DOCUMENTOS, FOTOS, GRAVAÇÕES EM ÁUDIO E VÍDEO DIGITALIZADAS SÃO SINAIS DE UMA MEMÓRIA COLETIVA PRESERVADA E SOCIALIZADA
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Foto: Beto Figueiroa
por Emerson Cunha
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lei nº 3.353, de 13 de maio de 1888, a Lei Áurea, se limita a dois artigos: o primeiro declara “extincta desde a data d’esta lei a escravidão no Brasil” e o segundo revoga todas as disposições em contrário. A preciosa página da lei faz parte, hoje, da coleção que leva o nome de João Alfredo Correia de Oliveira, “primeiro-ministro” de dom Pedro II. Entre março de 1888 e a declaração da República, ele foi o responsável pela redação de leis, ofícios e comunicações burocráticas. Nem todos conhecem, porém, um rascunho da Lei Áurea denominado “Projecto de Lei Abolindo a Escravidão no Brasil”, datado do mesmo ano de 1888. Ao contrário da lei assinada pela princesa Isabel, ele previa, em sete artigos, um processo gradativo de abolição, no qual o escravo liberto receberia remuneração e moradia do seu antigo senhor, além de outras garantias e deveres civis. Hoje podemos ter acesso a esse precioso rascunho porque ele foi recentemente digitalizado. A transformação do documento em imagens de pixels é um dos feitos do Laboratório de Tecnologia da Informação, o Líber, projeto desenvolvido no Departamento de Ciências da Informação da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Ele se abriga em uma discreta sala no segundo andar da Biblioteca Central da UFPE. Ao entrar no laboratório, tudo que vemos, a princípio, é uma rede de computadores. Uma luz suave entra através de uma parede de vidro. O visitante só se surpreende quando depara com um grande scanner, capaz de digitalizar até mesmo um periódico de 50 x 30 cm. Ao fundo, um equipamento do tamanho e com as feições de um
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pequeno freezer; na verdade, um disco rígido capaz de comportar, ou melhor, “congelar” 30 terabytes de dados – entre fotografias, imagens, vídeo e áudio. Abrigada nessa pequena sala, parte importante da memória brasileira resiste ao tempo.
período colonial. Parcerias com grupos como a Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj), o Arquivo Público do Estado de Pernambuco, a Biblioteca Brasiliana e a portuguesa Biblioteca do Espinho lhe permitiram o acesso a muitas preciosidades.
O laboratório só existe graças ao empenho pessoal do professor Marcos Galindo, atual chefe do departamento e coordenador da pós-graduação em ciência da informação da Universidade Federal de Pernambuco. Ele tornou-se uma referência nacional quando o assunto é a construção de bibliotecas digitais e o processo de digitalização de documentos de valor histórico. Galindo é, também, colaborador da Biblioteca Brasiliana, da Universidade de São Paulo. Sua grande paixão, porém, é a história holandesa em Pernambuco. Nas paredes da sala, ele guarda um mapa do Recife holandês, datado de 1639. Já à entrada, vemos a fotografia de um aeroplano que alça voo do Marco Zero, datada de 1925.
Um delas é a coleção Memórias do Golpe, acervo construído pelo jornalista Samarone Lima a partir de 1992, reunindo registros em áudio de entrevistas com exmilitantes contra a ditadura militar, além de recortes de jornais e documentos oficiais do período. Lima iniciou sua coleção sem saber que fazia isso. Era ainda um estudante de comunicação quando, por curiosidade pessoal, resolveu gravar entrevistas com ex-militantes de esquerda. Passou a registrar os depoimentos “de forma intuitiva, sem entender que estava trabalhando com importantes histórias de vida”, explica. O resultado é espantoso. Em seus depoimentos, os ex-militantes fazem confidências a respeito de seu duro cotidiano na ilegalidade e dos graves problemas de sobrevivência que enfrentaram. “Tratam de experiências dolorosas, como a doença, a solidão e a fome”, recorda Lima. As gravações ocuparam mais de uma centena de precárias fitas K7. A preservação dessas fitas angustiava Lima. “Eu não podia correr o risco de perder depoimentos tão importantes por falta de recursos técnicos.”
Galindo é um homem agitado, sem muito tempo para nada. Mas tem sempre muito a dizer a respeito das novidades tecnológicas para a preservação da memória. “Se eu digitalizar esse material uma única vez, posso fazer mil cópias com o mesmo custo. Se você perder uma cópia, terá sempre um backup para recuperar o que perdeu”, diz, entusiasmado. “E, se você tiver a tecnologia adequada para manter as cópias preservadas, poderá garantir o acesso a eles por um longo tempo.” Entre 1996, quando foi criado, e 2009, o Líber realizou 22 projetos de digitalização envolvendo importantes coleções, como os ofícios manuscritos de João Alfredo, do final do século XIX, livros do governo holandês no Brasil, do século XVII, e documentos luso-brasileiros do 52
A digitalização pretende garantir o livre acesso à memória social e coletiva. Os documentos que estão em domínio público, como o rascunho da Lei Áurea, podem ser consultados exaustivamente. Mas os arquivos pessoais, ou de interesse particular, correm o risco de não compor o acervo digital da internet. Alguns, como a coleção Memórias do Golpe, vivem uma situação de transição. “Apesar de haver um interesse de abrir os arquivos e uma
declaração dos governos de que esses arquivos iam ser abertos, a gente não consegue passar da promessa”, comenta o professor. Existe o cuidado de que os documentos digitalizados e entregues ao público não comprometam a imagem de pessoas. “Mesmo sendo um arquivo importante para a compreensão do passado, a gente tem que ter critérios para não expor a privacidade alheia”, ele argumenta. É uma situação complexa, que exige muitas precauções. “A gente quer o acesso, mas quer também que a memória das pessoas seja preservada.” O processo de digitalização apresenta, ainda, algumas dificuldades técnicas. Os documentos, sobretudo os mais antigos, costumam ser muito frágeis, exigindo, primeiro, uma restauração cuidadosa, e em seguida sua preservação em acervos especializados. Outro obstáculo é o preço dos equipamentos. O laboratório Líber, por exemplo, conta hoje com um aparelho de scanner importado do Japão, que lhe custou 150 mil euros. A compra só foi possível depois da liberação de fundos de pesquisa. As dificuldades agravam-se quando pensamos nos aspectos contraditórios da tecnologia virtual. Se, por um lado, ela possibilita o acesso livre aos documentos, por outro, o tempo de vida de um arquivo digital não é longo. É, quase sempre, inferior ao tempo de vida de um livro, ou de uma fita cassete. Os backups são feitos em compact discs, os CDs, ou em fitas digitais, que não costumam resistir muito mais que uma década. Os arquivos são salvos em extensões como Joint Photograph Expert Group (JPEG) e Portable Document Format (PDF), para fotos e arquivos impressos, mas, em pequenos intervalos, essas plataformas costumam ser aperfeiçoadas, o que acarreta a ne-
cessidade de frequentes modificações, de acordo com as possibilidades de leitura dos novos computadores. Para quem imagina o processo de digitalização como uma experiência futurista, realizada em laboratórios geridos pelas máquinas, é estranho perceber que ele acontece em uma pequena sala e que depende diretamente da ação humana. Algumas vezes, como acontece no núcleo de digitação da Fundação Joaquim Nabuco, no Recife, a sala se parece com um estúdio clássico de fotografia, com as paredes negras e sem o mínimo rastreio de luz. Nessa sala preta, as coleções do acervo são gradualmente digitalizadas, tanto por escaneamento como através do registro fotográfico – daí a semelhança com um estúdio. “Dependemos de uma constante e severa vigilância tecnológica”, explica Lino Madureira, coordenador do núcleo de digitalização da Fundação Joaquim Nabuco. “Monitoramos sempre os formatos dos arquivos, para que as mudanças não nos peguem de surpresa.” É importante atentar, ainda, para a necessidade de uma migração de formato. “Não podemos perder documentos importantes só porque o software não é mais compatível.” Embora seja um expert em digitalização, o bibliotecário Lino Madureira não esconde suas incertezas quando o assunto é a autorização de acesso aos documentos digitalizados. Não porque ele não se interesse pelo tema – que, ao contrário, interfere diretamente em seu trabalho. Acontece que a lei nº 9.610, conhecida como Lei dos Direitos Autorais, deixa algumas questões obscuras. “Se você seguir a lei ao pé da letra, não disponibilizaria praticamente nada, pois a legislação é muito amarrada. O que ela liberou numa ponta, lá na outra ainda continua a prender.” Outros direitos legais, como 53
os de propriedade e de conexão, tornam o processo de digitalização ainda mais complexo. A raridade de seus documentos, seu estado de conservação e a crescente demanda de pesquisa foram elementos que aceleraram a digitalização da coleção Francisco Rodrigues, que reúne 17 mil fotografias da aristocracia canavieira pernambucana dos fins do século XIX e início do século XX. São belas imagens dos senhores de engenho e de suas mulheres e famílias. Mas também um registro minucioso da vida cotidiana dos escravos, em especial das amas de leite. A coleção é resultado da obstinação do educador pernambucano Augusto Rodrigues (1913-1993). Ao herdá-la do pai, o dentista Francisco Rodrigues continuou a busca por novas fotografias. A coleção chegou às mãos da Fundação Joaquim Nabuco em 1960.
CONTRADIÇÃO DAS CONTRADIÇÕES, OS BACKUPS, QUE POSSIBILITAM ACESSO MAIS DEMOCRÁTICO, TÊM VIDA ÚTIL MENOR QUE SEUS ORIGINAIS – LIVROS, FITAS, VÍDEOS ETC.
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A digitalização conserva os retratos, suas dedicatórias e as marcas dos antigos ateliês fotográficos. “Mas conta também a história da fotografia em si, desde as primeiras técnicas fotográficas, passando por todos os tipos de impressão em papel, como em albumina, em colódio, em gelatina”, descreve Albertina Malta, diretora de documentação da Fundaj. A coleção tem, ainda, grande importância antropológica e social. “Ela registra os ritos de passagem, desde o nascimento até a morte. São fotos de bebês com seus pais, de cerimônias de primeira comunhão, de casamentos e de funerais.” Diante dela, não é um exagero pensar que a digitalização não se limita a conservar documentos e fotografias. Mais que isso, ela conserva a alma de um povo.
Marcos Galindo, do Liber: “Se você perder uma cópia, tem um backup”. Foto: Beto Figueiroa
O caminho da digitalização a) Resgate É o momento inicial do projeto. A partir da escolha de um tema, mapeiam-se os documentos necessários, por meio de visitas de pesquisa a coleções públicas e acervos particulares. Um diagnóstico posterior avalia o estado de conservação e de higiene dos documentos escolhidos. A partir daí, estabelecem-se os padrões de restauração e limpeza necessários. Por fim, a coleção é quantificada, o que permite estimar o tempo a ser gasto no processo de digitalização. b) Descrição Todos os dados das coleções e de seus documentos são
levantados: autoria, ano de publicação, natureza, suporte etc. Eles formam o conjunto dos chamados “metadados”, que compõem o perfil das coleções. c) Preservação É o próprio processo de digitalização, isto é, o registro e a preservação em suporte digital. Essa etapa referese também a mecanismos de preservação material do arquivo original. d) Acesso Nesse momento, buscam-se as autorizações necessárias para a divulgação dos documentos em uma rede interna ou externa: autorização do autor, da família, de governos e instituições que detenham o direito de propriedade.
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O rascunho da Lei Áurea, à direita, apresenta uma série de artigos e propostas que não aparecem na desidratada lei assinada. Documentos históricos digitalizados pelo Liber) 56
Técnicas surreais Você acredita que só folheando um livro é possível digitalizá-lo? Os japoneses Takashi Nakashima e Yoshihiro Watanabe, da Universidade de Tóquio, criaram o “Book Flipping Scanning”, algo como “Escaneamento de Livro por Folheamento”, capaz de digitalizar 200 páginas em apenas um minuto. O equipamento utilizado conta com uma câmera fotográfica com capacidade para fotografar 500 quadros por segundo, com resolução de 1.280 × 1.024 pixels; um sensor de imagens capaz de captar o momento em que cada página é folheada; e um leitor de Optical Character Recognition (OCR), que reconhece as imagens e as palavras de cada linha do texto. Após serem fotografadas, as páginas são repassadas para o computador como uma imagem 3D. Como a imagem da página é capturada no momento em que ela está sendo folheada, a imagem em 3D é de uma página curvada. Isso seria um problema caso o programa não possibilitasse que, pela trigonometria e digitalmente, a imagem possa ser manipulada até se tornar lisa e retilínea. Depois de aplainadas, as páginas são dispostas em sequência, como em um livro. Basta, então, reuni-las em um só arquivo e temos um livro digitalizado.
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