Diálogos entre educação e arte com o Acervo Itaú Cultural recorte Artistas Mulheres Contemporâneas
EXPEDIENTE coordenação editorial Carlos Costa edição Duanne Ribeiro conselho editorial Camila Nader, Elaine Lino, Kleber Menezes, Luciana Soares, Naiade Margonar, Samara Ferreira e Tania Rodrigues projeto gráfico e diagramação Arthur Gomes Costa produção editorial Luciana Araripe Supervisão de revisão Polyana Lima Revisão Rachel Reis (terceirizada)
Convite à descoberta Profissional da educação, este livro foi feito tendo você em vista. A ideia aqui é acentuar as possibilidades pedagógicas do encontro entre ensino e arte, com base em dez textos sobre artistas contemporâneas brasileiras. Das obras dessas criadoras emergem múltiplos temas: narrativas, símbolos e percepções que constroem nosso cotidiano; questões indígenas e de gênero; racismo, vivências urbanas e visibilidade social. Assim, todas elas proporcionam a chance de debates e projetos multifacetados nas salas de aula. Esses dez artigos são parte de uma série publicada semanalmente no site do Itaú Cultural (IC) a partir de obras do acervo da organização, com curadorias variadas e sazonais. O bloco que trouxemos para cá se chama Artistas Mulheres Contemporâneas no Acervo e reúne fotografias, vídeos, esculturas, performances, pinturas e colagens. Além desse conteúdo, publicamos escritos inéditos. “Para deixar de lado o ‘não entendo nada de arte’”, da educadora Mônica Silva, estimula o contato com as obras a partir das nossas experiências e do nosso corpo, deixando de lado receios, abrindo-se a explorar e não apenas a compreender. Já “Para transformar arte em ação educacional efetiva”, da coordenadora pedagógica Cléo Pereira, analisa a série de artistas e propõe meios de usar esses conteúdos na escola, no sentido de uma construção coletiva e transversal. Artistas Mulheres Contemporâneas no Acervo, como indicado, não é o único ciclo sobre obras da coleção do IC. Já foram concluídos Interiores, com espaços internos recriados pela arte, e Cidades, que retrata diversas localidades do país e temas históricos e sociais. Caso este livro o instigue, acompanhe em itaucultural.org.br as próximas curadorias. Itaú Cultural
semelhante ao que aconteceu entre mim e aquele desenho da Tarsila se repita: que a visita deixe algo significativo em alguém. Agora, percebo também outra coisa sobre aquele evento com o desenho: ele não teria sido possível se minha mãe não tivesse podido ou não achasse relevante me levar àquele espaço, ou se não pudéssemos nos locomover de ônibus e metrô, ou mesmo se o acesso ao espaço expositivo fosse pago. Tudo isso me leva a pensar que o encontro de uma pessoa com uma obra é mediado por uma série de fatores, de muitas naturezas: algumas materiais, outras simbólicas. Entendo, então, que minha atuação como educadora que testemunha e propõe encontros com a arte é apenas uma parte de uma imbricada rede de contextos e atores que determinam a relação entre os patrimônios e seus públicos. É sabido que comumente essa relação é marcada por uma distância, às vezes difícil de identificar e diminuir, e que pode ser expressa, entre outras formas, pela ideia de que não se entende arte. Eu, como mediadora, trabalho a todo tempo percebendo esse espaço e intervindo nele, nessa distância. E então, buscando olhar para isso, é que trago comentários, reflexões e provocações a partir das percepções que surgem da atuação cotidiana, que emergem do meu encontro com os diversos públicos nas exposições, nas oficinas e nos demais espaços em que me lanço. Atividades educativas na sede do Itaú Cultural | foto: ophelia
Para deixar de lado o “não entendo nada de arte” por Mônica Silva Diante de trabalhos artísticos, como não apenas entender, mas sentir? Em que lugares da nossa convivência ordinária é possível cultivar uma forma sensível de estar? Ainda me lembro daquela que deve ter sido minha primeira experiência com uma obra numa exposição: guardado na gaveta de uma mapoteca num dos pisos superiores do Centro Cultural São Paulo (CCSP), em algum ano da década de 2000, estava um desenho da Tarsila do Amaral. Eu, uma criança de mais ou menos 10 anos de idade, olhando para aquela folha de papel sob o vidro, encontrei ali algo que existia em mim mesma: o gosto de desenhar. Só muitos anos depois tive a oportunidade de saber quem foi a artista, sua importância para a cultura nacional, e vim a estudar arte. Mas, independentemente dos eventos posteriores, sei que de alguma forma o que me ocorreu naquele momento – elaboro hoje – foi um encontro significativo. O interesse pelo desenho se manteve e foi determinante nas escolhas que fiz. Hoje, como educadora em exposições – sobretudo de arte –, desejo que algo
1. Nem tudo é para entender, ou não só entender. O que quero dizer com isso é que “entender”, como fenômeno cognitivo, é uma das coisas que podem acontecer quando estamos diante de uma obra, não é a única. Obras de arte convocam não apenas o intelecto, mas os sentidos, a memória e às vezes até dimensões que escapam à linguagem – coisas que não explicamos, mas sentimos. Achar que precisamos entender uma obra pode significar que, supostamente, para termos uma experiência diante dela seria necessário estudar antes, ter tido acesso a um repertório que a explica e que nos prepara para categorizar ou analisar e identificar o conjunto de coisas “sabíveis” dela ou do artista. Na contramão disso, proponho pensar que o preparo que podemos ter ou a postura que podemos buscar durante o acontecimento é não necessariamente ou não só o “estudo”, a atividade mental, mas também o cultivo de um estado de abertura: uma abertura sensível para aquilo com que nos relacionamos – apreendendo o que nos chega não só pelos olhos, mas pelo corpo todo. Ressalto, porém, que esta proposta não pressupõe que no momento do encontro com a obra não possamos mobilizar repertórios diversos que carregamos, que podem advir, inclusive, do estudo. Quando nos colocamos diante de algo para ler/ver/sentir, sempre buscamos as referências que trazemos de nossas vivências. Mas o que quero propor aqui é que essas vivências não são apenas aquelas da ordem do conhecer, do racional ou do mental; são as mais diversas possíveis. Para uma obra, haverá tantas experiências ou leituras quanto
houver leitores/observadores. Tudo aquilo que pode se passar é potencialmente infinito, sendo a subjetividade humana potencialmente infinita. Por essa via, podemos pensar então que qualquer pessoa pode viver algo no encontro com as obras. Não porque precisou acessar alguma narrativa prévia sobre elas, que algum suposto especialista teria emitido, mas porque tem em si a potência dos sentidos – a visão, o tato, o olfato, a audição... Às vezes algum deles prevalece, às vezes trabalham todos juntos. Há sabedorias do corpo. Leitoras e leitores deste texto, se essa forma de se colocar diante da obra parecer estranha, não habitual, proponho que comecem provocando estas posturas na vida cotidiana mesma: em que relações, espaços, diálogos, ou diante de que objetos ou pessoas podemos buscar não apenas entender, mas sentir – na concepção mais ampla que essa palavra pode ter? Em que lugares da nossa convivência ordinária é possível cultivar uma forma sensível de estar? 2. A concepção de não entender arte tem algo a ver com a ideia de dom. Com a consciência de que entro aqui num campo de disputas conceituais e ideológicas, sinto quase que como um dever dizer: não existe dom. Crer que certas pessoas nascem “com dom para a arte” trabalha com a noção de que o fazer arte pertence a uma classe de escolhidos, de especiais, de gente que nasceu entendendo. Como se bastasse o pincel pousar em suas mãos para criarem, sem dificuldades, Monalisas e Capelas Sistinas. Na mesma lógica, haveria, então, em contrapartida a classe dos infelizes que não têm talento, condenados a ficar de fora do círculo dos escolhidos por determinação divina – ou transmissão de herança. Contra isso proponho que lembremos que o ser humano é um ser que aprende, e que aprende dentro de uma cultura. Longe de negar a existência das determinações genéticas e até mesmo de pensar que talvez certas pessoas tenham mais facilidade na execução de certas tarefas do que outras, ressalto a importância de afirmar que ninguém nasceu mais especial que ninguém e que todos os seres humanos podem desenvolver habilidades se, durante a sua vida, lhe forem dadas condições, ou seja, oportunidades, contextos sociais, econômicos, políticos, para que as práticas (mesmo as intelectuais) sejam treinadas, desenvolvidas, compartilhadas. Além disso, pode ser também pertinente problematizar a hierarquia entre as atividades, a qual determina que alguns tipos de trabalho, como o artístico, devam ser mais valorizados que outros. Ei, você aí que acha que não tem dom para nenhuma atividade artística: o que você talvez não tenha tido é a chance de descobrir quais são seus interesses, desejos, afinidades, e de desenvolver processos de criação (cabendo dizer que processos criativos não são exclusivos do mundo da arte: o que seria da ciência, por exemplo, se não houvesse gente a todo tempo tensionando o limite do conhecido, fazendo descobertas e invenções?). O que está em jogo quando operamos nessa lógica
Atividades educativas na sede do Itaú Cultural | foto: ophelia
do dom, que parece preferir criar supostos “gênios” em detrimento de buscar oferecer ao maior número de seres a oportunidade de desenvolverem sua potência inventiva, a qual, afinal, todos temos? O que acontece quando propagamos padrões a ser alcançados que, quando não o são, nos paralisam e nos impedem de criar? 3. Ainda contra a ideia de que o fazer arte estaria ligado a um fazer natural (ou sobrenatural) do dom, recebido, herdado, acho necessário lembrar da profissão do artista. Fazer arte também é trabalho, também é fruto de anos de investigação – teórica e/ou prática –, de embate com os materiais, com as ideias, com os contextos, de muito treino. E observação. E treino. Erros, obstáculos, tentativas. Mais treino, mais treino. Quando, numa visita recente, surgiu por parte do grupo a fala: “Ah, mas isso eu mesmo faço!”, tivemos então a oportunidade de nos perguntar: e por que não fizemos? O que separa o fazer do artista do nosso fazer? Se fizéssemos, nós mesmos, nossos trabalhos e quiséssemos montar uma exposição, poderíamos? O debate foi rico e não chegou a respostas definitivas, mas algo que surgiu na ocasião foi a percepção de que aquilo que víamos era, entre outras coisas, resultado de um fazer profissional e intencional, fruto de uma trajetória de anos dedicados a essa tarefa, nem tão simples assim, que é viver a materialização das ideias aliada à transformação dos materiais.
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4. Outra questão recorrente na experiência dos grupos com as obras é: “O que esta obra significa?”, a que eu costumo devolver com “o que você acha que significa?” ou “o que significa para você?”. Certa vez, durante uma visita, jovens de um grupo hostilizavam a devolutiva de um colega às questões que eu colocava. Acusavam-no de ter “errado a resposta” ou a ridicularizavam. Essa foi, então, uma oportunidade para pensarmos juntos: será que há um único sentido possível para uma obra? Será que não é possível que meu colega pense ou se sinta diferente de mim diante da mesma coisa? O que precisamos fazer para que a diversidade de opinião, ponto de vista e sentimento conviva? O que quero lançar aqui é que abandonemos o binarismo entre certo e errado. É preciso que cada pessoa possa se expressar (ainda que de maneira silenciosa) e ser acolhida quando o fizer. Fazer conviver a diversidade de vozes – ou silêncios –, além de um caminho pedagógico importante, é nada menos que a base da democracia, cuja prática ordinária é imprescindível. 5. Creio ser muito importante que todos nós que podemos ocupar o espaço de mediadores ou propositores do encontro com as obras, a história ou a prática artística procuremos, na medida do possível, viver estados de arte: que vivamos nós mesmos as questões e as experiências postas pelos trabalhos, artistas, materiais. Reitero que devemos, sim, estudar, ler, ver vídeos etc., mas também conhecer com
o corpo, com as mãos. Sentir a diferença entre as tintas, a dureza de uma placa de madeira se transformando em matriz de gravura, experimentar as propriedades da luz na fotografia, tocar instrumentos, dançar etc. Essas experiências podem, aliadas ao conhecimento que temos dos grupos que encontramos, nos auxiliar numa dimensão operacional da tarefa, nos ajudar a prever algumas coisas com as quais eles podem se deparar quando eles próprios forem colocados diante das práticas e dos materiais. Mas, antes de tudo, elas servem como algo para nós mesmos. Não necessariamente provendo repertório a ser prontamente reproduzido, mas criando condições para que nós conheçamos nossa forma de nos relacionar com aqueles universos, e para ir discernindo o que daquilo fica, o que daquilo importa e o que daquilo eu levo para minha experiência com o outro. Como complementos ou suplementos a essas práticas, deixo aqui registradas algumas fontes de estudo que me ajudam: ouvir ou ler artistas falando de seus processos; pesquisar obras, temas ou procedimentos em sites de museus; buscar tutoriais disponíveis na internet; procurar fazer cursos (há muita coisa gratuita); usar e abusar da Enciclopédia Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras e de todos os outros canais da organização. 6. Não poderia deixar de colocar aqui um último lembrete: arte não é só o que está no museu. Os
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acervos e as instituições culturais – não só as museológicas – têm papel social importantíssimo, mas tudo que está fora desses espaços também. É vital que possamos reconhecer na vida a cultura. Colocar os diferentes códigos, grupos, ideias, em diálogo. Sinto que a experiência de uma visita ganha muito quando consigo, com o grupo, criar sentido para aquilo que experienciamos na exposição, relacionando com o que vivemos. Nosso encontro ganha sentido também quando me lembro, ali com eles, que sou da mesma maneira um sujeito em construção, que há coisas que eu não sei, em que tenho dificuldade ou não entendo bem, e que o conhecimento e o criar são coisas que se constroem na coletividade.
Finalizo pensando que, no âmbito da educação – a formal, a informal, a não formal –, o objetivo de levar a arte para a vida das pessoas não precisa – talvez nem deva – ser o de fazer com que todos se descubram “artistas”, profissionais da arte ou qualquer coisa assim. Mas pode ser buscar – nesse universo que, ao longo da história, produziu tantas e tão diversas formas de ler, estar no mundo e com o mundo, como nos propõe o educador Paulo Freire – pistas de como podemos cultivar, no lugar onde estamos e com o que temos, estados de sensibilidade, de reflexão e de criação: não só dos objetos ditos artísticos, mas de toda a vida.
O que trouxe neste texto não busca de forma alguma ser um manual ou um conjunto de verdades. São questões que busco refletir na minha maneira de atuar. Falo do meu próprio lugar, mas sabendo que essas reflexões não são exclusivas da maneira como acontece a minha prática. Sei que, para que uma pessoa ou um grupo tenham uma experiência potente de encontro com as obras, vários agentes atuam: não apenas eu, mas vários outros na minha instituição e fora dela, como os profissionais das escolas e de além delas: diretores, coordenadores, cozinheiros, professores etc., o motorista do ônibus, as famílias e, levando longe, toda a sociedade e até o poder público. Sei que cada um, do lugar de onde fala e faz, tem muito a oferecer, e temos muito a aprender juntos.
Mônica Silva é educadora no Itaú Cultural, oficineira, artista visual e interessada em tudo o que mãos inquietas podem criar, em especial no que envolve desenho e meios gráficos. É formada em artes visuais pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP) e atua em diversos espaços culturais. Atualmente, aprofunda os estudos na área da educação.
Conteúdo desta série: textos Duanne Ribeiro curadoria equipe do Acervo Itaú Cultural
Artistas Mulheres Contemporâneas no Acervo As artistas abordadas nas páginas seguintes – Berna Reale, Claudia Andujar, Jac Leirner, Leda Catunda, Rochelle Costi, Rosana Paulino, Sara Ramo, Shirley Paes Leme, Vânia Mignone, Virginia de Medeiros – têm práticas, universos simbólicos e interesses muito distintos. O leitor explorará vídeo, fotografia, colagem, instalação, pintura, escultura, passando por temas como linguagem, narrativa, vivência do tempo, criminalidade, questões indígenas e racismo. Cada artigo enfoca uma obra, espraiando-se por outras ao longo da conversa. Para cada obra, o caminho do texto é similar: primeiro, buscar entrar em contato com os trabalhos sem mediação, isto é, sem colocar os comentários e as interpretações antes de nosso olhar. Observando, extraindo detalhes e se perguntando sobre as características, pressentindo quais são as problemáticas por trás da peça artística, vamos descortinando cada uma. Com isso, podemos dialogar com outras perspectivas. As dez criações trazidas aqui compõem o Acervo de Obras de Arte do Itaú Unibanco, que conta com cerca de 15 mil pinturas, gravuras, fotografias, filmes, vídeos e instalações, entre outros itens reunidos no decorrer de mais de 60 anos. O Itaú Cultural realiza exposições em todo o Brasil com esse material, em recortes temáticos – como as mostras Moderna para Sempre e Filmes e Vídeos de Artista. Acompanhe a programação desses eventos em itaucultural.org.br.
Berna Reale e a violência silente Na performance Ordinário, a artista levou pelas ruas de Belém (PA), em um carrinho de mão, ossos de indivíduos assassinados e sem identificação
Berna Reale Ordinário, 2013 Acervo Itaú Cultural
O noticiário policial apresenta todos os dias uma forma muito característica de violência, que demanda estarmos alertas, que se impõe como urgente. Assassinatos, sequestros e roubos, com frequência em um enquadramento que define heróis e vilões, cobra quem seja responsável, passa à próxima manchete. Essa é uma violência que se faz ouvir, que é até barulhenta. Mas há também uma violência que não se ouve e que desaparece. O que há de violento na sociedade e permanece apagado, abafado, é um tema marcante da obra da artista visual e performer Berna Reale. No vídeo que destacamos neste texto, essa problemática é central: Berna leva pela periferia de Belém, capital do Pará, em um carrinho de mão, ossos de cerca de 40 pessoas – vítimas não identificadas de homicídio. A performance afronta a cidade com algo já quase ou totalmente esquecido. Ordinário foi realizada em 2013, ano em que Belém, segundo o Atlas da Violência 2019 – mapeamento do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) –, alcançou a sexta posição entre as capitais com o maior número de homicídios por 100 mil habitantes: 60,2. O bairro em que a artista faz sua procissão, Jurunas, era então um dos mais violentos nesse sentido na cidade: de acordo com Rosália Corrêa e Marco Lobo, que fazem uma média de 2013-2015, a localidade estava na faixa entre 50 e 75 mortes por 100 mil. Esse é o contexto que pode informar a performance. As ossadas que a artista transporta pelas ruas em meio a passantes curiosos ou desatentos são um componente particular desses dados estatísticos: representam aqueles a quem não sobrou história, cuja morte terá pouca ou nenhuma explicação. Como descreve a artista plástica Susana Rocha: Estes restos mortais sem identificação são frequentemente encontrados por agentes policiais em cemitérios clandestinos, produto da elevada taxa de homicídios no Brasil. A performance é uma denúncia a esta realidade, e um confronto entre os vestígios de homicídios com o local onde habitam possíveis perpetradores de tais crimes. [...] assistir ao vídeo da performance faz-nos pensar que, mesmo depois da morte, a última indignidade é o esquecimento. O confronto com o apagamento que vemos em Ordinário pode ser uma chave para todo o trabalho da artista. Diz ela ao pesquisador Raphael Fonseca: “A violência silenciosa ou a que é observada em silêncio, sem dúvida, é a que mais me angustia. Silenciosa no sentido mais amplo possível, silenciosa no que diz respeito à tortura, aquela cometida entre paredes, a silenciosa por parte dos espectadores e silenciosa por meio do poder”.
Berna Reale é artista e perita criminal, licenciada em artes pela Universidade Federal do Pará (UFPA) em 1996. Suas primeiras produções artísticas são dos anos 2000; em 2009, quando recebeu o Grande Prêmio do Salão Arte Pará, começou a se destacar nesse meio. Foi contemplada pelo Rumos Itaú Cultural em dois editais: 2011-2012, com a série Retratos, e 2013-2014, com Precisa-se do Presente (leia uma entrevista com ela sobre o projeto). Saiba mais na Enciclopédia Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras.
Claudia Andujar e os Yanomami A série de fotografias Marcados faz pensar sobre a problemática da relação entre a população e o poder: quem é marcado para viver e quem é marcado para morrer?
Claudia Andujar Vertical 12, da série Marcados, 1981/1983 ampliação fotográfica analógica com gelatina de prata sobre papel fibra [tríptico] 56 x 37,5 cm cada foto Acervo Banco Itaú Imagem: Iara Venanzi/Itaú Cultural Os indígenas nas fotos estão prestes a se tornar informação. As placas numeradas presas ao pescoço de cada um somadas ao registro imagético fazem com que possam ser inscritos em um cadastramento e, assim, em algum tipo de circuito de administração. Esse processo, ao mesmo tempo que garante certa apreensão dessas pessoas, dispensa outras percepções – são dados que a fotografia guarda, quase como um excesso: a seriedade desafiadora do primeiro homem, os olhos fechados no menino magricela, o meio sorriso do último no tríptico. Para que servirão esses registros? Com que objetivos se forma uma base de dados sobre essas pessoas? Não sabemos disso num primeiro contato com as fotos. Sabemos só que os retratados estão à disposição de alguma técnica – para o bem ou para o mal, são marcados, como atesta o nome da série de que fazem parte. A autora da obra – a fotógrafa Claudia Andujar – soube indicar essa profundidade: a primeira exposição de algumas dessas imagens, em 2005, chamava-se Marcados para Viver, Marcados para Morrer. Em pauta está essa ambiguidade. O primeiro sentido – marcados para viver – é o da história da criação dessas fotos. Desde 1971, quando partiu para a selva amazônica com a proposta de realizar um
ensaio sobre os Yanomami para a revista Realidade, a fotógrafa havia desenvolvido forte convívio com os indígenas (neste perfil de Beatriz Jucá, lemos essa história). Nos anos 1980, ela retornou à região com alguns médicos, em uma expedição que intencionava vacinar os nativos. Eles sofriam de uma epidemia disparada pelo contato com o homem branco após políticas iniciadas pelo governo federal. Essas políticas tomam forma a partir de 1968, segundo o relatório Violações de Direitos Humanos dos Povos Indígenas, da Comissão Nacional da Verdade. Editado pelo governo militar, o Plano de Integração Nacional (PIN) estimulava a “ocupação da Amazônia”, “representada como um vazio populacional, ignorando assim a existência de povos indígenas na região”. Remoções forçadas, contatos sem precaução, massacres armados marcam os desdobramentos do projeto. Sobre os Yanomami, Jarbas Passarinho – ministro do Trabalho e da Previdência Social de 1967 a 1969 e ministro da Educação de 1969 a 1974 – testemunhou em 1993:
Logo que o Projeto Radam evidenciou a presença de ouro no subsolo, e a Perimetral Norte levou o acesso até a terra milenarmente ocupada pelos Yanomami, que aconteceu? A morte de mais de 50% da tribo de Catrimani, causada por gripe e doenças, que não são mortais para nós, mas o são para índios não aculturados. Não foi só nessa tribo, mas em várias outras, onde se deu a presença dos garimpeiros. Eles poluíram os rios com mercúrio, afastaram a caça pelo barulho, provocaram a fome e a desnutrição dos índios, enquanto contra nós avolumava-se a acusação de que praticávamos o genocídio. Não era exagerada a denúncia. Dessa forma, as fotos de Marcados foram feitas para a expedição que procurava se contrapor a esses danos – identificam os indígenas que seriam o objeto da campanha de vacinação. Foram publicadas pela primeira vez em 1982, com textos de Claudia, no relatório da Comissão pela Criação do Parque Yanomami. A série, no total, tem 82 imagens. Levadas ao campo artístico em 2005, como anunciamos, recebem outros sentidos, referências ao marcados para morrer. É o que notam Daniela Nery Bracchi e Paula Soares: é feita “uma alusão claramente intertextual entre a marcação que buscava preservar a vida dos indígenas e outros retratos nos quais as pessoas recebem um número e são identificadas antes de serem mortas”. Nesse sentido, pode-se lembrar o impacto do Holocausto na história de vida de Claudia. Nascida na Suíça, a fotógrafa cresceu com a família paterna, de origem judaica, na Transilvânia, entre a Romênia e a Hungria. Seus familiares foram deportados para os campos de concentração nazistas de Auschwitz e Dachau – apenas um tio, que havia emigrado para os Estados Unidos antes da guerra, e ela e sua mãe, que haviam fugido para o país natal, sobreviveram. É, assim, a partir de uma experiência intensa do que significam as relações entre as populações e o poder, entre os números e as pessoas, entre esquecimento ou seleção e memória, que ela fotografa.
Claudia Andujar lançou as obras Amazônia (1978), com o fotógrafo George Love, Mitopoemas Yanomami (1979), Missa da Terra sem Males (1982), Yanomami: a Casa, a Floresta, o Invisível (1998) e A Vulnerabilidade do Ser (2005), entre outras. Fez parte, entre 1978 e 1992, da Comissão pela Criação do Parque Yanomami e, entre 1993 e 1998, do Programa Institucional da Comissão Yanomami. Saiba mais na Enciclopédia Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras.
Jac Leirner e o dinheiro fossilizado A artista desloca objetos do seu circuito cotidiano e permite que eles sejam vistos de outra forma e produzam novos significados
Jac Leirner Blue Phase (Defacements), 1992 papel-moeda e entretela 97,6 x 98,6 x 5,5 cm Acervo Banco ItaĂş Imagem: Sergio Guerini/ItaĂş Cultural
Não conhecemos alguns objetos e signos bem demais a tal ponto que, mesmo se feitos por nós, parecem naturais, partes das coisas como são? Talvez um caso desses seja o dinheiro: qualquer que seja a sua encarnação – moeda, cédula, crédito –, os seus fluxos, as suas paradas soam inscritos na realidade. O que se passa, então, quando retiramos esses itens do seu lugar? Blue Phase (Defacements), da artista multimídia Jac Leirner, executa um procedimento assim. A obra é composta de notas costuradas, parcialmente sobrepostas, nas quais a figura de Juscelino Kubitschek (1902-1976), presidente do Brasil entre 1956 e 1961, ganha intervenções gráficas: a antes imponente efígie histórica recebe chifrinhos, barba pontuda, moicano, língua de fora. Vista de longe, Blue Phase oferece uma massa de formas e tons azuis e amarelos. O dinheiro, nessa e em outras obras de Jac (como Os Cem, Os Cem (Roda) e Fora dos Cem), não atua mais na manutenção da economia; percorre agora outro circuito de signos e objetos, o das obras de arte. Destacadas da maneira como podem se impor à vida cotidiana, essas cédulas se reduzem a formas visuais, suportes simples. Para onde foi o valor? Podemos pensar essa pergunta de várias maneiras. Uma delas é a história da moeda usada pela artista. Há, implícitos em Blue Phase, ciclos de valorização e desvalorização: a nota de 100 mil cruzeiros, lançada em 1985, era então de maior denominação e reparava em algum nível os problemas da inflação, que tornava necessário o uso de grande volume de notas de menor cifra. O cruzeiro, criado em 1970, foi substituído em 1986 pelo cruzado. Com três zeros a menos que o seu antecessor (daí as cédulas de 100 na obra de Jac), ele duraria até 1989, tendo precisado de muitas outras cédulas de maior grandeza. Juscelino acabou valendo nada. Em 1992, quando surge Blue Phase, já havia morrido o cruzado novo (1989-1990) e era vigente outro cruzeiro (que seguiria até 1993). O valor, sabemos, não estava nos papéis – é produzido nos movimentos da sociedade. De certa forma, então, Jac dá outra dignidade ao antigo dinheiro: faz com que ele seja “fossilizado”, na expressão usada pelo catálogo da exposição Jac Leirner: Funciones de una Variable. Esse recurso marca a sua produção, avalia Tadeu Chiarelli: O que move inicialmente o trabalho da artista parece ser a necessidade de aprisionar objetos, retirando-os do fluxo do consumo, da vida. Leirner age como uma colecionadora, ou melhor, como uma arqueóloga especial, preocupada com as tipologias de alguns objetos que a interessam pelo que eles possuem de comum entre si e pelas relações – afetivas ou não – que a artista mantém com os mesmos. Maços de cigarros, cédulas de dinheiro, frases, sacolas de plástico etc.
Esses cruzeiros e cruzados lembram como é instável a posição de meios de pagamento como o nosso real, e estão eles próprios reservados em relação a esse jogo. Contudo – e aqui há outra forma de ver a questão do paradeiro do valor –, por tal ato Jac recoloca esses objetos no lugar de onde os havia tirado. Como Chiarelli percebe, após “matá-los” em uma primeira fase, deixa que acumulem (o acúmulo é uma das suas principais ferramentas) e aí, narra o curador, passa a remodelá-los em uma etapa que a própria artista denomina como sendo de “engendramento”, ou seja, gestação. Uma etapa demorada, meticulosa, em que a artista, unindo as carcaças de um mesmo tipo de objeto, vai obsessivamente chegando ao resultado final dessa etapa: um novo objeto, uma nova forma, constituída de vários, inúmeros exemplares de um ex-objeto. [...] terminada essa etapa, o que faz? Lança de novo aqueles vários objetos – agora unidos numa mesma forma – ao fluxo da vida, do consumo, expondo-os no circuito convencional da arte convencional. Como afirmou a artista em entrevista à Folha de S.Paulo, “o mercado absorve tudo, seja uma nuvem, uma ideia, uma lágrima ou um som”. A arte é suscetível às mesmas sortes e azares que a moeda?
Jac Leirner é formada em artes plásticas pela Fundação Armando Alvares Penteado (Faap), da qual foi professora entre 1987 e 1989. Em 1991, tornou-se artista residente do Walker Art Center, de Minneapolis, nos Estados Unidos. Ainda nesse ano, foi professora convidada da Universidade de Oxford, na Inglaterra, e artista residente do Museu de Arte Moderna dessa cidade. Participou, em 2017, da exposição Modos de Ver o Brasil: Itaú Cultural 30 Anos, realizada na Oca, no Parque Ibirapuera. Saiba mais na Enciclopédia Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras.
Leda Catunda está de barriga cheia Na sua produção, a artista é atenta à multiplicação de sentidos que giram em torno dos trabalhos e ao nosso modo de estar no mundo, marcado pelo desnorteio dos imaginários
Leda Catunda Barriga, 1997 colagem 70,2 x 50 cm Acervo Banco Itaú Imagem: Sergio Guerini/Itaú Cultural
O que há numa barriga? Como percebe Leda Catunda – criadora da colagem ao lado – na sua tese de doutorado, essa palavra carrega no seu bojo muitos sentidos – ou, como ela diz, desse signo “imagens e conceitos podem frutificar”. Primeiro, claro, basta olhar para baixo, basta pôr as mãos entre peito e cintura para saber: algo orgânico, carne e pele com formas típicas, mais ou menos moles, protuberantes, preenchidas. Segundo, podemos percorrer nossa linguagem, recolher as várias expressões do tipo” estar tipo “estar de barriga vazia”, “chorar de barriga cheia”, “empurrar com a barriga”. Ainda mais, até vivências e símbolos de grande envergadura são captados. Por exemplo, [...] a noção de tempo que se associa à imagem da barriga, desde a mais óbvia, que seria a de uma barriga gestante, que cresce lentamente durante um período determinado, quando um novo ser está sendo gerado. À gestação associa-se a ideia de espera, do novo que está por vir. Esta é uma barriga temporária que, depois da chegada da cria, vai sumir, esvanecer.
[...] a questão da identificação do sujeito com algum tipo de imagem. Em alguns casos pode-se dizer: a intensa necessidade de identificação da pessoa comum com algum tipo de imagem, iconografia, que a auxilie a localizar-se no mundo atual, tão exigente e repleto de mais camadas do que conseguimos enxergar e sequer ainda frequentar. Um mundo folhado, real e palpável, quando se acorda de manhã, na cama, no quarto, em casa... Imediatamente tornado estranho quando se abre o jornal para, logo em seguida, tornar-se então irremediavelmente inclassificável quando se liga o computador, pela infinita multiplicação de possibilidades e a confluência abundante de culturas diversas ali reunidas. Onde estamos? Com efeito, ao observar esta nossa colagem, onde estamos? Na barriga da baleia?
Todos esses significados – e outros; você consegue pensar em alguns? – podem ser mobilizados quando tentamos entrar em contato com a colagem em pauta. Nossa relação com a linguagem tem dessas – se Julieta, personagem de Shakespeare, ponderou “O que há num nome? Uma rosa, sob qualquer outro nome, seria igualmente doce”, no nosso caso teríamos de dizer outra coisa: segundo nota a artista visual Carla Zaccagnini, falando de outra Barriga, de 1993, “seria outra pintura se se chamasse ventre”. Ou bojo, bucho, pança, estômago, abdômen. E o que temos na nossa Barriga? Se não temos o rei, pelo menos parte da família real está lá: a colagem tem os desenhos de um príncipe e de uma princesa. Também contém um pufe vermelho, um laço de fita da mesma cor, um ingresso para uma apresentação do violinista Cláudio Cruz e do pianista Sergio Melardi no Teatro Maksoud Plaza em 1995, uma embalagem da marca Cica com o slogan “Doce Cica, doce vida”, um elefante marrom, um catálogo de cores, o deus indiano Krishna com sua mãe adotiva, Yashoda, flores roxas – e mais. São tantos os símbolos acumulados que talvez tenhamos de usar agora ainda outra metáfora ligada a barrigas: é coisa demais para digerir. Mas talvez esse seja só o outro lado dessa potência de multiplicação dos imaginários. Se antes passeamos pelos sentidos da palavra, agora estamos presos num furacão deles: tanto criamos imagens quanto estamos emaranhados em um mundo de imagens. Leda, comentando outras obras, diz que lhe interessa
Leda Catunda é artista visual, pesquisadora e professora. É um dos expoentes da Geração 80, tendência artística dos anos 1980 marcada por um viés mais subjetivo (em oposição à produção artística mais conceitual ou mais política) e por um interesse pela pintura, além de outros aspectos (leia mais neste texto e assista a uma aula sobre esse tema com o professor Marcos Moraes). Foi aluna de Regina Silveira, Nelson Leirner e Julio Plaza. Realizou diversas mostras individuais e participou de coletivas (veja cronologia), das quais se destaca Pintura como Meio, no Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC/USP), com curadoria de Aracy Amaral. Saiba mais na Enciclopédia Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras.
As casinhas de Rochelle Costi Com materiais encontrados nas ruas da Cidade do México, Rochelle montou pequenas casas e as levou para passear por pontos de referência, como a histórica Praça da Constituição
Rochelle Costi Casa Própria – Panorâmica Zócalo, 1999 fotografia sobre placa de PVC 89 x 116 x 4,5 cm Acervo Banco Itaú Imagem: Sergio Guerini/Itaú Cultural Os prédios históricos nesta fotografia, grandes retângulos de pedra, metal, vidro, têm no primeiro plano da imagem competidores humildes: pequenas caixas de madeira pintadas, casinhas como que de cachorro ou de boneca. O que você sentiria ao se deparar com tais residências diminutas ao caminhar pela cidade? Casa Própria, da fotógrafa e artista multimídia Rochelle Costi, consiste tanto nessas construçõezinhas quanto na relação com a cidade que a obra permite ou modifica. Esse trabalho, conta Rochelle, deriva de outro, Condomínio, “uma instalação com cerca de 40 casinhas em ‘escala canina’, feitas a partir de sucatas encontradas nas ruas de São Paulo”. Para a galeria mexicana Nina Menocal, a artista reelaborou o projeto em dois aspectos. Primeiro, claro, fez as edificações em miniatura com materiais que pôde recolher nas ruas da Cidade do México. Nisso já há uma diferença significativa em relação à experiência nas ruas paulistanas:
Em se tratando de cidades de portes semelhantes, São Paulo e Cidade do México, em países com nível de desenvolvimento similar, pareceu-me óbvio que encontraria material em abundância pelas ruas para a construção das casinhas. Para minha surpresa, foram necessários três dias para encontrar um simples sarrafo. Isso foi em 1999, quando por aqui ainda não havia grande interesse pela reciclagem, enquanto lá já existia uma rede de negócios movida apenas pelo que é dispensado pela população. O que destacamos é como a execução da “mesma” ideia mobiliza, somente pela modificação do contexto, fatores outros: a cidade, por ser como ela é, produz a obra de arte com outros valores – fazer algo de sucata não significava o mesmo nas duas capitais. Além disso, explica o curador Ivo Mesquita, esse procedimento marca o estilo da artista, que com frequência
faz “apropriação de imagens impressas, de objetos e materiais banais, de autorretratos e fotografias, estereótipos e desejos da cultura material, coletados e colecionados ao acaso”. Em segundo lugar, Rochelle quis constituir uma intervenção urbana, “levar as casinhas a locais conhecidos da cidade e fotografá-las”. Casa Própria circulou por pontos relevantes: Chapultepec, Torres de Satélite, Xoximilco – e Zócalo, que aparece na foto que trouxemos aqui. A Praça da Constituição, ou El Zócalo, é uma das maiores do mundo e tem uma história de mais de cinco séculos. Na América Pré-Hispânica, nesse local estava Tenochtitlán, capital do Império Asteca, construída à beira do Lago Texcoco. Os espanhóis a destruíram e aterraram o lago para ampliar o território (o que legou problemas infraestruturais). Em 2017, arqueólogos revelaram ruínas próximas à praça, de um templo dedicado ao deus Ehecalt e de uma quadra de jogos. O nome atual da praça (já foi Plaza de Armas, Plaza Principal, Plaza Mayor e Plaza del Palacio) vem de 1813, em memória da primeira carta magna da Espanha, a Constituição de Cádiz – que vigorou no Brasil por pouco mais de um dia. Já o apelido Zócalo – que significa pedestal – aparece depois de 1843, quando foi ordenado um monumento para comemorar a independência do país. Essa obra nunca chegou a ser realizada – só o pedestal foi posto no lugar... El Zócalo, palco de grandes acontecimentos, espaço de manifestações políticas até hoje, não foi gentil durante a visita de Casa Própria. “Imaginei que muitas pessoas se aproximariam curiosas”, Rochelle relata, “apenas uma mulher perguntou-me onde ficavam os banheiros”. Que força pode ter o pouso dessas casinhas em um lugar de tanto peso quanto esse? Talvez responder a essa pergunta peça menos atenção ao grandioso, mais sensibilidade dos acontecimentos pequeninos. É por aí o que diz o escritor Bernardo Mosqueira – em Rochelle a banalidade não existe: Manipulando e/ou assinalando frações da cultura com a intenção de compartilhar sua forma de percepção, Rochelle parece lutar contra o desencanto do mundo e querer alterar a durabilidade de suas experiências de percepção poética. Há, no interesse de Costi pelos fragmentos do mundo, um certo elogio à diversidade e uma angústia pela manutenção da coexistência com o diverso. Rochelle Costi, inconformada, parece entender que tudo pode se transformar, mas nada precisa acabar.
Rochelle Costi é formada em comunicação pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC/RS), tendo frequentado ateliês de arte da Escola Guignard (MG) e cursos na Saint Martin School e na Camera Work, na Inglaterra. Além dos projetos artísticos, atua como fotógrafa para jornais e revistas. Em 2004, compôs a exposição Tudo É Brasil, feita no Itaú Cultural e no Paço Imperial (RJ). Saiba mais na Enciclopédia Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras.
Rosana Paulino e o saber do racismo Ressignificando fotografias feitas com propósitos racistas, a artista desconstrói a representação do negro e reafirma, segundo um curador, os que “ajudaram a fundamentar a cultura brasileira”
Rosana Paulino Eva Nº 1, da série Adão e Eva no Paraíso Brasileiro, 2014 colagem, grafite e acrílica sobre papel azul 49,5 x 34,5 cm Acervo Banco Itaú Imagem: arquivo da artista/Itaú Cultural
O filósofo francês Michel Foucault fala de como poder e saber se misturam – o saber gera efeitos de poder, as relações de poder produzem saber. Algumas obras da artista visual Rosana Paulino, entre elas Eva Nº 1, que destacamos aqui, operam uma percepção similar: para abordar o racismo no Brasil, manipulam representações do negro que se constituíam como um olhar alheio, de fora, que visavam a esse outro como um objeto de exotismo ou de estudo científico.
Portanto, para Agassiz, não haveria Adão e Eva para os trópicos, assim como o Brasil seria tudo menos um paraíso. Seja como for, com suas fotos – segundo o curador Marco Antonio Teobaldo – “o que se conseguiu na realidade foi documentar aqueles que ajudaram a fundamentar a cultura brasileira”. Nesse sentido, se Eva Nº 1 e toda a série remetem acima de tudo à vida dos retratados, o título pode subverter também: exibir como pais originários esses homens e mulheres opressos.
Não temos de pronto essa sensação de olhar exógeno quando vemos Eva Nº 1? A mulher negra é vista em um padrão visual que podemos reconhecer como aquele usado para exibir criminosos e espécimes. Em grande escala, há a pintura de parte de um esqueleto, bacia e coluna; podemos extrair do todo o enunciado “é assim a ossatura desse tipo”. A obra mobiliza ícones que são tanto saber quanto poder: catalogar desse modo implica domínio e vice-versa. Informa a pesquisadora Juliana Ribeiro da Silva Bevilacqua: “a série Adão e Eva no Paraíso Brasileiro, de 2014, faz parte de um projeto maior da artista de explorar a relação da ciência com os horrores da escravidão”. Entre outras, Rosana usa fotografias de Louis Agassiz (1807-1873), cientista muito influente no debate da sua época que produziu teorias e material empírico contra o evolucionismo de Charles Darwin (1809-1882) – ele era criacionista – e em favor da supremacia branca. Entre 1865 e 1866, Agassiz veio ao Brasil – onde se chocou com “os efeitos perniciosos da mistura de raça” – e fez fotografar 200 nus, no Rio de Janeiro e em Manaus. Na série Assentamento, Rosana já havia usado figuras desse tipo, e “em Adão e Eva no Paraíso Brasileiro”, fala Juliana, tais fotografias são “novamente ressignificadas”. Para a professora, esse conjunto de obras reúne “desde pessoas escravizadas a herbários e esqueletos para representar um país onde tudo pode ser negociado, como em um grande armazém”, e nisso estaria “evidente que essa junção ou fusão sintetiza também as formas de classificação do mundo no século XIX, que incluía plantas e animais, mas também povos de origem africana e indígenas”. Também podemos ver o título da série por meio de um diálogo com Agassiz. O cientista defendia o “poligenismo”, isto é, segundo o jornal Nexo, com base na historiadora Maria Helena Machado, acreditava que existiam “zonas de criação”, que haviam produzido, em partes do mundo distintas, quase ao mesmo tempo, diferentes espécies. A raça branca, por exemplo, seria aquela mais avançada, única que descendia de Adão e Eva. Agassiz afirmava que os negros, por sua vez, haviam surgido de uma outra criação, que produziu uma raça inferior, oriunda das regiões tropicais.
Rosana Paulino é doutora em poéticas visuais pela Universidade de São Paulo (USP) (leia sua tese Imagens de Sombras), instituição onde cursou artes plásticas. É especializada em gravura pelo London Print Studio, da Inglaterra. É também professora. Entre outras exposições, fez parte de Modos de Ver o Brasil: Itaú Cultural 30 Anos, sediada na Oca, em São Paulo. Rosana concedeu duas entrevistas ao Itaú Cultural – uma para a série Cada Voz, outra para o Diálogos Ausentes, projeto no qual ministrou a palestra O Negro nas Artes Visuais no Brasil. Saiba mais sobre ela e seu trabalho na Enciclopédia Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras.
Antes e depois de Sara Ramo A normalidade, a progressão no tempo e a lógica são desestabilizadas no trabalho de Sara; caos e ordem se misturam em uma “disciplina libertária”
Sara Ramo Antes, Agora, Depois, 2012 fotografia Acervo Banco Itaú Imagem: arquivo da artista/Itaú Cultural Testemunhamos o mundo a partir de uma série de hábitos. Hábitos de raciocínio, das formas de organizar o espaço e o devir do tempo. Antes, Agora, Depois, tríptico da artista visual Sara Ramo, parece brincar com isso. Primeiro, talvez, por esse ateliê com tudo em ordem nas mesas, folhas com anotações dispostas linearmente na parede – e o atulhamento suspenso, cobrindo a maior parte da imagem, de papéis e plásticos. O lugar não tem motivos para ser assim. O título avança essa desestabilização inicial. Não temos a tendência de atribuir a cada fotografia da sequência um momento do tempo? Aliás, até mesmo pela disposição das imagens seria algo típico pensá-las assim. Entretanto, em Antes, Agora, Depois, a progressão “lógica” não está dada: alguns elementos mudam de uma foto para a outra, mas não é como se houvesse um começo, meio e fim, uma causa e um efeito, um início e uma conclusão. Houve mudança – e só. Esses abalos da lógica e das maneiras pelas quais o costume constrói os ambientes reaparecem em pelo menos outra obra de Sara: a série Como Aprender o que Acontece na Normalidade das Coisas. A também artista
visual Luisa Paraguai comenta que há nela uma contraposição “às representações herdadas ou ensinadas e desloca os objetos de um banheiro doméstico dos seus lugares”. Já Inhotim ressalta “o contraste entre o antes e o depois, mesmo que não saibamos exatamente que ação, gesto ou acometimento se deu em seu intermédio”. E, ainda mais: Ramo propõe ao espectador aprender sobre a normalidade, desafiando com sutileza e precisão o entendimento do que seria o normal, assim como as ideias de sapiência e controle que impregnam o dia-a-dia comum. Há em sua obra a revelação de um universo de objetos animados, acontecimentos surpreendentes, transformações que se dão como que por mágica, em instalações, esculturas, fotografias, colagens e vídeos. Que fazer sem o habitual, que fazer sem a norma? Sara parece apontar essas questões, a partir – como diz um texto curatorial do Galpão Fortes Villaça – de uma “disciplina libertária”, em que “os objetos do mundo, que para Ramo funcionam como extensões de nós mesmos, são reorganizados, criando novos sentidos”.
Tudo se passa como se o desapego da organização de agora, a imaginação de outras organizações, sugerisse práticas de liberdade para a vida. Ademais, no fundo das questões implicadas por esses trabalhos parece estar uma antiga tensão: aquela entre ordem e caos. É o que percebe o filósofo e curador Cauê Silva. Se, na tradição filosófica, esses conceitos são opostos, em Sara eles se articulam entre si, posto que “as forças do universo estão em constante movimento” e que “para modificar a regularidade do mundo não é necessário destruí-lo, mas apenas realizar mínimas alterações”. Acima de tudo, essa dialética ocorre cotidianamente, podemos flagrá-la no que é rotineiro. Citando obras da artista, diz Cauê: No microuniverso do trabalho, restrito aos limites de um quartinho dos fundos de uma casa, a ordem não é soberana. Bolhas da parede com infiltração e tufos de poeira (cósmica?) dividem o vazio do ambiente com a regularidade e geometria dos tacos do piso. As imagens, como em pôsteres didáticos, são seguidas de definições científicas e, não sem ironia, uma mancha de leite no chão, a desordem por excelência, é convertida em Via Láctea do mesmo modo em que um balão furado torna-se um buraco negro. O caos e a ordem se distribuem no nosso dia a dia. Após Sara, talvez possamos ver a sua dança.
Sara Ramo cria fotografias, esculturas, vídeos e instalações. É influenciada por criadores como Hélio Oiticica (1937-1980) e Lygia Clark (1920-1988). Antes, Agora, Depois participou da mostra Singularidades/Anotações – Rumos Artes Visuais 1998-2013, com curadoria de Aracy Amaral, Paulo Miyada e Regina Silveira. Leia uma entrevista com a artista no El País.
Shirley Paes Leme e o fogo capturado Shirley capta em suas obras momentos e efeitos do imaterial, do efêmero, do dinâmico. Na obra Como uma Chama II, ela compõe a forma da labareda com galhos de eucalipto
Shirley Paes Leme Como uma Chama II, 1997 galhos de eucalipto, arame e ferro 680 x 320 x 220 cm Acervo Itaú Cultural Imagem: Iara Venanzi/Itaú Cultural
Faça fogo. Por exemplo, acenda uma das bocas do fogão e observe. Cortadas pelas eventuais labaredas amarelas, vermelhas, as pequenas flamas ondulam e tremem. São azuis; um tom mais escuro dentro; no contorno, outro, mais claro; fora dessa “linha”, a cor é translúcida, faz as vezes de aura. São triângulos ou cones, qual é a sua forma? Difícil definir: estão sempre em movimento. Fez o fogo? Ele é como o meu? Agora capture-o. Deixe-o paralisado, disponível ao toque. Algo dessa tentativa paradoxal compõe a escultura Como uma Chama II, de Shirley Paes Leme. O eucalipto, o arame, o ferro imitam o lume, formam uma base avantajada e se alongam até uma ponta fina. Mudou a substância, cessou a movimentação – mas um momento do fogo está aí. Na medida em que se afilia ao efêmero, Como uma Chama II conversa com procedimentos que a artista aplica em outros trabalhos. “Capturar e aprisionar”, explicou a jornalista Camila Molina no Estadão, “são verbos que a artista usa para definir a ação de seu trabalho sensível: utilizando telas ou papéis, ela, com a ajuda da mão do acaso, captura o incapturável”. O tema de Camila é a mostra Atitude: Desenho, em que Shirley apresentou várias aplicações dessa prática. Em algumas delas, fazendo uso dos picumãs – teias de aranha densas de fuligem, típicas das casas de fazenda, dos tetos acima de fogões de lenha. Descreve a jornalista: “A artista sopra o picumã, fixa-o de maneiras diferentes com o uso também de um gel: de tanta delicadeza, do material e do gesto de Shirley, cada obra se transforma em um universo”. Além delas, desenhos feitos com “fumaça congelada” – isto é, a partir da exposição dos suportes ao fumo: como afirma o curador Tadeu Chiarelli, a artista, “com uma folha de papel ou uma tela presa em chassi entre as mãos, desenvolve uma estranha dança pelo espaço: movimentos que não podem ser lentos demais para não perderem a possibilidade da captação, e tampouco bruscos, para não acelerarem o processo de desaparição do vapor, assim inviabilizando sua captação”. Como uma Chama II não empresta da labareda a cor e a textura do seu efeito; faz de um passo da sua “estranha dança pelo espaço” um monumento: a escultura mede quase 7 metros de altura. Mas, talvez, não só: o fogo, além disso, está latente no próprio material com que a obra é feita – o eucalipto, madeira altamente inflamável. Sendo combustível, é condição para que aquele elemento possa existir. Notamos isso, outra vez, porque esse poder queimar implícito já esteve em outro trabalho de Shirley, Pela Fresta, descrito assim pelo artista José Cirilo:
Uma pequena luz ascendente. Verticalidade luminosa que descansa quase imóvel. Por entre o lenho, parece o foco de um grande incêndio que não se realiza por um pacto entre os corpos que lhe rodeiam. Perigo em potência. Pela Fresta consistia em uma sala recoberta de galhos de eucalipto, no meio dos quais se erguia uma chama. Também contava com uma mesa no ar – “congelada; queda em suspensão”, diz Cirilo –, reforçando a estabilidade momentânea do todo. Como uma Chama II dialoga com isso. “A chama significa transcendência dela mesma”, anotou Shirley em um dos seus cadernos (veja a análise feita por Cirilo dessas anotações). “Ativo, dinâmico: chama”, assinala ela igualmente. Assim, a um tempo, algo para além do que está aqui agora e algo que já não é o que era. Como uma Chama II, sendo obra de arte, também tem tais características – e não se deixa aprisionar.
Shirley Paes Leme é escultora, gravadora, desenhista e professora. Formada pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), em belas-artes, foi aluna do escultor Amílcar de Castro. Nos anos 1970, interessa-se pelo desenho; na década seguinte, pela geografia humana e pelo estudo do espaço, nisso sendo muito marcada pela arquitetura vernacular, ou seja, que utiliza técnicas tradicionais, populares – Como uma Chama II também pode ser lida por esse viés, ao passo que, defende Chiarelli, as suas esculturas “sempre acabam lembrando também objetos de cestaria, habitações, adereços corporais e embarcações indígenas ou caboclas”. Saiba mais sobre Shirley na Enciclopédia Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras.
As narrativas de Vânia Mignone A artista se abre ao que cada invenção pede e aos afetos que os materiais trazem, e assim cria obras que têm o potencial de contar histórias
Vânia Mignone A Praça, 1999 acrílica sobre madeira 60 x 60 cm Acervo Banco Itaú Imagem: Sergio Guerini/Itaú Cultural
Vânia Mignone virou artista por causa de um susto. Em entrevista à 33ª Bienal de São Paulo, ela contou que, ao visitar o Museu de Arte de São Paulo (Masp) pela primeira vez, quando ainda era graduanda em publicidade, encontrou um quadro de Paul Gauguin (1848-1903) – pintor francês que já havia conhecido por meio de um fascículo de revista – e foi um baque, porque eu vi ali a tela, que era [feita de] um tecido muito rústico – talvez um saco mesmo que ele tenha usado para pintar – [e havia] lugares onde a tinta estava muito empelotada, [com] várias camadas, uma em cima da outra, [havia] lugares em que a tinta estava ralinha, [em] que você via a tela... [havia] resquícios... acho que de areia... Eu falei: “Meu Deus! É tão bonito quanto o outro que eu conhecia, mas ele é próximo!”. Próximo porque Vânia pensava mais ou menos que a pintura, que os artistas dos museus eram coisa de outro mundo – algo que muitos de nós podemos experimentar, pois as artes visuais por vezes podem parecer muito sofisticadas, inatingíveis. Com aquela tela do Masp, isso se quebrou: “Se o Gauguin fez, está no museu e é tão maravilhoso para mim, eu posso também fazer!”.
personagens, artefatos e artifícios mundanos”. Toda uma iconografia em que o tratamento firme da tinta estabelece um fundo consistente; um terreno de possibilidades sobre o qual imagem e linguagem se retroalimentam, tecendo a trama narrativa. Resultam pinturas inconfundíveis, de paleta forte porém econômica, para que a variação de cores não perturbe a história evocada. A artista narra: “Às vezes as pessoas entram em uma exposição minha e falam: ‘Olha, quase consegui fazer uma história com todos os trabalhos”. Ela nota nisso um exemplo do “parentesco” da sua obra com as histórias em quadrinhos, uma influência sua ao lado do cinema, da fotografia, da poesia concreta e dos outdoors publicitários. Para mim, A Praça sugere um filme de suspense; é um dia frio, cai um pôr do sol sangrento, alguém vai chegar, algo vai acontecer. E para você?
Assim, não por acaso alguns elementos do estilo de Gauguin podem ser reencontrados na obra de Vânia. No contato inicial com ele, admirou o colorido forte e os traços pretos – que hoje aparecem no seu trabalho – e, no museu, podendo ver as materialidades que o impresso não deixava perceber, se apaixonou de novo: “Eu gosto dessa dificuldade, dessa irregularidade. Para mim, parece que o trabalho fica mais quente, mais próximo; cria esse laço de afetividade”. Será que A Praça, obra de Vânia que exibimos aqui, pode lhe falar assim de perto também? Como o fundo rubro manchado irregularmente com tons escuros atinge você? E a árvore à esquerda, sua copa feita com pinceladas de um branco turvo, rarefeito em vários pontos? Procure livremente o que o faz se maravilhar: não há um sentido fechado, nem mesmo para a artista – ela conta que faz seu trabalho “de memória”, sem esboço, e enfatiza que segue o que a criatividade pede a cada vez. Seguindo os laços de afeto que o quadro pode sugerir, poderíamos dizer que esse vermelho traz uma tensão muito contrária à expectativa de calma que evoca uma praça; e esses troncos pretos – cor bastante usada por Vânia, um costume herdado da sua prática com xilogravura – não são comuns, reforçam o contraste com o fundo e a ausência do verde. O que se passa nessa praça? Se nos envolvemos a ponto de fazer essa pergunta, achamos outra qualidade das telas de Vânia. “O eixo central de sua pintura é a narrativa”, afirma o livro Pintura Brasileira do Séc. XXI (citado aqui), “que se constrói a partir de figuras, palavras e objetos equilibrados sem hierarquias” e com “um repertório de
Vânia Mignone é pintora e gravadora. É graduada em publicidade e propaganda pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC/ Campinas) e em educação artística pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Inicia a atuação em artes visuais com xilogravura, para depois trabalhar com a pintura e com colagem – recorrendo, ainda, a recursos daquela primeira prática (nesta entrevista, ela comenta suas técnicas). Saiba mais sobre a artista na Enciclopédia Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras.
Virginia de Medeiros e a perturbação da alteridade Com uma prática baseada no encontro e na formação de laços, a artista produziu 21 retratos de moradores de rua, além de colher depoimentos sobre como eles se veem e querem ser vistos
Virginia de Medeiros Maria da Penha, da série Fábula do Olhar, 2013 fotopintura digital impressa sobre papel de algodão, som 120 x 90 cm Acervo Banco Itaú Imagem: Edouard Fraipont/Itaú Cultural Como você gostaria de se ver ou ser visto pela sociedade? A resposta para essa pergunta pode ser ao mesmo tempo difícil e intuitiva. Qual aparência – das roupas às expectativas sobre o próprio corpo –, qual imagem – desde os símbolos que escolhemos exibir até as histórias que contamos de nós –, que identidade queremos? Ainda mais, como pensamos que tudo isso afeta o outro? De quem queremos nos apartar, a quem queremos impressionar? Fábula do Olhar, criação de Virginia de Medeiros, reúne alguns pontos de chegada possíveis para aquela pergunta primeira – desdobrável nessas que apontamos ou em outras – sobre como nós queremos nos ver e ser vistos. A artista visual apresentou essa questão aos
21 moradores de rua retratados, para explorar assim o seu “campo de subjetividade”, como expressa o site da artista. As réplicas envolvem verdade e desejo, tanto fatos quanto “momentos de fabulação”, que é quando a diferença entre aquilo que é real e aquilo que é imaginado se torna indiscernível, quando por esse processo o indivíduo se constitui como um sujeito da cena e não como um mero objeto que é observado: criar um mundo, nele crer e se projetar. Esse é um interesse que atravessa o trabalho de Virginia. Tratando de outra obra, o vídeo Sérgio e Simone, ela afirma: “Me fascina essa capacidade de fabulação e de ficcionalizar a vida quando você tem uma câmera
na sua frente”. Tal fascínio implica um modo de fazer, uma postura diante dos entrevistados. Interessada em “adentrar universos pouco visíveis na esfera macrossocial”, ela está suscetível – é o que conta quando comenta Studio Butterfly – a “cair no exotismo, cair no clichê”. Mas a fabulação, “a ideia de estar menos preocupada com o fato, menos preocupada com a verdade, e mais interessada em criar um outro lugar, isso me protege”.
o valor da alteridade, principalmente no seu poder de nos tirar do lugar: “A alteridade perturba. E ela perturba porque a primeira coisa que ela faz é romper a hierarquia”. A fábula, assim, quebra correntes.
Inscrita nesse quadro criativo, Fábula do Olhar foi realizada em um estúdio fotográfico disposto em dois refeitórios públicos na cidade de Fortaleza, no Ceará. As fotos foram produzidas em um mês e meio, em preto e branco; nesse período, Virginia também colheu os depoimentos a partir daquela pergunta-chave – essas entrevistas aparecem em textos ao lado das imagens. Por fim, a artista convidou o fotopintor Júlio dos Santos (veja um minidocumentário do Sesc Belenzinho sobre ele) para colorir os retratos de acordo com as “encomendas” dos moradores de rua. Maria da Penha, personagem da obra que trazemos para cá, encomendou “uma roupa colorida”. Foi atendida por essa combinação singela, o azul da camisa e do laço, em harmonia com o suave lilás do fundo, em contraste com o vermelho da flor na lapela e do batom. A Virginia ela disse: Meu nome é Maria da Penha, tenho 44 anos. Sou do dia doze de maio, sou de 68. A rua não é lugar bom não, mas vicia. O pior da rua é o preconceito que a sociedade tem contra a gente, a gente nunca é bem vinda. É uma aparência que não é boa. O outro lado da rua são os “perigos” que a gente corre, tem que saber se dar com quem vive na rua. Porque se a gente não souber se dar, tem muita confusão e morte. Toda vida eu gostei de ficar no meu canto, sou assim. Nem sei se alguém tem qualquer coisa pra falar de mim. Hoje eu recebo meu aluguel social, tenho uma casa. Mas não me acostumo, eu acho estranho dentro de casa. Acho que depois do tanto do tempo que passei na rua eu não me acostumo mais em casa. Fico andando, cada dia num lugar. Um dia em casa, um dia na rua, um dia em instituição. Eu tenho dois filhos que gosto muito, tenho dois netos, e agora vem o terceiro. O meu sonho? O meu sonho é um dia poder ficar firme em casa, sem precisar ir pra rua. A rua não é uma opção, é uma obrigação, sou obrigada a ir pra rua. Como Maria da Penha quer ser vista, como você vê Maria da Penha? É esse contato com o outro – por quem a artista se interessa de forma “quase obsessiva” – o que proporcionam as obras de Virginia. Por meio de “conhecer, conviver, conquistar a confiança e fazer amigos”, como anota o Prêmio Pipa, estando aberta a ser transformada pelos encontros, a artista exalta
Virginia de Medeiros atua entre arte e tecnologia, com foco em videoinstalações e outros tipos de obra audiovisual. Em 2006, foi contemplada pelo programa Rumos Itaú Cultural com a citada Studio Butterfly, também exposta na 27ª Bienal de São Paulo. Em 2014, fez parte, com Sérgio e Simone, da 31ª Bienal (assista a uma fala da artista sobre essa mostra, gravada em uma atividade do Entreolhares, formação em artes visuais do Itaú Cultural). Maria da Penha compôs a exposição Modos de Ver o Brasil: Itaú Cultural 30 Anos, de 2017. Veja outras fotos de Fábula do Olhar no catálogo da coletiva Cães sem Plumas [Prólogo], realizada pela Galeria Nara Roesler em 2013.
Para transformar arte em ação educacional efetiva por Cléo Pereira A série Artistas Mulheres Contemporâneas no Acervo destacou a produção de criadoras muito variadas entre si. A partir dos temas transversais trazidos nesses textos e a fim de aproximar a criança de sua realidade cotidiana, pretendemos incentivar os educadores a manter a disciplina e a motivação, a superar a carência estrutural, a falta de apoio e outras dificuldades enfrentadas. Buscamos quebrar o tabu segundo o qual professores e alunos não se sentem preparados para lidar com a diversidade das artes. Como dizia o sábio educador Paulo Freire, “não há saber mais ou saber menos: há saberes diferentes”. Com essa liberdade, implícita na criação artística, a intenção aqui é converter os olhares dessas mulheres artistas contemporâneas em possibilidade de mudança na sala de aula, física ou virtual; transformar arte em ação educacional efetiva não deveria ser a exceção, mas a regra. Para evitar que o aluno chegue ao Ensino Médio com dificuldade em aprender – devido ao acúmulo de deficiências no processo de ensino e aprendizagem, por causa de má compreensão de conceitos básicos em matéria de linguagem e de raciocínio lógico, pela falta de acesso às diversas linguagens (artísticas, visuais auditivas, sensórias, escritas, faladas, sentidas) –, é necessária a troca de informações entre os profissionais, a família e a sociedade, de modo que juntos possamos colaborar no desenvolvimento integral da criança e do adolescente. Pensando nisso, tentamos aqui dar instrumentos ao professor que queira usar este material para desenvolver os temas de forma transversal. Com os textos de Artistas Mulheres Contemporâneas no Acervo, o profissional de educação pode trabalhar assuntos muito relevantes, respeitando os desafios de reconhecer e valorizar as diferenças, sem segregar os alunos.
Quatro exemplos extraídos da série As vivências pessoais dessas artistas e o conteúdo das suas obras precisam ser compartilhados para que os alunos contemplem, absorvam e compreendam os caminhos e as histórias, podendo, assim, compará-los com suas realidades e colocar esse aprendizado em prática.
Verificamos que várias das criadoras são mulheres periféricas, que passaram por dificuldades e situações dolorosas – mas seus objetivos foram alcançados, porque foram determinadas. Os alunos, assim, podem não só valorizar as artistas brasileiras, como também se inspirar nelas, considerando a potência que trazem com suas trajetórias ao nosso país. Falemos de algumas. O primeiro exemplo é Rosana Paulino, que controverte com trabalhos sagazes sobre o racismo estrutural no Brasil – como é o caso de Eva Nº 1, em que se apropria de representações que objetificavam os negros. Ela aborda os resíduos da escravidão, que são fortemente reais, os protótipos ou estereótipos de formosura feminina e, sobretudo, a condição da mulher negra na coletividade. Elucidar sua biografia e seu contexto histórico assemelha ser o desígnio das obras de Rosana, que apresenta não apenas sua vida privada, mas um projeto social e político mais vasto. A postura da artista – sua imposição, resistência e luta pela emancipação – modifica por meio de sua arte fatores de opressão, emite um grito com nitidez de revolta contra esse sistema que reproduz a pobreza, as distinções de classes, gêneros, etnias. Tudo isso pode ser elencado por educadores, para que os alunos compreendam como o silêncio e a negação eram, e são, algo forte e cruel no cotidiano das mulheres, notadamente as negras e periféricas, quando predominam a voz e a presença do homem, e prevalecem o machismo e o racismo. Outro exemplo é a obra de Claudia Andujar, que registrou a vivência do povo indígena Yanomami, com quem morou por um período, tendo aprofundado, assim, o conhecimento sobre seu território, seus costumes e sua cultura – e indicado as deficiências das políticas públicas para as populações originárias. Suas fotos nos levam a crer que temos muito a fazer com nossos alunos; só o olhar atento de um educador consegue construir com eles a visão de que podem mudar essa realidade se estiverem cientes de seus direitos e deveres. Todos os povos merecem ter seus direitos respeitados, portanto não devemos descansar, precisamos deixar nossos alunos sempre imbuídos de informação a fim de saber seu papel. Nesse sentido, podemos repensar com eles também a frase que dá título a uma exposição de Claudia: “Marcados para viver, marcados para morrer” – os jovens em nossas periferias sentem na pele essa frase; não são indígenas, mas em sua maioria são pretos e pobres e se veem à margem da sociedade, sofrem discriminação e privação, esquecidos de sua história, cultura, hábitos e origens¹.
¹Sobre o que foi dito a respeito de Rosana e Claudia, é importante não deixar de lado que a Lei nº 11.645, de 10 de março de 2008, inclui no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da "história e cultura afro-brasileira e indígena".
Outra criadora que permite um diálogo com o cotidiano periférico é Berna Reale, que em sua performance Ordinário empurrou um carrinho de mão com ossos de pessoas assassinadas pelas ruas de Belém do Pará. Ela trata das violências que permanecem, em nossa sociedade, apagadas, abafadas. Esse é um tema que assola nossas comunidades periféricas diariamente; nossos alunos convivem com informações desse tipo pelos noticiários ou pela experiência pessoal. Por outro lado, há na série criações com menos apoio na questão social e mais nos modos de perceber o mundo. Ao trabalharmos com Jac Leirner em sala de aula, que, em Blue Phase (Defacements), toca na desvalorização do dinheiro, nas mudanças da moeda brasileira – assunto sobre o qual inúmeras crianças, adolescentes e jovens nem sequer têm conhecimento –, o interessante é pensar no quanto e como valorizamos esse ou aquele objeto, como agregamos valor às coisas. Podemos questionar os alunos sobre o valor real dos objetos. Esses são só alguns dos trabalhos trazidos pela série. Todos eles proporcionam a possibilidade de debates sobre subjetividade e podem ser desenvolvidos com alunos do 5o ao 9o ano e com o Ensino de Jovens e Adultos (EJA), assim como com o Ensino Médio. Fica o convite para o professor criar sua abordagem. Temos de permitir ao aluno passar por um período de questionamentos interiores a respeito de conflitos seus e dos que são postos na sociedade atual, despertando os estudantes para a modificação social. Essa prática aponta uma atitude de resistência na luta pela igualdade e na busca de possibilidades. Contribui para que a educação efetive seu papel social de formação humana, incitando novos pontos de vista sobre opiniões e ideologias enraizadas nos contextos históricos. O ideal é democratizar a educação, de maneira inevitável conforme ensina Paulo Freire, cuja pedagogia multiplica as chances de reflexão e de tomada de atitudes para avaliar e erigir informações sociais nas escolas. Trata-se, além disso, de uma metodologia que transforma a informação em ação de oposição aos atos que eliminam alguns do mundo educacional. As classes populares, ao consentir em ser conectadas aos artifícios do ensino, se abrem ao inédito possível – termo usado por Freire – do saber, descobrem o conhecimento e o inovam, reforçam o circuito informacional, produzem sabedoria e novas vias epistemológicas.
Uma história de transformação coletiva Quando os temas transversais são abordados de maneira reflexiva e estimulante, isso pode até mesmo mudar vidas, além de fazer com que o aluno crie pertencimento, carinho, respeito e admiração eterna pelos seus educadores. Para ilustrar, vou contar a história de uma escola. No Campo Limpo, em São Paulo, a Escola Municipal de Ensino Fundamental (Emef) Sócrates Brasileiro Sampaio de Sousa Vieira de Oliveira – nome do jogador da Seleção Brasileira nas Copas de 1982 e 1986 – é um exemplo claro da transformação possível quando existe uma parceria entre a escola, a família e a comunidade. Relato aqui de maneira bem sucinta uma história que foi construída por um trabalho de um ano nessa unidade de ensino. Havia algum tempo, a escola, que levava o nome de Emef Campo Limpo I, não era vista com bons olhos. Sua então diretora, Solange Amorim, hoje supervisora da Diretoria Regional do Campo Limpo, convocou a comunidade escolar a escolher o patrono da escola. Os alunos se dividiram e indicaram vários nomes. Mobilizou-se o bairro para reuniões na unidade, com horários estratégicos para que houvesse uma grande participação dos moradores do entorno. Por fim, depois de muita conversa e votações internas, definiram-se três grandes nomes. Os adolescentes estavam tão motivados que conseguiram trazer a viúva de Sócrates para ajudá-los. Em 2016, esse foi um dos fatos mais comentados na Diretoria Regional do Campo Limpo; no mesmo ano a escola chegou a ganhar o Prêmio Paulo Freire pela transformação local realizada. Vale ressaltar o poder que a educação, aliada a atividades culturais, tem em transformar a vida das pessoas. As obras mencionadas neste livro trarão mobilização e reflexões importantes para a comunidade escolar. O professor tem a função maravilhosa de articulação, e pode causar essas mudanças. Cléo Pereira é coordenadora de projetos culturais do Centro Educacional Unificado (CEU) Vila do Sol. Graduada em publicidade e propaganda pela Universidade Anhembi Morumbi e em pedagogia pela Universidade Anhanguera, é pós-graduada em gestão cultural contemporânea pelo Itaú Cultural (IC) e Instituto Singularidade. Atua também como produtora cultural e na liderança comunitária da Organização Cultural, Social e Artística Jardim Umuarama (Saju), no Campo Limpo, há 39 anos.