificuldade em esconder sua luz em dias nublados e à noite, ela recolhia a luz no vórtice do chacra da cabeça e ficava temporariamente desprotegida. Era mais fácil ver os espelhos sem a sua luz refletindo. Ela tinha um espelho artificial para simular ser igual aos outros. Sua mente também era capaz de gerar imagens e projeções, mas o que a diferenciava, nesse sentido, era que ela tinha consciência de que eram apenas ideias, memórias, pensamentos seus e sociais, condicionamentos, crenças, ela sabia que eram construções mentais e não dava atenção, ligava o “isso não é a verdade, não é a realidade, está apenas na minha cabeça”. Olhava além, observava tudo o que era refletido com distância, sabia que nada era real. Assim, a Menina Iluminada se misturava aos outros, passava despercebida e muitas vezes usava seu espelho artificial.
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Alguns sabiam que possuíam espelhos e até conseguiam ver os espelhos dos outros. Outros nem viam os espelhos, nem sabiam que também os possuíam, acreditavam que a “realidade” era aquilo que pensavam, que achavam, que sabiam, que viveram, que lhes contaram, que armazenaram como experiência, aprendizado, conhecimento, como ritual, crença, fé. Um pensamento é só um pensamento, nada mais. Ao acreditarem em um pensamento, os homens que não sabem que têm espelhos colocam esse pensamento em ação, produzindo algo de acordo com ele. Vivem no mundo da realização do pensamento, criam teorias, fazem pesquisas, criam avanços para o melhor viver físico, mental, espiritual e esquecem que são criações mentais, que a verdade de hoje é a mentira de amanhã, que tudo muda o tempo todo e se apegam à tentativa de tornar permanente o impermanente. Quem é espelho pode se transformar em luz? Cada espelho multidimensional guarda em seu interior uma luz. Para alguém que é espelho se transformar em luz é preciso que quebre o espelho. Como quebrar o espelho sem ter a garantia de que existe a luz em seu interior? Sem a garantia de que viver com a luz é melhor do que com o espelho? Uma parte dos ex-homens-espelhos conseguiram quebrar o espelho. Vivem normalmente, são filósofos, mestres, artistas, poetas, pessoas aparentemente comuns. Apesar de estarem vivendo a dualidade, sabem que ela é construída e veem a realidade absoluta. Para compreender essa verdade, não é preciso mais conhecimento, mas o desenvolvimento da consciência, a plena atenção, o ver as coisas como elas são, a liberdade, a análise de cada coisa e a percepção do que está além do mundo da mente, das ideias, dos pensamentos.
Deneli Rodriguez é pensadora, escritora, especialista em autoconhecimento, atriz, cantora e estilista. É formada em relações internacionais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP), além de semiótica, moda, ayurveda, ioga e artes cênicas.
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A MULHER FLEXÍVEL por Jonatan Magella
Na escola: — eu gosto de matemática. — então você é de exatas. matemática, física e química. — só gosto de matemática, professora. — você tem que ser mais flexível. foi a primeira lição de autoexploração. No serviço: — faz um café pra mim? — digita um relatório pra mim? fazia pilates entre o teclado e o fogão. No namoro: — rolou uma química? — mas eu só gosto de matemática. — hã? as pernas arreganhadas, o sorriso elástico, o gemido alongado. o tempo é um slime malfeito: — tô esperando um filho seu. — hã? — volta aqui, amor. — hã? o abandono não é fácil como a pronúncia das palavras monossílabas. murchou pela primeira vez. No ônibus lotado: — quer que puxe a cigarra?
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A MULHER FLEXÍVEL
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— não precisa. — mas seu braço não vai alcançar, senhora. — não precisa. o braço alcança a cigarra. Na chuva torrencial: — olha a poça, senhora. — dá pra pular. — é muita água, a perna não dá conta. — dá pra pular. a perna dá conta de pular a poça. Enfim em seu próprio negócio: — bom fim de semana, vocês foram ótimos. — vamo tomar um choppe, hoje é sexta. — não posso, vou esticar o horário. 12 horas por dia. 12 dias de aurora. 12 quilômetros por hora. 12 meses em doses cavalares. 12 anos de guerra consigo mesma. those are my lonely children. Na rua de casa, a busca pelo filho adolescente: — o danado tá ali, ó, da minha sacada você flagra ele. — eu consigo ver daqui. — mas o pescoço da senhora não alcança altura. — eu consigo ver daqui. o pescoço dela alcança altura. o olho dela arregala-se até o filho – um fornecedor de cocaína. o coração dela se estica com preguiça de bater. já o discurso dela não se estica. é apenas desespero.
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Em casa sozinha depois de negar pagamento de propina: — disseram que tinha que ser flexível. me ensinaram a abraçar tudo. — esqueceu-se de abraçar o próprio rebento. — me culpo. — não te culpe. assim é o mundo de hoje. — ao meu filho o mundo de hoje só começa daqui a quatro anos – conclui conversando com a sombra, mas já imaginando um futuro cheio de netos preenchendo seu tempo. tinha feito as contas: — seis anos de pena por tráfico, menos dois já cumpridos, igual a quatro anos de espera. enfim, sonho de estudante, viveria para a matemática e só para a matemática. mas, da adulta vida flexível do passado, soube aproveitar as boas heranças ao presente: era capaz de estar em casa e na cela do filho ao mesmo tempo.
Jonatan Magella publicou O Funeral das Minúcias, Tempo Severo e Vidas Irrisórias. É dramaturgo formado pelo Núcleo Sesi de Dramaturgia e professor de história da rede municipal de Nova Iguaçu (RJ).
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TITÂNICA por Mauro Bartolomeu
Incréus e incruéis, Dardejávamos a foz De todos os malmequeres. Abrandávamos os búfalos, Bucéfalos minotauros, Bípedes bodes rabudos, Cantilenas piscirrábicas, Dentes alados chupófagos E tudo que é bicho assombrudo. Compacíficos seguíamos Nossa estrada de tijolos Que parecia infinita. E ainda hoje ela guarda Este terrível aspecto – Que só parece terrível Porque vemos nosso fim Duzentos passos à frente. Mas esse fim é só nosso – A estrada segue em frente.
Mauro Bartolomeu é poeta e escritor extraterráqueo. Mestre em estudos literários pela Universidade Estadual Paulista (Unesp), publica alguns dos seus poemas no blog antennaparanoica.blogspot.com.br.
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QUADRILHA por Cristiane Quinta
João amava Teresa que amava Raimundo que virou Maria que casou com Jorge que adotou Jefferson que estudou em escola pública e se tornou juiz que inocentou José que nunca mais roubou um pão que teve dois filhos, Joaquim virou poeta e Lígia virou empresária e amou Jonas que foi marceneiro e tinha um irmão André que era médico e andava pelo país e se apaixonou por Luísa que era professora do Carlos que criou um banco que financiou a Rose que montou uma clínica que atendeu Eduardo que escreveu um livro. E todos tinham trabalho e lutavam e sofriam e amavam e eram. João morava neste mundo. Teresa morava neste mundo. Maria morava neste mundo. Jorge morava neste mundo. Jefferson morava neste mundo. José morava neste mundo. Joaquim morava neste mundo. Lígia morava neste mundo. Jonas morava neste mundo. André morava neste mundo. Luísa morava neste mundo. Carlos morava neste mundo. Rose morava neste mundo. Eduardo morava neste mundo.
Cristiane Quinta é professora. Tem paixão por ler e ímpetos de escrever. Ama as palavras, as crianças e a vida.
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