eCultura – A Utopia Final

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eCULTURA, A UTOPIA FINAL Inteligência artificial e humanidades

TEIXEIRA COELHO

O sonho de ter um aparato, um dispositivo — a Máquina — que faça por conta própria tudo que quisermos, que faça tudo de que necessitamos para viver bem, acompanha a humanidade desde seus primeiros momentos iluminados, como aqueles na cultura ocidental representados por Homero. Copiar a natureza, reproduzir a natureza e fazer melhor que a natureza fez parte desse sonho, como se pode ver nas pinturas murais de Pompeia em que pássaros perfeitamente representados vinham comer frutas mais reais que a realidade em beirais de janela que bem poderiam ser verdadeiros. No século 4 a.C., o matemático Archytas de Tarento, inventor da mecânica, talvez tenha construído uma pomba mecânica de madeira que podia bater suas asas e voar por uns duzentos metros, talvez o primeiro robot e o primeiro drone. E Da Vinci também construiu seu pássaro mecânico, uma de cujas versões Fellini recriou em seu filme Casanova. A humanidade está agora muito distante dessa pré-história da cultura computacional: já foi à lua, já viu o lado oculto da lua e acaba de ver as imagens que um aparato por ela construído conseguiu fazer do mais longínquo corpo celeste até agora identificado, Farout.

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Em algumas poucas décadas, um computador portátil poderá superar um cérebro humano e, pouco depois, revelar-se mais poderoso que a soma de todos os bilhões de cérebros do planeta. Mesmo agora, porém, a inteligência artificial já está por toda parte e controla parte relevante da vida cotidiana, sem que as pessoas percebam. Algoritmos estipulam a pena de condenados, compram ações na bolsa e fazem diagnósticos médicos. O que significa isso? Cada cultura, como a da palavra impressa em papel, conta uma história própria, tem um sentido específico. Este livro investiga a narrativa da cultura computacional, a eCultura, em um ensaio que reúne ciência, mito e arte como lugares de residência de certezas e desejos da humanidade desde Homero, quando já se sonhava com o que agora está entre nós. É uma longa, fascinante aventura humana que nunca perdeu o objetivo de ter na Máquina sua aliada perfeita. A cultura computacional, hoje, pode garantir essa utopia insuperável — ou o Grande Desastre. Este livro propõe um inovador modelo de leitura da eCultura e lê-se como um envolvente relato sobre o presente e o futuro próximo.

eCULTURA, A UTOPIA FINAL

Há um texto, uma história, por trás e por baixo desse sonho que agora se materializa. Todos os modos culturais — a palavra impressa, a fotografia, o cinema, a pintura — elaboram uma narrativa própria do que entende ser o mundo, o universo e a vida. A cultura computacional, a eCultura, tem sido vista como um conjunto de fenômenos que parte da humanidade — em particular aqueles com mais de trinta anos — não lograva entender de todo e que os mais jovens, já nascidos dentro dessa cultura e que manipulam um smartphone ou um tablet antes de segurar um lápis e desenhar e escrever alguma coisa, também ignoravam porque, para estes, essa nova cultura é um dado, algo natural e evidente como a água no interior de um aquário no qual eles mesmos estão. O que essa cultura está longe de ser. Este livro propõe um sistema de entendimento da eCultura e explora seus princípios e consequências por meio das figuras visíveis que ela já definiu e oferece (ou impõe) à vida cotidiana. O que surge ao final da história é, enfim, o vislumbre de paraíso insuperável ou um pesadelo do qual não será possível despertar.

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OS LIVROS DO OBSERVATÓRIO formam uma coleção voltada para a reflexão sobre as tendências da cultura e da política cultural no Brasil e no mundo. Numa época em que as inovações tecnológicas reelaboram com crescente rapidez o sentido da cultura, uma investigação ampla sobre os velhos e novos conceitos em uso nesse campo é a condição necessária para a formulação de políticas de fato capazes de contribuir para o desenvolvimento humano, muito além do desenvolvimento apenas econômico.

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Teixeira Coelho

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Coleção Os Livros do Observatório dirigida por Teixeira Coelho Copyright © Teixeira Coelho

Publicado por Itaú Cultural e Editora Iluminuras Copyright © 2019 Projeto gráfico Eder Cardoso | Iluminuras Capa Michaella Pivetti Imagem capa DARPA (Defense Advanced Research Projects Agency) Imagem de contracapa O “olho” de Hal, personagem ficcional do filme 2001: uma odisseia no espaço, de Stanley Kubrick, 1968.

Equipe Itaú Cultural Presidente Milú Villela Diretor Eduardo Saron Superintendente administrativo Sérgio Miyazaki Núcleo de Inovação/Observatório Gerente Marcos Cuzziol Coordenador do Observatório Luciana Modé Produção Andréia Briene

Revisão Bruno D’Abruzzo

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ C621e Coelho, Teixeira, 1944eCultura, a utopia final : inteligência artificial e humanidades / Teixeira Coelho. - 1. ed. - São Paulo : Iluminuras, Itaú Cultural, 2019. 264 p. ; 23 cm. Inclui índice ISBN 978-85-7321-605-9(Iluminuras) ISBN 978-85-7979-121-5(Itaú Cultural) 1. Computadores e civilização. 2. Comunicação de massa e tecnologia. 3. Comunicação de massa e cultura. 4. Tecnologia da informação - Aspectos sociais. 5. Inovações tecnológicas. I. Título. 19-55413 CDD: 303.4833 CDU: 316.422.42

2019 EDITORA ILUMINURAS LTDA. Rua Inácio Pereira da Rocha, 389 - 05432-011 - São Paulo - SP - Brasil Tel./Fax: 55 11 3031-6161 iluminuras@iluminuras.com.br www.iluminuras.com.br

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SUMÁRIO A narrativa da eCultura

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Computação (Automação), 25 Digitabilidade, 37 Mobilidade, 39 Labilidade, 41 Impermanência, 46 Ampliação (augmentation), 51 Desintermediação, 53 Delegação, 56 Disrupção, 63 Conectividade, 71 Editabilidade, 75 Combinatoriedade, 81 Duplicabilidade, 83 Anonimia, 85 Perfectibilidade, 94 Racionalidade, 97 Coordenabilidade, 103 Unificabilidade, 104 Completude, 106

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Exponencialidade, 128 Concentrabilidade, 131 Individuação, 135 Adaptabilidade, 136 Virtualidade, 140

Valor, a estrutura ausente

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1. O valor e o algoritmo, 170 2. O valor no Admirável Novo Mundo revisitado: felicidade e sexo nos tempos computacionais, 177 3. Valor, informação, opressão, 196 4. O império dos valores utilitários, 202

O sujeito da eCultura

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Inconcluso 231

Referências 243 Bibliografia, 245 Filmografia, 247

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A NARRATIVA DA eCULTURA

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Tive a ambígua sorte incerta de deparar-me com uma cultura que se ergue

e se afirma. Sorte incerta porque, se de um lado, na condição de observador, é rara ocasião na vida de alguém (rara ou única), de outro, como vivente que

se descobre progressivamente coberto por essa cultura surgida à imagem de

uma dessas imensas naves espaciais a pairar ameaçadoramente sobre alguma capital do mundo em algum filme de ficção científica, sinto um ocasional

espanto de temor ao mesmo tempo que me toma uma inspiradora excitação diante das possibilidades que se abrem.

Uma cultura, claro, não surge, não emerge abruptamente. Um vulcão

pode explodir “de repente” — porém mesmo um vulcão dá um tempo para

as pessoas tomarem alguma medida protetora contra seus efeitos, entre elas a fuga apressada para algum lugar mais seguro. A diferença entre esta cultura

que se ergue, a eCultura, e um vulcão é que ela não deixa espaço para onde se

possa correr em busca de abrigo. Não adianta sequer pensar em fugir para uma ilha deserta, essa ilha pode parecer deserta mas certamente vários satélites passam sobre ela ao longo de um mesmo dia e sobre ela deixam cair uma

chuva de sinais eletrônicos que dispositivos variados decodificarão como mensagens de textos, imagens e sons. E mesmo se na ilha não houver nada que os capte e identifique, os sinais saberão que ali há alguém e que esse

alguém provavelmente é você. Posso abandonar no ponto de partida todos os

dispositivos eletrônicos que normalmente me cercam: mas não penso ainda

abandonar a humanidade a minha volta. Retornando aos sinais antecipatórios

do vulcão prestes a explodir: de suas entranhas escapam ruídos variados e

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rolos de fumaça e algum estreito fio de lava com a cor do ferro incandescente escorre devagar pela vertente da montanha recoberta por um magma escuro

fruto de irrupções anteriores; e mesmo que esse riacho aceso não se exponha, no interior da montanha há matéria em ebulição, ardendo há séculos e milhões

e bilhões de anos, a mesma matéria de quando a Terra formou-se. Como uma

cultura. Não há como dizer que “tenho a sorte de ver surgir uma cultura”, essa cultura veio surgindo lentamente ao longo do tempo, emitindo sinais variados e menos ou mais claros, sinais antecipatórios do que poderia vir a

ser, sinais que ocasionalmente alguma mente mais iluminada poderia captar mas a partir dos quais não teria como imaginar, nem mesmo ela, aquilo que

hoje vemos por toda parte. Conceitos embrionários do computador foram avançados por Pascal e Leibniz no século 17 e em 1784 o engenheiro J. H. Müller

projetou e construiu uma máquina de somar, descrevendo dois anos depois, em livro, os princípios de uma máquina diferencial (difference machine) que

nunca conseguiu transformar em realidade por falta de recursos mas que

abriu as portas para outra máquina diferencial, a de Charles Babbage em 1833. Antes dessas máquinas, o ábaco chinês ou a Antikythera grega igualmente se propuseram como máquinas de calcular.

Fig. 1: A Pascaline, de Pascal, 1652.

Fig. 2: Parte superior externa e mecanismo da Pascaline.

Fig. 3: Primeiro modelo da máquina diferencial de Babbage construída segundo seu projeto (exposta no Science Museum de Londres).

Fig. 4: Antikythera, computador analógico e planetário grego, o mais antigo do mundo (entre 150 e 100 a.C.).

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E o computador deste 2019 não é muito diferente em sua função de

combinar números. Uma rápida consulta à Wikipedia revelará dezenas de dispositivos que iniciaram a caminhada até a máquina de Turing, ela que

ajudou a ganhar a II Guerra com seus tambores e correias e engrenagens não

muito distintas, pelo menos na forma, da máquina diferencial de Babbage. Todos esses foram sinais fortes da cultura que lentamente emergia — fáceis de perceber em retrospecto. É cômodo assumir as vestes de um profeta do

passado; mas é usando suas roupas e sapatos e ocasionais lentes que se coloca em foco a evidência inquestionável: do interior de uma cultura que mal era

uma cultura da palavra (a Ilíada é do século 8 a.C.)1 arduamente materializada, à época do Antikythera, e da cultura da imprensa-com-tipos-móveis (uma

tipo-grafia) no momento da máquina diferencial, lentamente emergia a cultura da computação, uma cultura lentamente emergente, na terminologia

de Raymond Williams, ensaiando seus primeiros passos ao lado da cultura mais forte, a cultura dominante da época.

Retomando, tive a sorte de pelo menos ver assumir contornos mais nítidos

uma cultura que a geração precedente à minha não conheceu e com a qual mal

sonhou. Quem logrou imaginá-la com requintes tecnológicos e existenciais

assombrosos, quando ela era ainda um mero bebê ou pouco mais que um feto, foi E. M. Forster em seu conto ou novela A máquina parou, de 1909, que citarei repetidamente ao longo deste livro. 1909: oito anos antes, Santos Dumont

conseguira contornar a torre Eiffel, concluída em 1889, doze anos antes de seu voo (e dois anos depois de Santos Dumont, em 1903, os irmãos Wright também moviam-se pelo ar). Em outras palavras, não havia nada parecido com uma cultura computacional quando E. M. Forster anteviu a estrutura básica, as

linhas gerais (com detalhes) da atual vida em nossas casas e escritórios. Mas

eu não havia ainda lido A máquina parou quando comecei a me dar conta daquilo que se erguia a meu redor e quando passei a me servir daquilo que para mim não passava de uma caixa preta permitindo-me digitar um texto e

em seguida corrigi-lo, remontá-lo, editá-lo, inverter suas partes tanto quanto eu quisesse e também nele localizar com extraordinária rapidez cada uma das

1

Ou século 8 BCE, before current era, como se escreve hoje em vez de a.C., antes de Cristo, de modo a agregar um tom mais laico ao conhecimento científico; uma eventual expressão equivalente em português, como AEA, ou antes da época atual, ainda não é visível.

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palavras utilizadas. Insensivelmente, como sempre acontece nesses casos, vi essa nova cultura encorpar-se e desdobrar-se em várias direções enquanto eu

permanecia preso no universo da cultura material anterior e, mais grave do que isso, enredado nas malhas explicativas dessa cultura dominante geradas nem

mesmo no século 20 em cujo corpo convulso nasci, mas no século anterior, num século 19 que já sumia de vista embora continuasse a ser mantido vivo (com

respiração artificial) nas salas de aula da universidade. Em dado momento, quando o ambiente computacional já se tornara indisfarçadamente denso e tinha seus efeitos explorados pela ficção científica, ao passo que a teoria da cultura — na qual se incluía a teoria crítica da cultura da Escola de Frankfurt

— continuava desconfiando e rejeitando a tecnologia ao vê-la como fruto de

uma tecnocracia a combater de todos os modos em nome das Humanidades, foi-me inadiável a tarefa de compreender e interpretar essa cultura que já

tinha mesmo seus primeiros falantes nativos, aqueles que já nasceram den-

tro dela, que nunca chegaram a conhecer outra cultura, que nela se movem

como peixes na água e que, por isso mesmo, raramente percebem a água e o aquário onde vivem enquanto eu por vezes experimento uma aguda falta de

ar quando mergulho no ambiente computacional... São essas as vantagens e desvantagens de ver nascer uma cultura ou de nascer dentro de uma. Quando

percebi que, a meu redor, crianças ainda quase bebês, algumas sem terem de todo abandonado as fraldas e que não liam nem escreviam, começavam

a apoderar-se do smartphone ou tablet das mães e porem-se com os dedos a

deslizar as telinhas para cima e para os lados e procurar e encontrar por si sós o site de desenho animado que viram uma única vez, entendi o pleno impacto da

nova cultura e o que significava uma palavra transformada em leitmotiv pela indústria computacional: amigável, friendly. A nova cultura, não apenas seus

dispositivos eletrônicos, era toda ela amigável, algo que as anteriores, como a cultura da palavra, nunca foram. Era-me inadiável entender as consequências dessa agradabilidade e o que, exatamente, a nova cultura estava dizendo a essas crianças e não só a elas.

No entanto, entender como se dá tecnicamente uma experiência isolada

permitida por essa nova cultura, como a experiência de realidade virtual por exemplo (de que tipo de equipamento e softwares precisa), ou identificar o

índice de exponencialidade das mudanças sucessivamente registradas na capacidade de cálculo dos computadores, não me levaria suficientemente

longe. Inovações nessa área surgem quase todo dia, idem em relação a novas

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possibilidades de aplicação das novidades anteriores ainda não de todo

deglutidas. Analisar isoladamente um a um os fenômenos da nova cultura, seus pontos de incidência na vida contemporânea e, acima de tudo, identificar

os resultados de cada uma das operações computacionais surgia como uma

missão sem fim visível no horizonte do tempo. Era preciso considerar esses dados como integrando um sistema, como de fato integram, passível de ser

desenhado com maior comodidade em seu aspecto totalizante e no qual as

novidades individuais pudessem integrar-se mesmo não estando de início previstas ou apenas mal esboçadas, como numa tabela de Mendeleev. A hipótese a meu alcance, derivada de meus estudos em linguística e semiótica, era a mais óbvia: considerar a nova cultura como uma linguagem. Dificilmente existirá algum fenômeno que escape à possibilidade de configurar uma

linguagem, mediação essencial entre o homem e o mundo e que, ao emergir

para a vida humana na forma da escrita, há cinco mil e poucos ou muitos anos, possibilitou ou conformou o que se pode chamar de espírito ou mente humana. Um semáforo é uma linguagem, como o é a arte ou a matemática e o português e cada um dos modos culturais, como o cinema e o teatro. O

grau de baixa complexidade eventual de uma linguagem não a descaracteriza

como tal: a linguagem do semáforo de trânsito (vermelho, amarelo, verde — e depois do amarelo vem o verde ou o vermelho mas do verde não se passa ao vermelho a menos que esse semáforo tenha apenas essas duas cores, esses

dois signos) provavelmente só encontra manifestação mais simples na linguagem do interruptor que aciona a iluminação de uma sala ou a entrada em

funcionamento de um motor (e que está acionado ou não, aceso ou apagado, funcionando ou inativo, conforme o interruptor indicar um ou zero, aquele

traço e aquele círculo que ainda se encontram em alguns desses interruptores). Se a cultura computacional for uma linguagem, o pesquisador deve conseguir identificar suas figuras (seus termos) e a relação entre elas, do mesmo modo como o português estrutura-se sobre seus vocábulos (as básicas 300.000

palavras que devem constar de um bom dicionário) combináveis segundo determinadas regras (a gramática). Assim como as linguagens todas elas, na concepção de Lévi-Strauss também as culturas compõem-se de signos que

nada significariam se estiverem isolados uns dos outros: a significação surge

pela combinação entre eles, animada por uma lógica interna que atribui a cada linguagem — a cada cultura — a marca que a torna reconhecível como tal. A operação básica consistente em identificar essas figuras ou signos é

relativamente simples. Seguindo a formulação de Émile Benveniste, trata-se

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de preencher os campos do que ele chama de semiótica (os signos visíveis

ou audíveis ou perceptíveis ao tato, ao paladar e ao olfato, por exemplo) e de

semântica (o que esses signos querem dizer). Essa perspectiva não se amolda de modo pleno à concepção mais elaborada da semiótica tal como proposta por Ch. S. Peirce, mas é suficiente como ponto de partida.

Tratava-se assim de proceder à identificação, não propriamente dos signos,

mas das figuras de sentido (ou de significado e de significação) da cultura computacional — ou dos nós semânticos dessa cultura, aqueles pontos em que

se alojam, eventualmente cruzando-se ou superpondo-se, os sentidos (aquilo que um signo deve veicular, aquilo para o que esse signo foi proposto, o sentido

como descrito num dicionário da língua portuguesa, por exemplo) e os significados (o sentido maior que um signo assume para um usuário determinado

em uma dada situação concreta ou como resultado da soma de significados superpostos). Indo rapidamente ao ponto, foi assim possível identificar as

vinte e quatro figuras da linguagem computacional aqui arroladas e que

se encontram formuladas e comentadas nas páginas a seguir. Essas figuras assumem o estatuto de um “indivíduo histórico”, seguindo Max Weber,2 que

se apresenta como um complexo de relações presentes na realidade histórica

detectada sincronicamente (embora Weber não lidasse com essas categorias, no entanto indispensáveis), numa fatia do tempo, mas que decorrem de um

movimento diacrônico de maior amplitude e que são aqui reunidas em virtude de sua abrangente significação cultural. A introdução de Max Weber à análise do “espírito do capitalismo”, na obra citada, amolda-se de modo perfeito à

natureza do presente estudo, tanto quando ele diz que o conceito definitivo do objeto examinado só pode ser definido, em todo caso descrito, ao final da

pesquisa e nunca em seu início, como ao admitir e destacar que aqui será

escolhida a melhor maneira de formular o que entendo por essa linguagem, sendo que “melhor” nada mais é que o modo mais adequado aos pontos de

vista que aqui interessam. Outros pontos de vista fariam surgir outros traços

essenciais dessa linguagem, não porém os que agora me interessam na pers-

pectiva indicada. O resultado final talvez não seja uma “definição conceitual” mas, pelo menos, uma marcação provisória do que é possível entender por

linguagem da eCultura. Essa marcação provisória será, no entanto, decisiva

para o entendimento final do que é essa nova linguagem e quais seus efeitos.

2

L’éthique protestante et l’esprit du capitalisme. Presses Électroniques de France, 2013.

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Desde o início não se tratou de apenas de identificar essas figuras no

nível superficial de sua manifestação física. A realidade virtual, por exemplo, mostra-se como uma nítida figura dessa linguagem em sua propriedade de fenômeno como tal trazido à cena da experiência humana pelas possibilidades

da computação, e é a ela que habitualmente se faz referência como algo de inovador. Mas o que deve interessar quando se procura a linguagem da cultura

computacional é a qualidade interna ou subjacente que corresponde a essa figura, sua essência por assim dizer — no caso, a virtualidade. As vinte e quatro

figuras identificadas são, portanto, qualidades (traços, propriedades) da cultura computacional, modos pelos quais seu sentido forma-se, é transmitido e como

tal apreendido. Para além da qualidade própria de cada uma elas, todas essas figuras entram de algum modo em uma relação com outra ou outras de maneira

a produzir o efeito final — relação que, seguindo o método analítico de Louis Hjelmslev, pode ser de interdependência (A e B estão de tal modo relacionados

que para que haja A é preciso a existência de B e vice-versa), de determinação (B necessita de A mas a existência de A não leva automaticamente à de B) ou

de constelação (A e B e C e D e F etc. formam uma constelação no sentido que

essa palavra assume em astronomia e estão de algum modo relacionados; mas, neste caso essa ligação é frouxa demais ou incerta ou desconhecida ou ainda

incerta e ainda desconhecida e essa relação recebe assim o nome de constelar). Quanto mais dependentes ou interdependentes, mais previsíveis serão as figuras envolvidas e seus sentidos e possibilidades de significação; quanto mais “constelares” forem as relações entre elas, mais inesperados e surpreendentes

e instigantes serão os resultados significados encontrados — quando e se o

forem. James Joyce e Guimarães Rosa mostraram quão constelares podiam

ser seus velhos idiomas ao explodirem, um e outro, a conformação física de cada uma de suas figuras ou signos e as relações entre elas.

Embora sejam essas relações as responsáveis pelo pleno significado do

conjunto formador do “indivíduo histórico” que é a eCultura, não me preocupa

tanto, neste estudo, perseguir de modo explícito as relações entre as figuras detectadas (por exemplo, a virtualidade resultante da programação depende da computação mas o inverso não é verdadeiro: a relação entre essas duas

figuras é de determinação). Além da constatação de que seriam necessários muitos mais meses, ou anos, para obter um resultado expressivo no exame

dessas relações — e bem mais páginas do que já terá este livro, algo contraproducente neste momento de ruína da edição, do comércio e da leitura do

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livro neste país insuficiente que é o Brasil —, satisfaz-me o bastante saber que essas figuras poderão ser exploradas em suas arquiteturas e combinações

pelos pesquisadores animados por interesses análogos. Será suficiente, aqui, identificar essas figuras em seus traços motores (não apenas em sua super-

fície, como escrito acima) e reunir material suficiente que preencha o campo semântico de cada uma, a ser colhido no universo de significações culturais

que vieram formando o significado totalizante dessa linguagem. Esse material será recolhido nos campos semânticos disponíveis e pertinentes, o da ciência tanto quanto o da arte, da filosofia, da tecnologia e da mitologia.

Talvez seja desnecessário dizer que essas figuras não serão exploradas

do ponto de vista técnico, não é essa a natureza deste estudo e nem estou capacitado para levá-la a cabo. Algumas das figuras relevam do campo estri-

tamente técnico, outras derivam das disciplinas da física para as quais tenho, do mesmo modo, restritas habilidades de entendimento para além do mínimo

que me permite conversar a respeito. O que me interessa de fato neste estudo, e esse é seu ponto de vista dominante, é a aproximação cultural da eCultura, a intelecção dessa nova cultura na perspectiva em que me movimento mais confortavelmente, a perspectiva configurada por esta palavra e este conceito

no entanto nada claros que é Humanidades. O incômodo com essa palavra não é exclusividade da cultura de língua portuguesa: em todos os territórios e geografias em que é usada, o desconforto provocado é o mesmo, um

desconforto sobre o qual não se fala o suficiente. Desconforto que, porém, torna-se claro quando o diálogo — esse famoso diálogo interdisciplinar

defendido há décadas mais do que suficientes para ter-se aclarado, o que

não ocorreu — estabelece-se, por exemplo, com um físico. A dificuldade que

sente um especialista no campo da física quando conversa com um colega das Humanidades é real (não estratégica, nem retórica) e visível até mesmo em seu

semblante e gestos, além de suas palavras. A dificuldade explicitada pelo físico, nessas ocasiões, diz respeito, com muita frequência, à falta de concretude, de

materialidade dos termos e temas manipulados pelas Humanidades, embora o contrário não seja igualmente verdadeiro: aquele que vem das Humanidades

não encontra muita dificuldade para lidar com conceitos que conseguem

concretar-se com contundente clareza... Dificuldade compreensível, a do físico. Mesmo assim, não desisto da perspectiva de abordar a eCultura sob a óptica

das Humanidades. A escolha das figuras é, ela mesma, tributária dessa óptica e fica desde logo visível quando digo que não é tanto a realidade virtual, por

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exemplo, que me interessa, mas a qualidade que a sustenta: a virtualidade. No entanto, é no campo da semântica que a abordagem humanística ficará mais evidente, sem que seja agora necessário explicitá-lo.

A perspectiva das Humanidades é responsável pelo recurso — no processo

de entendimento da semântica dessas figuras, de compreensão do conteúdo

dessas figuras — à mitologia, à arte, à literatura e, talvez de modo particular, à ficção científica. O cinema, de modo particular, é uma fonte riquíssima de fornecimento de instrumentos de intelecção da cultura computacional, tanto

quanto a literatura. Ou a mitologia, poética insuperável da humanidade. Recentemente, o diretor de um centro de alta computação europeu, referência na área, ao começar uma conferência, sobre o futuro da computação e seu impacto

sobre a ideia de realidade, advertiu que um dos tópicos que não abordaria em sua exposição era exatamente o da ficção científica, ao lado dos conceitos de

informação, utopia e distopia que formavam o núcleo do seminário. No entanto, assim que, ao final da palestra, abriu-se o diálogo com o público, na resposta

que ele dirigiu à primeira questão não pôde deixar de recorrer, exatamente, a... um filme de ficção científica. A presença da ficção científica em seus variados modos neste estudo é uma inevitabilidade, mais ainda quando a perspectiva é

a das Humanidades; mas ela surge igualmente no território da própria Física

como campo do conhecimento científico, situação (ou expediente) que físicos, astrofísicos e outros pesquisadores desse domínio não escondem, assim como não o fazem cineastas, artistas e escritores. O cineasta Christopher Nolan, para

orientar seu Interestelar (2014), recorreu ao físico norte-americano Kip Thorne, especializado em física gravitacional e astrofísica, colega de Stephen Hawking e Carl Sagan e, indício claro de sua relevância, recebedor, em 2017, do Prêmio

Nobel de física por suas contribuições, junto com Rainer Weiss e Barry C. Barish, no campo das ondas gravitacionais. Kip Thorne foi o consultor científico do filme e, sem exagero, seu avalista científico. Não é exemplo isolado.

O contrário também é registrável, i.e., a influência do cinema (e da literatura

e das artes) sobre descobertas científicas e tecnológicas. Em 28 de novembro

deste 2018, foi divulgado o voo do primeiro avião “solid state”, isto é, o primeiro avião sem partes móveis em seu sistema propulsor.3 Mesmo não passando

de um modelo e percorrendo a distância meramente exemplificativa de 60

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The Guardian, 28 novembro 2018.

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metros (equivalente, de certo modo, às primeiras tentativas dos irmãos Wright

e de Santos Dumont), essa aeronave “solid state” move-se de acordo com os princípios da tecnologia dita “do vento iônico” baseada na utilização de um poderoso campo elétrico para gerar íons de nitrogênio em seguida expelidos

pela parte posterior do aparato, gerando a propulsão necessária. O voo resultante faz-se sem quase ruído e poluição, com uma razão propulsão-potência

comparável à dos sistemas convencionais dos motores a jato, o que leva

desde logo a prever-se o uso dessa tecnologia na aviação comercial dentro de algum tempo. Steven Barret, pesquisador responsável pelo feito, professor do MIT e autor principal do artigo publicado na revista Nature divulgando a

experiência, afirmou que a inspiração para esse projeto veio-lhe dos filmes de ficção científica vistos em sua infância e juventude, em particular a série

Star Trek. Barrett nasceu em 1982 e Star Trek foi lançada inicialmente em 1966, sendo, depois, periodicamente atualizada e revigorada para o prazer de seus fãs

que parecem comportar-se diante do fenômeno assim como os torcedores de futebol organizam-se ao redor de seus times preferidos (e certamente haverá

mais interesse e emoção e dinheiro envolvido anualmente ao redor do “sistema

Star Trek” do que em vários campeonatos nacionais de futebol...). Vendo as aventuras do capitão Kirk e seu imediato, o racional e racionalista alienígena

Mr. Spock (mas todos são alienígenas nesse universo...), cuja função sempre foi a de pôr em evidência as fraquezas e vantagens do emocionalismo humano

(dos humanos da Terra, isto é), Steven Barret, legítimo filho da nova tecnologia, nascido já sob seu embalo, reconheceu-se fascinado pelas naves estelares que

se moviam silenciosamente no espaço, sem partes móveis em seus motores

— e com um “brilho azul” envolvente... Foi a partir desse impulso — ou dessa propulsão... — que Barrett dedicou-se a investigar a possibilidade desse tipo de

voo e deparou-se com o conceito conhecido como “vento iônico”, investigado

inicialmente nos anos 1920. Exemplos como esse são inúmeros e o descarte das

influências recíprocas entre ciência e arte tornou-se simplesmente impensável, além de improdutivo. A leitura de A máquina parou, do romancista inglês E. M. Forster, e que por sua potência heurística comparece em diferentes passagens deste estudo, dará aos interessados as razões para buscar-se ativamente essas

aproximações entre ambos campos. É fato que a realidade, com seu potencial heurístico, frequentemente supera a ficção. Não é menos fato, contudo, que a

ficção também ela outperform a realidade e a ciência, não é menos fato que a ficção passa ao lado da realidade e da ciência em seu deslocamento para a

frente, tão colada à realidade e à ciência, tão rente delas que as faz sentir o

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forte deslocamento de ar criado pela ultrapassagem levada a efeito por essa

massa impressionante que é a imaginação e que, nesse movimento, espalha-se amplamente para todos os lados ao redor da ciência e da realidade e por entre

todas as fronteiras e brechas entre uma e outra e entre elas, a consciência e o mundo.

Ciência, arte, mitologia, religião constituem núcleos semânticos repeti-

damente explorados neste ensaio — de modo que as figuras inicialmente

detectadas, as vinte e quatro que compõem a proposição central deste volume, surgem de fato como nós semânticos, cruzamentos semânticos mais do que

simples figuras; nós complexos, densamente complexos, formados por um imenso emaranhado de fios cuja ponta inicial encontra-se há cerca de 50

mil anos atrás quando dos primeiros sinais de cerimônias humanas de luto, provavelmente acompanhadas pelos sons extraídos de um pedaço de madeira ou osso transformado na primeira flauta e depois engrossados por outros fios

como o das pinturas rupestres ao redor de 37 mil anos atrás e tornado ainda mais complexos e variados com o surgimento da escrita há cinco mil anos e tanta outra coisa que se seguiu. É enorme o atrevimento embutido nesta

tentativa de isolar pelo menos alguns dos conteúdos desses nós semânticos, que certamente não serão os únicos nem os bastantes embora suficientes

para uma primeira jornada no interior da eCultura. Este é um atrevimento que me parece pagar seus rendimentos, o primeiro dos quais é a percepção nítida da existência de um mesmo fio — mesmo se a cada tanto feito de

material diferente e ainda que se apresente aqui e ali remendado, quem sabe com pedaços faltantes — a ligar as formas primevas da humanidade a esta em que já mergulhamos nestas duas décadas do século 21.

A mescla aqui feita entre ciência “dura” e Humanidades — esta ciência

flexível e complacente à qual se recusa com frequência o rótulo de ciência, por motivos menos e mais justificados — não é arbitrária. No livro The Science

of Interstelar que escreveu para relatar sua participação no filme Interestelar, o físico americano Kip Thorne, Prêmio Nobel em 2017, descreve o tipo de

conhecimento científico injetado naquela obra cinematográfica e que permitiu

a forma final buscada pelo diretor Christopher Nolan. Kip Thorne mostra aquilo que, no filme, existe de ciência “dura” ao lado do que é “educated guess”

(literalmente, suposições lastreadas ou intuição gerada a partir de conhecimentos sólidos porém não ainda demonstráveis) e daquilo que se mostra

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como especulação, conceito que não pede esclarecimento mas que, em casos como este, nunca é apenas especulação. Ciência faz-se assim: a partir de uma

intuição chega-se a uma proposta incerta porém com base firme o suficiente

e de lá parte-se, talvez, rumo a um princípio de ciência “dura”, inquestionável. Incidentalmente, o processo geral de relacionamento da consciência com o

mundo não se define de modo muito diverso: primeiro vêm as sensações, os sentimentos, as intuições, as abduções; segundo, a observação, a prática

empírica, a validação de significados apenas hic et nunc; terceiro, os princípios gerais, as normas, o código, as leis, a abstração, a dedução, a teoria, como nos

três modos semióticos formulados por Charles S. Peirce aos quais ele atribui os rótulos de firstness, secondness e thirdness. Nessa perspectiva, estruturando o presente ensaio, encontram-se princípios de ciência estabelecida, aqui relatada

tanto quanto permitido pela brevidade da análise; “educated guesses”, em alguma interpretação das correlações feitas; e alguma especulação. Este estudo compartilha outro ponto com Kip Thorne, que explica como ele mesmo, em sua qualidade de cientista e a partir da perspectiva da ciência, interpretou o

filme, pelo qual não é de modo algum o responsável final — e o modo dessa interpretação, em suas palavras, foi o de um “crítico de arte, ou observador

comum, que interpreta uma tela de Picasso”.4 Essa liberdade de recepção e

interpretação, ou “liberdade fundamentada” de recriação de um fenômeno, eu assumo na interpretação dos temas científicos aqui tratados, equivalentes à tela de Picasso imaginada por Thorne — e para isso me sirvo, aliás, de minha experiência como crítico de arte e apreciador de Picasso... Nesse meu processo

de interpretação das figuras da eCultura, e dos consequentes nós semânticos

que se formam, procedo sem dúvida a extrapolações — e o sentido deste trabalho reside provavelmente, e acima de tudo, nisso mesmo. O resultado

pode ser um ensaio em ciênciarte, escapando ao conflito das “duas culturas”

de C. P. Snow e passando ao largo das desnecessárias “três culturas” de Jerome

Kagan:5 ciênciarte, arteciência, uma única cultura de fusão será necessária e

suficiente.

Kip Thorne, op. cit., loc. 57.

Jerome Kagan expõe suas ideias a respeito no livro The Three Cultures: Natural Sciences, Social Sciences and the Humanities in the 21st Century (Cambridge University Press, 2009). Buscando rever o confronto binário proposto por Snow em 1959 entre as ciências duras e as moles, representadas pelas Humanidades — conflito que em Snow concluía-se pela condenação das segundas como inadequadas e, no limite, inúteis —,

4 5

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Assim agindo, não hesito, portanto, em incluir neste livro, a elas por vezes

referindo-me demoradamente, algumas especulações — com a ressalva de não

serem todas minhas, algumas de um ou dois físicos nomeados, especulações

que com toda evidência apresentam-se como tais mesmo se feitas a partir de

“educated guesses” e de ciência dura. Para meu ponto de vista, o das Humani-

dades, essas especulações ou “especulações” são importantes, talvez decisivas e

essenciais. A especulação é o que move a criação artística e a criação científica, não há motivo para rechaçá-la. Hoje é possível atribuir outra denominação à ideia contida no termo especulação: imaginário. Não se trata de simples troca

de nome, de aggiornamento decorativo. O imaginário tem suas regras, suas

categorias, é um ramo (recente) da antropologia como explorado, por exemplo, por Gilbert Durand.6 E da psicanálise, sem ir longe demais. Algum amigo físico

descreverá o imaginário aqui discutido como “delírio desinteressante”. Prezo, Kagan inclui um terceiro campo, o das “ciências sociais,” e aponta para o valor que as três áreas enunciadas no título de seu livro representa para o avanço do conhecimento. Kagan descreve os pressupostos, o vocabulário, a metodologia e os aportes de cada uma das áreas, chamando a atenção dos especialistas dos três campos para aquilo com que cada um contribui para a explicação do mundo e da vida. Mas os preconceitos que ele pretendeu pôr de lado reentram em cena quando atribui às “ciências sociais”o rótulo de ciência ao mesmo tempo que continua negando-o às Humanidades. As “ciências sociais” — sociologia, antropologia, ciência política, economia, psicologia — são tão fortemente ou tão pouco científicas quanto as Humanidades (filosofia, estética, literatura, música, cinema…), sem mencionar que pelo menos um campo das “ciências sociais”, a psicologia, tem tudo para colocar essa disciplina na lista das Humanidades. O fato é que a mesma argumentação sobre ou contra as Humanidades estende-se para a “ciência política”, a sociologia, a economia. O fato também é que a delimitação de fronteiras dentro da procura do conhecimento, sejam elas duas ou três, não contribui para o avanço da causa. O processo é um só, na forma de uma dinâmica entre os três modos de relacionamento da consciência com o que está fora dela, e no interior dela mesma, descritos na semiótica de Charles S. Peirce: primeiro, o modo da intuição, da sensação, do sentimento, da abdução, do pode ser, da arte; segundo, o da relação empírica e objetivada com o mundo e a vida; e terceiro, o do pensamento abstrato, do deve ser, da norma, da teoria, da lógica. Há uma imbricação e um tráfego constante entre as três esferas, com a intuição levando à descoberta empírica de algo e, em seguida, à justificação lógica de alguma lei correspondente, o que não é negado por muitos físicos. Pretender que a terceira esfera possa constituir-se isoladamente das duas outras e em oposição a elas é tão desproposital quanto negar à primeira e à segunda a faculdade de gerar conhecimento.

6

Les structures anthropologiques de l’imaginaire. Paris: Bordas, 1969.

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e muito, as observações e comentários desse amigo físico, que contribuiu de

modo forte, embora não deliberado, para o desenvolvimento deste livro (e que, ao lê-lo, talvez se sinta de imediato levado a negar que sequer me conhece). Ocorre, porém, que também os delírios — mesmo se sob a forma aceitável e

civilizada de lendas e mitos e religiões — constituem parte considerável do

imaginário, quando não vital. Os desinteressantes também: a rigor, nada é desinteressante ou insignificante neste domínio. Na melhor das hipóteses, o

trabalho do intérprete de narrativas, como a desta eCultura, assemelha-se ao de um detetive encarregado de deslindar um caso em cuja análise depara-se com

uma sequência de indícios aparentemente desinteressantes. Mas ele nunca

saberá quão desinteressante são esses indícios enquanto não armar o quadro

geral e final ao redor de seu caso — como adverte Max Weber. Em meu caso, esse quadro geral final não está ainda armado, o enigma não foi resolvido e, de modo específico, não foi talvez nem adequadamente equacionado o enigma

sobre o qual se debruça uma especulação científica como aquela abordada no tópico Completude, adiante, que diz respeito, “simplesmente”, ao fim do

conhecimento, ao fim do universo e ao fim da vida. Durante o processo de investigação, não é possível saber ainda o que de fato é desinteressante, nem

o que é delírio. O cientista “duro”, em seu trabalho de laboratório ou em sua

elucubração científica, descarta obrigatoriamente o delírio e o desinteressante. É compreensível que o faça. Tem de fazê-lo. Mas, nesta aproximação humanís-

tica da eCultura não o posso fazer: seria contrariar meu próprio princípio, o que ainda não estou preparado para fazer. E que não quero fazer...7 ◊

7

Em continuidade à nota 5, a menção a um modo de abordar a eCultura que se denominaria de ciênciarte, a definir-se por uma fusão ou junção entre os dois campos, será considerado por muitos, sobretudo pelos praticantes das “ciências duras”, como uma provocação inaceitável. Entre eles pode estar, por exemplo, Sabine Hossenfelder tal como ela se revela em seu livro Lost in Math: How Beauty Leads Physics Astray (Basic Books, junho 2018), dedicado a mostrar como a física teria entrado num beco sem saída ao render-se ao conceito de Belo como indicador da validade de uma teoria ou como baliza para alcançar a teoria justa, a melhor teoria. Essa atitude ou opção metodológica por ela combatida fica bem retratada na declaração do matemático, físico e filósofo alemão Hermann Weyl (1855-1955) que diz buscar “unir o Verdadeiro ao Belo; mas quando tenho de escolher um deles, habitualmente opto pelo Belo”, com o que afirmava ser o Belo um indicador da Verdade. O partido defendido por Weyl, muito frequentemente assumido por matemáticos e físicos que não se cansam de mencionar a beleza de um teorema bem demonstrado ou a prístina clareza, e idêntica beleza, de alguma bem-sucedida proposição da física, é, sem dúvida, contestado por vários outros

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matemáticos e físicos, a exemplo de Joe Silk e George Ellis que, no artigo “Scientific method: Defend the Integrity of physics” publicado na Nature (v. 516, 18/25 dezembro 2014), advertiram contra o “rompimento de uma tradição filosófica secular que define o conhecimento científico como empírico” e manifestaram o receio de que a física teórica estaria transformando-se numa “terra de ninguém entre a matemática, a física e a filosofia que não atende às exigências de nenhum desses campos”. Sabine Hossenfelder compartilha amplamente o temor dos dois autores em seu livro-requisitório contra a fascinação exercida pelo Belo sobre a física, segundo ela responsável por levar esse ramo do conhecimento ao que qualifica como impasse e esgotamento totais. Embora Hossenfelder tenha suficiente largueza de espírito para incluir o depoimento de inúmeros físicos e matemáticos que defendem incisivamente o Belo como critério de verdade (ou pelo menos de adequação), fica claro que ela sustenta o retorno a um momento (incerto e talvez improvável) em que tanto a matemática como a física definiam-se única e exclusivamente (segundo ela) por sua empiricidade. Sua posição é exemplar do conflito entre ciências duras — empíricas ou factuais — e as Humanidades, um conflito a ser superado se de fato o objetivo for alcançar um conhecimento que dê conta do Homem na Natureza como um conjunto íntegro do qual nenhum dos dois componentes pode ser retirado. Sua argumentação é também exemplar do desconhecimento, entre cientistas “duros”, das pesquisas da semiótica (em particular, aquelas desenvolvidas por Ch. S. Peirce), não mencionada em seu estudo, demonstrando como os juízos lógico, emocional e empírico integram um modo de relacionamento (um dispositivo epistemológico) entre a consciência e o mundo que não expurga e não pode expurgar a esfera da abdução (ou da intuição, como acertadamente escreve Hossenfelder) que é também a do Belo, a do Sentimento e das Sensações, assim como não descarta e não pode descartar a esfera do pragmático propriamente dito e nem, claro, a do pensamento lógico enunciador de leis. As três esferas estão intimamente ligadas mas não numa ordem qualquer: a esfera da intuição (da sensação, do sentimento, do estético) é a primeira base; a do empírico, a segunda; e a da lógica, da lei, do argumento racional, a terceira. A terceira não existe ou não alcança sua plenitude sem as duas anteriores, embora da ocorrência da primeira e da segunda possa não derivar a terceira. Reflexões como a de Hossenfelder ilustram o falso conflito, repetidamente reafirmado, entre os modos de conhecimento do mundo e da vida. Se o uso de um termo como ciênciarte servir para chamar a atenção sobre esse que é um nítido falso problema, tanto melhor. O mais provável, porém, é que provoque mais acusações — e

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defesas do entrincheiramento das ciências duras em seus campos elíseos — como as que povoam o livro de Hossenfelder. Seu livro começa com a confissão da autora de que optou pela física por “não entender o comportamento humano”, declaração que é ao mesmo tempo indício de sua arrogância: não entendo o comportamento humano e assim vou para a física que não se ocupa com o estudo do comportamento humano e recusa os frágeis e ficcionais instrumentos utilizados pelas disciplinas humanísticas cujo discurso é incompreensível; e quando a física dá sinais de recorrer a conceitos e métodos próprios do comportamento humano, acuso a física de decadência. Nunca é demais, do mesmo modo, lembrar que as Humanidades contribuem ativamente para o processo de mútuo distanciamento entre os dois campos ao descartar uma aproximação com as ciências duras e ao repelir o “tecnicismo”que as caracterizariam. Para ser justo com Hossenfelder, é preciso reconhecer que ao longo do tempo usado para escrever seu livro — baseado não só mas também em conversas mantidas com físicos espalhados por diversos lugares do mundo, pelos quais viajou de modo a obter esse contato direto e emocional com seus interlocutores —, Hossenfelder foi amenizando sua posição de rechaço às Humanidades, para ela largamente resumidas à filosofia. Nas páginas finais, reconhece que os físicos partem de pressupostos baseados na filosofia sem prestar a devida atenção ao que fazem e que o fazem; e que físicos retiram da filosofia mais do que gostam de admitir; e que a filosofia é o pano de fundo contra o qual a física se constrói. Mesmo quando dá a palavra a físicos críticos da filosofia, i.e., das Humanidades — por exemplo Stephen Hawking, que decretou (em The Grand Design, escrito com L. Mlodinow em 2010) a “morte da filosofia” por não ter essa disciplina acompanhado os desenvolvimentos da ciência moderna, em especial a física), Hossenfelder termina por reconhecer que a física precisa dos filósofos para pelo menos preencher o abismo entre a confusão pré-científica e a argumentação científica. (Talvez precise também da estética, acrescento.) Reconhece ainda que a ciência é um “constructo social no sentido em que cientistas são pessoas que trabalham em colaboração com outras pessoas” (op. cit. p. 196) e que “para sermos bons cientistas temos de estar conscientes de nossos desejos, expectativas e fraquezas, de estar conscientes de nossa humanidade […] (ib., p. 223) — e não sei como isso seria possível sem recorrer às Humanidades. Nas últimas páginas de seu livro chega mesmo a admitir que é “totalmente a favor do recurso à intuição na construção de pressuposições que só mais tarde poderão justificar-se (ou não)” (op. cit, p. 234). Ótimo. É disso que se trata. Hossenfelder é uma escritora de talento, do campo da física teórica ela mesma, com sentido agudo de ironia e disposta a revirar sua própria área de trabalho em busca de uma ciência melhor. E revirar, é provável, seus próprios pressupostos.

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COMPUTAÇÃO (AUTOMAÇÃO)

O sonho da computação é tão antigo, se não quanto o homem, pelo menos

quanto o berço da literatura ocidental — que de início não era ocidental mas, apenas, grega. Se a literatura o registra, possivelmente a ciência sonhava com

ele, igualmente. Mas o primeiro registro é aquele que a literatura deixou. A Antiguidade grega tinha seu termo próprio para computação: automação. Pro-

vavelmente, a Antiguidade grega não empregasse esse termo de modo corrente; mas, conhecia bem autômato, do grego antigo αὐτόματον (autómaton), forma

neutra αὐτόματος (autômatos, que se move por si, que tem vontade própria; de auto-, “por si” + matos, “pensamento, saber”). O autômato é, na perspectiva de hoje, um programa de computador rodado em máquina adequada para o exercício do controle sobre máquinas-fins cumpridoras da tarefa desejada.

A tendência para a automação-computação é crescente, em vários campos

da atividade humana. Ou em todos: da montagem de carros (objetos em vias de

extinção) ao reconhecimento facial por imagem para fins de embarque num voo comercial e à retirada de dinheiro (enquanto existir) e tantos mais campos da

atividade humana. E esse crescimento é exponencial. Consequências: a saída do ser humano de inúmeros e diferenciados e sempre mais numerosos ambientes

de trabalho e de intervenção sobre o mundo e a vida. No campo do trabalho, significa a perda multiplicada de postos. No comércio, um caso: para cada US$ 1 milhão em vendas, a Walmart emprega hoje (2017) cinco pessoas enquanto

a Amazon, pouco mais de uma — o que significa que a cada US$ 1 milhão em vendas que passam da Walmart para a Amazon, hoje vendendo praticamente as mesmas coisas que Walmart, cerca de quatro postos de trabalho são perdidos.8

Veículos sem motorista, fábricas sem operários, call centers sem pessoas na outra ponta... Pesquisa da Oxford University de setembro de 2014 prevê a eliminação

8

Algumas semanas após redigir este item, em agosto de 2017, leio que a Amazon comprou a Whole Foods, cadeia haut de game, cadeia-boutique de supermercados nos EUA: a expectativa (o temor) é que ocorra na Whole Foods o que seria típico da Amazon e já começa a notar-se em supermercados comuns: caixas não operadas por seres humanos (self service em todos os aspectos, da escolha do produto ao pagamento e embalagem para transporte), máquinas de informação ali onde antes havia funcionários humanos.

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de 47% dos empregos atuais nos EUA nos próximos vinte anos;9 não há índices ou previsão para os novos postos de trabalho que poderiam hipoteticamente

ser criados para receber os que perderão seu salário — e vinte anos é um tempo muito curto para implementar medidas alternativas.

Não haverá problema se alternativas para a distribuição de renda forem

encontradas (já foram) e adotadas (mais raramente). Hipóteses sobre uma renda

universal a ser concedida a todos os cidadãos de um país, esteja ou não empregado, vêm sendo estudadas como alternativas menos custosas do que manter a maquinaria burocrática, e ineficaz, de seguro-desemprego e outros benefícios sociais

para os que específica e comprovadamente deles necessitarem. Um programa voltado para desempregados na Finlândia foi iniciado em janeiro de 2017: a

2.000 desempregados entre 25 e 58 anos, escolhidos ao acaso, foi pago por mês o

valor de 560 euros (R$ 2.475,20 em agosto de 2018) sem exigência de procura ou aceitação de emprego; e caso o desempregado conseguisse emprego, continuaria mesmo assim a receber aquela quantia. Em abril de 2018 a Finlândia decidiu pela

inviabilidade do programa, a ser encerrado ao final desse ano e substituído por

outro prevendo incentivos para a formação continuada, ou treinamento específico, a combinar-se com a exigência de um trabalho por pelo menos 18 horas ao longo de três meses. De todo modo, o tema está definitivamente em pauta.

O sonho de criar extensões do ser humano na forma de máquinas primeiro

mecânicas e, depois, dessa máquina das máquinas que é o computador capaz de assumir um controle crescente das atividades de trabalho braçal ou não, é tão

antigo no Ocidente quanto as primeiras manifestações de sua cultura fundacional. No livro 18 da Ilíada, cuja primeira versão data do século 8 a.C., Homero

descreve um episódio em que a mãe de Aquiles, Tétis, decide encomendar uma

nova armadura para o filho e se dirige à oficina de Hefaístos, o deus do fogo, deus-ferreiro e da metalurgia e dos vulcões, que ela encontra trabalhando na construção de um conjunto de autômatos:

9

Cf. Pierre Papon, ex-diretor do Centre National de la Recherche Scientifique da França em artigo no Le Monde, de 7 de agosto de 2015; cf., também, Carl Benedikt Frey & Michael Osborne, The Future of Employement; Oxford Martin Programme on Technology and Employement, 2013. Cf. <https://www.oxfordmartin.ox.ac.uk/downloads/academic/ future-of-employment.pdf>.

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[…] Ele estava fabricando vinte trípodes alinhados ao longo das paredes de sua sólida morada, fixando rodas de ouro maciço à extremidade de cada um para que pudessem mover-se por conta própria [automatoi] até onde os deuses se reuniam e depois regressar a casa por si mesmos: algo fascinante de se ver.10 A menção a essas máquinas maravilhosas na obra de Homero, algo realmente

fascinante de imaginar, ocorre mais de uma vez. Ainda na Ilíada, livro 5, lê-se que

os portões do Olimpo abriam-se por si sós para deixar passar os deuses em suas

carruagens. No livro 7 da Odisseia (igualmente composta ao final do século 8 a.C.), Ulisses (Odisseus, em grego) encontra-se com um rei fabulosamente rico cujo palácio inclui itens como cães de guarda feitos de ouro e prata sempre alertas ao perigo e que nunca envelhecem nem padecem de mal algum. Talvez a passagem

mais atraente e perturbadora esteja naquele mesmo Livro 18 da Ilíada quando

Hefaístos, suado, prepara-se para cumprimentar Tétis e com ela discutir a armadura buscada. Depois de enxugar-se com uma toalha, veste uma túnica e dirige-se para a porta seguido por um grupo de servas que se movem graciosamente a seu redor vestidas de ouro e em tudo iguais a criadas de carne e osso, vivas:

[…] Elas têm o dom da mente, com a faculdade de pensar; E a da fala, e a da força, e dos deuses Receberam o dom do conhecimento E da habilidade. Estes seres femininos atarefavam-se ao redor de seu amo […] Está tudo aí. As humanoides de Hefaístos podem pensar, falar, conhecem as

coisas e são na aparência indistinguíveis da primeira fêmea humana, Pandora.

10

Adaptado da tradução para o inglês por Alexander Pope em 1899, edição do Project Gutenberg, p. 560: “Meanwhile the silver-footed dame / Reach’d the Vulcanian dome, eternal frame! / High-eminent amid the works divine, / Where heaven’s far-beaming brazen mansions shine. / There the lame architect the goddess found, / Obscure in smoke, his forges flaming round, / While bathed in sweat from fire to fire he flew; / And puffing loud, the roaring billows blew. / That day no common task his labour claim’d: / Full twenty tripods for his hall he framed, / That placed on living wheels of massy gold, / (Wondrous to tell,) instinct with spirit roll’d/ From place to place, around the bless’d abodes / Selfmoved, obedient to the beck of gods:/.

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As consequências dessa criação magnífica, naquele momento apenas imaginária, logo despertaram a reflexão dos conterrâneos de Homero. Aristóteles (séc. 4 a.C.), em sua Política, observa que seres como aqueles descritos por Homero tornariam desnecessária a existência de assistentes (ou trabalhadores) nas oficinas, assim

como os grão-senhores não mais precisariam de escravos. Uma nova ordem

social surgiria. Na verdade, uma nova ordem social que se seguiria a uma inicial

desordem social da qual poderia ou não surgir a ordem nova. Nessa mesma linha, o poema épico Argonautica, de Apollonius Rhodius (séc. 3 a.C.) narra a história de Talos ou Talus ou Talon, termo do dialeto de Creta equivalente a Helios em grego, o Sol. Talos é descrito como um autômato gigante, de bronze, construído para

proteger Europa, mãe do rei Minos de Creta, mulher de alta linhagem e origem fenícia cujo nome seria depois atribuído ao continente. A moeda de prata aqui

reproduzida, guardada no Cabinet des Médailles, Paris, foi cunhada (c. 300-270 a.C.) em Phaistos, sítio arqueológico da Idade do Bronze em Creta e local da cidade contemporânea de mesmo nome. Talos é um produto direto da tecnologia de

ponta da época, o bronze, assim como hoje os novos autômatos fazem-se com a tecnologia deste momento. A técnica muda a cultura, escreveu Marx, o que fica

confirmado mais uma vez: a cada nova técnica, um novo mito, uma nova cultura, um novo produto — alguns na forma virtual de uma imaginação manifestando um desejo e outros apresentando-se como a concretização imediata e acessível do novo formato, como neste século 21.

Fig. 5: Um Talos (TADWN) armado com uma pedra gravado num dracma de prata, comum na Grécia em vários períodos históricos, inclusive hoje. Aqui uma figura alada; outras representações mostram-no sem asas.

Fig. 6: Ilustração da inglesa Sybil Tawse (1886-1971) representando Talos e Medeia em estilo pré-rafaelita com traços românticos.

Fig. 7: Escultura de Talos por Michael Ayrton, em Cambridge.

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Talos deriva da ideia encontrada em Hesíodo segundo a qual os homens

da Idade de Bronze eram de fato feitos de bronze. Outras fontes indicam

que saiu das oficinas, outra vez, de Hefaístos e a pedido de Zeus para que guardasse Europa dos que queriam raptá-la ou para proteger o próprio reino

de Minos dos invasores vindos do mar, sobre cujas naves Talos lançaria pedras que segura nas mãos como figurado no dracma de prata. Medeia, com seus

poderes sobrenaturais, teria controlado o autômato ou por meio de sua força

mental exercida sobre o robot ou retirando um pino de seu calcanhar (ponto fraco, como em Aquiles) por cuja brecha o líquido da vida que o sustentava

escoou-se, como representado na ilustração de Sybil Tawse: a feiticeira ou sacerdotisa Medeia, neta de Helios, é vista na imagem de Sybil segurando

um pino na mão esquerda enquanto Talos jaz por terra deixando escapar seu líquido da vida, de cor vermelha... A versão do controle de Talos por Medeia apenas pela influência mental é sugestiva por permitir a conclusão de que

também Talos tinha uma inteligência ou mente, portanto uma inteligência artificial dando-lhe o caráter de algo mais do que uma máquina, o que se vê

na expressão de seu rosto voltado para essa outra figura mítica feminina.11

Talos é representado, outras vezes, como um ser quase sempre perdedor, figura

trágica condenada a obedecer a seu programa (um ser sem livre-arbítrio, portanto) mas sofrendo por isso — nisso não distante de outro ser híbrido, Frankenstein, idealizado por Mary Shelley em livro publicado anonimamente em 1821 quando a autora tinha 20 anos. O título original do livro de Mary

Shelley era Frankenstein ou o Prometeu moderno; Prometeu, na mitologia

grega, é um titã a quem se atribuía a criação do homem a partir da argila

ou barro e o roubo do fogo das mãos dos deuses para dá-lo à humanidade, gesto que permitiu a civilização e a derrota da natureza pelo homem, outro

nome para progresso... Etimologicamente, Prometeu significa “aquele que pensa de modo avançado, que pensa na frente, que prevê”; Platão dava a um irmão pouco iluminado de Prometeu o nome de Epimetheus, “aquele

que pensa depois”. Epimetheus é na verdade um profeta do passado, que é como costumo me referir a tantos imobilizados nessa condição, inclusive

na esfera da universidade. O título completo do livro de Mary Shelley deixa claro que Prometeu não poderia ser o monstro grotesco, mas o cientista que 11

Cf. Adrienne Mayor, Gods and Robots: Myths, Machines and Ancient Dreams of Technology; Princeton University Press, 2018. Como sempre ao longo da história, o surgimento com força de uma ideia — o robot, a máquina inteligente — sugere constantes voltas atrás e reexames da história em busca de antecedentes e antecessores…

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deliberadamente o cria, Victor Frankenstein, que experimenta com a criação da vida para tentar mudar o futuro. O Talos da mitologia grega não foi feito

para criar, mas para proteger apenas e destruir se necessário; com o monstro Frankenstein tem em comum não só o pino de metal mas também o destino

trágico que a humanidade gosta de ver desabar sobre os que se arriscam a mudar ou controlar a vida...

Um longo salto no tempo permite aterrissar este texto na realidade contem-

porânea. Aquilo que Homero imaginou ou desejou em nome da humanidade

foi já em grande parte concretizado, muitas vezes projetando-se muito além do que o primeiro poeta pôde conceber. Não se trata mais apenas de máquinas

que substituem o esforço físico, o dispêndio de energia humana. Nas últimas

décadas a produção de bens e produtos culturais aumentou exponencialmente, em termos de unidades, com a introdução do computador pessoa (o PC, per-

sonal computer) do qual o smartphone é a versão radical. Qualquer pessoa pode hoje tirar (produzir) uma fotografia de qualquer coisa a qualquer hora e

imediatamente em seguida inseri-la no circuito de distribuição de imagens, quer a considere como um bem cultural (obra de arte) ou não, como produto a

ser vendido ou não. É hoje também possível abrir uma emissora de rádio cuja sede localiza-se na internet e difundir música pelo sistema de assinatura ou gratuitamente (ao mesmo tempo que se faz um apelo para que os ouvintes

doem à rádio alguma indeterminada soma de dinheiro — por exemplo, como

no caso concreto da Giant of Jazz Radio, o equivalente a um copo de cerveja). Visto na perspectiva da economia política (riqueza gerada e sua distribui-

ção, empregos criados e perdidos, coesão social ao redor do fato econômico), o quadro não é tão entusiasmante como a princípio poderia parecer. O jornalista

Scott Timberg lançou em 2015, pela Yale University Press, um ebook intitulado Culture Crash: The Killing of the Creative Class [O desastre cultural: o massacre

da classe criativa] em que compila e analisa alguns resultados sociais e econômicos da nova mídia digital numa perspectiva bem distinta daquela de seu conterrâneo, Richard Florida, um dos primeiros a operar com a noção de classe

criativa e cidade criativa. Enquanto Florida fazia uma exaltação à nova classe

que surgia, vista como fator de desenvolvimento da cidade, pouco mais de uma década depois (o tempo se acelera em seus efeitos sociais), Timberg mostra

uma classe criativa que começa a definhar sem nunca ter chegado a ser uma

entidade claramente definida. Em 1982, por exemplo, a rigor na pré-história da

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tecnologia digital, 1% dos músicos com as maiores rendas nos EUA arrecadaram

26% das receitas total dos shows; vinte anos depois, em 2003, com a tecnologia digital avançada, os mesmos 1% conquistaram 56% da receita total, segundo o

economista Alan Krueger, da Universidade de Princeton, citado por Timberg. Graças ao modo de difusão das novas mídias, a concentração de renda, para

dar razão a Thomas Picketty,12 aumentou mais do que o dobro em vinte anos: • em 1982, 1% dos músicos = 26% da receita

• em 2003, 1% dos músicos = 56% da receita Não só a concentração da renda intensificou-se, a redução das opções

(ou do gosto possível) também: em 1986, 31 canções estiveram no topo das paradas de sucesso nos EUA, interpretadas por 29 artistas diferentes. Entre

2008 e 2012, 66 canções chegaram ao primeiro lugar das paradas — quase

a metade, porém, executada por apenas 6 intérpretes, entre eles Lady Gaga: • em 1986, 31 canções em 1o lugar, por 29 artistas diferentes;

• entre 2008 e 2011, 66 canções em 1o, por 6 artistas diferentes;

• dos 75.000 discos lançados no mundo em 2010, apenas 1.000 venderam mais de 10.000 cópias;

• em 2010, 10 sites forneciam 31% do tráfego de internet; hoje, cobrem 75%. Concentração significa também redução de empregos disponíveis:

pequenas livrarias fecham, livrarias médias e grandes tampouco escapam

da falência e o mesmo acontece com as lojas de disco, que em São Paulo, cidade com 15 milhões de habitantes, foram reduzidas ao número de dedos de

uma só mão ou menos (em compensação, cresce a venda ilegal de produtos

pirateados de música e vídeo, a maior ameaça à criatividade como aponta Xavier Greffe,13 economista professor da Sorbonne especializado em economia da cultura). Nos EUA, registram-se:

• menos 25,6% de empregos em fotografia (com o subsequente aumento de vendas de imagens por empresas proprietárias de bancos de imagem);

• menos 21% de empregos nas artes do espetáculo;

Thomas Picketty. Le capital au XXIe siècle. Paris: Seuil, 2013.

Xavier Greffe, Arte e mercado. São Paulo: Iluminuras/Observatório Itaú Cultural, 2013.

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• menos 45,3% de grupos musicais e artes conexas;

• menos 35,9% de empregos na indústria editorial (jornais, livros, revistas).14 Isso significa que os chamados “empregos de formação”, períodos de

aprendizagem remunerada, tendem a desaparecer, transformando os jovens

num exército de mão de obra barata despedido ciclicamente assim que os

salários se elevam ou estão prestes a elevar-se: de igual modo, os “velhos” biológicos, aqueles com mais anos de vida e maior experiência, portanto, em

princípio com mais conhecimento, são também despedidos e, para seu lugar, contratam-se, por menor remuneração, profissionais mais jovens em início

de carreira, em todos os sentidos. O que se constata é a perenização da inexperiência, traduzida, na indústria editorial por exemplo, em uma linguagem

empobrecida e mínima capacidade de análise própria. Na imprensa escrita, falada, televisada ou internetizada, o império do press release instala-se, com

o autor ou produtor da obra ou evento enviando por escrito ao “jornalista” o que tem de reproduzir a título de informação, “apreciação” ou resenha.

Não só os velhos e os pouco especializados, porém, perdem emprego:

a narrativa feita por computador poderá eliminar a curto prazo a maioria dos empregos na indústria editorial (mesmo naqueles setores altamente

especializados), sobretudo nos periódicos (mas não só neles) — e seja qual

for a idade dos que hoje exercem essas funções. A Associated Press informa que, graças à plataforma Automated Insights Wordsmith,15 cria mais de

3.000 informes financeiros por trimestre sem a participação de qualquer 14

Um informe recente do Observatorio de la Piratería y Hábitos de Consumo de Contenidos Digitales de Espanha estima que, em 2014, cerca de 87% (84% em 2013) dos conteúdos culturais on line foram consumidos nesse país de modo ilegal, configurando casos de pirataria. EUA e Espanha são realidades bem diferentes, mas os números podem ser válidos para ambos os países — a menos que a “ética digital” nos EUA seja maior, algo em que não vale a pena apostar. Na Espanha, em 2014 foram cerca de 4,5 bilhões de acessos ilegais a conteúdos culturais, representando um valor que se deixou de ganhar na ordem estimada de 1,7 bilhões de euros, com os quais poderiam ter sido criados 29 mil empregos (número significativo, num país com 23% da população desempregada neste ano de 2015). Se os índices forem corretos, e não devem estar distantes disso, a pirataria é um dos grandes desafios do século 21.

A firma Automated Insights criou a plataforma Wordsmith (artífice de palavras) que transforma fragmentos isolados de informação em narrativas íntegras pelo processo de identificação de padrões de expressão e do estabelecimento de correlações entre

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jornalista.16 A Forbes usa outra plataforma, Narrative Science’s Quilt, para

os mesmos fins.17 O Los Angeles Times recorre ao algoritmo Quakebot18

para analisar dados geológicos e redigir textos automatizados segundos

após a ocorrência de um tremor de terra. O fundador de Narrative Science, empresa líder no setor chamado Big Data Storytelling, calcula que, por volta de 2020 (i.e., no próximo ano), 90% das notícias divulgadas poderão ser geradas algoritmicamente quase sem intervenção humana.19 A era do

robô-jornalista terá começado e computadores escreverão tanto programas de governo quanto resenhas de jogos de futebol, passando pela crítica de filmes. Impensável, pelo menos neste último caso? Programas de governo pouco ou nada significam, pelo menos em países sem estrutura política firme

e socialmente comprometida, e o fato de poderem ser redigidos por robots

não surpreende ninguém: o algoritmo para essa tarefa não precisa ser nada

complexo. Mas negar desde logo que uma crítica de cinema possa ser escrita por uma máquina dificilmente deixa de ser sinal de apego a velhas ideias

feitas... Um professor de administração da escola francesa Insead, Philip M. Parker, patenteou um algoritmo que já escreveu, segundo ele, um milhão

de livros, dos quais cem mil estão ou já estiveram disponíveis na Amazon. Detalhe: seria praticamente impossível diferenciar o texto produzido por seu algoritmo daquele escrito por uma pessoa (pelo menos nos casos da

literatura mediana, quantitativamente dominante) — o que demonstra antes de mais nada a codificação acelerada das formas linguísticas, cada grupos de palavras e noções (insights) tal como um ser humano pode (ou pôde ou poderia...) fazer.

Shelley Podolny, The New York Times, 9 março 2015, edição eletrônica.

Expressivo, esse recurso ao termo quilt, espécie de colcha que resulta da costura de diferentes pedaços e camadas de tecido (habitualmente formando diferentes tipos de figuras na superfície exterior). Um texto escrito por um escritor humano (teremos cada vez mais de recorrer ao uso do descritivo “humano” após um substantivo indicador de uma profissão ou atividade) pressupõe um processo de elaboração não muito diferente, embora levado a cabo por uma consciência unitária que tudo integra no próprio ato de escrever e dá forma às ideias apenas nessa performance. A composição de uma narrativa ao modo de um quilt digital é bem diferente, em princípio. Somente o teste de Turing poderia, talvez, dizer qual foi escrita por um humano e qual, pela máquina...

“Bot”, gíria para robot; quakebot, o robot do (para) terremotos.

Esta seção foi escrita originariamente em 2016; logo se poderá verificar se a previsão era correta.

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vez mais padronizadas mesmo em relação às formas literárias (ou que com elas são confundidas...). Se a linguagem era o que distinguia os homens dos

animais e das máquinas, já não é mais. Adieu au langage... Nesse seu filme, aliás, Jean-Luc Godard registra que em breve as pessoas precisarão de um

tradutor — ou de um “conversor” como se diz hoje, tais como esses que se encontram às dezenas na internet — para entender as palavras que saem da

própria boca: Roland Barthes tinha razão, não é o homem que fala a língua, é a língua que fala o homem, que se serve do homem para afirmar-se a si

mesma. E um outro algoritmo, desenvolvido pelo Laboratório de Inteligência Artificial e Arte da Universidade Rutgers, EUA, é apresentado neste ano de 2015

como capaz de identificar mais de 2.600 dimensões de uma pintura — estilo, gênero (paisagem, retrato, pintura histórica, de gênero ou outro) —, uso da luz, cor e traço —, e dizer quais as obras “mais originais”, portanto, aquelas que seriam as mais valiosas estética e economicamente: o crítico de arte, não

só o de cinema, estaria com seus dias contados.20 O desemprego em massa, literalmente em massa, é um horizonte claro. O que fará uma humanidade sem

trabalho? Em meados do século 20 a sociologia do lazer buscava na cultura

um modo digno de ocupação do tempo livre: 21 está a cultura preparada para

preencher o vazio de um gigantesco desemprego em massa? Qual o conceito de trabalho nesse momento, e o de lazer? E o de cultura?

De outro lado, a autoprodução, ou produção sem intermediários

(autopublishing), surge como nova possibilidade editorial: autores de livros,

compositores e músicos não precisam mais de uma editora que os lance,

No artigo “El Cristo de Goya, el cuadro más original para las máquinas”, o jornal espanhol El País, de 19 de junho de 2015, informa que um algoritmo concluiu que esse Cristo pintado por Goya seria o quadro de mais alto valor do ponto de vista da originalidade. Observando-se o valor estético relativo da obra, essa conclusão de uma inteligência artificial é indício patente de que, pelo menos por enquanto, nenhum crítico ou historiador humano da arte precisa temer por seu emprego. O jornal não contradiz a assertiva — e isso é preocupante.

Os livros de Joffre Dumazedier, apesar de clássicos na área (Vers une civilization du loisir, 1962; Le loisir et la ville, 1975; La révolution culturelle du temps libre, 1990), nunca foram levados a sério pelos políticos de diferentes costados. Um tempo enorme e significativo já se perdeu, a humanidade está atrasada para o encontro consigo mesma. Mais uma vez. Só que desta vez, em relação a alguns dos atrasos — como o relativo ao meio ambiente —, pode ser a última.

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qualquer um pode fazer em casa um ebook e pô-lo à venda na internet como

de início fez a então anônima E. L. Jones com seu extraordinariamente famoso 50 tons de cinza, capaz de transformá-la em celebridade mundial. Os apocalíp-

ticos, para lembrar um remoto Umberto Eco dos tempos da indústria cultural, dizem que isso é uma ilusão, loteria que premia uns poucos entre milhares. É

possível. Só que nunca foi diferente no sistema anterior. A isso os integrados

poderiam responder que agora a porta para o sucesso e a fama está pelo menos

entreaberta para e pelo próprio interessado. Não mais mediadores (pelo menos os tradicionais), não mais políticas culturais, não mais patrocinadores... Em certos campos, é bem possível.

Esse é apenas um pequeno detalhe do quadro geral. Robots substituem

em larga medida os antigos trabalhadores humanos nas fábricas mais diversificadas, sem que se indague muito do destino que espera pelos demitidos ou por aqueles que nunca chegarão sequer a sonhar com um emprego de

trabalhador manual, ao qual de resto o trabalhador intelectual irá se equiparar no futuro. Parece ser para amanhã a ocorrência da primeira singularidade ou

singularidade tecnológica, que aponta para o possível advento da inteligência artificial generalizada capaz de fazer de um robot ou computador uma enti-

dade teoricamente apta a autoaprimorar-se e projetar outros computadores ou robots melhores do que ele. Ray Kurzweil, diretor de engenharia da Google e

especialista em inteligência artificial, doutor honoris causa por várias universidades, criador do primeiro escâner para computador, do primeiro sintetizador

de texto por voz e de um “tradutor/conversor” visual e automático de idiomas (basta apontar o celular para o que se quer traduzir e o resultado aparece na tela como se fosse uma fotografia do real), afirma de modo claro que num prazo

de algumas poucas dezenas de anos o ser humano não mais precisará morrer e permanecerá sempre jovem. Sem que talvez Ray Kurzweil o saiba, sua profecia

(ou simples antecipação)22 indicaria, por uma ironia da história, a concretização

do sonho ou delírio das utopias biopolíticas dos primeiros bolcheviques que, antes mesmo de 1917, lançavam seus “manifestos da imortalidade” assinados pelos “biocosmologistas e imortalistas”, como eles se chamavam, notabilizados

por sua recusa em considerar o socialismo um sistema político realmente democrático e bem-sucedido enquanto não fosse capaz, primeiro, de assegurar

a juventude eterna e, segundo, ressuscitar os mortos para que também eles Cf. A singularidade está próxima. Iluminuras/Observatório Itaú Cultural, 2018.

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usufruíssem das benesses do novo regime. O que os socialistas radicais de um século atrás imaginaram, os capitalistas radicais de hoje estão a ponto de pôr

em prática. Nesse momento, qual será o conceito de homem, de ser humano, a ser considerado e com o qual operar? E o de cultura? O tempo perderá seu significado imemorial? ◊

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DIGITABILIDADE

Tudo que pode ser representado (e muito pode ser representado, à exceção

do que for logicamente inviável e das emoções e sentimentos pessoais inte-

riores)23 pode ser digitalizado, traduzido — enquanto a computação quântica

não se impõe — em combinações de 1 e 0 (aceso/apagado, ligado/desligado, presente/ausente; passa informação/ não passa informação). Tudo: palavras, imagens, sons... É algo inédito na história da cultura, que até aqui operou com a ideia de especificidade das linguagens e da irredutibilidade de uma

à outra. Tudo que pode ser representado, pode ser digitalizado e, portanto, programado — e são cada vez mais numerosos os campos do que pode hoje ser

programado.24 Programabilidade é outro nome para intencionalidade — pelo menos na reprodução, se não na criação. À primeira vista, a intencionali-

dade parece imperar nas culturas computacionais, mais do que na cultura

não-computacional. Um moto da teoria da informação, “chance & choice”, acaso & escolha, transforma-se cada vez mais em choice (escolha) sem chance

(acaso) ou com pouca margem para a chance. Exceção aparente, os algoritmos genéticos chegam ou podem chegar a resultados de início não previstos no programa — mas essa imprevisibilidade está em alguma medida inscrita

no ou condicionada pelo programa inicial que os gerou... A diferença é que o autor do programa genético desconhece as consequências do que ele mesmo programou. Mas, elas estão no programa como possibilidade. Na cultura pré-computacional, o poema surrealista parecia abrir vasta margem para o

acaso com a escrita automática, quando o autor teoricamente baixaria todas

suas barreiras do consciente e abriria a porta para aquilo que habitualmente permanece reprimido ou represado em seu mundo interior. A pintura gestual de Jackson Pollock, observada apressadamente, parece a representação do

caos. O exame minimamente atento revela, porém, que o resultado dessa

action painting é extremamente ordenado e simétrico: em outras palavras, havia um programa inicial do qual Pollock não se libertou ou não quis libertar-se. O tradicional, a ideia de composição, subjaz e resiste à superfície das Cf. Virtualidade, adiante.

23

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Não podem ser renderizados, portanto programados, o que for logicamente impossível (a fatoração de um número primo) e as sensações e sentimentos internos, pessoais; cf. Virtualidade, adiante.

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telas de Pollock, em aparente oposição ao lance de dados de Mallarmé, que

“jamais abolirá o acaso”: o acaso da tinta espalhada por Pollock parece jamais conseguir abolir a tradicional ordem interior emergindo à superfície. De seu lado, o poema de Mallarmé afirma que “jamais abolirá o acaso”. Esse poema de Mallarmé, ele mesmo o reivindica na nota introdutória que preferia que ninguém lesse antes de mergulhar em seus versos, “deixa intato o antigo, cujo

culto preservo”. Mallarmé afirma não transgredir a medida do verso, “apenas a dispersa”, diz, dando um papel maior ao papel ao redor das palavras, quer

dizer, um papel maior para os espaços em branco, ao branco entre as palavras e as linhas, entre os versos que habitualmente comem todo o branco a seu

redor. Com esse método, “a ficção aflora e se dissipa, rápida […]. Tudo acontece,

atalhando, em hipótese: evita-se a narrativa.”25 O lance de dados desse poema,

com toda sua ordem interior, grande, não abole o acaso que não reside tanto

no espaço físico entre as palavras, na largueza do branco entre as palavras, como no interior delas mesmas e no interior dos versos truncados feitos de palavras com tipografia variada. Não abole o acaso “mesmo quando lançado

em circunstâncias eternas”, das quais o cenário do Ponto Ômega, discutido

adiante,26 é uma ocorrência possível. Uma ocorrência interessante quanto

mais improvável for, interessante mesmo revelando-se provável. No algoritmo genético, o programa é o lance de dados, que apesar disso não pode abolir o

acaso interveniente. A cultura computacional não consegue abolir de todo a cultura anterior: elos entre ambas permanecem e duram. Não poderia ser diferente. ◊

25

Stéphane Mallarmé, Un coup de dés jamais n’abolira le hasard, 1914. Bibliothéque Nationale de France/Gallica, Bibliothèque numérique.

Cf. Virtualidade.

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MOBILIDADE

Tudo que for virtualizável,27 como consequência de uma digitalização e

uma programação, pode mover-se e ocupar diferentes espaços — não apenas em momentos distintos do espaçotempo mas também no mesmo presente continuado. E a velocidades inéditas. No limite, à velocidade da luz. No

filme Blade Runner 2049 (lançado em 2017), a namorada de K, o caçador de androides, numa fração de segundo ocupa diferentes pontos do espaço, sem cessar, e continuamente muda de aspecto físico (cor dos cabelos, roupa) em

igual fração de segundo. Para que isso de fato aconteça fora de um filme, o

programa deveria ser particularmente sofisticado e o computador que o roda, especialmente veloz: as imagens estarão sendo geradas no instante e para o

instante de modo a dar a sensação de total compatibilidade com a experiência atual, de tempo real — as mudanças deverão acontecer “ao vivo”.28 Uma fração

de segundo de atraso e o efeito de realidade rompe-se. O mundo ainda está longe disso embora os instrumentos de realidade aumentada esforçam-se por reduzir essa distância.

Mobilidade: o ser humano pode deixar de sentir o peso da âncora que

o mantém vinculado ao mesmo lugar, ao mesmo tempo, à mesma forma. O “mundo dos casos idênticos” (Nietzsche, The Will to Power, 521)29 tem sua

superação à vista. A identidade sai de cena: a mobilidade permite a metamor-

fose, ir além da forma dada (atual), transformar-se. O sonho do autômato é antigo, o da metamorfose também. Uma das obras clássicas da Antiguidade

latina, a espelhar idêntica e não menor aspiração ou obsessão, é o poema Metamorfoses, de Ovídio (séc. I BCE.). “Quero falar das formas que viram novas entidades” (“In nova fert animus mutatas dicere formas / corpora”). O ser humano quer mudar, o ser humano sempre quis mudar — quando não se

tratar desse ideólogo da identidade fixa que pensa no partido e no Estado, duas

das ficções mais dramáticas da história da humanidade. Os deuses também querem mudar. Ou o ser humano viu que os deuses mudam e quis mudar ele

também. Apolo quer Dafne e a persegue, Dafne foge e, na iminência de ser Cf. Virtualidade.

27

Cf. nota 135, Virtualidade.

Vintage Books, 1968.

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alcançada, transforma-se num loureiro. A deusa da caça Diana, nome romano para Artemis, toma seu banho à beira de um riacho quando o jovem caçador Acteon, neto de Cadmus, irrompe na cena e a surpreende desnuda; Diana joga

água sobre Acteon e com isso o transforma num cervo em seguida caçado por seus próprios cães e por eles estraçalhado e morto. Dafne talvez quisesse

continuar como árvore, Acteon não pode reassumir sua forma humana diante

de seus próprios cães, essa reversão de identidade não depende dele, sua vontade pessoal não é suficientemente poderosa. Pigmaleão, um escultor de

Chipre, extraiu do marfim as formas de uma mulher que o encantou a ponto

de “desinteressar-se por outras mulheres”; deu-lhe o nome de Galatea, “aquela que é branca como leite” em grego; quando chegou o momento do festival em honra de Afrodite, Pigmaleão trouxe oferendas à deusa e pediu uma noiva que

se parecesse a sua “jovem de marfim”; Afrodite atendeu o desejo do escultor que, retornando ao ateliê, beijou sua obra e a transformou em mulher com

a qual se casou e teve filhos. O mito de Pigmaleão é um dos mais influentes

dentre os transformados em versos por Ovídeo, seu alcance atravessa todas

as camadas culturais. O filme Some like it hot (Quanto mais quente, melhor), de Billy Wilder, com Marilyn Monroe numa de suas melhores atuações ao

lado de Jack Lemon e Tony Curtis, recorre em parte ao mito de Pigmaleão: os personagens interpretados pelos dois são obrigados a travestir-se de mulheres

em virtude das circunstâncias da trama e um deles, Jerry, a cargo de Jack Lemon, é como tal caçado (acossado, se diria hoje) por um milionário velho que por “ela” se apaixona. O apelido de Jerry, para efeito de disfarce, é Dafne…

que não sente necessidade de transformar-se em loureiro. Holywood sempre conheceu suas fontes literárias.

A nova mobilidade, como a antiga, é física e simbólica, de forma e de

sensibilidade. Cf. Virtualidade. ◊

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LABILIDADE

Como resultado da mobilidade, um fenômeno pode deslizar não só fisica-

mente mas também qualitativamente na direção de outro; uma coisa pode ser

e deixar de ser e voltar a ser; pode ser e não ser dependendo do ponto de vista. No limite, realidade e irrealidade podem sobrepor-se, confundir-se: “a vida real é apenas mais uma janela” (Ray Kurzweil),30 “não existe uma realidade

verdadeira ou real, apenas um constante escanear de possibilidades”(Pascal Dombis, exposição “Consciência Cibernética?”, Itaú Cultural, junho 2017).

Numa carta ao físico Eric Schrödinger, em 1950, Einstein escreveu que

Schrödinger era “o único físico contemporâneo, além de Laue,31 a perceber que

não é possível contornar a presunção de realidade, quando se é honesto. A maioria [dos físicos] não percebe que tipo de jogo arriscado estão fazendo com a realidade, uma realidade que seria independente do que é experimentalmente

estabelecido”. Einstein fazia referência ao experimento conhecido como “gato

de Schrödinger” no qual um gato é colocado dentro de uma caixa com um mecanismo que pode ou não liberar em seu interior um material radioativo que pode matar esse gato; esse gato pode ou não estar morto (o gato estaria assim

vivo e morto ao mesmo tempo) até que um observador olhasse no interior da

caixa e constatasse que o gato está morto ou não. Esse exercício conceitual foi proposto por Schrödinger como modo de invalidar a “interpretação de Copenha-

gen para a mecânica quântica” segundo a qual um sistema, como o formado

pela caixa com seu gato, deixa de ser uma superposição de estados e torna-se um ou outro desses estados quando uma observação do sistema é efetivamente

feita. Um dos físicos do grupo de Copenhagen, Niels Bohr, no entanto, defendeu que o gato estaria vivo ou morto, por efeito da radiação eventualmente liberada

no interior da caixa, muito antes de um observador abri-la e ver o que nela se passa. O físico americano Hugh Everett III formulou em 1957 uma interpretação

da física quântica conhecida como “interpretação dos vários mundos”(Many Worlds Interpretation - MWI), ou interpretação do estado relativo, em seguida aplicada ao exercício do “gato de Schrödinger”. Segundo a MWI, todo evento

Ray Kurzweil, op. cit.

Max Theodor Felix von Laue (1879-1960), Prêmio Nobel de Física de 1914 por sua descoberta da difração dos raios X por cristais.

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é um ponto de bifurcação: o gato está morto e vivo independentemente de a

caixa ser aberta ou não, no entanto, o gato vivo e o gato morto estão em “ramos” diferentes do universo que são igualmente reais, mas que não podem interagir uns com os outros. Sua teoria foi mal recebida e Everett abandonou a pesquisa em física até que Bryce DeWitt, em 1970, promoveu uma retomada da discussão

da teoria do estado relativo. Dessa vez a teoria foi mais bem acolhida e exerceu

influência sobre alguns físicos como David Deutsch, um defensor da ideia dos

“muitos mundos” ou multiverso. No caso do gato que pode estar morto ou vivo enquanto um observador não se intromete no experimento, a labilidade não é real: uma vez visto como morto o gato não pode retornar à vida. E o gato não pode estar vivo ou morto ao mesmo tempo, há apenas 50% de probabilidades

de que esteja morto. Mas o “constante escanear das possibilidades” é um estado relativo das coisas, um estado aberto à labilidade.

“Tudo que estava assentado e consolidado evaporou-se”,32 anotou Karl

Marx no Manifesto.33 O parágrafo onde essa observação localiza-se é sugestivo: “A burguesia não pode existir sem constantemente revolucionar os instrumentos de produção e, com eles, as relações de produção e, com elas, todas as relações da sociedade. A conservação dos velhos modos de produção em sua forma inalterada foi, pelo contrário, a primeira condição de existência para as primeiras classes industriais. Uma constante revolução na produção, a perturbação ininterrupta de todas as condições sociais, uma incerteza e uma agitação duradouras, distinguem a era burguesa de todas as anteriores. Todas as relações estabelecidas, congeladas, com seu séquito de opiniões e preconceitos arcaicos e veneráveis, são varridas para fora de cena e todos os novos preconceitos e opiniões tornam-se antiquados antes que possam ossificar-se. Tudo que durava e era imóvel evapora-se,

“Alles Ständische und Stehende verdampft”. Em português cristalizou-se a versão consagrada dessa frase para o inglês: “Tudo que é sólido derrete-se no ar”. Uma flor permanece em pé e parada, na tradução literal da frase alemã, mas não é sólida. E “derreter-se” pode ser mais dramático, mas uma flor não se derrete: evapora, vira vapor, vira pó.

Formalmente, o Manifesto traz a assinatura de Marx e Engels. Mas lembrar Marx e esquecer Engels é o mais comum: the winner takes all, o vencedor leva tudo. O vencedor, nesse caso, é claramente Marx…

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tudo que era sagrado é profanado e o ser humano vê-se enfim compelido a olhar de frente, sobriamente, suas reais condições de vida e suas relações com seus iguais.”34 Dificilmente se encontrariam melhores palavras para descrever o cenário

armado e impulsionado pela inteligência artificial computadorizada, sem que Marx pudesse imaginar como as suas eram apropriadas. No Manifesto, Marx

recorre à palavra ciência uma única vez — mesmo assim, de modo anódino, ao referir-se ao “homem de ciência” que se transforma em assalariado como

todos os demais. E não se refere à tecnologia, subsumida na expressão “instrumentos de produção”. A tecnologia não era uma questão em si mesma. Ciência

e tecnologia são vistas como emanando da mesma burguesia que promove

todas as outras revoluções e a incorporação daquelas a esta deveria bastar. Atribuir à burguesia, entendida como um grande dispositivo econômico, social, ideológico, cultural, estamental, a causa e a responsabilidade pela promoção da

ciência pode ser excessivo; mas, a descrição de que tudo vira vapor aplica-se ao

cenário científico e tecnológico de hoje, mais ainda à cena do futuro próximo. Opiniões e preconceitos são varridos para fora de cena tanto quanto modos de

ser e fazer. A ciência e a tecnologia oferecem à análise marxista as condições para permanecer válida. A labilidade instala-se.

As coisas, as pessoas oscilam sobre o próprio eixo. Formas alteram-se e com elas

as emoções e os sentimentos. Algumas das tentativas de apreender esse quadro e exibi-lo à observação e reflexão revelam-se canhestras, embora mantendo um (tênue) elo com o fenômeno representado. Neste segundo semestre de 2018

abre-se no Victoria and Albert Museum, de Londres, a exposição “The Future Starts Here” (O futuro começa aqui), com objetos reais ou fictícios que devem

ajudar os visitantes a imaginar futuros possíveis e captar as complexidades da

vida moderna — dessa vida moderna que pelo menos desde o século 15 não para

de esfumaçar-se e recristalizar-se, a vita nuova magnífica e horrorosa. Alguns

desses objetos e situações mostrados não vão muito além das parcas possibilidades de atração de muita exposição de arte contemporânea (por exemplo, o modo pelo qual um motorista de Uber usa seus aplicativos e como isso se traduz

visualmente numa sala de exposição). Outros, como um caixão onde cadáveres

esperam, conservados no frio, o momento adequado para serem ressuscitados

34

Karl Marx e F. Engels, The Communist Manifesto (1888), Capítulo 1, parágrafo 17.

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pela ciência, opção de alguns milionários, provém do que não passa, ainda, de

pura especulação. Outros mais são curiosidades extraídas de um passado ficcional, como uma bebida que funciona como ersatz alimentar denominada Soylent, saída diretamente do filme Soylent Green, de 1973, baseado no romance Make room!

Make room! (Abra espaço! Abra espaço!), de Harry Harrisson: ao redor do ano 2022, agora literalmente amanhã, um mundo superpovoado, poluído e sofrendo

de aquecimento global (como agora) está à beira da autodestruição; as pessoas

sobrevivem graças a uma ração, Soylent Green, supostamente feita de plânctons; os plânctons, no entanto, esgotaram-se há muito e descobre-se que a proteína

contida na ração provinha de pessoas mortas cujos corpos eram transformados numa pasta, única fonte de proteína disponível... Em outra galeria do museu, uma

“obra” mais sugestiva exibe dois retratos de Chelsea Manning feitos por Heather Dewey-Hagborg a partir de amostras do DNA da retratada. Chelsea Maning é a forma atual do ex-militar americano Edward Manning que em 2010 entregou para

a Wikileaks centenas de milhares de documentos governamentais secretos ou

sensíveis antes de passar por uma operação de mudança de sexo que lhe alterou seu anterior envelope humano. Os retratos, elaborados com impressora digital 3D

enquanto Manning estava preso, entre 2010 e 2017, assumem a forma do rosto recortado colocado sobre a estrutura robótica da personagem central do filme Ex

Machina e que lhe dá uma aparência humana embora a parte posterior de sua cabeça permaneça com o interior mecânico à vista.

Fig. 8: Exposição “Probably Chelsea”

Fig 9: A robot do filme Ex-Machina

A artista e o retratado organizaram a mostra com um título dos mais

apropriados para esta discussão e para o cenário já existente hoje: “A Becoming

Resemblance”, uma semelhança adequada, uma semelhança apropriada, uma semelhança conveniente. O sentido básico de “becoming”, “passar de

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um estado a outro”, é, porém, ainda mais instigante: estado de incompletude entre ser e não-ser, um estado de passagem. É isso. Os retratos em si mesmos

têm por título “Probably Chelsea”, Talvez Chelsea. A passagem da certeza

estável e duradoura para o estado de pura possibilidade, o estado do Talvez, é outro modo de soletrar labilidade. ◊

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IMPERMANÊNCIA

O imaterial, que em certas condições atende também pelo nome de virtual,

está a caminho de ser a tônica. Sob esse aspecto, o contraste com a cultura não

digital, a cultura em seu modo pré-digital, é acentuado: o discurso da rainha

Elizabeth, no dia 20 de junho de 2017, apresentando o programa de governo de Theresa May após a autorização para que a primeira-ministra formasse

nova maioria em seguida às eleições por May convocadas com a finalidade de

fortalecer-se no parlamento e levar a cabo a proposta do Brexit — eleições que formalmente venceu, mas que, por outro lado, perdeu, mesmo conseguindo

numericamente manter o poder, por ver diminuída sua bancada —, como todos os discursos da rainha teve de ser escrito com materiais particulares antes de

divulgado. Pela tradição, esses discursos devem escrever-se com tinta especial sobre papel pergaminhado, um conjunto previsto para durar 500 anos de modo

a assegurar a permanência e legibilidade do texto inscrito (é mais de inscrever

do que de escrever que se trata, neste caso: como numa gravação). Um texto real deve durar, um texto legal tem de permanecer.35 De nenhum suporte de

informação digital se poderá dizer que durará 500 anos, ou 100, nem mesmo

10 — nenhum disquete floppy ou duro, ou CD, ou DVD, ou outro, durará tanto; e mesmo que se preserve fisicamente, é provável que seu conteúdo não mais seja facilmente acessável depois de algum tempo (ou simplesmente não o

será) graças à constante substituição de formatos, softwares e hardwares: o lixo informático continuará acumulando-se inútil e inservível: esse, sim, poderá ser um fenômeno com durabilidade.

O mundo, que era duro e resistente, torna-se complacente, maleável,

impermanente e flexível. A impermanência afeta inúmeros aspectos da vida cotidiana: até há pouco, espaços públicos, com seus obeliscos, estátuas ou obras

de arte pública, definiam-se e construíam-se para um futuro indeterminado

porém supostamente de longa duração. Como o Arco do Triunfo, em Paris, projetado em 1806 e terminado em 1836: em breve terá comemorados seus

35

O ar, naqueles dias com alta teor de umidade, fez com que o pergaminho escrito demorasse a secar e o discurso tardou a ser divulgado; como não se atentou para esse detalhe climático, especulações variadas circularam sobre os motivos políticos que estariam levando a rainha a segurar seu pronunciamento, equivalente “de acordo” real com o resultado das eleições e o comportamento da primeira-ministra...

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duzentos anos de existência, aparentemente pouco para uma cidade que, com

seu nome atual, existe desde o ano 300 d.C.; mas não é pouco. Inspirou-se

em outro arco incomparavelmente mais duradouro, o Arco de Tito, em Roma, onde ainda pode ser visto, erigido em 82 d.C. O imperador Domiciano e sua época — e as eras anteriores e várias posteriores, embora cada vez menos —

tinham uma ideia do futuro, uma vontade de controlar o futuro, de garantir

a permanência não apenas da memória mas, da fisicalidade dos feitos e dos

homens, a começar pelos seus mesmos. Nas eras moderna e contemporânea, no entanto, os feitos humanos aos poucos foram perdendo significação

quando confrontados com a história, mesmo prospectivamente: não era mais necessário esperar pelo desenrolar dos tempos, com seu julgamento, para perceber a desnecessidade da ereção de grandes monumentos públicos. A ausência de justificativas para obeliscos, estátuas equestres e, símbolo dos símbolos, os arcos do triunfo, tornou-se patente: 36 os triunfos revelavam-se

cada vez mais passageiros e havia sempre menos motivos para comemorá-los e, menos ainda, deles orgulhar-se. Hoje, quando é o caso, projeta-se alguma

imagem (mapping) sobre uma superfície preexistente — e a projeção dura alguns minutos, quase nada e dela em seguida nada sobra. De resto, artistas e

artífices, antes escassos, agora multiplicam-se aceleradamente (quando ainda necessários e insubstituíveis pela máquina); e as obras de arte pública não dão

sinais de reunir as condições de aceitabilidade comum para permanecer de

modo indiscutível num mesmo lugar: o gosto se fragmentou numa miríade

de preferências instáveis às quais se atribui a denominação de diversidade, sempre entendida, apressadamente, em sua vertente positiva. E espaços públicos virtuais como os oferecidos por Facebook e Twitter, agora denominados e autodenominados “praças públicas virtuais”, igualmente marcados pela impermanência, representam e promovem de fato a destruição mesma da

ideia de espaço público por meio da ampliação desmedida do espaço privado, no entanto ele próprio eliminado nessa mesma operação porque tornado largamente público, aberto, devassado. Não é a compulsão de olhar o outro, o

36

Na literatura, no romance moderno, assim como no melhor cinema a partir de meados dos anos 50, a cena pertence ao anti-herói, ao derrotado, ao acuado, ao acossado (título em português do filme antológico de Godard, À bout de souffle, 1960, índice da modernidade do cinema), àquele que já não tem mais fôlego para seguir e, menos ainda, para combater, lutar pela vida, enfrentar o sistema. Essa passagem do herói para o anti-herói não é uma questão interna e infundada apenas da história da literatura e do cinema.

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voyeurismo, que agora impera: emerge, possibilitada pela nova tecnologia, a

compulsão para exibir-se ao outro, mostrar ao outro tudo que disser respeito à própria vida, do novo esmalte para unhas e da nova tatuagem ou do colar subcutâneo de Kim Kardashian ao ato sexual com o namorado.37

Impermanência não significa transcendência, que só pode definir-se e pro-

por-se enquanto houver uma duração, ou uma aspiração à duração, à qual se

contraponha. Num mundo impermanente, o Übermensch de Nietzsche — esse

homem, essa humanidade não exatamente acima do homem e de si mesma, mas além de si mesma — não terá motivos para propor-se e configurar-se uma vez que o ser humano estará num processo constante de passagem, mutação, metamorfose; na melhor das hipóteses, em evolução, no mínimo

em transformação. Transformação de corpo e alma, se for possível continuar a insistir no segundo termo do par, ela que começa a surgir consistentemente

como nada muito diverso de um aglomerado de nanobots (talvez, neutrinos) sem lugar físico determinado, eles mesmos movendo-se incessantemente

de um lugar para outro. É possível desde já, e mais ainda dentro em breve, reprogramar a bioquímica individual; os programas genéticos herdados de gerações passadas revelam-se obsoletos e podem ser superados; o corpo é

temporário, como explora a série Altered Carbon, da Netflix, nada mais do

que uma sleeve, na terminologia da série, uma luva, uma capa, um invólucro, um envelope descartável quando necessário (em razão de um acidente, um

ferimento grave, um problema orgânico, simples cansaço com a aparência endossada por algum tempo: o drama, por vezes a tragédia do transgender

será coisa de um passado a lembrar como curiosidade histórica). O corpo é cambiável, receptáculo para uma certa quantidade de memória e um arranjo de neurônios que pode ou não ser interessante continuar mantendo

no interior do novo envelope. E a morte não será mais uma inevitabilidade,

uma inevitável estação de destino, apenas uma opção. Ficção por enquanto, mas talvez a um passo de concretizar-se — de início, pelo menos de início, como privilégio dos ricos. Nesse cenário, a transcendência, enquanto for

37

Artistas como Richard Prince registraram essa tendência desde seu primeiro instante, no início dos anos 90 do século 20, em séries com títulos irônicos e satíricos (Spiritual America e Girlfriends) nas quais se exibia a aspiração à mediocridade comum orientada pela iconologia de massa.

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minimamente defensável,38 assume, ela também, outra forma ou, em todo

caso, define-se por um outro processo: aquele configurado pelo avanço da

ciência e da tecnologia. A transcendência seria então, antes de mais nada, a superação do envelope físico exterior, a superação do corpo ou da biologia, embora seja possível imaginar uma evolução da mente graças ao acúmulo do

conhecimento. Em qualquer hipótese, a transcendência não mais será algo alcançável: seria um processo contínuo, sem estações, a rigor sem epifanias.39 No mundo da impermanência, a transcendência não mais precisaria ser

buscada: ela simplesmente sobreviria. Não se apresentaria nem mesmo como meta a perseguir uma vez que o comando a ela correspondente já estaria

inscrito no processo humano. E talvez Nietzsche teria de rever seu conceito de Übermensch, esse Hiper-homem ou Meta-homem (nunca o Super-homem

das primeiras traduções para outros idiomas), proposto em contraste com a ideia religiosa de abandono deste mundo terreno para buscar o refúgio num

“outro mundo” divino. Isso porque, se o processo desenvolver-se no sentido imaginado por certa cosmologia física, ou por alguns físicos que se dedicam à

cosmologia enquanto estudo das origens e destino ou futuro do universo (cf. Completude), esse Hiper-homem ou Meta-homem — ou pelo menos a mente desse homem — de fato abandonará este mundo terreno para fundir-se no

hiper-mundo do universo. Nesse quadro, o Übermensch seria, mais do que uma questão individual, um estado impessoal, um estado geral da humanidade

— ou de parte dela, por questões econômicas... No prólogo de Assim falou Zaratustra, sede do Übermensch, Nietzsche coloca na boca do profeta uma frase que reaparece com frequência: “O homem é uma corda esticada entre o animal e o Meta-homem — uma corda esticada sobre o abismo.” O abismo sem

dúvida existe e alarga-se e aprofunda-se sem cessar, a ciência e a tecnologia 38

Max More e alguns outros defendem a ideia de que a vida se expandirá indefinidadamente, de modo ordenado, por todo o universo, mediante o desenvolvimento da inteligência humana e da tecnologia. Essa ideia apresenta-se como um princípio e tem um nome: extropia, em oposição a entropia. Esse termo teria sido utilizado pela primeira vez em 1967 numa publicação acadêmica dedicada à criogenia (Cryogenics, IPC Science and Technology Press, vol. 7, 1967) e depois retomada num artigo sobre cibernética (Proceedings of the Fourth International Congress of Cybernetics & Systems: “Current Topics in Cybernetics and Systems”, 1978). Alguns físicos não hesitam em considerar tudo isso como pseudociência. Ray Kurzweil, um integrado da Singularidade, dá endosso e publicidade às ideias de More.

Cf. Completude.

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estão fazendo sua parte para que esse abismo seja, primeiro, aprofundado

e, em seguida, vencido ou, pelo menos, para que a corda esticada aguente tempo suficiente de modo a permitir a travessia do homem de um lado para outro. Com sorte, esse abismo se converterá na concretização dessa outra

dentre tantas parábolas que habitam a reflexão de Nietzsche, a do homem como uma corrente poluída da qual ele só pode escapar transformando-se

em oceano, imenso oceano capaz de receber essas correntes poluídas sem tornar-se impuro ele próprio. A menos, claro, que a ciência e a tecnologia (com

uma ajuda das Humanidades) incumbam-se de garantir o aumento contínuo

da poluição — uma poluição que não será mais apenas ambiental ou espacial

(com suas toneladas de lixo tecnológico flutuando ao redor da Terra) mas, também, existencial... ◊

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AMPLIAÇÃO (AUGMENTATION)

Como em Realidade Ampliada (augmented reality), designada habi-

tualmente pela expressão realidade aumentada (RA). Aumentar significa experimentar mais, não apenas ver mais (essa realidade ampliada pode ser multissensorial), ali onde antes se conhecia uma única realidade (onde

antes se conhecia uma única realidade pela primeira vez ou onde uma única realidade era conhecida reincidente e recorrentemente: o “mundo

dos casos idênticos”, de que falava Nietzsche); significa acrescentar algo ao

antes experimentado, alterar o objeto ou ambiente de observação, ter outra representação desse objeto ou ambiente: “a artista Jenny Holzer desen-

volve uma nova obra que permitirá às pessoas ver projeções de realidade aumentada combinando o real com objetos virtuais em 3-D.”(The New York

Times, 4 junho 2017). A expressão correta não é bem realidade aumentada, o que significa apenas ver ou perceber o mesmo em tamanho maior, mas

realidade ampliada, desdobrada em suas dimensões e possibilidades. O termo a empregar é realidade ampliada se o objetivo for perceber mais

do que a realidade idêntica a si mesma. No laboratório, um microscópio permite ver mais no interior de uma realidade que antes surgia como uma mancha indistinta; na vida, apenas aumentar a realidade pode não levar a uma modificação da realidade. É preciso descartar a dimensão lúdica, a

dimensão “game” da realidade ampliada — e da inteligência artificial como

um todo — e nela buscar o desenvolvimento de um novo modo de considerar o mundo, de mudar o mundo.

Por meio dos dispositivos de RA, diz-se que a informação sobre a realidade

visada, um objeto ou um inteiro ambiente, é interceptada em seu caminho rumo aos sentidos habituais do observador-vivenciador, e parcialmente

substituída ou complementada por outra. Os dispositivos ditos “de cabeça”(head-up displays, head sets), usados por pilotos de aviões de caça desde

os anos 1950 e consistentes num microcomputador, projetam informações adicionais sobre um alvo ou local que o piloto vê em sobreposição ao que está observando “na realidade”, na realidade simples, na realidade unidi-

mensional. A RA obtida por substituição parcial da realidade física pode

manifestar-se com o recurso a óculos ditos smart glasses ou dispositivos

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mais pesados como os HoloLens40 que se prendem à cabeça como grandes

e pesados óculos (por enquanto, em todo caso). E há também as lentes de contato, dotadas de um circuito integrado, e as VRD, virtual retinal display (exibição retinal virtual), capazes de escanear um objeto diretamente para a

retina do observador, usadas em casos de deficiência visual severa (e outros usos militares ocasionais...).

Os usos corretivos e científicos são tantos quantos aqueles meramente

recreacionais, artísticos e outros pouco mencionáveis. A palavra adequada para esse processo é, de fato, interceptação. Interceptação da realidade. A imagem proveniente de um objeto ou ambiente é interceptada antes de atingir o órgão

sensório de alguém e manipulada conforme as possibilidades de programação. Diversamente da realidade virtual, que opera no interior de um ambiente fechado sem ligação direta com a realidade aparente, como ocorre com uma cabina de voo simulado, a realidade ampliada ou aumentada propõe uma

interferência na própria realidade ambiente de modo a alterar-lhe alguma de suas características. A realidade aumentada é a realidade interceptada e manipulada.

Aumentar a realidade não significa necessariamente entendê-la melhor,

ampliar a esfera de compreensão do fenômeno; pelo contrário, é possível que a opacidade se adense. Cf. Labilidade. ◊

40

Do grego holós, significando o todo, o conjunto. Aplicado a “realidade”, esse sufixo é ambicioso, se não arrogante: a realidade ampliada não permite ver, apreender o todo, apenas apreender (e não é pouco) mais do que se consegue sem o uso do aparato apropriado, como essas HoloLens ou “lentes do todo”. Os tempos estão marcados, claramente, pela ambição de alcançar o todo: vejam-se os esforços rumo a uma Teoria do Todo, uma Teoria de Tudo em física.

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DESINTERMEDIAÇÃO

Grande parte, se não tudo, do que se colocava como ponte (como tal,

possivelmente necessário) entre o sujeito e seu objeto, entre o buscado e o obtido, desaparece ou, pelo menos, minimaliza-se: o professor como intermediário entre o aluno e o conhecimento; a biblioteca como intermediária

entre a informação e o consulente; o distribuidor como intermediário entre a

editora e a livraria ou entre o produtor cinematográfico e a sala de exibição; o exibidor cinematográfico, com suas salas de cinema, como intermediário entre o produtor e o espectador; o editor como intermediário entre o autor

e o leitor; o banco como intermediário entre um cliente e aquele de quem pretende adquirir algo; o caixa do banco como intermediário entre o cliente

e seus recursos econômicos disponíveis no banco... A lista é longa, amplia-se indefinidamente.

A desintermediação crescente decorre do desenvolvimento de novos

softwares por um programador humano; mas mesmo esse elo mediador

que é o ser humano, que é um programador, poderá ser substituído, a prazo relativamente curto, por um novo programa desenvolvido por programa

anterior uma vez que se estima inevitável o recurso a um software de alta

inteligência artificial para programar algoritmos cada vez mais complexos e

fora do alcance de uma mente humana (como o algoritmo responsável pela condução autônoma de um veículo, sem intervenção humana: são tantas

as variáveis a partir do momento em que um veículo autônomo põe-se em marcha que só um superalgortimo programado por uma superinteligência

artificial geral poderia, em princípio, dar conta de todas elas; a primeira morte de um ser humano, atropelado por um veículo autônomo, em 18 de março de 2018, pôs em evidência essa complexidade, levando alguns a acreditar que muito tempo se passará antes que todos os carros em circulação sejam

de fato autônomos. Programadores humanos podem, ao cabo de um tempo

longo mesmo se finito, cobrir todos os campos necessários para que o piloto

automático cumpra seu papel, mas esse tempo seria incompatível com as exigências econômicas de produção.)

A desintermediação total, num mundo superpovoado e no conjunto empo-

brecido apesar de sua riqueza tecnológica, será não apenas uma utopia como

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algo incompatível com a condição humana tal como até agora construída: a quase total ausência de mediação significaria a abolição da sociedade atual em seus aspectos relacionais e conviviais e a instauração de uma miríade

de “homens-ilha”, como representado na novela A máquina parou, de E. M. Forster.41 A total ausência de mediação é apenas aparente, no mundo imaginário criado por Forster, uma vez que existe a máquina central a garantir

e organizar a vida naquele universo subterrâneo e a servir de intermediária entre as pessoas e o mundo e entre elas mesmas. A servir de intermediária

entre as pessoas ou o que delas fisicamente, corporalmente, sobrou, já que não precisam se exercitar sequer para levantar um livro que caiu ao chão: o chão ergue-se até elas e lhes devolve o livro à altura da mão... De resto, o que

o processo de desintermediação faz, na novela, é retirar de cena o mediador

humano imediato, e o contato inter-humano, e substitui-lo por um outro, centralizado, único, supostamente maquínico ele mesmo (já que a novela não

sugere a existência de um cérebro humano por trás de tudo). Um HoloMediador. No limite, um mediador totalitário. Com o celular onipresente nas mãos e com Facebook, Twitter etc., não se está muito longe desse cenário.

A desintermediação promove uma imediata reintermediação, ou rearranjo

das intermediações de modo a concentrá-la em alguns poucos mediadores, com tendência para a concentração num único. Esse será um outro tipo de

intermediação. Já se tornou usual, agora, referir-se a um grupo de quatro

companhias eTech como integrando um conglomerado intitulado, pela mídia

e pelos especialistas embora não (ainda) pelas próprias empresas, de GAFA: Google, Apple, Facebook e Amazon. Em julho de 2018, anunciou-se que a Apple tornava-se a primeira companhia tech de capital aberto a ter o valor

de Bolsa de um trilhão de dólares, deixando significativamente para trás as

outras três parceiras de sigla42 — pelo menos até setembro desse mesmo ano,

quando Amazon também alcançou igual patamar: a concentração da riqueza

Ed. Iluminuras, novembro de 2018.

Em janeiro de 2019, relatos da própria Apple mencionam fortes prejuízos registrados ao longo de 2018 como relatórios da queda de vendas de seus celulares: a tecnologia está madura, como se diz, alcançou seu ponto de estabilidade e não há novidades a oferecer ao usuário. Outras eTchs poderão ocupar seu lugar na ponta das maiores. Também o sucesso parece impermanente, hoje. Mas, nada de desespero: só metade da população da Terra está conectada à internet, há outras 2.3 bilhões de pessoas na mira como possíveis consumidoras…

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move-se a uma velocidade exponencial. A concentração crescente de poder

econômico conduz, no limite, a uma concentração dos centros de mediação em único ponto. A construção eventual do primeiro supercomputador dotado de

superinteligência artificial geral poderá eliminar a possibilidade de existência de outro supercomputador equivalente — e a mediação final, concentrada num único ponto, terá se instalado. ◊

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DELEGAÇÃO

Movimento de sinal contrário ao que caracteriza a desintermediação, com-

plementando-a.43 Delegação da capacidade ou direito de agir; como no instituto

da procuração no Direito. Em inglês, designado, no domínio da computação, como proxy-effect. O termo proxy viria do anglo-normando “procuracie”, do latim “procuratio”, por sua vez, forma também derivada do latim “procuro”, “eu administro, eu gestiono”. Na verdade, no século 21 eu não administro mais quase

nada, eu não gestiono quase nada, diretamente. Automóveis começam a dispen-

sar a intervenção do ser humano para dirigirem-se a destinos determinados, como já o fazem caminhões de carga em número maior do que habitualmente

divulgado (nos EUA, onde já são quase comuns). Automóveis e caminhões já são amplamente montados por computadores, sem intervenção humana ou com um mínimo de presença humana; e um computador monta o computador de um

carro que em seguida se dirigirá a si mesmo. Aviões em pouco tempo seguirão o mesmo princípio, se os passageiros o permitirem: as pessoas curiosamente ainda têm mais confiança em outros seres humanos do que nos computado-

res — mesmo se mais de 90% dos acidentes rodoviários devem-se a causas humanas. Livros podem ser escritos por programas de computador a partir de comandos que tratam conjuntos desmesurados de narrativas previamente estocadas. Sistemas de navegação embutidos em telefones celulares indicam o caminho a tomar, não é preciso pensar ou escolher, basta virar à direita e depois

à esquerda como ordena vocalmente o sistema44 — mesmo que o percurso já seja do conhecimento do motorista, que não mais usa seu conhecimento

pessoal nem sua intuição, muito menos sua memória: o ser humano despede-se

de suas faculdades. O algoritmo da Amazon, registrando o livro que alguém compra num dado momento, sugere a esse comprador outros livros que outros compradores também adquiriram junto com aquele mesmo livro. O processo é

análogo na Netflix em relação aos filmes. O ser humano cada vez escolhe e faz menos, diretamente: suas escolhas e ações passam por um algoritmo ao qual delega sua iniciativa.

43

A existência de vetores contrários, que empurram a sociedade para rumos opostos, não é incomum na história. No império das eCulturas, esse jogo de forças vê-se intensificado.

Enfim um sistema verbi-voco-visual, como queria o poeta Haroldo de Campos.

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Mas alguns casos do proxy-effect são desde logo perturbadores, como este

no campo do Direito:

QUANDO UM ALGORITMO AJUDA A MANDAR VOCÊ PARA A PRISÃO

Em 2013, policiais em Wisconsin prenderam um homem dirigindo um carro que havia sido usado em recente tiroteio. O homem, Eric Loomis, declarou-se culpado de tentar fugir a um policial e não contestou que dirigia um veículo sem o consentimento do proprietário. Nenhuma dessas infrações acarreta uma pena de prisão em Wisconsin. Ao sentenciar Eric Loomis, o juiz citou, entre outros fatores, o alto risco de reincidência do acusado, conforme previsto por um programa de computador chamado COMPAS, um algoritmo de avaliação de risco usado pelo estado de Wisconsin. O juiz negou a liberdade condicional e prescreveu uma sentença de onze anos: seis de prisão, mais cinco anos de acompanhamento judicial. Ninguém sabe exatamente como o COMPAS funciona; seu fabricante se recusa a “abrir” o algoritmo usado. Conhece-se apenas a avaliação de risco que o algoritmo cospe para fora e que os juízes podem levar em conta ao proferir uma sentença. Eric Loomis entrou com recurso alegando que o uso de um algoritmo constituía-se em violação de seu direito a um processo individualizado, livre de fatores inadmissíveis como a questão de gênero. A Suprema Corte de Wisconsin rejeitou seu recurso. Em junho, a Suprema Corte dos Estados Unidos recusou-se a considerar seu caso, significando que a maioria dos juízes dessa corte efetivamente tolera o uso do algoritmo. Essa decisão terá efeitos de longo alcance. (Ellora T. Israni para The New York Times, 26 de outubro de 2017.) Um juiz de carne e osso tem o direito e o dever de distribuir justiça, é a

ele que a lei transfere o direito e o dever de estabelecer a sentença conforme

o resultado do processo e do julgamento; mas, como no caso exemplar acima, esse direito e esse dever estão sendo transferidos para um algoritmo cuja

estrutura e vetores encontram-se, como alegado pela empresa que o desenhou, protegidos por uma patente — o que o transforma em caixa-preta.45 Por toda 45

Uma primeira vitória sobre o secretismo dos algoritmos, pelo menos no âmbito do poder público, foi obtida em 4 fevereiro 2019 na França (Le Monde, 6/2/2019). Após uma reforma no acesso à universidade francesa, definida no ano anterior, algoritmos começaram a

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parte os processos judiciais empilham-se (quando físicos) e se acumulam

diante ou atrás dos magistrados sentados em suas poltronas — e a possibi-

lidade de usar um algoritmo para “ler” e “avaliar”, com abismal velocidade, a periculosidade de acusados, revela-se uma tentação incontornável para tribunais e juízes. Mesmo que isso fira o direito do acusado a um julgamento individual e individualizado. A notícia do New York Times não revela se Eric

Loomis tinha uma ficha policial pregressa com outras infrações anotadas; mas aquelas de que foi acusado não preveem penas de prisão naquele

estado americano: 46 o resultado do julgamento, com base na avaliação de sua suposta periculosidade, baseando-se (tudo indica) num cômputo de sua vida

pregressa, mostra-se desproporcional. Portanto, injusto. Com alta margem de probabilidade, esse algoritmo “foi treinado” para levar em conta, em seu

cálculo, indicadores de sexo e raça, nível de renda, educação etc. Estatísticas

foram jogadas em seu interior, como essas que dizem ter um negro, nos EUA, maior risco de reincidir no crime do que um branco, e um homem mais do que uma mulher, e alguém com nível menos elevado de educação do que

outro com escolaridade maior. Todos esses seriam dados em si “inocentes”, meros indicadores formais acumulados e colocados no algoritmo, na boa hipótese sem intenção específica de prejudicar alguém. Mas todos esses dados

ser utilizados pelas comissões de seleção universitárias para definir os candidatos admissíveis. Movida pela União Nacional dos Estudantes de França, a ação visava tornar públicos os algoritmos usados pela Universidade de Guadaloupe. O tribunal competente condenou a universidade à revelação dos “procedimentos algorítmicos usados para o tratamento dos dados dos candidatos”. O governo francês havia até então definido como tendo direito ao “segredo das deliberações” dos parâmetros definidos pelas comissões de seleção. O juiz autor da decisão argumentou que não se tratava de questionar os critérios da comissão, nem a ponderação de cada um deles ou sua hierarquização, mas de tornar públicos para os próprios interessados, e para a sociedade, a identidade em si desses critérios. Em suma, que a universidade revelasse os indicadores embutidos no algoritmo. O governo francês apresentava sua reforma universitária como transparente mas o núcleo do processo de seleção permanecia, ele próprio, um segredo até essa decisão de um tribunal, condizente com um estado que se define como cultural e do bem-estar social, como a França. A expectativa é que essa decisão consolide-se como princípio de comportamento do poder publico pelo menos para os estados civilizados.

46

Os EUA são uma federação autêntica, cada estado-membro tem ampla liberdade em vários temas, ali o princípio federativo não é falso como no Brasil, traço em tudo conveniente ao poder central de Brasília e condizente com a cultura autoritária, paternalista e patrimonialista do país.

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fornecem uma fotografia do passado e nada mais que uma probabilidade: a história efetiva de cada acusado singular deve ser considerada. E outro

aspecto: há por toda parte um princípio básico em Direito a estabelecer

que um juiz julga com base na lei e de acordo com suas convicções pessoais. (Na prática, esse estado americano considera que, para todos os feitos, o algoritmo em questão é uma pessoa: a discussão sobre eventuais distinções

entre inteligência artificial e inteligência humana esfuma-se.) Além disso, réus num processo têm o direito de serem julgados por um semelhante, i.e., por outro ser humano. Mas um algoritmo começa a ser considerado como equivalente a um ser humano, portanto, dotado de convicções pessoais. O

sistema jurídico e jurisdicional atual está longe da perfeição, suas falhas são visíveis; mas ainda é o melhor sistema que a humanidade foi capaz

de inventar até agora. O recurso a um algoritmo constitui-se em quebra de um princípio de segurança jurídica e institucional, em particular — e

acima de tudo — porque nem mesmo o juiz autor da sentença conhece os procedimentos do algoritmo. A aceitação do recurso ao algoritmo pela corte

suprema dos EUA (ou sua indiferença diante da questão), abre no entanto

o caminho para consagrá-lo como ferramenta à disposição dos tribunais. Vários estados americanos já se utilizam de um algoritmo avaliador de

periculosidade e o Colorado tornou-o obrigatório para o sentenciamento. (No

caso de Wisconsin o juiz não era obrigado a levar em conta a “recomendação” do algoritmo; mas levou. Não fazê-lo implicaria em ter de rever, ele mesmo, todo o processo — e é na perspectiva do tempo poupado que o algoritmo

se impõe.) Caso reclame, o sentenciado doravante só ouvirá, como resposta: “A decisão é do computador”, como se isso significasse que não pode haver

erro. Assim como já ouvimos, para casos triviais, o tempo todo, que a culpa é do sistema. E que não há nada a fazer...

A delegação, o proxy-effect intensifica-se e se alastra. Ainda no campo

do Direito, a França votou em setembro de 2018 uma lei apresentada pela

Corte Nacional do Direito de Asilo (CNDA) como instrumento para o alcance

de uma “imigração controlada, um direito de asilo efetivo e uma integração

bem-sucedida” que prevê a possibilidade de vídeo-audiências (visio-audiences, em francês) no exame dos recursos interpostos pelos solicitantes de asilo que

os vissem negados numa primeira instância. A CNDA, instalada em Montreuil, perto de Paris, gera 57.000 decisões por ano, o que a torna a primeira jurisdição

francesa em termos de volume de julgamentos. Essa corte examina todos os

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recursos contra a recusa de asilo decidida pelo Office Français de Protection des Réfugiés et Apatrides (Ofpra), que rejeita cerca de 82% dos pedidos de asilo

recebidos; 9% dessas decisões são reformadas pela CNDA, números razoáveis

e que não demonstram um viés particular contra ou a favor dos demandantes. Em Montreuil, a CNDA mantém 115 vice-presidentes e 20 assistentes para a realização de audiências diárias em outras tantas salas. Os números são

impactantes não apenas na dimensão do país como do sistema judicial francês. A lei das vídeo-audiências, aplicada na região de Lyon, segunda cidade

francesa, implicaria em 202 dias anuais com sessões dessa natureza, à média de doze casos estudados por audiência: os pedidos de quatro departamentos

franceses são para lá encaminhados. A lei das vídeo-audiências justificou-se

com a necessidade de atender a uma quantidade crescente de solicitações e às dificuldades encontradas pelos interessados para dirigir-se às cidades onde

seus casos serão julgados. Para assegurar a realização dessas audiências em

Lyon, a CNDA oficiou ao “barreau” de Lyon, equivalente à Ordem dos Advogados local, solicitando que formulasse a lista dos advogados interessados, que teriam direito a uma retribuição fixa de 500 euros. No entanto, o ofício foi

recusado pela Ordem pela unanimidade de seus membros, com a justificativa, absolutamente perfeita, de que os casos de direito de asilo são de grande complexidade jurídica e geopolítica e, sobretudo, humana. Considera a Ordem que o recurso às vídeo-audiências alteraria profundamente a compreensão

dos casos por parte do juiz encarregado. Demandantes de asilo são, não raro, pessoas em situação de desamparo de todo tipo, inclusive emocional, que dificilmente encontrariam o modo pelo qual expressar-se adequadamente diante de uma câmera colocada dentro de uma sala padrão para essa situação (duas

janelas, uma mesa com três microfones diante de dois grandes monitores de

TV fixados à parede, além de um escâner e cadeiras para o público). A assepsia

do local é evidente. “Essa inovação coloca literalmente um anteparo, uma tela entre o juiz e o refugiado. Há uma perda de humanidade no processo, que fere

o direito de defesa”, diz um advogado especializado no direito dos estrangeiros

integrante da Ordem de Lyon. “Solicitantes de asilo que sofreram traumatismos

têm dificuldade de expressar-se. Pode imaginar como se comportariam diante de uma câmera?” Ouvindo a alegação, um dirigente da CNDA respondeu: “No

cinema, você experimenta emoções muito bem diante da tela.” Difícil dizer até onde vai a má-fé simples ou a ignorância do processo estético baseado

fundamentalmente na “suspensão da descrença”(suspension of desbelief) que ocorre diante de um filme com a subsequente entrega voluntária dos

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espectadores ao que a ficção irá oferecer, praticamente o oposto de uma

audiência judicial sustentada, como ponto de partida, na descrença do direito do demandante (caso contrário, esse direito já lhe teria sido reconhecido na

primeira instância) e na resistência a suas alegações. Nos tribunais, a distribuição da justiça faz-se — pelo menos até hoje — por meio da oralidade dos

debates (i.e., na presencialidade dos interessados que falam, contestam e são contestados). Mas, do outro lado está um argumento em favor da rapidez das decisões, sólido argumento e outro princípio básico do direito: uma justiça que

tarda é uma justiça inexistente. Número alto de pedidos, escassez de recursos humanos e financeiros por parte da justiça — e o impasse está formado. A

Ordem dos Advogados de Lyon propôs, como alternativa, o deslocamento dos magistrados até os locais de atendimento, nos diversos departamentos, numa

inversão do princípio básico da distribuição da justiça, que implica a procura da justiça pelo interessado lesado e não o inverso: a dificuldade ou impos-

sibilidade da medida é palpável. E o impasse está armado. A racionalidade como princípio geral, entendido como economicidade do procedimento em

relação à eficácia buscada ou possível, impera — na justiça como no ensino, onde a nova fórmula do “ensino a distância”, ou EAD, que se apresenta já com

méritos supostamente evidente e incontestáveis quando de fato não passa de

expediente para remediar à impotência da sociedade e ao desejo de lucro fácil e crescente das “instituições de ensino” proliferantes, praga e vergonha de um sistema educacional que já esteve à altura da tarefa. O sistema presencial de ensino — usemos a expressão direta: face a face, cara a cara — que durou estes

vinte e seis séculos desde a Antiguidade grega, rapidamente sai de cena, como começa a sair da cena da justiça numa velocidade que em breve se tornará velocidade de cruzeiro.

As estruturas da sociedade estão em xeque e várias delas começam a dar

sinais de desmoronamento imediato, como a do judiciário (e a do sistema

presidial e a do aparelho policial e a da saúde). A população cresce na proporção inversa da infraestrutura demandada: quanto mais pessoas, mais precária a

infraestrutura — pelo menos, nos países subdesenvolvidos como os da América Latina, sem exceção. Em certos casos, como o do Brasil, o Estado não consegue

atender à demanda da sociedade, o Estado — ou seus governos, sucessivos e múltiplos, não importando a bandeira ideológica que arvorem para uso

externo (suas palavras de ordem, como combate à corrupção, não valem para

os próprios partidos que as formula), aparentemente não tem como atendê-la,

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mesmo quando em princípio tenta fazê-lo.47 Nesse cenário, a desintermedia-

ção crescente (até que encontre a barreira final da intermediação única) é

acompanhada e neutralizada pelo aumento da delegação das iniciativas. A delegação parecerá, a partir de um dado instante, boa o bastante. E tudo indica que a sociedade, como aquela “sociedade” imaginária de A máquina parou, se

contentará com tudo que for bom o bastante — e que é muito pouco, e mesmo nada, mas que talvez baste para a Máquina. ◊

47

É sempre oportuna a releitura de Pierre Clastres, A sociedade contra o Estado (Ed. Cosac Naify).

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DISRUPÇÃO

Ou destruição criativa, como se convencionou entender. Esta figura não

deveria, a rigor, incluir-se na narrativa das culturas computacionais como traço próprio seu e diferenciador dos modos culturais anteriores por estar presente

toda vez que se instaura qualquer nova tecnologia, qualquer novo modo de

relacionamento entre o homem e o mundo. Em outras palavras, toda nova

tecnologia provoca uma fratura e uma alteração, algumas bem profundas, no modo como o homem produz bens e conhecimento, convive com seus

semelhantes, interpreta sua vida e seu lugar no mundo. O desenvolvimento do motor a vapor no início do século 18 e, depois, a invenção do motor a

explosão e combustão interna, derivado da invenção do suíço François Isaac de Rivaz em 1807 — em seguida transformado no motor a dois tempos de

Étienne Lenoir, em 1860, e aperfeiçoado por Daimler e Maybach na forma de motor a quatro tempos — transtornaram radicalmente o quadro do recurso ao cavalo como modo de transporte de pessoas e carga e azeitaram de modo

definitivo a passagem do mundo rural para o universo urbano, com todas as implicações dessa decisiva radical alteração societal. Com sua existência remontando a um período entre 45 e 55 milhões de anos, o cavalo foi vital

para a implantação e florescimento do homem no mundo e subsequente

ampliação de seu território no período anterior e posterior à navegação à vela, outro marco forte. No campo e depois na cidade da era moderna, onde movia

as primeiras formas de transporte coletivo, o cavalo era, mais do que um ser da natureza, uma indústria. Sem o cavalo, pouco podia fazer a humanidade mesmo no início do século 20 e ao longo de suas quatro primeiras décadas, há menos de cem anos. Mesmo com o recurso crescente à motorização, durante a

Segunda Guerra Mundial a Alemanha, com população de setenta milhões de

pessoas, serviu-se de três milhões de cavalos para suas necessidades militares; os principais países envolvidos nesse conflito dispunham, juntos, de cerca

de 40 milhões de cavalos, a metade dos quais pereceu ao longo da guerra (o equivalente a toda a população equina da URSS). O cavalo, primeiro, e depois

o motor a vapor e o motor a explosão mudaram o espaço e o tempo, a relação

do homem com a terra e com a cidade, o modo de produção de bens e do conhecimento, a organização e a vida da família, as fronteiras, a indústria, o comércio, as finanças.

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O termo usado por Karl Marx para caracterizar o processo de mudança

provocada pela tecnologia foi destruição, seguida por um novo processo de

criação de novas formas de produção, relacionamento etc. Na verdade, Marx, no Manifesto, preocupava-se antes com o capitalismo e a burguesia do que com a tecnologia, que no seu esquema de interpretação ele devia considerar como subproduto de uma e outro. Sua insistência na crítica ao capitalismo e à

burguesia impediu-o de constatar que mesmo sob o comunismo supostamente livre da burguesia (em seu tempo não florescia a palavra nomenklatura para

designar aqueles que o poder soviético designava como os mais iguais entre

os iguais) os mesmos processos de destruição e criação iriam manifestar-se: a dinâmica técnica universal, como a denominou André Leroi-Gourhan, percorreria todos os sistemas político-econômicos com igual poder de destruição

e recriação cultural: essa é a missão, por assim dizer, do envelope artificial do

homem que habitualmente recebe o nome de tecnologia. Ao aproximar os dois termos destruição e criação, que surgem isolados em Marx, o economista Josef Schumpeter popularizou, nos anos 50 do século 20, a expressão destruição

criativa que, no entanto, já aparecera no estudo de Werner Sombart, A guerra e o capitalismo, de 1913.

Essa destruição criativa, por ser própria e inseparável do envelope artificial

do homem, manifesta-se, portanto, igualmente, no universo das culturas

computacionais. Uma passagem do Manifesto aplica-se à perfeição ao cenário da eCultura: “A constante revolução na produção, a perturbação ininterrupta

de todas as condições sociais, uma duradoura incerteza e agitação […]” marca também a nova cultura computacional que, sob o aspecto de sua difusão e

popularização de uso, não tem mais de quarenta anos. Esse trecho do Manifesto

encerra-se com o leitmotiv de Marx: essa “constante revolução na produção,” com sua perturbação ininterrupta de todas as condições sociais, “distingue a

era burguesa de todas as anteriores.” Teria sido mais apropriado se ele registrasse que essa perturbação ininterrupta de todas as condições e relações

sociais, esse estado duradouro de incerteza e agitação, deve-se efetivamente à dinâmica técnica universal: a diferença entre a dinâmica observada no

momento histórico que viu a burguesia subir ao poder e aquela das épo-

cas anteriores deve-se apenas, e isso não é pouco, à velocidade do processo. Existe uma tecnologia lenta e outra acelerada; a tecnologia correspondente à ascensão da burguesia mostrou-se muito mais rápida em seus efeitos do

que a tecnologia mais lenta do cavalo, do aqueduto de pedra implantado pelo

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império romano e da pintura a óleo sobre tecido (não mais sobre madeira ou

vidro ou alvenaria) a partir do século 14 na Itália. A extensão e profundidade das mudanças e perturbações variam conforme o período; mas a qualidade dessas mudanças é decisiva em qualquer caso. O fato técnico, como o descreve Leroi-Gourhan, altera não só as relações de produção e as societais como

também a compreensão que o homem tem do mundo natural. Quando um aqueduto traz água de longe, vencendo desníveis por meio da técnica de

construção em arco, e a disponibiliza numa fonte pública no centro da cidade, a relação entre o homem e uma água, que antes devia ser buscada num rio ou pelo homem extraída de um poço, altera-se radicalmente: a água praticamente

perde sua condição de coisa natural para apresentar-se como um produto artificial e impessoal que surge como num passe de mágica no qual o homem

não mais precisa pensar e a respeito do qual nada pode fazer: um outro elo entre homem e natureza foi então rompido. Processo análogo deu-se quando

surgiu a luz elétrica, iluminando um ambiente ao toque de um botão; e outro, com a água encanada acessível dentro da casa: luz elétrica e água encanada

passaram a ter a qualidade de um dado, de algo que está aí por si, o que está

longe de ser uma evidência (como o homem dentro em breve perceberá). A transformação operada no imaginário humano, não só em suas condições

materiais de vida, é radical assim como é radical, e decisiva, a alienação da consciência humana em relação ao fato natural da água correndo na terra e ao fogo que ilumina e aquece.

O homem com sua sede abundantemente saciada, com seu abrigo ilu-

minado artificialmente, sem ter mais de correr atrás de alimento e aquecido

por um sistema de calefação, já não é mais um ser natural: o homem e sua tecnologia já começaram a fundir-se, a humanidade já ensaia seus primeiros passos rumo à forma de uma grande máquina integradora do que antes foi o orgânico de um lado e o maquínico, de outro.

E a continuação daquela passagem de Marx segue apropriada quando o

objeto de reflexão é a eCultura: “Todas as relações que se apresentavam fixas e

congeladas, com seu séquito de arcaicos e veneráveis preconceitos e opiniões, são varridas para fora de cena e todas as novas relações tornam-se antiquadas

antes que possam ossificar-se.” A sensação, ao ler esse trecho do Manifesto, é que Marx tem à sua frente o mundo da eCultura, não o mundo europeu da

metade do século 19. As transformações podiam mostrar-se, para Marx, rápidas

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e convulsionadas embora se perceba hoje, com uma perspectiva histórica mais ampla, que não tinham como, naquele momento, ser tão radicais quanto ele

pintava: exagerar nas tintas era necessário aos objetivos propagandísticos do

Manifesto — embora, claro, tudo pareça ser mais rápido no presente do que era antes seja qual for a localização desse presente na cronologia do mundo... E Marx conclui a passagem: “Tudo que estava assentado e consolidado evaporou-se”.

A disfunção trazida pela eCultura mostra-se aceleradíssima quando com-

parada à provocada pela cultura do papel, da pólvora, da imprensa, do motor

a vapor, do telefone, da luz elétrica. Essa disrupção é, mesmo, exponencial. O que promovem Facebook, Twitter, Airbnb, Uber é uma destruição que, por

enquanto, não mostra por enquanto com nitidez, qual possa ser a criação no

mesmo processo gerada, outro modo de dizer que a destruição da tecnologia atual surge como mais intensa do que em períodos anteriores. Destruição

sem consequente criação ou recriação é pura ruína. Dirigir um táxi tem sido, por toda parte, um recurso alternativo aos que não dispõem de uma profissão

minimamente especializada ou que a perderam; quando essa alternativa é corroída por um Uber que mantém seus motoristas no estado mínimo de

sobrevivência para deles extrair a máxima mais valia, ao mesmo tempo que destrói o sistema estabelecido dos táxis regulares e regulados; e quando se combina essa figura da disrupção com a da concentração exacerbada do poder

própria da novíssima tecnologia computacional, o quadro mostra-se com as tintas opostas àquelas manipuladas por Marx ao observar que a burguesia

era capaz de arrastar mesmo as nações “mais bárbaras” (sic) para a civilização. Parece agora que a dinâmica tecnológica universal operada por alguns poucos conglomerados hiperconcentrados tem condições de arrastar para a barbárie mesmo algumas nações (menos ou mais) civilizadas.

A disrupção tem um sinal negativo acoplado a um sinal positivo, polos

distintos da destruição e da criação permanentemente em tensão. Nem todas as inovações tecnológicas da eCultura arrastam a civilização para a

barbárie: o drone pode ser instrumento de agressão, na guerra, e instrumento

facilitador do desenvolvimento (na agricultura, na proteção do meio ambiente, no policiamento — mesmo se com ele surgem novas questões relativas ao direito à privacidade — e em tantos campos). Num caso e no outro, a razão parece estar com Marx quando menciona a insurreição da burguesia contra o

Estado: Airbnb, Uber expressam sem ambiguidades seu programa de disrupção

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intencional das normas impostas pelo Estado, sua intenção de contornar o Estado e eliminá-lo. Essa revolução contra o Estado, no entanto, nada mos-

tra de criativo ou utópico. Assim como, na descrição de Marx, as relações feudais de propriedade tinham de ser destruídas e foram destruídas para

que a burguesia pudesse desenvolver-se, a nova burguesia precisa corroer o

Estado vigilante para afirmar-se. Se o Estado previsto e desejado por Marx no

Manifesto — abolição da propriedade da terra; do direito à herança; o confisco de todo tipo de propriedade dos que fugirem do país depois da revolução; o confisco da propriedade de todos os opositores do regime, como fez Cuba e como promete fazer todo novo ditador; a centralização do crédito e das

finanças; dos meios de comunicação e de transporte; da produção toda ela; o fim do ensino doméstico substituído pela obrigatoriedade do ensino público

nas mãos do Estado — surge como o grande Leviatã do qual a humanidade

tenta reiteradamente se libertar na modernidade, Leviatã que a ideia de um Estado (mesmo se apenas moderador) corroído pelos únicos aparentemente hoje em condições de contestá-lo, as companhias tech, tampouco se propõe como forma contemporânea de utopia minimamente desejável e aceitável.

Há um motivo maior para a figura da disrupção ocupar um lugar nesta

narrativa sobre os significados da eCultura, algo que não apareceu no interior das revoluções tecnológicas anteriores embora de algum modo tenha sido

sempre buscado: a superação da morte ou seu enquadramento. As culturas

computacionais não têm (ainda) inscrita em seu roteiro a exclusão da morte

ou a oferta da imortalidade para o homem. Mas podem acenar desde já com o recuo da morte para um horizonte mais longínquo do que aquele hoje sempre

mais comum, o dos cem anos vividos (embora em condições longe de dignas pelo menos em sua fração final). A tecnologia promove, neste século 21 já

bem entrado, uma revolução com a qual Marx não poderia sonhar, ele que se

interessava antes pela sorte do coletivo social, e suas condições de existência, do que pela exploração das possibilidades de vitória da vida sobre a morte. A

religião levou muito a sério, desde o princípio, a utopia máxima do homem — a superação da morte, a entrada do homem no Olimpo antes reservado aos

deuses — sem no entanto contar com o mínimo de condições para propor-lhe outra coisa além da mera crença de que, depois da vida, pelo menos a alma do

homem sobreviveria em algum paraíso caso tivesse seguido certas normas e

práticas (de resto frequentemente descartadas por seus mesmos apóstolos e

profetas). Agora, porém, a tecnologia totalmente humana, sem a ajuda dos

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deuses, aponta ao homem o caminho de uma vida bem mais longa com a qual ele jamais pôde sonhar. Não está em jogo ainda a imortalidade, um acidente

sempre poderá truncar a história de vida de qualquer um. Mas pelo menos um dos sonhos dos biologistas-cosmologistas-socialistas da época da revolução

de 1917 poderá concretizar-se: assegurar uma juventude mais longa, vencer a

velhice. Dois outros sonhos ou obsessões desse grupo — entre os quais figurava Alexander Bogdanov, amigo próximo de Lenin (cf. Virtualidade) —, a imortali-

dade e a ressurreição dos mortos para que também eles se beneficiassem dos

sucessos do socialismo, não estão incluídos no cenário da tecnologia atual. Graças à manipulação das células-tronco, às intervenções in utero, ao corte e

recorte dos genes (via CRISP/Cas9,48 engenharia genética de edição) de modo

a eliminar doenças ou desvantagens em seres humanos e graças, em suma, à

informática, não está longe o momento em que alguém só não viverá mais se não quiser — ou não puder pagar pelo extended play, como se diz nos games

eletrônicos quando um jogador acumula créditos ou recursos vários por meio

de sua perícia em passar de um nível a outro (quando não hábil o bastante, simplesmente os compra). Um tempo extra no jogo da vida: dificilmente poderá haver, para o ser humano, alteração mais significativa e de mais amplo alcance

do que essa, a justificar que se use o termo disrupção no lugar de destruição: a tecnologia de ponta não vai destruir a morte, porém, inquestionavelmente

provocará uma profunda e decisiva disrupção nas relações do homem com sua

vida, a natureza (se natureza continuar havendo) e os outros seres humanos.

Essa disrupção dará novo sentido ao aforismo de Francis Bichat (1771-1802), anatomista, patologista e fundador da histologia: “Vida é o conjunto de funções que resistem à morte”. Quando a formulou, sua observação pretendia dizer

que a morte era o dado de partida e a dominante, cabendo à vida permanecer constantemente em luta contras os fatores externos que buscam destruí-la

— outro modo de dizer que tão logo o homem nasce, dá início a seu processo rumo à morte que, na melhor das hipóteses, poderá apenas retardar (muito

pouco ao tempo de Bichat) graças à ciência e a acontecimentos fortuitos, aquilo a que se dá o nome de sorte. No século 21, seu aforismo ganha outro peso: a vida realmente tem hoje recursos suficientes não só para resistir indefinida-

mente à morte como, e talvez no limite, vencê-la — quando e se ocorrer essa

singularidade que é a fusão entre o orgânico (o homem) e o maquínico (o computador), com a destruição de um e outro. Se a religião deu ao homem a

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Acrônimo para clustered regular interspaced short palindromic repeats.

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crença na e a esperança da imortalidade da alma, a ciência desenha há algum tempo o caminho para a vida estendida do corpo com a alma correspondente a ele bem acoplada, viva e atenta ao que se passa aqui mesmo na Terra. Há

uma indefinição, por enquanto, a respeito do que será alcançado primeiro: se o jogo estendido do corpo ou se o jogo estendido da mente, outra palavra para alma. Físicos e escritores consideram a possibilidade do download da

mente, em seguida uploaded para um novo corpo, um novo envelope caso o original tenha-se estragado ou destruído. O grau de especulação é alto quanto

a qualquer das possibilidades. Mas mantém-se como possibilidade: o físico Kip Thorne, prêmio Nobel e consultor do filme Interestelar, diria que sugerir

essa possibilidade resulta de um educated guess, uma suposição que, não sendo “ciência firme”, é bem orientada e fundamentada. Tudo que pode ser representado, pode ser digitalizado; tudo que for fisicamente possível pode ser

renderizado: como corpo e consciência são processos físico-químicos, a porta

para a utopia está entreaberta. Sociólogos e filósofos, que fazem carga cerrada contra o que entendem ser o hiperindividualismo da cultura ocidental, insistem

em suas críticas ao que chamam de “mística da tecnologia onipresente”, um

comportamento supostamente em posição de desvantagem filosófica e moral

diante de um modo oriental de ver e aceitar a morte, que o Ocidente insistiria em negar. Régis Debray, explicando sua perspectiva quanto ao “problema da morte”, insiste em que “tudo que nasce merece perecer.”49 Talvez ele esteja ainda

sob o impacto da leitura que, ainda jovem, deve ter feito de Tous les hommes sont mortels, de Simone de Beauvoir, romance sobre um homem que não podia e não

conseguia morrer, por isso condenado a ver morrerem à sua volta todos seus

amigos e filhos e amantes — enredo existencialista como poucos e sob cuja luz

faz sentido o que Debray diz sobre “merecer morrer” (ele que continua dizendo coisas erradas no momento equivocado, como quando apoiava a guerrilha de Che Guevara na Bolívia e que, embora indiretamente, contribuiu para a sua

captura). O ocidental, em todo caso a ciência ocidental, tanto olha a morte de frente que espera vencê-la em vez de a ela se resignar — dando razão a

Leroi-Gourhan em sua tese sobre as tendências técnicas como função de uma

convergência entre tecnicidade, etnicidade e meio.50 A ciência ocidental não

Régis Debray e Edgar Morin, “On n’arrive pas encore à regarder la mort en face”, Le Monde, 2-3 setembro 2018.

André Leroi-Gourhan, L’homme et la matière (Paris, Ed. Albin Michel, 1943) e Milieu et techniques (Paris, Ed. Albin Michel, 1945).

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se outorgou (ainda) a missão de suprimir a morte e contornar a finitude; este

universo em cujo espaço a Terra gira terá um fim, embora posterior ao da Terra, e para isso nem a física, nem a cosmologia preveem conserto. Mas promover a

disrupção no sistema vida-morte-sociedade é uma possibilidade teórica nada ficcional. Provavelmente a mais relevante e decisiva para o ser humano. Outra

vez, pelo menos de início — mas por um bom tempo — à disposição dos que puderem pagar... ◊

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CONECTIVIDADE

Todos estão ligados a todos, tudo está ligado a tudo, uma coisa depende da

outra, uma coisa provoca outra. Mais do que em qualquer outro momento da

história da humanidade, a distância foi encurtada ou abolida para quase todos os efeitos, em particular desde que, em vez de irem as pessoas até as coisas

(visitar as ruínas gregas, o Arco do Triunfo), as coisas começaram a ser trazidas até as pessoas51 (pela internet, pela realidade virtual). Uma decisiva inversão de

sentido; uma decisiva peripécia ou inversão da narrativa, conforme a poética de

Aristóteles: o viajante não mais vai até o lugar em busca de uma experiência, o lugar vem ao sedentário em busca de informação. A ideia de rede, de malha, encontra concretude real — e a rede é de tal natureza que toda intervenção

numa parte dela é uma intervenção em toda ela, intervenção em cadeia como

num ecossistema. Estar conectado é o novo imperativo — e as pessoas estão de fato conectadas a muitas outras, em tempo real quase sempre ou logo

em seguida. De todo modo, estão conectadas — pelo menos virtualmente. A

possibilidade de entrar em contato com informações, eventos ou pessoas não intencionalmente buscadas é grande, a aleatoriedade insere-se no domínio de uma comunicação que, antes, ligava apenas duas pontas previamente acertadas quanto à possibilidade de entrarem em mútuo contato.

Semanas para uma carta ou uma foto cruzar o oceano, meses para um livro

ir de um continente a outro, décadas para um movimento de arte ser conhecido

no outro lado da Terra: a geração Z, nascida no século 21, não sabe o que é isso. A geração Z,52 como também a Y, ou do Milênio, (“the Millenials”, nascidos entre

1980 e 1990), é a primeira geração a ter, por única experiência da vida, a cultura computacional. A Y não esteve muito longe disso: aos dez anos de idade, uma

criança, mesmo em país subdesenvolvido, já tinha contato pelo menos com o computador de bolso que é o celular. A do Milênio, porém, nasceu já com o tablet nas mãos: crianças, pouco mais do que bebês (na perspectiva da geração

dos baby boomers, nascidos entre o final da II Guerra e meados dos anos 80),

E. M. Forster, A máquina parou; São Paulo, Iluminuras, 2018.

Premonição em escala planetária? Não há mais letras depois de Z: não haverá outra geração depois dessa, ninguém a alcançar os trinta anos em 2030 ou os 35 em 2035 ou os 50 em 2050 porque o Terra terá ficado igual a Marte?

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com dois anos e algo, mesmo sem saber ler e escrever são capazes de navegar

pelos sites num tablet e encontrar o que buscam (e ver o que não buscam).

A França cogita, neste momento, acolher, no maternal das escolas públicas, crianças a partir dos três anos de idade: desenvolvem-se mais cedo, a imersão na cultura computacional será total para elas tanto quanto sua conectividade com os outros e com o mundo, em particular com o mundo virtual. A cultura do papel e da escrita à mão organizava o pensamento de um modo que passou

por considerável disrupção com o surgimento dos tipos móveis de imprensa e, depois, da máquina de escrever mecânica e depois elétrica. Nesses três

momentos, porém, a linha de força central foi a linearidade e a sucessividade, pelo menos para os que circulavam no ambiente da palavra: uma palavra, um

pensamento impresso vem depois de outro, na mesma linha, no mesmo plano. Com o advento do computador, além da simultaneidade, a primeira mudança sensível no modo de pensar foi evidenciada pela possibilidade de alterar

indefinidamente a palavra a usar numa frase, a posição de uma frase numa

página, o lugar de uma página no livro. Antes, e isso se vê nos manuscritos de

romances e ensaios guardados nas bibliotecas, alterações e correções também eram frequentes: mas não com a intensidade e a radicalidade verificadas

nas páginas virtuais de um arquivo digital de texto. De passagem, talvez

não mais seja possível refazer a gênese de um romance digitalizado — não, em todo caso, sem uma exaustiva comparação das diferentes versões desses

arquivos caso o escritor os tenha guardado todos num suporte qualquer e esse suporte permaneça. O pensamento da frase, da página e do livro relaxou-se sabendo que qualquer alteração será possível sem grandes investimentos de

tempo e organização? Ou o modo de pensar uma frase, uma página e um livro

alterou-se? Antes, um escritor tinha à sua frente, como fontes de consulta, uns poucos livros abertos, tantos quantos pudessem caber na superfície física da

mesa ocupada, quase sempre limitada em casa ou na biblioteca pública. Hoje, dezenas de páginas permanecem abertas na tela do computador à frente do escritor, disponíveis com um rápido clique no mouse. O modo de trabalhar

do escritor começa a aproximar-se daquele adotado pelos artistas visuais há séculos e milênios, um modo distante da linearidade própria do pensamento verbal e da execução literária. O hipertexto pertence a e provoca um modo

de relação marcado pela simultaneidade: tabelas, imagens, sons saltam para uma tela dividida em setores: um clique numa palavra ou num ícone abre um

canal de comunicação com outro texto relacionado direta ou indiretamente com o que interessa ao texto em construção: o pensamento agora dispõe

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de janelas que se abrem umas dentro das outras, em complementação ou suplementação. Usado no sentido matemático do termo (como o hipercubo e

o hiperespaço), o hipertexto é o conceito básico da www, a World Wide Web: a expressão aponta direta e rapidamente para o que está em jogo, i.e., uma

rede com a extensão do mundo, uma relação com a amplitude do mundo, uma conectividade geral do tamanho do planeta. A geração Y, ou do Milênio, já surgiu no interior desse cenário, a Z a ele pertence como seu meio natural. A não linearidade, a simultaneidade, a sobreposição, a navegação entre sites

numa fração de segundo: o modo de pensar e relacionar-se com o mundo é inteiramente outro; a consciência de que a mente está agora diante de um

processo de semiose indefinida e a rigor infinita, no qual um ponto de partida conduz, necessariamente e de imediato, a n outros — e não só imaginaria-

mente, virtualmente, mas fisicamente, na tela de um computador — altera de modo sensível a relação entre mente e mundo. De início, este esquema Sentido (St) St

O

S

Objeto (O)      Signo (S)

representa um processo linear de formação do sentido: a um objeto O (ou referente) atribui-se um signo S que remete a um sentido St (e a um

posterior significado, ou o sentido atualizado num sujeito, e a uma sucessiva

significação, ou soma de significados para um ou mais sujeitos). S pode em

seguida apontar para um O2 que propõe um S2 apontando para um St2 e assim

por diante em todas as direções, não apenas no plano único deste desenho

em duas dimensões, mas numa configuração a pelo menos quatro dimensões

que não são sucessivas mas paralelas, num processo de semiose infinita até que se alcance um eventual Ponto Ômega (cf. Completude).

St

Fig. 10

O

O2

S

S2

St2

St

O3

O

S3

O2

S

St3

S2

O3

St2

O4

S3

St4

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Operar com essa simultaneidade de múltiplas conexões entre signo,

objeto e significado, em todas as possíveis direções e níveis e dimensões, num processo que conduz ao Interpretante, ou significação final de um signo + objeto, é algo que provavelmente será exponencialmente mais acessível à geração Z e subsequentes do que a qualquer das anteriores.

Esta geração Z surge integrada a um novo modo cultural que as anteriores

não conheceram, em situação de conectividade total ou, em todo caso, a mais

ampla possível. A simbiose entre mente e computador encontra aqui sua primeira condição de viabilidade, na hipótese de uma fusão futura entre o

orgânico e o maquínico53 gerando um novo formato de ser humano ou de

humanomáquina como sugerem alguns integrados da eCultura, a exemplo de Ray Kurzweil, e mesmo a outros algo mais céticos como Stephen Hawking — para quem a evolução do ser humano nas condições de Darwin não fornecerá à humanidade a velocidade necessária para que escape às várias tragédias que para ela se anunciam… ◊

53

Cf. menção ao caso de Jan Scheuermann e DERPA no item Inconcluso.

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EDITABILIDADE

Na eCultura, tudo pode ser editado, i.e., montado, agenciado e desmontado,

recortado e reencadeado e remontado — de um filme a um texto passando por uma trilha sonora e pelo código genético humano. Um dos loci da criatividade sempre foi a edição (montagem), em particular na modernidade e

após a invenção dos tipos móveis de impressão e, de modo mais acentuado, com a fotografia e o cinema; agora, mais ainda. Como consequência da possibilidade ampliada de edição, uma obra não necessita ter fim, podendo ser constantemente ampliada, reduzida, complementada, expandida, sem gastos adicionais com os matérias, os suportes. A linguagem verbal é uma

constante ocasião para a edição: as vinte e seis letras do alfabeto da língua

portuguesa (as mesmas do inglês, as mesmas do francês...) combinam-se e recombinam-se incessantemente para dar origem a todos os significados lógicos e ilógicos possíveis. Com o computador e seu arquivo digital e sua

pasta digital, tudo pode ser editado com rapidez e economia de tempo e espaço.

Uma moviola para cinema, onde se montavam os filmes até recentemente, é hoje substituída por um pequeno computador laptop capaz também de verificar, sincronizar e alterar tons e cores da imagem. A edição — antes campo

reservado a especialistas e, mais, de quem podia ter acesso econômico a uma moviola, grande como uma grande mesa — coloca-se ao alcance dos que têm

um computador simples e acesso a um programa de edição. A possibilidade de corrigir, emendar, ampliar, encurtar é um convite à prática recorrente da

edição. Um manuscrito ou uma página datilografada era pouco receptível à edição, um poema ou romance saía quase num formato final no primeiro instante; uma página digitalizada pode agora ser alterada inúmeras vezes em

seguida, o poema ou romance nunca terão forma definitiva. Ganho ou perda?

Numa alternativa, a mente flexibilizou-se, nenhuma forma está definida de uma vez para sempre, a escolha ampliou-se; em outra leitura, a mente tornou-se incerta e insegura, busca sempre rearranjar-se para alcançar ao

longo do tempo o que considera melhor e era antes obtido muito mais cedo. Em genética, CRISPR/Cas9 é a tecnologia de edição dos genes por meio de uma técnica de cortar & colar: uma molécula encontra uma sequência do código DNA, define-a e procede a um corte preciso no lugar pretendido, a

partir daí tornando-se possível “desligar” um gene ou substituí-lo por outro ou por outras versões do gene retirado. Também o ser humano pode agora ser

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editado. E nada diz que exista um limite para essa reconfiguração. E ninguém diz que ela não se fará.54

Os meios sintéticos, ou a mídia sintética como ficou rebaixadamente tradu-

zida essa expressão, propõem-se como largamente favoráveis à manipulação

de uma imagem (visual, sonora, gustativa etc.). No final de 2017, uma postagem anônima na internet ofereceu um programa permitindo a todo interessado produzir vídeos nos quais uma rede neural substitui o rosto de uma pessoa por

outra ao mesmo tempo que mantém, de modo consistente, as expressões da

nova face adaptadas à anterior. No mesmo momento, um grupo de pesquisa

da Universidade de Washington publicou um artigo sobre seus estudos e resultados na criação de vídeos em que o ex-presidente Barack Obama é visto e ouvido dizendo palavras que nunca pronunciou e que foram de fato ditas por

outros.55 O resultado é perfeito, vê-se e ouve-se Obama, com sua voz própria,

dizer coisas que, com toda evidência, nunca diria — por exemplo, referir-se a

D. Trump com palavras de baixo calão. Basicamente, uma rede neural treinada durante horas e horas (machine learning) a partir de discursos de Obama

consegue sincronizar áudio e conformação dos lábios do ex-presidente de modo a permitir que ele “fale” coisas que nunca disse do modo mais verossímil,

54

O geneticista chinês He Jiankui anunciou, a 26 de novembro deste 2018, ter obtido sucesso na alteração de um gene de um embrião antes de implantá-lo no útero da mãe. Seu objetivo seria produzir (é a única palavra cabível) bebês resistentes à infecção por HIV. Até o momento He Jiunkui não publicou nenhum artigo a respeito em algum periódico reconhecido e não apresentou provas do que alega. Alguns especialistas da área, conhecedores de seus trabalhos prévios não descartam que o tenha feito, ao passo que outros dizem que He Jiankui está apenas lançando um duradouro descrédito sobre a ciência chinesa. Os EUA e vários outros países consideram ilegal a alteração de genes de embriões humanos, mas essa operação não o é na China. De todo modo, como Stephen Hawking e outros observaram, mesmo ilegal alguém um dia a fará. Ou a faria. E mesmo se o sucesso de He Jiankui seja falso, o fato de tê-lo anunciado na véspera da de uma conferência intitulada exatamente Segunda Cúpula Internacional sobre a Edição de Genes, em Hong Kong, é sinal suficiente de que essa operação logo será uma realidade concreta, com consequências decisivas para a definição do ser humano em futuro a curto prazo. (Em fevereiro de 2019, as autoridades chinesas abriram uma investigação sobre as práticas de He Jiankui, consideradas não autorizadas. Duas crianças cujo código genético foi por ele manipulado, já haviam nascido e uma terceira estaria por nascer. Todas serão submetidas a acompanhamento científico por longo tempo.)

https://grail.cs.washington.edu/projects/AudioToObama/siggraph17_obama.pdf.

55

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dado que a voz é reconhecidamente dele. Photoshop é uma ferramenta comum, hoje; de início, esse software exigia uma competência razoável para gerar os resultados buscados, mas hoje a tecnologia tornou-se amigável ou, como já

se diz, democratizou-se. Não apenas uma boca surge como dizendo coisas que nunca diria, também um corpo pode aparecer realizando ações e gestos por

ele nunca levados a cabo: a técnica necessária, denominada pose detection, consiste em derivar, da foto em 2D de uma pessoa, outras poses quaisquer

observáveis num ambiente de 3D real. Com o uploading crescente de fotos e vídeos para a rede, feito milhões de vezes por dia (em junho de 2018, 55,1% da população do planeta — 7,6 bilhões de pessoas — estaria conectada à

internet),56 a matéria-prima disponível no Facebook, WhatsApp, Instagram

56

O verbo no condicional indica incerteza quanto a estes e a todos os dados relativos à presença e uso da internet. Esses 55,1% do planeta que seriam clientes da internet — e que dão, mesmo descontada a margem de erro e fraude, uma ideia da enormidade do mercado — provêm da consultoria Nielsen Online, da International Telecommunications Union e da GfK (Growth from Knowledge, uma consultoria de marketing), tendo sido consolidados pela Internet World Statistics. As fontes parecem aceitáveis, porém, as dúvidas persistem: numa “cúpula”da Internet em novembro de 2018, o próprio fundador da internet, Tim Berners-Lee, dizia que esse número seria alcançado “apenas” em março de 2019. Em 26 de dezembro de 2018, um artigo da New York Magazine indagava How Much of the Internet Is Fake? Turns Out, a Lot of It, Actually. (“Quanto da Internet é fake? Parece que muito, de fato”). O artigo baseia-se na condenação, pelo Departamento de Justiça dos EUA, de oito pessoas acusadas de fraude na manipulação de dados de uso da internet mediante o recurso, entre outros, as “fazendas de clics”, grandes grupos de robots programados com o objetivo de simular o acesso a sites e gerar um falso tráfico de usuários. De 10% a 30% dos investimentos publicitários na internet estariam sendo vítimas de diferentes modalidades de fraude, como essa. A preocupação dos anunciantes diz respeito às grandes corporações da área, Google (dona do YouTube) e Facebook (que comprou o WhatsApp). Em 2016 — antes portanto do vendaval de escândalos que se abateu sobre a empresa a partir da venda de dados de seus usuários para terceiros que os utilizaram como modo de dirigir as eleições presidenciais nos EUA —, e o Facebook teve de reconhecer que havia superestimado em 60% a 80% o tempo passado pelos usuários consumindo vídeos em sua plataforma (Le Monde, 4 de janeiro de 2018: o jornal designa essa atividade com o termo, apropriado, de visionage). Em outubro de 2018, um grupo de pequenos anunciantes entrou com processo judicial contra a Facebook alegando que essa superestimação alcançaria, na verdade, um índice entre 150% e 900% e que a corporação sabia disso desde 2015. Facebook nega as acusações, mas desde novembro de 2018 inscreveu-se para ter sua audiência controlada por um organismo americano de certificação de circulação, a exemplo do que já

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para os interessados por essa técnica é mais que abundante.57 No início da

internet, todo esse material era escasso, dando origem ao que se designou

como computadores e programadores famintos por dados (data-starved). Essa

foi a Era da Escassez da computação e da eCultura, em contraposição à de hoje

quando dados de todos os tipos estão fácil e gratuitamente disponíveis na

Web — dados sobre “o esgoto, a sujeira, a complexidade do mundo”, como diz

um pesquisador desse campo, colocados na rede sem muita reflexão e sem segundas intenções por pessoas com as mais diversas razões para fazê-lo, a

maioria decentes e banais registros da vida cotidiana (que tampouco, por isso serem, mereciam ser espalhados pelo ar). O site ImageNet, alimentado por

cientistas da computação de Stanford e Princeton, reuniu catorze milhões de

fotos de lugares e objetos comuns, a maioria fotos casuais postadas naqueles

e em outros sites como Ficar e eBay. Uma rede neural mostrou-se capaz de catalogar automaticamente as imagens do ImageNet transformando-as em

motor ímpar para o atual boom da manipulação imagética. Tudo que parecia

banal — pessoas abrindo cartas e pacotes, enxugando os cabelos com uma toalha, escovando os dentes: as imagens que as pessoas decidem e aceitam

colocar diariamente na internet não parecem limitadas por nenhuma reflexão maior — tornou possível um novo patamar para esse “realismo sintético” que

acontece há muito tempo com os jornais. Como sempre, e segundo um lema que fontes internas da corporação dizem ser bem conhecido, primeiro Facebook faz o que quer e, depois, se der errado, pede desculpas. Resta saber se aqueles órgãos de controle estão tecnológica e financeiramente capacitados para medir a internet. O artigo da New York Magazine relata que, há anos, pesquisas indicam que menos de 60% do tráfego na web é feito por seres humanos, vindo o restante de bots programados para simular esse acesso. Em 2013, metade do tráfego no YouTube provinha de bots passando-se por humanos, com uma sofisticação que fez pensar na possibilidade de logo se tomar o número de bots como sendo o de acessos humanos e vice-versa… Pacotes de “views” (30 segundos de um vídeo supostamente observado equivalem a um “view”), vendidos por preços a partir de US$ 15 cada 5.000 unidades, podem estar sendo “vistos” apenas por robots. A conclusão da New York Magazine é clara: na internet, a medição (de audiência) é fake, as pessoas (que veem internet) são fake, o conteúdo é fake, o business como um todo é fake e o controle governamental, fake. O que faz com que a primeira disrupção gerada pela eCultura seja de fato a dos valores éticos.

57

Não são apenas as pessoas, individualmente — as pessoas físicas, como se diz — que alimentam essa besta feroz em que se transformou a “rede social”: também os governos, e os governantes, contribuem aceleradamente para o engrossamento desse caudal em nome do “contato direto com o povo”. Cf. Anonimia.

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levou a vídeos como esses do projeto Synthesizin Obama. Depois do realismo

socialista e do infinitamente mais nobre realismo italiano, agora o realismo sintético. Um outro pesquisador, às voltas com o problema de reconstituir

numa foto um certo trecho das margens de um rio em Lyon, não encontrou muita dificuldade: projetou um programa, ou algoritmo, capaz de varrer Flickr

à procura de fotos que pudessem servir, a maioria tiradas por pessoas que

passaram por locais semelhantes em viagens de naturezas as mais variadas. Esse pesquisador, confrontado com uma montanha de imagens que poderiam

servir, chegou a uma conclusão sugestiva: “O mundo é um tédio só”, ele disse. “Construímos sempre os mesmos tipos de prédios às margens dos rios. E

depois, quando atravessamos uma ponte, olhamos a paisagem e dizemos ‘Olha, é lindo este lugar, vamos parar, quero tirar uma foto’ — e quando tiramos as

fotos, colocamos o horizonte sempre na mesma linha da lente da câmera.” Esse pesquisador talvez nunca leu Nietzsche, não sabe o que o filósofo dizia

sobre este “mundo dos casos idênticos” que é o nosso, o único que jamais teremos... Não se trata apenas do eterno retorno, proposta na qual Nietzsche

equivocou-se (a física hoje discorda da ideia de que o universo e todas as formas de existência e toda energia retorna e retornam sempre, num infinito número

de vezes idênticas a si mesmas ao longo do tempo e do espaço infinito), mas de um mundo onde os casos são amplamente idênticos a si mesmos... Editar

imagens de pessoas é ainda mais fácil. Uma das pesquisadoras por trás do Projeto Obama aplicou o mesmo princípio aos rostos. Escolhido o rosto de uma

pessoa, você por exemplo, o algoritmo por ela desenvolvido varre a internet

em busca de outras pessoas que se parecem com você e mistura seus traços com os traços dos outros de modo a mostrar-lhe como você seria se tivesse cabelo crespo ou uma idade mais avançada ou mais jovem.

Em suma, com dados suficientes, adequado poder de computação e tempo

adequado, tudo que existe pode transformar-se em textura, ou em textura

de imagem, um conjunto de dados calculados para o processamento de uma

imagem do qual resulta uma informação sobre o arranjo espacial de cor e traços e que permite a criação artificial de outras imagens. Tudo pode ser

duplicado e tudo pode ser alterado. A mídia sintética pode fornecer casos estimulantes de realidade ampliada e pode revelar-se uma ameaça não

apenas a pessoas individualmente mas também à segurança nacional de

países inteiros: objetos podem ser recortados e colocados em outro arranjo, ou retirados de cena, assim como os rostos de pessoas fotografadas podem

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ser substituídos por outros, fotos podem parecer terem sido tiradas num certo local e momento quando a verdade é outra. Prevê-se que logo será possível

— se já não o for — a síntese de eventos que nunca aconteceram. No cinema, isso já é um fato corriqueiro. Mas, quem entra numa sala de cinema firma um contrato implícito de suspensão da descrença, sabe que estará diante de uma

ficção. Já quem abre uma postagem do Facebook e recebe uma mensagem de

natureza política assumirá como princípio que está diante de um fato real e objetivo. A perspectiva de um usuário da Web hoje — levando em conta o que aconteceu na eleição de D. Trump nos EUA e nas eleições de 2018 no

Brasil, deveria ser, basicamente, a da descrença. Mas não é fácil ter a descrença como comportamento default. As consequências para a avaliação da realidade

representada por imagens geradas por computador, e mesmo por aquelas obtidas pelos meios rudimentares (é o que nos parecem hoje) das primeiras

máquinas fotográficas no século 19, são tremendas. Uma foto revelada num

papel era rotineiramente considerada como realística ou verdadeira, quando de fato havia sido tão manipulada (conforme as possibilidades das épocas)

quanto aquelas agora geradas pela mídia sintética. O ângulo pelo qual se

escolhe fotografar uma cena ou pessoa, o tempo de exposição e de revelação, quando esses eram os métodos incontornáveis, já eram modos de manipulação embutidos e desconhecidos. Esse embuste, ou simulacro, já deveria ter sido percebido, cabendo o exercício de uma cautela redobrada diante do que se

vê nessa mídia: nunca foi tão fácil, tão acessível e a tanta gente, com os mais variados motivos, editar tudo, quer dizer, alterar e adulterar tudo. ◊

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COMBINATORIEDADE

Ampliação das possibilidades de combinação e recombinação de tudo com

muita coisa mediante, por exemplo, o recurso a lógicas incomuns antes tidas

como inviáveis (aos olhos do observador humano acostumado a procedimentos consagrados). A combinatoriedade aleatória (aleatória, em todo caso, como

surge num primeiro momento ao cérebro humano) ocorre, por exemplo na

estocagem de livros: livros costumavam ser organizados por ordem alfabética de autor, assunto ou título, agora podem ser agrupados pelo tamanho (impen-

sável, numa biblioteca tradicional) porque, para um robot, esse procedimento é mais rápido ou exige menos operações; ou podem os livros estocar-se em razão da combinação com a qual são pedidos (dois ou mais livros habitualmente

solicitados ou comprados ao mesmo tempo, num intervalo pequeno de tempo

ou numa dada sequência, são guardados juntos independentemente do nome do autor, do assunto, da editora, do tamanho, ainda em razão do recurso a um robot): essa é a lógica de estocagem de livros da Amazon. Um humano teria dificuldade em localizar algo nessa estante. O primeiro sistema classificatório

de livros ou obras escritas em algum tipo de suporte foi o Pinakes, proposto por

Calímaco no século 3 a.C., um bibliotecário (dizia-se “bibliógrafo”) da biblioteca

de Alexandria quando sua direção geral esteve a cargo de Zenódoto de Éfeso. Uma entrada padrão (ou ficha catalográfica) proposta por Calímaco continha

o nome do autor, seu lugar de nascimento, nome do pai, seus mestres e podia

incluir uma curta biografia do autor e a lista de seus outros trabalhos. Posteriormente, livros foram classificados até mesmo segundo a idiossincrasia de quem realizava o trabalho; a classificação decimal de Dewey e a da Biblioteca do Congresso americano propuseram uma homogeneização universal. Com

a cultura digital, a rationale para a combinação é elástica e complacente:

nome do autor, conteúdo etc. foram substituídos pelo tamanho. Na verdade, a rationale da Amazon, para tomar um único exemplo, é de ordem econômica, nada mais. E outros critérios. Na verdade, a rationale da Amazon, para tomar um único exemplo, é de ordem econômica, nada mais: a economia do tempo

dispendido numa tarefa e o espaço disponível para ela. Considere-se os vastos armazéns ou “centros de atendimento” como são agora chamados. No interior

de um típico “centro de atendimento” da Amazon, do tamanho de um campo de futebol, existem milhares de caixas amarelas, cada uma com 1,80 metros de altura, chamadas pods (literalmente, vagens; na indústria, o termo pod

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designa toda unidade destacável de um conjunto maior e que centraliza em si uma ou uma série de funções particulares). Centenas de robots, descreve

The Economist que em sua edição de 13 de abril de 2019 dedicou um artigo à

Amazon e seu uso de inteligência artificial, encaixam e retiram esses pods do interior de fileiras bem alinhadas. Todo tipo de objetos, de mercadorias

na verdade, são estocadas de um modo que parece ao acaso ao olho humano. No entanto, nesse processo todos os objetos manipulados e colocados nesses

pods são escaneados, junto com as estantes onde são guardados, por meio de um leitor de código de barras e registrados nos arquivos digitais da Amazon de tal modo que Amazon sempre sabe onde está o quê e seu software sempre

localiza tudo: não importa se seus empregados humanos não sabem, o robot sabe (escrevendo essa última sentença como deve ser escrita: o algoritmo

sabe).Portanto nós também agora sabemos o motivo de formulação de todos aqueles velhos sistemas de catalogação, tão lógicos em seus elementos e princípios (e tão limitados e exasperantes em seu modo de classificar o conteúdo e

natureza de um livro e de impor um rótulo a cada um e a todos de modo que

cada obra tinha de ser ou isto ou aquilo, não havendo termo médio, com isso arruinando as vidas e carreiras de tantos pensadores e escritores que nunca se encaixaram nesses compartimentos estreitos): aqueles sistemas viram à luz

porque a humanidade não dispunha de espaço suficiente, tempo suficiente, suficientes trabalhadores mecânicos como aqueles sonhados por Efaístos e de

dinheiro suficiente. Há agora novos critérios de catalogação e classificação e a estrita lógica aristotélica não é um deles. A eCultura pode agora aparelhar a humanidade para lidar com a lógica do jogo dos palitos chineses : soltos sobre

uma mesa, esses palitos nunca caem duas vezes com o mesmo desenho. Posso

escolher ou acreditar que escolho o modo pelo qual deixo os palitos caírem ao abrir a mão sobre a mesa (choice) e então abro a mão que os segura: o resultado vem ao acaso (chance). Talvez não mais: com o algoritmo certo, pode ser que eu

veja duas ou mais vezes ou n vezes o mesmo desenho de palitos abertos sobre

a mesa. O acaso será controlado e minimizado. O par chance & choice, tão caro

à teoria da Informação especialmente quando aplicado às artes (mas não só: que se pense no darwinismo), talvez tenha de ser revisto. (Cf. Digitabilidade.)

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DUPLICABILIDADE

Tudo pode ser duplicado, de um filme a um texto, a uma molécula de DNA

(ácido deoziribo-nucleico) e a uma pintura ou escultura. A ideia de exemplaridade (unicidade, raridade) desaparece. A era da ampla reprodutibilidade

técnica, para além da antecipada por Walter Benjamin em um texto sempre relido,58 definitivamente chegou — e não só para a arte, como em seu ensaio

premonitório. Em 2003, Dolly, uma ovelha, foi o primeiro mamífero a ser clonado a partir de uma célula de outro mamífero adulto com o recurso ao processo de transferência de núcleos. No filme Blade Runner 2049,59 o policial caçador de androides, por nome K,60 resultou da clonagem de um ser (a perso-

nagem de Ana Stelline) nascido de um androide e (a narrativa sugere) de um

ser humano (um homem) — o que a rigor significa que, não sendo literalmente um androide, K ele mesmo não nasceu de mulher,61 sendo portanto um terceiro

gênero — o mais radical transgender. Como, talvez, a própria Stelline... ou será

Stelline uma mulher normal, por algum tipo de acaso reprodutivo? Ao lado da transcendência da biologia por parte do ser humano, tese de Ray Kurzweil,62

agora a possibilidade de uma evolução darwiniana computacional surge no horizonte. Alguns físicos, como David Deutsch, inscrevem a teoria da evolução

“A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica”.

Blade Runner 2049, dirigido por Denis Villeneuve, 2017.

Kafka assegurou a história e o sucesso eternos da letra K como nome de personagem, com seu O processo — que os autores de Blade Runner 49, Hampton Fancher e Michael Green, certamente leram. O mundo do policial K no filme de Denis Villeneuve em nada difere do labirinto sufocante a envolver o personagem de Kafka. Só o ambiente tecnológico é outro, como outro é o século. Mas a história é a mesma.

A menção ao homem que não nasceu de uma mulher aparece no evangelho de Lucas, 7:28 (“Eu vos digo, daqueles que nasceram de mulher ninguém é maior do que João”), na Bíblia do rei James e na Bíblia cristã em sua versão standard em inglês. A versão inglesa moderna diz: “Eu vos digo, entre os que viveram e vivem, nenhum é maior que João”. Uma concessão à sensibilidade atual, supõe-se... Como não nasceu de mulher, K poderia matar Macbeth, que acreditava não poder ser morto por homens nascidos de mulher...

58 59

60

61

Cf. A singularidade está próxima, op.cit.

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dos organismos vivos na base do entendimento (sua própria “teoria do tudo”)

do que denomina de “o tecido da realidade”.63 (Cf. no tópico Virtualidade,

adiante, a menção ao filme Solaris, de Andrei Tarkovski, na nota 145.) ◊

63

David Deutsch, The Fabric of Reality, 1997.

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ANONIMIA

O processo de desintermediação64 crescente próprio da eCultura pode levar

a uma crescente concentração do controle, nas mãos de um número extrema-

mente reduzido de instâncias ou de uma única, claramente identificada, ou à multiplicação extremada dessas esferas de controle, teoricamente cada vez

mais anônimas, e necessariamente anônimas. Teoricamente, para funcionar adequadamente esse processo de desintermediação exige, como condição de sustentabilidade, o anonimato dos operadores. As bitcoins, moedas digitais — que agora, depois de uma subida notável, parecem emergir exatamente para o anonimato — não são controladas por ninguém conhecido e por nenhuma

instituição tradicional conhecida, como um banco central nacional que controle o fluxo e o valor de uma moeda tradicional. A ideia e o modo de operação da primeira bitcoin aparecem num artigo publicado em 2008 por uma pessoa ou

grupo de pessoas autodesignadas pelo que se supõe ser um pseudônimo: Satoshi

Sakamoto. A própria cadeia da criptomoeda autocontrolaria a si mesma e à sequência de operações financeiras, substituindo-se ao “livro razão”, digamos

assim, mantido por um banco central. Os participantes da rede podem verificar e auditar todas as operações realizadas por meio de um sistema peer-to-peer que registra as operações realizadas de tal modo que esse registro não pode

ser alterado retroativamente sem a alteração de todos os blocos (blocks) e da aceitação de toda a rede. A blockchain, corrente de blocos, é uma lista de registros

conectados por meio de criptografia. Cada bloco contém uma marca criptográfica do bloco anterior ao qual se liga, marca ao mesmo tempo do momento em

que a operação foi efetuada e de todos os dados das transações. Esse processo torna todo bloco anterior impermeável ou bastante impermeável a alterações

que, para dar-se, deveriam contar com o consenso de toda a rede. O controle torna-se desse modo pulverizado e anônimo. Como a informação é estocada na

rede, elimina-se muitos dos riscos próprios do armazenamento de dados num

só ponto central, embora mesmo assim persistam dúvidas sobre a segurança

do processo, que consome altas quantidades de energia. De modo particular, o anonimato de todo a cadeia faz dela um ambiente favorável a todo tipo de

crime. Como outras iniciativas contemporâneas — Uber, Airbnb —, o poder de disrupção das bitcoins, se bem-sucedidas, é elevado. Cf. Desintermediação.

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O anonimato ocupa cada vez mais espaço, sob diferentes manifestações,

no terreno dos contratos econômicos e financeiros: nas bolsas de valores, robots realizam, sem mediação humana, operações de compra e venda por

meio de algoritmos que avaliam, em frações de segundo, a conveniência de comercialização de diferentes papéis conforme seu desempenho ao longo

do tempo passado e de uma previsão para o futuro. Nem mesmo o criador

desse algoritmo pode apresentar-se como autor da operação financeira, por ele desconhecida enquanto se desenvolve. A segurança do processo é

crescentemente contestada. No dia 6 de maio de 2010, ocorreu o que ficou conhecido como Flash Crash, a Quebra Relâmpago ou Apagão Relâmpago do

mercado de ações, também conhecido como Crash das 2:45 ou 2010 Flash Crash, uma quebra multibilionária que durou cerca de 35 minutos durante os quais os índices da Dow Jones, Nasdaq e S&P 500 caíram e subiram rapidamente

sem justificativa aparente ou inteligível. A Dow Jones chegou a perder 9% do valor em poucos minutos antes de recuperar a maior parte da quebra nos minutos seguintes. Cinco anos depois, o Departamento de Justiça dos EUA

acusou uma pessoa específica, Navinder Singh Sarao, de fraude e manipulação

do mercado por usar spoofing algorithms, ou algoritmos simuladores, que sugerem interesse numa operação em seguida cancelada; esses algoritmos dão lances ou cancelam lances nos segundos ou frações de segundos anteriores à confirmação das ordens de compra ou venda, numa operação com chance de sucesso em virtude da velocidade da computação. O controle sobre essas

operações é incerto. Um artigo no Traders Magazine Online News de 25 de

abril de 2014 descreve a tentativa de controle do novo modo de operação nos mercados financeiros eTech como o uso de bicicletas para caçar criminosos dirigindo Ferraris.

O anonimato espalha-se por outras dimensões da vida cotidiana (embora

operações de bolsa não integrem o cotidiano da maioria das pessoas...). Fun-

cionários podem ser contratados e demitidos por um computador — melhor, por um algoritmo: o tradicional departamento de relações humanas perde gradativamente razão de ser e os empregados podem mesmo não ter qualquer

relação física com seus empregadores, por vezes situados no outro lado do

mundo. A esfera do direito público e da justiça reduz-se ou perde-se num cipoal de indefinições (que leis aplicam-se a que empregador exatamente, instalado em qual país afinal? Quem é o responsável pelo acidente causado por um carro dirigido por um algoritmo, onde ele tem seu domicílio legal.?)

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O anonimato crescente coloca em xeque a noção de autor e autoria. Autoria

significa acesso à informação + capacidade de edição + capacidade de produção. Autor deriva do latim augere, originar, dar início, promover. Não é uma questão

fácil identificar a origem do Flash Crash (e houve outras, depois daquela de 2010)

ou o causador do acidente com um carro autônomo. Em princípio, quanto mais se intensificar cada fase do processo informação+edição+produção, menos a autoria

aparecerá; autoria é ideia ligada à raridade, desaparecendo a raridade desaparece

a autoria. A autoria passa a ser coletiva ou, melhor, contínua, e não mais discreta, i.e., individualizável, traduzida em partículas individualmente identificáveis.65 Essa coletividade autoral dissolve-se no éter, como no caso das criptomoedas. No

final dos anos 60, Michel Foucault provocava forte celeuma ao adiantar a tese da morte do autor.66 Era a grande novidade (estruturalista) do momento. Foucault

perguntava-se: que importa quem fala? O que significa ser autor? Impossível dar

do autor uma descrição definida, ele mesmo respondia. É o autor o responsável

por seus textos? Ele não é nem o produtor, nem o inventor desses textos, diz Foucault. Pode um texto ser atribuído a um autor dado que essa atribuição resulta

de operações críticas complexas, raramente deslindadas e pelo autor justificadas? Que posição ocupa afinal o autor? Se Foucault tivesse conhecido, em 1969, os desdobramentos de uma ciência e tecnologia que naquele momento estavam

ainda praticamente na primeira infância (contudo já haviam acelerado a derrota do nazismo graças a Alan Turing), talvez não hesitasse em reconhecer no com-

putador — mais propriamente, em algoritmos desenhados para escrever livros, operar na bolsa, sentenciar um condenado pela justiça — um emblema singular

do fim da autoria tradicional e a possibilidade de uma outra espécie de autoria. Como procede um algoritmo genético a não ser por meio de análises complexas e

raramente (ou nunca) por ele próprio justificadas, nem por ele, nem por seu autor

(que não raro de fato desconhece o modo de operação de sua criação, desenvolvida segundo os princípios do machine learning) e por ninguém mais? O que ou quem dá início ao processo, quem ou o que é seu autor? Afinal, “pouco importa quem

Livros escritos por computador, já não mais uma novidade, exemplificam esse princípio de modo claro — mesmo se, por vezes, um humano reivindique a autoria do livro assim composto.

« Qu’est-ce qu’un auteur ? » in Bulletin de la Société française de philosophie, 63e année, # 3, juillet-septembre 1969, pp. 73-104; Michel Foucault, Dits et Écrits, tomo 1, texto n. 69.

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fala” desde que alguém (ou algo) fale, sugeriu Foucault. O mesmo no caso da

pintura, o mesmo no caso da poesia (algoritmos já escrevem poemas e em certos não tem sido possível identificar com exatidão quais vieram de um algoritmo

deles e quais de um ser humano), o mesmo no caso de reportagens sobre esporte, o mesmo no caso das criptomoedas, o mesmo nas operações de bolsa, o mesmo na redação de análises econômicas...67 O Pacto dos Direitos Econômicos, Sociais e

Culturais da ONU, de 1966, na esteira da Declaração dos Direitos Humanos, e que

protege explicitamente os direitos autorais (direitos morais e direitos econômicos do autor), terá de ser reescrito, se a tendência continuar — e a utopia do Creative

Commons será realizada. Não deve passar despercebido o fato de que tentativas

de abolição dos direitos autorais registram-se ali onde a autoria é conhecida,

nominal e individualizável, como no caso dos autores de romances, ensaios, canções, obras de arte etc., mas estão ausentes de todo os demais domínios do

amplo espectro econômico (indústria farmacêutica, do vestuário, da alimentação) onde a autoria é diluída, apagada porque agregada ao empregador e retirada

de seus reais criadores para tornar-se propriedade de uma corporação — quase sempre, do tipo “sociedade anônima”…

As blockchains prometem para si mesmas um amplo, duradouro e róseo

futuro; de todo modo, sua utilização revela-se atraente em outros domínios

além dos financeiros, como na consolidação da democracia por meio de um

novo formato de coleta de votos. Em maio de 2018, West Virginia, um estado

norte-americano, tornou-se o primeiro do país a adotar o voto pela internet através do uso de blockchain. Embora o recurso ao novo processo tenha sido

pequeno, o que era esperado, o resultado animou os supervisores da eleição cujo real objetivo, na ocasião, era realizar um teste com a tecnologia antes de

aplicá-la em larga escala. Os benefícios parecem valer largamente: o voto “em

trânsito” será favorecido para além das restrições definidas pela legislação

brasileira: o voto realmente “em trânsito”, dentro de um carro, um trem, um avião, através do telefone celular de cada um, pode ser realidade. A identidade

do eleitor é verificada por ferramentas biométricas como o escaneamento da

impressão digital ou o reconhecimento facial, igual àquela já utilizada hoje em boa parte dos celulares. O princípio da blockchain aplica-se integralmente aqui: cada voto forma parte de uma corrente de votos que são comprovados

pelos outros votantes e é computado num “ livro razão”(ledger, em inglês), de 67

Cf. Teixeira Coelho, Com o cérebro na mão, São Paulo, Iluminuras/Instituto Itaú Cultural, 2015.

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acesso público, ao mesmo tempo que garante o anonimato dos eleitores, com o resultado sendo instantaneamente disponível. Os custos públicos das eleições com urnas, transporte de urnas para regiões distantes, mesários, espaços a serem

disponibilizados, consumo de energia, são reduzidos drasticamente. Plataformas

de votação de fonte aberta não contêm partes ou programas proprietários, per-

mitindo a todo interessado ou ao serviço público auditar o bom funcionamento do sistema e a fidelidade no cumprimento à vontade do eleitor. Em princípio, a

manipulação de votos, possível mesmo com urnas eletrônicas, desaparece, assim como desaparece o procedimento de restrição de direitos eleitorais de indivíduos ou grupos que não interessem a um partido no poder ou que o almeja, como é ainda comum acontecer nos EUA em relação aos negros.68

Sempre será possível manipular um algoritmo de modo a que não autenti-

que a identidade de um indivíduo ou coletivo; mas bastará não registrar a cor

da pele do votante ou sua etnia para que o problema tenda a desaparecer: o voto de bairros negros inteiros, ou asiáticos ou latinos ou outros, não poderá

ser impedido — porque ninguém mais ficará confinado em seu território físico. O conceito de domicílio eleitoral físico desapareceria em todas as esferas salvo na nacional: um eleitor deve continuar a ser cidadão do país onde pretende votar. E a contagem dos votos é pública, feita por todos e cada um. Nada é

simples, neste campo, mas as promessas da blockchain eleitoral são grandes

e os esforços para implementá-la ainda mais justificados do que no campo da moeda alternativa. Sem mencionar que o voto eletrônico direto — não via urna do tribunal eleitoral do Estado — é mais um passo na direção da reforma

do sistema de representação política, de necessidade comprovada por toda parte depois da confirmação da falência dos partidos políticos.69

O anonimato, porém, em sua forma de resguardo da privacidade, é de

outro modo ameaçado: em relação à eCultura, toda força ou muitas das

forças que agem numa direção e atuam também na direção oposta — no

que não é muito distinta dos modos culturais anteriores, derivando a diferença entre umas e outras antes da intensidade e rapidez da disrupção

Claro, o controle e a discriminação podem ocorrer antes da votação, por exemplo, no processo de autorização de uso da chave que permite o voto.

Simone Weil, Sobre a supressão geral dos partidos políticos, seguido por Teixeira Coelho, Política, cultura, futuro; São Paulo, Ed. Iluminuras, 2018.

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(destruição + criação) do que de outro fator. Algoritmos de reconhecimento

visual a distância já estão em uso em diferentes partes do mundo, como na

Austrália onde é operado pelo ministério do interior, designação que em diferentes países recobre a tarefa de cuidar da segurança interna no combate ao banditismo, por exemplo (por que não se dá a esse ministério seu nome

verdadeiro, “ministério da segurança interna”, é um mistério de polichinelo. Essa tecnologia coleta e agrupa imagens faciais (que entram no grupo da

“informação biométrica”) junto a diferentes órgãos governamentais como

os que cuidam da emissão de cartas de habilitação, passaportes, vistos de

entrada, câmeras de TV em circuito fechado (CCTV, closed circuit TV) etc. Esse tipo de informação pode ser processado rapidamente — em tempo real, quase — e comparado com outras imagens como aquelas captadas por

câmeras de vídeo instaladas em ruas, interior de aeroportos etc. A eficácia

desse instrumento na prevenção do crime e na identificação dos responsáveis por crimes cometidos é indubitável.

Nem é necessária muita sofisticação: são tantas as câmeras na Nova York pós-9/11 (mais de 9.000 só em Lower Manhattan) que desde uma delegacia de polícia comum é possível acompanhar alguém visualmente na maior parte de seus deslocamentos pela cidade; ver a série The Night Of, da HBO, 2016). E o The New York Times provou que é possível fazer isso gastando menos de cem dólares. Por toda parte, porém, levantam-se questões sobre a preservação da

privacidade e a capacidade de estabelecer-se uma vigilância geral de massa. Na China, esse sistema de supervigilância já é uma ampla realidade nas ruas,

estradas, aeroportos; e o Reino Unido conta com cerca de quatro milhões de CCTV, quinhentas mil delas instaladas na Grande Londres (sendo 650 da responsabilidade direta de órgãos locais do governo). Os números não são inteiramente

confiáveis, por razões óbvias, mas sem dúvida existem hoje, no Reino Unido, muito mais CCTV por habitante do que bibliotecas (4.145 delas, em 2014, para

66.020.000 de pessoas, numa curva descendente desde 2013 quando havia 4.620; nenhum desses números surpreende). No total, existem no Reino Unido

cerca de 15 câmeras por habitante, um número enorme. Não é mais necessário

que o governo tenha, ele mesmo, a maioria dessas câmeras, baste que conte com o algoritmo apropriado de modo a poder cotejar suas próprias imagens

com as obtidas por câmeras privadas ou semipúblicas como aquelas de bancos,

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aeroportos etc.: finalmente acontece a colaboração estreita entre o poder público e a iniciativa privada...

Ainda na China: a Global Defense of the Internet, uma ONG composta por “hackers éticos”, divulgou em 4 de março de 2019 que 364 milhões de perfis, i.e., pessoas no jargão, e suas comunicações, estariam sob vigilância. Dados e metadados (carteira de identidade, foto, horários das mensagens, local de comunicação) seria coletados e repassados para 18 pontos de coleta e remetidos a delegacias locais de policia. Os números são fortes, porque a China teria 800 milhões de internautas, dos quais 98% servem-se de smartphones (dados oficiais chineses). Não só: pelo menos 2,6 milhões de pessoas são captadas por câmeras com sistemas de reconhecimento facial por dia. Uma enxurrada de dados. Humanos podem tratá-los? Quase certamente, algoritmos são usados. Deve compensar: o preço do controle é a eterna vigilância. Em The Age of Surveillance Capitalism: The Fight for a Human Future at the New Frontier of Power (2018), Shoshana Zuboff aborda o tema. O título sugere que a vigilância é um traço e uma falha do capitalismo. Mas o oposto do capitalismo aquilo que a China chama de socialismo chinês, faz o mesmo... Moral: a vigilância não tem ideologia. Os gastos públicos para a manutenção desse sistema não são pequenos:

o estado de New South Wales investirá cerca de 53 milhões de libras ao longo

de quatro anos para permitir o compartilhamento e a análise de dados de reconhecimento visual. Os efeitos sobre a liberdade de expressão política, de protesto público, de censura em todos os níveis são evidentes. Obviamente, os

governos negam o uso de CCTV para efeito de vigilância de massa. Mas com

7 bilhões de pessoas no planeta, e considerando que, ainda na Austrália, uma

pessoa em quatro é vítima de um ato criminoso ao longo de sua vida, está claro que a vigilância de massa é inevitável (já está em prática) e o anonimato, sob esse aspecto, uma quimera. Para essa restrição à privacidade e ao anonimato

já contribuem avidamente os próprios interessados, ou aqueles que deveriam

ser os mais diretamente interessados, que postam no Facebook, WhatsApp, Instagram etc. todo tipo de dado verbal e de imagem que lhes diga respeito, nas mais variadas situações — inclusive nas íntimas. As cartas encaminhadas

pelos Correios, dos quais os Estados habitualmente tinham o controle e o monopólio, eram de fato privadas; seu sucedâneo, essas postagens nas “redes

sociais”, estão ancoradas de modo firme no domínio público. Uma simples

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saída à rua, em muitas cidades e países, já significa a entrada para o circuito dos sem-anonimato. Que seremos todos.70 (Cf. Editabilidade.) O filme Anon (como forma abreviada de Anônimo, Anonimato) — lançado em 2018, escrito e

dirigido por Andrew Niccol — desenvolve sua narrativa numa distopia digital localizada num futuro bem próximo no qual agentes do serviço de segurança

são capazes de, olhando para uma pessoa (e para todas as pessoas que encontra

pelo caminho), receber, na “tela”de sua própria retina, todas as informações básicas sobre ela e sobre tudo. Podem também projetar essas informações para

terceiros, que igualmente podem lhe solicitar imagens do que ele próprio fez há dez minutos ou uma hora ou há dois dias... Nesse cenário, o desejo de alguns

é tornar-se completamente anônimos, despidos de quaisquer informações, sem passado colecionável. A segurança de todos e da sociedade depende da

transparência de todos e tudo e da ausência de privacidade. Nesse cenário, a invisibilidade social pode ser o paraíso possível... ou utopia.

Na ponta do usuário “simples” da eCultura, aquele que se serve das “redes

sociais”,71 é forte a sensação positiva e protetora de anonimato. As pessoas

insultam-se pela internet, ou por ela, e nela se revelam sob vários ou todos os aspectos, de um modo como não fariam “ao vivo”, presencialmente. A máscara

sempre foi e é fonte de coragem e audácia e a tela do computador ou do celular serve como máscara perfeita. Para ampliar a ilusão, esses usuários

não raro dotam-se de um pseudônimo. E no entanto nada disso lhes garante o anonimato: Facebook, WhatsApp, Instagram — e, portanto, a polícia — todas

sabem quem é você e onde você está e seu endereço ip (endereço de protocolo

interno), que designa e identifica cada aparelho usado para comunicação na internet. Seu endereço ip é ainda mais controlado que seu CPF. No início, o

endereço ip seria universal, iniciativa abandonada diante da necessidade de preservar a identidade de órgãos do poder público. Trocar um PC por outro novo acarreta a troca de endereço ip — mas a identificação do usuário é uma questão

que em seguida se recoloca. O recurso a computadores quânticos, capazes

de tratar quantidades colossais de dados em frações de segundo, permitirá

analisar as informações provenientes dos sete bilhões e meio de habitantes Cf. Editabilidade.

70

71

Expressão a ser empregada sempre entre aspas enquanto não se encontrar um novo rótulo mais revelador de sua real natureza, a de ser profundamente antissocial e egótica. É preciso parar de usar o termo “social”em vão.

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do planeta e identificar quase em tempo real quem é e onde está o usuário de

um equipamento eletrônico conectado à rede. Na eCultura, anonimato não existe; o autor continua existindo. ◊

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PERFECTIBILIDADE

A inteligência artificial e sua tendência declarada para a plenitude, que

enfim parece alcançável — pelo menos na esfera tecnológica, se não humana (aquela deveria levar a esta; mas...). Nem mesmo o optimum (o melhor em

dadas condições) serve mais: o optimum era uma qualidade da cultura pré-computacional; o bom e o mediano não mais bastam (o bastante bom não é mais bom o bastante, “good enough is not enough”).

Mais do que nunca, a distinção entre forma, ou formato, e conteúdo tem de

ser considerada. A perfectibilidade buscada não significa que o conteúdo do

que é veiculado pelos meios computacionais seja à prova de erro e incorreção: as “fake news” encontram no meio digital das “redes sociais” um caldo de alimentação e propagação sem precedentes. E os novos recursos tecnológicos

permitem criar imagens e registros de fatos que nunca existiram: um vídeo, por exemplo, será tecnicamente perfeito quanto à forma embora sugira ou descreva um fato que nunca existiu (políticos em desgraça no regime soviético

eram apagados de fotos históricas como se ali nunca tivessem estado, mas a

falácia podia ser denunciada com o cotejamento com alguma outra foto ou

fato; a ilusão e a perfeição, agora, são exponencialmente maiores; e não se trata mais de apagar, de tirar, mas de pôr, de elaborar, construir: e não se pode

cotejar com alguma coisa, nem com coisa alguma, aquilo que nunca existiu). A humanidade sempre perseguiu o perfeito. Mas durante muito tempo,

teve consciência de seus limites — que agora parecem abolidos ou prestes

a abolirem-se. Hic mundus perfectissimus est etiam mundorum possibilium

omnium optimus: este mundo perfeitíssimo é também o melhor dos mundos

possíveis, entendia Leibniz numa fórmula que Kant retomou. O racionalismo

reconhecido em Leibniz parece não o ter ajudado nessa formulação, depois ironizada por muitos, Voltaire à cabeceira da fila. Em todo caso, procurou a

perfeição. Seu otimismo de época foi desbastado depois por muitos filósofos, os existencialistas entre eles e numa outra época que lhes dava razão. No

mundo servido e controlado pela Máquina da novela de E. M. Forster, máquina

que poderia receber o nome de computador, a humanidade restante, ou o que restou da humanidade, gradativamente acostumou-se ao ótimo possível, ao

bom o bastante proporcionado pelo Sistema tanto quando funcionava bem

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quanto a partir do momento em que começa a falhar: o ar que se respirava e que piorava ainda era bom o bastante, as conferências mútuas que as pessoas se davam eram boas o bastante, a própria Máquina era boa o bastante. Forster

poderia muito bem, em sua ficção científica, estar elaborando uma alegoria da

sociedade inglesa tal como ela se espelhava na primeira década do século 20:

o bom o bastante está bastante bom, bastante bem. Muito bom, muito bem. Obviamente, não estava, nem mesmo para ele, homossexual não assumido numa Inglaterra onde essa opção era passível de encarceramento. Nem este

mundo é perfeitíssimo, nem é o melhor dos mundos possíveis, embora na opinião de Leibniz não só este mundo como este universo era aquilo que de melhor Deus poderia ter produzido, o que dá uma ideia dos reais poderes de Deus. A física não concorda com Leibniz, pelo menos a física dos multiversos

— uma ideia que nem a física, nem a humanidade conseguirá comprovar por situar-se simplesmente muito além, em distância medida a anos-luz, do horizonte passível de visualização. Isso num momento em que os físicos sequer descobriram uma nova partícula desde o final dos anos setenta do século 20.

Mesmo assim, prevalece a ideia de que o bastante bom não é bom o

bastante e que é preciso ir além. A juventude eterna e a abolição da morte contariam entre os índices da perfectibilidade. A labilidade perfeita, a mobili-

dade perfeita, a acessibilidade perfeita e, nec plus ultra, a completude perfeita

estão sobre a mesa da humanidade ou continuam sobre a mesa, hipótese que faz com que esse fato possa ser visto como outro elo entre a cultura pré-compu-

tacional e esta eCultura. Enquanto isso, uma marca de telefone celular divulga seu mais novo feito: um aparelho com três lentes de câmera fotográfica ou

com três câmeras fotográficas... antes talvez de propor uma câmera 3D ou

de apresentar-se como aparato de realidade virtual (por enquanto, apenas

apresenta novo modelo com quatro câmeras ou quatro lentes...). Por um lado, a irresistível tentação de concordar com Georg Simmel quando diz que valor e realidade são categorias independentes uma da outra pelas quais nossos

conteúdos representativos tornam-se concepções do mundo.72 Perfeição seria

alcançar a convergência entre valor e realidade, algo talvez além do alcance

da Máquina e do homem — embora talvez não da física. Ray Kurzweil afirma que é exatamente para isso que virá a singularidade ou fusão entre o orgânico e o maquínico.

72

G. Simmel, Philosophie de l’argent. Paris, PUF, 1987.

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Por enquanto, a nova tecnologia alcançou a perfeição possível em termos

de opressão do coletivo sobre a pessoa, o indivíduo, por meio das “redes sociais”. Nenhum mecanismo, nenhum dispositivo foi tão eficaz quanto este, como o demonstra a realidade nos EUA, desde 2016 até hoje, neste período pós-eleição

de D. Trump, e como o faz a realidade brasileira no mesmo período. Simone Weil adverte bem: o pensamento coletivo é incapaz de elevar-se acima do

domínio dos fatos, “é um pensamento de tipo animal, tem uma noção do bem que serve apenas para que cometa o erro de tomar este ou aquele meio por um bem [um fim] absoluto.” A realidade do envelope tecnológico de seu tempo, em particular do momento em que escreveu seu ensaio defendendo a

supressão geral dos partidos políticos, 1943, não lhe permitiu comprovar com toda a evidência possível a pertinência de sua constatação de que a função

maior do coletivo é servir de meio para que a pessoa nele se afogue, algo ainda mais perverso do que a tendência recorrente do coletivo para oprimir o indivíduo. As “redes sociais” são a perfeição possível até hoje nesse sentido.73 ◊

73

Simone Weil, Sobre a supressão geral dos partidos políticos; op.cit.

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RACIONALIDADE

A cultura computacional oferece todos os sinais de ser o ápice de um traço

fundamental da civilização da qual emergiu e que ela agora conduz a outros

apogeus, cuja natureza positiva ou negativa não está ainda definida. Esse traço, essa figura é a racionalidade, como anota Max Weber em seus escritos e em

particular em A ética protestante e o espírito do capitalismo, publicada entre 1904 e 1905, uma das duas décadas mais criativas dos últimos dois séculos (este

incluído). Aqueles anos surgem como engolfados por uma nuvem de criati-

vidade geral. Em 1905 Einstein publicava sua teoria da relatividade especial, depois desenvolvida entre 1907 e 1915 como teoria da relatividade geral antes

de consolidá-la em 1916. Em 1907, Picasso terminava sua revolucionária Les Demoiselles d’Avignon, que só mostrou publicamente nove anos depois, em 1916, por medo das reações previsíveis — e devia ter razão. Em 1915, Kazimir Malevich pintava seu Quadrado negro, uma tela monocromaticamente coberta

pela cor preta e por ele pendurada em sua sala exatamente no ângulo reto formado por duas paredes, bem junto ao teto, à maneira de um ícone russo de culto, o que essa pintura de fato era e no que ela se tornou: o grau zero da pintura de todos os tempos. Em 1912, Marcel Duchamp iniciou sua instalação The Bride Stripped Bare by Her Bachelors, Even, depois reformada como The

Large Glass (1915), uma de suas obras estelares; em 1913, A roda de bicicleta, um garfo de bicicleta com sua roda virado de cabeça para baixo e enfiado num banquinho comum; em 1917, The Fountain, um urinol masculino de banheiro

público, deitado de costas. Em 1906, Santos Dumont voou seu 14-Bis por cerca

de 200 metros no que era então a periferia de Paris. E em 1909, como aqui já destacado várias vezes, E. M. Forster escrevia A máquina parou, obra parti-

cularmente aguda de previsão científica e sociológica de uma humanidade em momento de forte mudança, várias delas hoje ao alcance da mão. A lista

poderia continuar mas deve ser suficiente para apreender o espírito da época em que surge o estudo seminal de Max Weber.

A racionalização, não hesita Weber ao escrever estas palavras, é uma

qualidade própria do Ocidente, que desenvolveu um modo específico de racionalismo, particular dessa civilização e perceptível na organização racional

do trabalho, na estrutura racional do direito e da administração, na definição do empreendimento capitalista, assim como na economia, na pesquisa

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científica, na educação, na formação e nas estratégias militares (quem vê

um clássico do cinema moderno como Kagemusha [a sombra, em japonês],

de Kurosawa, tem dificuldade extrema de entender como era possível travar

uma batalha no século 16 se cada guerreiro deveria portar uma bandeira de

seu clã e de sua função na campanha, como era possível a um líder guerreiro sentar-se em seu banquinho com um leque na mão metido dentro de sua frágil armadura de couro como se estivesse no palco de um teatro Nô, o que

aquilo de fato era: tudo era essencial para ganhar-se a batalha, o empírico e o simbólico, inclusive sentar-se do modo correto: a guerra é um teatro, como a vida, e o teatro tem suas regras por vezes nada racionais). E na tecnologia, no

comportamento prático geral, nas artes mesmo (como na Renascença, com

sua perspectiva e sua harmonia simétricas, princípio racional entre todos). O

fato de hoje a China mostrar-se exemplarmente racional, imitando o Ocidente sem dizê-lo em palavras, mas mostrando-o ao vivo e em tamanho natural e

supranatural, em nada retira o fundamento da proposta de Max Weber sobre

a primazia da imbricação entre as ideias de civilização ocidental e racionalidade — racionalidade que agora, em seu formato digital, alcança as alturas

sonhadas na Antiguidade grega, mas que permaneceram adormecidas como

fantasia literária por um longo tempo. A próxima linguagem computacional, a quântica, pode não parecer tão racional como a anterior, digital — e tanto que vários físicos respeitáveis declaram não a entender e o próprio Einstein

rejeitou-a de início (muito feia, ele disse, quer dizer, irracional, sem ordem e não verdadeira: o belo é o racional e o verdadeiro, em muita física)74 para aceitá-la

(ou suportá-la) apenas muito depois; e será sugestivo conhecer, a seu tempo, se o quântico é uma evolução do digital ou sua antítese, o que, na análise de Weber, pode ter consequências disruptivas para esta civilização ocidental...

74

Sabine Hossenfelder elabora, em Lost in Math: How Beauty Leads Physics Astray, uma diatribe feroz contra a ascendência da ideia do Belo em física e o papel negativo da submissão por parte dos físicos. A esterilidade relativa da física nas últimas décadas é por ela atribuída, em larga parte, à primazia da estética sobre a experimentação e a verdade. Considerando a quantidade de artigos e livros em apoio à tese da importância do Belo na física, sua posição parece ainda minoritária... A preferência de muitos físicos pelo critério da Beleza (“entre duas explicações pertinentes, a mais bela deve ser preferida”) não é gratuita ou desinteressada, como propõe a estética do belo inútil. A simetria, base da harmonia e portanto da ideia humana de Belo, é útil: no simétrico, tudo vem em dobro, portanto os cálculos reduzem-se à metade...

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De modo específico, a racionalidade está inscrita como meta e princípio

no programa digital:

• no sentido de K. Popper: numa dada situação, pessoas agem de modo apropriado ou razoável (num estádio de futebol, uma pessoa procurará a saída

mais próxima; poderá escolher qualquer das saídas existentes (manifestação de seu livre-arbítrio — se existir), mas a probabilidade de escolher

a mais próxima (escolha racional) é maior, a ponto de tornar improvável a escolha aleatória; a construção do estádio leva esse comportamento em conta (um comportamento prático, na terminologia de Max Weber); o design de um algoritmo, também.

• no sentido habitual em economia, entendida como a obtenção da coisa

pretendida ao mais baixo custo, variante da proposição de Popper (a saída mais próxima é sempre a menos trabalhosa, a que exige menos dispên-

dio de energia, a mais rápida, a que gasta menos sola de sapato etc.: em resumo, a mais “racional”).

Em ambos os sentidos, neste caso e para o que interessa salientar

aqui, a racionalidade deriva sempre de uma análise situacional entendida como antídoto ao psicologismo, com sua tendência a explicar os processos recorrendo ao estado emocional das pessoas; a situação sobrepõe-se ao e

substitui o psicológico, o foro íntimo (nos anos 60, o nouveau roman foi um movimento literário contrário ao psicologismo típico do romance do século

19 e que sobreviveu ao longo de toda a primeira metade do século 20 e ao

longo deste início de século 21, continuando vivo mesmo agora: ainda hoje, o romance norte-americano típico é de natureza psicologizante e dela não

consegue e nem quer separar-se, tanto quanto o cinema americano — mas não

o de Godard); o nouveau roman era uma construção de situações exteriores, não de tramas emocionais internas). No entanto, permanece aberto o caminho da psicologização de tudo via “redes sociais”, também elas sob esse aspecto exponencializadas.

Em sentido econômico, racionalidade é sinônimo aproximado de economia

no sentido de melhor uso dos recursos disponíveis. Com a nova tecnologia digital aplicada, possuir um carro (regime de propriedade privada) será coisa do passado, antevê-se. Em cidades como Berlim é hoje possível, mediante

o recurso ao celular, entrar em um carro de aluguel estacionado numa rua

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qualquer, usá-lo à vontade e deixá-lo depois em outra rua qualquer onde outro usuário irá servir-se dele em outro momento (graças ao GPS, não é mais neces-

sário devolver o veículo no mesmo local onde foi alugado; maior flexibilidade

para o usuário, maior rentabilidade para o locador; o mesmo procedimento

aplicado às bicicletas não revela igual êxito: tamanho e peso jogam em favor da racionalidade do sistema de locação de carros e contra o mesmo sistema aplicado às leves, ubíquas e embaraçantes bicicletas, espalhadas por ruas e canteiros e praças das grandes cidades de uma China que começa a perceber

os limites da racionalidade ou “racionalidade”aplicada a tudo). E não há mais pagamento em espécie, o valor do aluguel desse carro é debitado no cartão

de crédito do usuário. Matéria-prima é poupada, bem como combustível, a sustentabilidade do planeta vê-se aumentada (minimamente que seja, se já não for tarde demais): a racionalidade parece uma alavanca positiva. Veículos

com piloto automático devem reduzir os acidentes em índices consideráveis

(previsão de até 90% dos números atuais), com redução de custos hospitalares, indenizações, seguros e pensões por invalidez etc. E com a redução do número

de veículos em circulação graças ao car sharing, pátios de estacionamento dentro e fora das cidades poderão ser reconvertidos para agricultura, construção de moradias etc. A racionalidade impera. O sonho racional parece ao

alcance e ninguém está muito atento para os resultados daquilo que deseja... A inteligência emocional ainda não pôde ser integrada à inteligência

artificial racional. Essa racionalidade caracteriza hoje um modo civilizacional (e uma economia) apresentado sob o rótulo onipresente de sociedade do conhecimento, descrita na maioria dos casos como resultante da fusão entre

ciência, tecnologia e criatividade — este, mais um termo da moda. Espanta o desconhecimento, por parte de jornalistas científicos, especialistas da área e

pesquisadores variados, de uma distinção clássica essencial ao pensamento: aquela entre gênero e espécie e uma outra, entre causa e efeito, entre o todo

e suas partes. Quando se formula um triângulo conceitual como ciência-tecnologia-criatividade está-se presumindo que os três termos são distintos ou independentes uns dos outros, razão pela qual aparecem no mesmo plano e em linha. Mas, no caso da “sociedade do conhecimento” não se trata de três termos em pé de igualdade. Seria possível arguir que tecnologia não surge

sem ciência, o que já invalida o rótulo hoje massificado; mas basta apontar

para o fato de que sem criatividade não há nem ciência, nem tecnologia, o que faz da criatividade um motor interno de suas duas supostas parceiras, a

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ciência e a tecnologia, e ao mesmo tempo em algo estranho e exterior ao par. Quando se fala de ciência, já se fala implícita e automaticamente em criativi-

dade, seja como for que se a defina, e o mesmo vale para a tecnologia — que pode até subsistir sem muita ciência, em certos graus, mas que perece sem

criatividade. Racionalidade implica em criatividade, para continuar com esse termo suspeito: racionalidade deriva, depende, da criatividade. A racionalidade

é um terceiro momento do qual o primeiro é ditado pela criatividade ou, para dizê-lo melhor com Ch. S.Peirce, pelo insight, pela abdução, pela capacidade de

extrair algo de muito significativo daquilo que é ou parece ser muito pequeno

e insignificante, um quase nada, e isso por meio da sensação, do sentimento, do reconhecimento imediato proporcionado pelos sentidos, entre os quais o olho é privilegiado. Mentes poderosas saltam do primeiro — do icônico, do

perceptual — para o simbólico, o lógico com o qual a racionalidade se confunde, sem passar pelo segundo, que é o território da prática e da experiência concreta

que, aponta Weber, o Ocidente conheceu na era renascentista. A natureza

pode não dar saltos, mas a cultura dá. Esses pulos, porém, não significam desconhecimento das etapas precedentes. Um signo ou um pensamento, que

deriva de uma intuição ou insight capaz de levar a uma lei ou teoria, como a

da relatividade, só é um signo ou um pensamento quando, observou Peirce, ele se traduz em outro signo ou pensamento no qual encontra condições para desenvolver-se. O pensamento (a ciência) exige a completude, o completamento para desenvolver-se em seu máximo potencial, sem o qual nada

é. O signo e o pensamento precisam crescer incessantemente na direção de

novas e mais elevadas traduções e expansões ou não se revela um pensamento

legítimo, seminal. Isso significa que é possível pular do Primeiro para o Terceiro, campo do lógico e do teórico, mas não é possível dispensar ou ignorar ou

desconhecer o Primeiro quando se empreende a viagem rumo ao Terceiro. A ciência, o cientista, depende do Primeiro e esse Primeiro deve traduzir-se num

Terceiro mais elaborado. O artista dirá que lhe basta o Primeiro, que a lógica

e a abstração (que se faz, por exemplo, como Estética, a partir do urinol ou Fonte de Duchamp) são complementares. Sim. Mesmo isso não implica que o

Primeiro da arte não possa ser ocasionalmente, com muito esforço, traduzido ou desenvolvido num Terceiro — caso contrário, A Máquina parou não nos diria muito, não seria muita coisa.

Retornando ao ponto do parágrafo anterior: a questão é que a linguagem

computacional não integra ainda suficientemente, talvez nem de longe,

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a matéria-prima básica da racionalidade que é a iconicidade primeira do

pensamento a relacionar-se diretamente consigo mesmo e com o mundo por

meio de sensações internas e sentimentos não menos internos que, como se verá adiante no tópico dedicado à Virtualidade, não são (pelo menos

ainda) passíveis de renderização, não passíveis de serem representados pelo sistema de cálculo da inteligência artificial. E enquanto não o forem, essa

racionalidade não poderá, em princípio, alcançar seu ápice — o que dá ao homem, por enquanto, um respiro antes de ser presumivelmente superado pela capacidade de “inteligência” de um computador, acontecimento que se prevê para dentro das próximas duas décadas. O que essa racionalidade

seccionada de seu Primeiro poderá talvez provocar será o aparecimento de um mundo humano ou “humano” adaptado e moldado a seu próprio, próprio

da máquina, universo racional, um universo racional desconhecedor daquilo que hoje, no ser humano, é um Primeiro, em todos os sentidos do termo. Nessa

hipótese, a singularidade — ou fusão entre o orgânico e o maquínico — terá de

fato ocorrido mas no viés da máquina, como se diz, e não no viés do humano, na perspectiva da máquina e seus valores e não na perspectiva e nos valores humanos... Nesse momento, e com esse quadro tornado realidade, a civilização ocidental, segundo a óptica de Max Weber, terá chegado a seu limite e seu

fim e sido superada pela racionalidade da máquina que derivou do modelo ocidental de conhecimento.

A menos, claro, que se consiga renderizar sensações, sentimentos e

abduções... ◊

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COORDENABILIDADE

Consequência da racionalidade. Ou condição da racionalidade? Os seres

humanos atuais perdem-se em ineficiências pela dificuldade ou impossibilidade de pôr-se de acordo quanto ao que buscar e como fazer para chegar lá. Com a computação e copy clans (grupos de programas idênticos ou quase

idênticos que compartilham os mesmos objetivos), problemas de descoordenação podem ser evitados (qual o melhor candidato a um cargo público, qual o melhor modelo de carro). A coordenação aleatória (ou espontânea) já existe: é

o caso clássico, em economia política, da camisa azul de que alguém necessita num dado dia e que pode ser encontrada na loja da esquina como etapa final

de um processo iniciado dois ou três anos antes quando um terceiro plantou algodão em alguma terra da Ásia, colheu esse algodão, enviou-o depois para transformação em tecido na Índia de onde partiu para assumir na China

a forma final de uma camisa azul e que se encerra quando o interessado compra essa camisa azul desejada numa dada loja do Ocidente no dia em

que decide fazê-lo; denomino esse processo de inteligência global. Agora, a

coordenação passa a ser dirigida, agora o sonho da coordenação total — os planos quinquenais da URSS e seus sucessivos fracassos — ou o pesadelo da

coordenação, pode tornar-se realidade. Maior coordenação, e coordenação extrema, pode levar, na ponta negativa, à uniformidade. Os mesmos objetivos de coordenação podem ser alcançados mediante o emprego da força, da violên-

cia, de drogas em larga escala ou pela manipulação genética: comparada a elas, a digitabilidade é um soft power. Editabilidade e racionalidade são ferramentas para a coordenabilidade. O compartilhamento da memória também: memórias

em comum levam à construção da unanimidade, algo que os departamentos

de patrimônio histórico sabem ou deveriam saber; com a computação e sua velocidade própria, o tempo de aquisição e compartilhamento da memória é exponencializado. A coordenabilidade, idem. ◊

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UNIFICABILIDADE

Os seres orgânicos diferenciaram-se e tornaram-se gradativamente mais

complexos e diferenciados; os produtos da cultura computacional, como

desdobramento do fato técnico universal,75 tendem a unificar-se (e talvez

simplificar-se, pelo menos no uso). Antes, na Era Um (ou Primeira República —

resta saber se é e era de fato uma república) da cultura computacional, surgiu a possibilidade de contar com um telefone celular pessoal que compartilhava espaço, no bolso ou na bolsa, com uma pequena câmera fotográfica e um MP-3

para a música, complementados por um lap top na mochila; no carro, primeiro apareceu um rádio, depois um rádio + um toca-fitas em seguida agregados

a um CD-player. Depois ainda, o telefone celular revelou-se um pequeno

computador (de fato mais potente que os primeiros computadores gigantes, os computadores “de sala” que se podem ver no Museu do Computador aberto em Boston no ano de 1979, fechado em 2000 e que teve seu acervo transferido para o Computer History Museum da Califórnia) — integrando a seu corpo a câmera fotográfica e um estoque de música dispensando o recurso a um

toca-fitas ou CD-player; e no mesmo telefone celular foi enxertada a camada (layer) do GPS (Global Positioning System que depende, hoje, de 31 satélites em órbita) capaz de indicar a localização de seu usuário em relação a outros

pontos e sugerir o caminho a seguir; mais recentemente, o celular começa a poder ser utilizado como cartão de pagamento de despesas, substituindo

(por enquanto) o cartão de débito bancário e (em seguida, supõe-se) o cartão

de crédito. E aquilo que de início era “apenas” um fabricante de aparelhos

telefônicos portáteis e computadores, como a Apple, está no limiar de tornar-se uma gigantesca instituição financeira. A unificabilidade e a concentrabilidade manifestam-se em grau avançado nesta Era II (a Segunda República) do fato técnico computacional. Ao lado, Facebook serve (ainda) como “carteira de

identidade” suficiente para inscrever-se num site de compra de ingressos de cinema, ser admitido no site de um jornal e em tantos outros: tudo tende a

convergir para o um. O Estado quer ser sempre um, insiste Jean-Luc Godard: a cultura computacional realizará o sonho do Estado. Ou da corporação

empresarial que o substituir. Unificabilidade (uniformidade) também na cultura: não é impossível. Tampouco improvável. O fato técnico, agora não

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André Leroi-Gourhan, L’homme et la matière, op.cit.

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mais apenas dotado de uma tendência para a universalização, como na teoria de Leroi-Gourhan, mas universalmente instalado em sua unicidade, é uma

realidade. Leroi-Gourhan, morto em 1986, quando não eram evidentes as possibilidades plenas da computação pelo menos no uso cotidiano, não pôde constatar (se precisasse fazê-lo) o acerto de sua análise. ◊

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COMPLETUDE

A unificabilidade pode levar à completude, ao completamento, ao auge,

ao ápice, à conclusão, ao encerramento, ao fecho, ao término: quando tudo

estiver reunido, coordenado e unificado, a completude terá sido alcançada. O fim, também. Completude do conhecimento, completude da existência ou missão da humanidade (uma das duas missões centrais da humanidade, e a

segunda delas: a primeira consiste em procurar a felicidade o tempo todo; se a felicidade for a completude, a missão torna-se uma só). Completude, o

limite do conhecível, o limite do que pode ser conhecível, completude que ao mesmo tempo encerra e termina o avanço do conhecimento e, com ele, a razão para estar vivo — na suposição de que alcançar o conhecimento pleno

seja o ápice da felicidade...76 O fim da história do conhecimento, por meio da computação levada a seu extremo. E o fim da história — agora sim, não aquele primeiro, ideológico, anunciado em 1989 por Francis Fukuyama em seu

ensaio homônimo (The End of History).77 Esse completamento e esse término podem ser considerados tanto na perspectiva da física quanto sob o ângulo

de um outro tipo de explicação, de natureza cosmológica razoavelmente

mística (embora alguns físicos não estabeleçam fronteiras sólidas entre uma

coisa e outra). É cedo para falar-se na passagem de uma explicação física do universo para uma sua explicação cosmológica — uma explicação ou busca de explicação tão antiga quanto o homem (e se essa passagem sobrevier, a nova versão físico-cosmológica do conhecimento significará uma volta ao arcaico

ponto de partida traduzido pela tentativa de explicação da vida e do universo, sem que isso se apresente como mero retorno ao idêntico da história uma vez

que agora o instrumental teórico é outro, de clara extração científica). E essa

completude,78 esse ápice poderá agora ser alcançado porque o computador,

Ray Kurzweil, um adepto radical da eCultura, escreve, porém, que estar vivo é um valor em si, quer se alcance o conhecimento máximo ou não. Muitos insistiriam que fundamental é alcançar esse conhecimento máximo ( se não total) ou tender para ele...

Cf. também, do mesmo autor, The End of History and the Last Man, 1992. Não há traço, no horizonte, de um fim da história ideológica… salvo na utopia final.

Plenitude poderia seria um termo acaso mais nobre que pode, porém, induzir a um entendimento impróprio do fenômeno aqui discutido, a Completude. Plenitude inclui a ideia de perfeição ao passo que completude remete apenas ao que está acabado, tal qual

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a inteligência artificial, não é um meio como os outros, não é um meio como foram (e ainda são) a palavra impressa, a fotografia, o cinema, a televisão: como

extensão do homem, como extensão do cérebro do homem, o computador, o algoritmo, a inteligência artificial são desdobramentos exponenciais da

faculdade de pensar, argumentar, descobrir. Primeiro, pensar com a palavra oral e com a palavra conceitual do pensamento, como nas “escolas” helêni-

cas clássicas; depois, pensar com a palavra escrita e em seguida impressa; na sequência, pensar com a fotografia, imagem estática, e com o cinema, imagem em movimento, um pensamento possível, mas não ao alcance de todos — nem de longe: o analfabetismo da imagem é de uma amplitude abismal. Processos lentos, todos eles. A computação — por meio do aumento

crescente e incessante da quantidade de cálculos por segundo e por fração de segundo — proporcionou um salto de qualidade inédito para a reflexão humana. Quantidade altera a qualidade.

David Deutsch, em The Fabric of Reality,79 explora as ideias de Frank J.

Tipler80 sobre a possibilidade de um “Ponto Ômega”, pedra de toque da nova

visão cosmológica que, destaca Stephen Hawking (ele mesmo um “cosmólogo” — sem, contudo, compartilhar das ideias de Tipler), passou a ser admitida nos

domínios da ciência apenas recentemente, não antes dos anos 70 do século 20. A vantagem de optar por Deutsch no lugar de Tipler para proceder a uma

breve varredura desta questão deriva da reserva relativa, porém distante da

descrença, com que Deutsch recebe as propostas do colega físico: essa reserva polida basta para dar a seu raciocínio uma base suficientemente firme a partir

da qual avançar, mesmo se pouco. Seguindo na trilha proposta por Teilhard de Chardin,81 Tipler descreve o Ponto Ômega como o instante final do colapso do

universo provocado pelo evento oposto ao Big Bang, um Big Bang com sinal

negativo: o Big Crunch, resultante de uma deformação do espaçotempo. Depois acabado. O conhecimento a ser alcançado com a cultura computacional é o conhecimento do que pode ser conhecido, não o conhecimento perfeito e último, que não pode ser ampliado e superado — se isso existir.

Penguin Science, 1997.

Frank Tipler, The Physics of Immortality, Doubleday, 1995.

É de Teilhard de Chardin a ideia vitalista de um Ponto Ômega, retomada por Tipler, entendido como o nível máximo de complexidade e consciência em cuja direção o universo como um todo estaria e sempre esteve se dirigindo.

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da explosão criadora do universo, tudo termina agora no caos absoluto de uma implosão que tudo consome, mas que ao mesmo tempo possibilitaria o alcance da completude computacional e, com ela, a completude do conhecimento

possível. Como o princípio de Turing aponta para o fato de não haver um

limite superior para o número de procedimentos computacionais fisicamente possíveis, o Ponto Ômega seria o único tipo de fenômeno cosmológico no qual

um número infinito de procedimentos computacionais poderia ocorrer (num tempo finito) — e é esse número infinito de procedimentos computacionais

que permitiria, nesse ponto-limite, instante final do universo, compreender

tudo que pode ser compreendido, alcançar (a humanidade ou aquilo em que tiver se transformado) o conhecimento de tudo aquilo que pode ser conhecido.82

Ou que pode ser compreendido na fração de segundo imediatamente anterior ao Big Crunch já que ninguém poderá experienciar fisicamente esse ponto final e viver para contar a história. Nessa perspectiva, graças a um número infinito de procedimentos computacionais, o encerramento é o alcance da

completude e a completude é o fecho. Tudo que puder ser compreendido, terá sido nesse instante compreendido. Não haverá registro desse conhecimento absoluto uma vez que ninguém a ele sobreviverá e não haveria motivo para registro uma vez que nada mais existirá além do desfrute virtualmente infinito

desse instante de conhecimento pleno e ninguém existirá para receber esse conhecimento como legado. Esse conhecimento não terá destinatário.83 Não importa: ele será desfrutado — enquanto durar esse instante.84

E a ressalva deixa claro que essa operação, mesmo sendo uma função logarítmica e não uma divisão, comportaria um resto: aquilo que não pode ser conhecido.

Se o conhecimento máximo for alcançado pela mente universal que fez convergir em si todas as mentes individuais — apesar das ressalvas de Simone Weil contra tudo que for coletivo — não haverá necessidade de destinatários uma vez que o conhecimento será uma implosão dentro da mente única formada, outra alegoria da mente de Deus ou de Deus, todo ele.

Michel Maffesoli usa expressão sugestiva que poderia ser aplicada a esse instante infinito: instante eterno, título de seu livro homônimo dedicado não ao tema aqui abordado, mas à experiência de vida na era contemporânea (à época de seu lançamento, 2003) em sua cotidianeidade mesma. Maffesoli descrevia esse momento como aquele correspondente ao encerramento de um longo período na história da humanidade no qual as questões do presente encontrariam resposta apenas no futuro, assim como, por exemplo, a ideologia comunista propunha para um incerto tempo “mais adiante” a correção da sociedade injusta, nunca alcançada pela primeira geração de revolucionários, nem

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A proposta de Tipler é tida, por parcela significativa da comunidade de

físicos, como pseudociência ou, quando a crítica é talvez mais suave, como

“delírio desinteressante” por não poder ser posta à prova, nem medida.85 Sua pela segunda, nem pela terceira, nem pela quarta... Nesse livro, Maffesoli descreve a nova sensibilidade como própria de um presente continuado traduzido num universo de rituais, prazeres e imaginários variados compartilhados aqui e agora, um reencantamento do mundo alcançado depois da constatação de Max Weber de um mundo que já a seu tempo, e muito antes, tornara-se desencantado consigo mesmo. Maffesoli propõe a ética do trágico como própria dessa nova sensibilidade da festa do presente entendida como destino do homem, um homem que aquiesce à plenitude do instante reforçada pela aceitação consciente do efêmero. Maffesoli não julga esse quadro, embora não deixe de vê-lo como positivo quando comparado às ilusões da utopia do futuro que vieram abaixo com a queda do Muro de Berlim em 1989 e com o fim da URSS dois anos depois. O instante eterno cabe, como rótulo alternativo, ao conceito de Ponto Ômega de Chardin, retomado por Tipler, inclusive como indicador de um presente não apenas aceito como buscado. De resto, Chardin não é a única referência a que remete a menção ao Ponto Ômega: o elo com a ideia de nirvana é direto. No budismo, nirvana é a extinção (do sânscrito para “ato de apagar a chama”) do ciclo de nascimento, vida, morte e renascimento, o apagar da chama do eterno retorno que possibilita a quietude resultante da completude pela realização do não-eu (o que Simone Weil designa como impessoal) e o advento do nada, do vazio. Giorgio Agamben, em Karman: A Brief Treatise on Action, Guilt and Gesture (Stanford University Press, 2018), recusa o conceito de que o nirvana, com a cessação da dor de existir, seja o nada: sugere que o nirvana é o não-nascido que surge em todo nascido, a não-ação que surge em toda ação nesse instante “em que a imaginação e o erro condicionados pela ignorância são suspensos e desativados”. Esse é, na verdade, outro modo de descrever o instante eterno que é a Completude, o Ponto Ômega. Agamben não se interessa (até aqui, em todo caso) pela teoria da informação e pela cosmologia como Tipler, Deutsch e mesmo Hawking a desenvolvem; mas a convergência entre representações (renderings) oriundas de diferentes matrizes amplamente separadas pela geografia e pelo tempo (na relação aqui mencionada, o budismo, o cristianismo de Chardin e a cosmologia contemporânea — e à qual pode-se acrescentar mesmo a arte cinematográfica de 2001) — é evidente demais para que não se atribua à Completude, como quer que se a denomine, o caráter de um autêntico mitologema da humanidade, da humanidade como um todo e não apenas de sua porção ocidental — talvez o mitologema central da narrativa que o homem se fez e faz.

85

O fato de Tipler ser um discípulo de Teilhard de Chardin (1881-1955), jesuíta e filósofo idealista, é suficiente para muitos físicos descreverem suas teorias como pseudociência. Outros tantos físicos, porém, reconhecem suas próprias crenças religiosas e não as veem como obstáculo a suas pesquisas. É significativo, de todo modo, esse retorno

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argumentação ou seus delírios86 sugerem, no entanto, uma potência heurística

relevante que permite enlaçar, talvez num tecido único, uma série de questões culturais caras à humanidade e que a perseguem desde seus primeiros instan-

tes. Tal como Tipler o entende, o Ponto Ômega87 manifesta uma proximidade

com a noção de numinoso, essa emoção com valor epistemológico para além do racional, identificada como própria das religiões e que pode encontrar-se

também em algum constructo filosófico laico ou poético, neste último caso sob a figura da epifania. No cinema, por exemplo, o filme 2001: Uma Odisseia no Espaço, de Stanley Kubrick, lançado em 1968, pode ser entendido (mesmo que não o diga em momento algum) como representação fílmica ficcional do Ponto Ômega.88 Sob um ângulo crítico, 2001 apresenta-se como uma combinação

kitsch, esteticamente não muito sagaz, entre misticismo e cientificismo permitida por uma tecnologia cinematográfica de ponta (à época) e escorada no

conhecimento científico de Arthur Clarke, co-roteirista da película, graduado em física e matemática pelo King’s College de Londres embora mais conhecido

como divulgador da ciência e consagrado escritor de ficção-científica. Dizer que 2001 é o filme mais influente de todos os tempos, como afirmado neste

2018 quando da comemoração de seus cinquenta anos, é patente despropósito; seu esforço por dar tons sublimes ou, em todo caso, eruditos a um produto

da cultura de massa com o recurso à música de Richard Strauss (Also sprach

Zarathustra), Johann Strauss (Danúbio azul) e o menos conhecido Geörgy Ligeti

(no filme representado por trechos de “composições atmosféricas” usadas, ao que consta, sem permissão do autor), chega a ser no mínimo tão ou mais

incômodo do que aquele gerado pelos filmes de Walt Disney e seu uso do mesmo estoque simbólico da música erudita (sem, no entanto, que Disney

a Chardin que parecia definitivamente sepultado sob o materialismo ideológico do século 19 e o pragmatismo científico do século seguinte.

A respeito da ideia de delírio, cf. a seção Virtualidade.

Ômega é a vigésima quarta e última letra do alfabeto grego. Significa “grande O”, em oposição a ômicron, “pequeno o”. Por ser a última letra desse alfabeto, é usada, como no caso de Ponto Ômega, como signo para a ideia de derradeiro, ponto mais extremo, último e definitivo em contraste com alfa ou alpha, primeira letra do alfabeto grego.

O filme pretendeu ser numinoso, quis proporcionar uma epifania para o espectador tanto quanto apresenta seu personagem central num estado final numinoso. Não é pouca pretensão, pelo contrário: é própria da grande arte mesmo se o filme, ele mesmo, escape a essa categoria. Para muitos espectadores, no entanto, esse filme foi uma epifania.

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tivesse a mesma soberba: Disney estava no campo confesso do entretenimento

de massa, Kubrick buscava o oxímoro que seria uma “cultura de massa erudita”, algo que deságua inelutavelmente no kitsch). De todo modo, 2001 chamou a

atenção e foi e é discutido por seus aspectos místicos e filosóficos ou “filosófi-

cos” tanto quanto, ou mais do que, por sua tecnologia cinematográfica. O final

do filme mostra o personagem principal rumando para um “novo paraíso”, um novo estágio da humanidade que morre e ressuscita para um mundo

melhor (destaco esse ponto porque a ideia de paraíso é explicita e central na

argumentação físico-cosmológica de Tipler e, talvez com insistência apenas pouco menor, na de Deutsch igualmente). Bowman, nome do personagem de

2001,89 depois de envelhecer e morrer, ressurge na forma de um bebê, star child, num universo hiper-tecnológico ou, em todo caso, pós-exploração do espaço. O

renascimento como redenção é uma velha ideia e aspiração da humanidade, cristã ou não, e Kubrick serviu-se dela em sua parábola científico-mística. A aproximação entre religião e ciência “de ponta” é uma fonte de inspiração

com frequência explorada pela ficção científica. Vista com os olhos de hoje, e talvez também com os olhos dos melhores físicos do final dos anos 60, a proposta de Kubrick é nebulosa, provavelmente pensada para ser nebulosa

ou nebulosa porque seu autor não dispunha de melhores opções. Ou ambas as coisas. A passagem de Bowman pelo “túnel psicodélico” na parte final da película — cenário em tudo próprio aos anos 60 e àquele particularmente

psicodélico e hippie ano de 1968,90 numa sequência excessivamente longa de

Não tenho registro de outras reflexões sobre o significado desse nome e do papel correspondente atribuído ao personagem, nome no entanto claramente simbólico que precisa ser explicitado pelo menos para os espectadores que não têm no inglês seu primeiro idioma: Bowman significa, literalmente, o “homem do arco” ou “o homem da proa”, “um homem de proa”, quer dizer, o homem que ficava na frente (do navio, nos primórdios da navegação aventureira) olhando para o que pudesse estar à frente e vir pela frente, o homem que vê antes dos outros o que está por vir, o homem que está na frente, que se atira para a frente, o homem que chega antes, um homem de ponta, um homem na vanguarda, o homem que chega antes dos outros. O nome foi opção consciente ou intuitiva de Kubrick, não importa: não poderia ser mais adequado à narrativa do filme.

Os hippies, recorde-se, estavam bem afastados dos jovens revolucionários que queriam declarar guerra à sociedade e construir um “mundo novo” na ponta da baioneta ou com o “livrinho vermelho”de Mao servindo de picareta (o filme A Chinesa, de Godard, registrou a importância, física e visual, desse pequeno livro). E esses mesmos hippies,

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cores deslizando velozes pela tela como num caleidoscópio infantil — sugere o atravessamento de um buraco negro do qual nada pode escapar, nem a luz,91

muito menos um ser humano em qualquer de suas formas, inclusive a de um

bebê. Se a teoria do Big Crunch estiver correta, depois desse esmagamento sobrevém o nada. Essa teoria, no entanto, encontra adversária na tese de que o universo continuará a expandir-se e é espacialmente infinito; Deutsch

reconhece a existência dessa hipótese contrária à de Tipler embora sem se

deter em suas implicações e desdobramentos como faz com a de Tipler. Ambas, porém, coincidem num ponto: a capacidade máxima de computação que se alcançaria no instante final do universo, graças à tremenda energia então

liberada a servir de alimentação do supercomputador final,92 poderia ser, do

mesmo modo, hipotética e gradativamente alcançada ao longo da expansão

infinita do universo dado que, nesse caso, haveria uma fonte ilimitada para a

confecção da memória adicional exigida por essa computação exponencial. Deutsch adverte, porém, que a densidade da energia disponível para alimentar

o computador final diminuiria à medida dessa mesma expansão infinita do os jovens da era “make love not war” sempre disponíveis para uma viagem movida a drogas alucinógenas, acorriam em grande número a assistir 2001, ficando registrado que durante algumas das projeções do filme nos EUA fumavam-se “funny cigarettes”… No Brasil, o ano de 1968, encerrando-se com o Ato Institucional número 5, propunha à mesma geração outro tipo de realidade e preocupação, bem mais imediata e dura e que era o exato contrário de uma trip, a realidade gerada pela ditadura militar daquele momento — mesmo se boa parcela dessa juventude não fosse surda aos encantos da nova estética e do novo comportamento.

Em setembro de 2018, divulgou-se que em seu último paper, Stephen Hawking (falecido em março desse mesmo ano) e colegas atreveram-se a sugerir que seria possível comprovar a ideia de que a informação poderia, pelo menos em parte, escapar de um buraco negro, embora essa hipótese esteja longe de aceitação pacífica. Esse artigo foi retomado por Hawking em seu livro póstumo Brief Answers to the Big Questions, publicado também nesse mesmo setembro.

Em seu livro póstumo, Stephen Hawking estima que um buraco negro do tamanho de uma montanha geraria dez milhões de megawatts de energia, suficientes para fornecer toda a eletricidade hoje necessária para o mundo. Como comparação, no centro da Via Láctea, galáxia em que se encontra a Terra, existe um buraco negro quatro milhões de vezes o tamanho do Sol; a energia gerada por um Big Crunch é de uma grandeza descomunal. O único problema seria estocar e usar essa energia: se colocada numa casa de força, mesmo o “pequeno” buraco negro equivalente a uma montanha atravessaria o piso e acabaria no fundo da Terra...

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universo e teria de ser coletada, para que o processo continuasse, em campos

sempre mais distantes...talvez em outros mundos ou em outros universos, como há tempos propõe a ficção científica — e não só ela, nem só alguns

físicos adeptos dos delírios desinteressantes, mas um físico nada delirante nem alucinado como Newton, que sugeriu a ideia do multiverso em seu Ópticos

(1704), ideia agora retomada e expandida por físicos contemporâneos como o próprio David Deutsch.

A situação resultante, num caso e no outro, assumiria a forma do “novo

paraíso” tecnológico e pós-tecnológico de 2001? Não há indício dessa pos-

sibilidade: o Ponto Ômega, o instante eterno, pode ocorrer como hipótese teórica, mas não haverá um momento pós-Big Crunch a propor-se como paraíso continuado, em particular na perspectiva do conhecimento em seu estádio atual. Um dos fatores dessa falta ou insuficiência de fé no novo paraíso é que o aumento do conhecimento traz consigo, necessariamente, novos e

maiores desafios a serem enfrentados e resolvidos caso a humanidade queira continuar existindo — exatamente como hoje. E se esses desafios não forem adequadamente resolvidos, o céu (o paraíso) certamente deixará de nos

abrigar, ao contrário do que sugere o romance homônimo de Paul Bowles,93 e

simplesmente desabará sobre nossas cabeças assim como fortemente ameaça desabar hoje neste início de século 21 assombrado pela catástrofe da natureza

que, prematura na história da humanidade, talvez não lhe dará o tempo

necessário para preparar-se e evitar o final possível e cada vez mais visível. Por mais improvável que se considere a hipótese do novo paraíso, a presença

e permanência de um sentimento místico entre os físicos, como resquício

resiliente, mesmo quando discordam uns dos outros, é sugestiva e faz pensar. A ideia do paraíso efêmero (porém eterno) decorrente do Big Crunch ou

de um paraíso mais durável como o que parece encontrar o bebê Bowman

(ou a humanidade Bowman), ressuscitado em ser humano novo pronto para novo desenvolvimento, traz consigo todas as figuras tradicionais da narrativa 93

Paul Bowles, The Sheltering Sky, 1949. Para descrevê-lo de modo extremamente sumário, o romance evolui ao redor dos limites da humanidade frente ao vazio impenetrável e à crueldade, ou melhor, à indiferença do deserto diante do homem, pertinente parábola da viagem da humanidade pelo cosmo. O livro de Bowles inicia-se com uma sugestiva epígrafe retirada de Eduardo Mallea: “O destino de cada um só é pessoal na medida em que se parece com aquilo que já está em sua memória”.

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religiosa ou mística. David Deutsch não deixa de atualizar Tipler quando diz

que o conjunto de comunidades sobrepostas baseadas num conhecimento

progressivamente expandido será muito diferente da figura de um Deus, alojado em algum paraíso como na ideia de Chardin e ainda venerado pelas pessoas com sentimentos religiosos; será, porém, esse mesmo conjunto, “ou alguma subcultura dentro dele”,94 que “nos ressuscitará caso Tipler estiver correto”, Deutsch apressa-se a reconhecer. Para físicos que defendem a teoria da Big Expansion, a rigor uma expansão continuada, a probabilidade é que o

próprio universo expandido, um infinito espaço expandido, seja, ele mesmo, Deus — ou a consciência de Deus, o que dá no mesmo: uma consciência de Deus transmutada em espaço infinito que nunca teve começo e nem terá fim e

que está por toda parte ao mesmo tempo e é todo-poderosa, se não o suficiente

(ainda) para reparar as imperfeiçoes de design do homem (como a morte, que requer uma ressurreição para ser sanada), pelo menos poderosa o suficiente

para conhecer a si mesma infinitamente naquilo que existe para ser conhecido. As teorias físico-cosmológicas atuais não estão distantes daquelas defen-

didas pelos biocosmologistas-imortalistas do início do século 20, vários deles

socialistas e comunistas (físicos e filósofos, assim como artistas — Malevich

por exemplo — estiveram envolvidos no movimento) e próximos, em graus variados, dos líderes da revolução de 1917. Os biocosmologistas-imortalistas

afirmavam, de modo surpreendente,95 não ser possível para o socialismo declarar-se vitorioso enquanto não ressuscitasse os mortos de modo a permitir-lhes

gozar, eles também, dos benefícios prometidos por aquela ideologia... As teorias físico-cosmológicas de hoje aproximam-se daqueles ideais do final do século

19 e início do 20 ou deles não se distanciam muito. À época da revolução russa

fundou-se, nessa linha, o partido político dos “biocosmologistas-imortalistas” inspirados pelas ideias de Nicolai Fyodorov (1828-1903), Konstantin Ciolkowski (1857-1935) e Alexander Bogdanov (1878-1928). Tratava-se, para os partidários

desse grupo definidor do “cosmismo russo”, de combater o envelhecimento,

manter as pessoas na juventude eterna e acima de tudo ressuscitar os mortos,

David Deutsch, op.cit, cap. 14, “The ends of the universe”.

Surpreendente, isto é, na perspectiva de hoje e no contexto da teoria política por eles adotada naquele momento — política que posteriormente expurgou de seu corpo, e do território por ela dominado, qualquer referência a esse mesmo movimento e a qualquer outra ideia com tons místicos, ou análogos.

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que teriam o direito de participar do futuro melhor prometido pelo socialismo comunista que se espalharia pelo universo e o colonizaria (e aqui uma outra ponta desse tecido liga-se ao Bowman de Kubrick).

Não é mera coincidência, por certo, que a ideia de ressuscitar os mortos surja

outra vez em Tipler e Deutsch: 96 esse é um tema tão velho quanto a existência

do homem, tema quase-limite para o conhecimento, questão epistemológica

que Deutsch, de seu lado, não poderia deixar de abordar uma vez que um de

seus pilares metodológicos é a epistemologia de Karl Popper. Tipler observa

que uma tecnologia suficientemente avançada poderia trazer os mortos de volta à vida. Para o cosmismo russo esse processo seria mais cru: os mortos

simplesmente se ergueriam de seus túmulos (nada se dizia sobre os incinerados). No Ponto Ômega, quando se disporá ou se disporia de suficiente poder

computacional,97 de “força bruta” como se diz, e da energia requerida e nesse instante abundante, seria possível obter uma representação, uma reprodução

(rendering98), com o grau de acurácia necessário, de todo o universo desde o momento do Big Bang. Para o computador final, nada é impossível em termos

96

Não há, nos textos de ambos, referência a esses autores russos, nem mesmo a Bogdanov, aquele com mais estofo científico. Ou não os conhecem ou não os consideraram suficientemente científicos para sua narrativa — o que não é bem o caso.

A viabilidade desse potencial é tema controvertido, como os demais desta rubrica. Sob um aspecto, no gráfico até há pouco ascendente da capacidade de computação observa-se um nivelamento ou achatamento (um flatenning up) da curva a partir de 2002…

O termo renderização já começa a ser usado em português (pelo menos no português falado no Brasil) para descrever o modo de organização de um conjunto de bits ou qbits derivado de um objeto (texto, som, imagem — a palavra imagem aplica-se a todos esses casos) e reproduzido, por um software, com o grau de acurácia possível de modo a apresentar-se como um símile do original. O termo simulacro, tanto quanto representação e reprodução, não é adequado: o objeto resultante de uma renderização é a coisa renderizada ela mesma, a distinção entre original e sucedâneo torna-se gradativamente mais difícil (e irrelevante) na proporção do poder de computação disponível. Cf. o item Virtualidade. (Esse é o motivo de minha discordância e, mesmo, aversão às ideias de Jean Baudrillard sobre o simulacro: Baudrillard não chegou a compreender que tudo é realidade virtual ou pode ser considerado sob essa perspectiva.) Em francês o termo é reddition, do latim reddition, de redditus, particípio passado de reddere, dar de novo, devolver. O sentido torna-se explícito, agora: devolver a uma coisa aquilo que é (ou foi) próprio dela. Um sentido pleno de expectativas. Cf., adiante, no tópico Virtualidade, a nota 145 e a menção ao filme Solaris, de Andrei Tarkovski.

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de processamento: na perspectiva da computação, só há dois tipos simples, ou simplistas, de temas, o computável e o não-computável — e renderizar objetos

e ambientes físicos reais definitivamente entra na categoria do que é computável, insiste Deutsch. Os mortos podem ser renderizados e colocados num

ambiente virtual superior no qual não voltarão a morrer99 e onde terão tudo

que quiserem (desde que o desejado possa ser tratado pelo computador final). Nesse ponto, Deutsch introduz em seu texto uma consideração pertinente

mesmo que se despreze toda sua argumentação em favor da possibilidade da

ressurreição como mero “delírio desinteressante”. Perguntando-se a si mesmo por que, afinal, seriam os mortos ressuscitados, Deutsch avança uma simples questão moral: pelos padrões desse futuro distante (possivelmente, entre 4

e 5 bilhões de anos a partir de agora — mas tudo que se imagina que possa acontecer nesse momento influi sobre o que se faz e sobretudo sobre o que se pensa nestes dias atuais), o meio em que vivemos hoje neste início de século 21

é extremamente rude e nele “sofremos atrozmente”. É possível descartar todo

o resto de suas reflexões, mas convém entre elas resgatar esta constatação: nosso ambiente neste início de século 21 é rude e áspero e selvagem e nele

sofremos atrozmente. Não é assim? Quando comparado a instantes do passado, o século 21 pode parecer maravilhoso, assombroso. Mas é preciso ter sempre em mente que este século 21 é ainda “extremamente rude”: precisamos ser

lembrados disso com frequência, temos o mau hábito de avaliar (e valorizar)

o presente a partir do passado: é conveniente fazê-lo em relação ao futuro, também, como sugere Deutsch. Partes deste lugar Terra parecem o paraíso em termos de vida amena, consumo e prazeres variados; mas mesmo esses, com

as desgraças e catástrofes atuais às quais se somam o terrorismo e as sandices humanas a colocar o planeta à beira do abismo, padecem ou padecerão em

breve das mesmas dores. Não teremos direito a ressuscitar, um direito moral a ressuscitar? Deutsch parece reproduzir aqui quase ipsis litteris as ideias e

os argumentos dos biocosmologistas-imortalistas-socialistas-comunistas do

início do século passado. A ressurreição, de todo modo, não seria em si e por si nenhum mar de rosas: admitidos no novo ambiente, os ressuscitados se 99

Outra versão dessa situação e desse processo encontra-se no romance de Adolfo Bioy Casares A invenção de Morel (1940), de cenário rudimentar quando comparada à tecnologia atual, mas que Jorge Luis Borges definiu como “de trama perfeita”. Anos e anos depois de ler pela primeira vez este magnífico romance, e relê-lo e voltar a lê-lo, ao mergulhar no universo da física e da computação definitivamente entendi os motivos da avaliação do poeta argentino.

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descobririam de imediato confusos, humilhados (como os imigrantes que hoje

em massa chegam à Europa), tudo lhes pareceria fora de lugar e de alcance e distante de sua compreensão, tornando necessário remover desse ambiente

muito do que causasse estranheza e nele acrescentar outro tanto de elementos “extremamente prazerosos”. Esse seria, mesmo assim, acrescenta Deutsch, “o paraíso”. Parece um paraíso. Curiosamente, nenhuma linha é acrescentada

sobre a quantidade de ressuscitados, em número de bilhões, que infestariam o universo, mas provavelmente a resposta seria que o computador final teria

como dar solução para todas as hipóteses... Gostaria de continuar a exploração e a verificação das ideias do par Tipler-Deutsch sobre esse tema, mas não é tarefa que caiba aqui, o leitor terá de ir atrás dos originais. Se incluo o tema da ressurreição é, com evidência, pelo lugar que ocupa no pensamento da

humanidade, como imaginário ou delírio, e pelo fato de ter sido inscrito no programa político e científico de mentes que foram tão brilhantes e agudas quanto permitido pelo momento em que estiveram vivas e ativas.

Rejuvenescimento, retorno à vida e imortalidade eram os pilares dessa

primeira biopolítica compartilhada em maior ou menor grau por diferentes

personalidades das primeiras décadas do século 20. Alexander Bogdanov, físico, filósofo, autor de ficção científica e revolucionário bolchevique de primeira hora oriundo da Bielorrússia, foi figura de proa (outro Bowman) nesse cenário.100 Amigo de Lenin, com quem jogava xadrez, cujas opiniões Lenin

apreciava e de quem Bogdanov foi rival até ser expulso do partido em 1909

(ano em que Forster publicava seu A máquina parou), dedicou-se aos estudos

da transfusão de sangue como meio de obter-se não apenas a juventude permanente como de espalhar o conhecimento por toda parte. Propondo uma filosofia original a que denominou tectologia,101 Bogdanov relata em seus

Ciolkowski foi outro nome destacado nesse grupo. Em 1933 antecipou a formulação do “paradoxo de Fermi”, de 1950, sobre a aparente contradição entre a falta de indícios concretos de vida inteligente extraterrestre e a alta probabilidade estatística de sua existência (cf. “The Planets are Occupied by Living Beings”, Arquivos do Museu Estatal Ciolkowski para a História da Cosmonáutica, Kaluga, Rússia). Em 1975, também Frank J. Tipler interessou-se pelo tema ao ampliar a formulação inicial de Michael H. Hart para o que passou a ser conhecido como “o argumento Hart-Tipler” em substituição ao “paradoxo de Fermi”.

Bogdanov entendia a tectologia (do grego τέκτων, téktōn, “carpinteiro”: tectologia, estudo da construção) como a sistematização da experiência organizada por meio da

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escritos uma transfusão de sangue entre uma jovem saudável e um velho literato, após a qual a jovem teria se sentido mais sábia e o velho, mais vigoroso

(talvez Bogdanov impressionou-se com ou inspirou-se num provérbio francês que não deve ter desconhecido: “si jeunesse savait et si vieillesse pouvait”).102 No seu entendimento, transfusões de sangue em escala mundial trariam a

possibilidade não apenas de garantir a juventude eterna como de penetrar no

campo do conhecimento maior e final graças à troca incessante, entre todos os

viventes humanos, de todas as informações disponíveis acumuladas. A menção

a essas suas ideias sobre transfusão de sangue não teria maior pertinência,

aqui, não fosse o fato de que o sangue nesse caso funcionaria, para Bogdanov, que não o podia saber ou traduzir nesses termos, como um computador natural

e universal, um tipo de computador orgânico.103 O sangue e, portanto, o corpo

como um computador natural. E o que se alcançaria ao final do processo, tanto na versão de Bogdanov quanto na de Tipler e seu Ponto Ômega, seria uma unidade de mentes — necessária para a computação ampliada — e de

corpos.104 O totalitarismo instalado nas cabeças fundantes da revolução russa era correspondido ou reverberado pelo totalitarismo dos “cientistas” ou cientistas da época e por não poucos artistas. Bogdanov, no entanto, nos limites da

ciência do momento, não criava apenas fantasias. Sua tectologia, ou ciência da identificação de certos princípios organizacionais universais. Tudo que existe tem um caráter organizacional e encaixa-se num complexo de componentes. Uma decorrência essencial é que todo complexo organizado e estável é maior do que a soma de suas partes. Edgar Morin tem dedicado parte considerável de sua atenção tardia ao pensamento complexo.

Se a juventude soubesse e se a velhice pudesse.

Depois de dezenas de transfusões a que ele mesmo se submeteu, na última delas Bogdanov contraiu uma infecção e morreu: no mínimo, não se pode descrevê-lo como cínico charlatão, ele acreditava no que propunha…

Antes de alcançar a imortalidade, as pessoas seriam colocadas nas “salas de espera” (expressão de Bogdanov) em que se transformariam os museus e equivalentes e ali receberiam todo o bom conhecimento necessário à nova viagem da humanidade rumo a esse paraíso que seria chocante para os que não estivessem intelectualmente preparados. A ideia de alimentação do cérebro está próxima demais daquela de alimentação do computador para ser deixada de lado; a memória dos viventes seria assim ampliada, refeita, reorganizada, reformatada — e a epígrafe escolhida por Bowles para seu The Sheltering Sky revela seu poder heurístico: “o destino de cada um é pessoal apenas na medida em que se parece com aquilo que já está em sua memória”…Cf. Virtualidade.

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organização universal, antecipou a análise de sistemas mais tarde explorada

pela cibernética, cujas noções centrais ele identificou e que foram divulgadas por Norbert Wiener em seu livro Cybernetics or Control and Communication

in the Animal and the Machine, de 1948 (permanece a possibilidade de que

Wiener leu o livro de Bogdanov, Tectology, publicado em 1928). Obviamente, Lenin e Stalin consideraram a filosofia natural de Bogdanov uma ameaça

ideológica ao materialismo dialético, tanto mais quanto Bogdanov defendia também causas feministas e outras consideradas, pelo marxismo-leninismo oficial, como desviantes e retardantes da luta principal do comunismo, voltada

naquele momento, tanto quanto no tempo de Fernando Gabeira e seu O que

é isso, companheiro?, apenas para a conquista do poder e o controle do Estado sob todos os aspectos, sem espaço para os temas do sexo e da mulher vistos como periféricos, superestruturais...

Enquanto isso, a humanidade deveria tratar de colonizar o universo — tese

de Konstantin Ciolkowski, outro biocosmologista-imortalista — como modo de escapar a uma Terra já naquele momento vista como superpovoada e sofrendo

de uma emergente escassez de recursos materiais. Todo esse cenário passa hoje por uma atualização: não se trata propriamente, ou não só, de colonizar o universo, ideia correspondente à política do “espaço vital” da época, mas

de espalhar a computação pelo espaço em busca, não só de matéria-prima, mas do bem ou da commodity suprema: a energia, a energia requerida pelo

computador universal para processar o conhecimento de tudo, a compreensão do todo.

Os biocosmologistas-imortalistas não operavam com a ideia de Deus, de

fato substituíam-na pelo do Estado. A física, ou em todo caso a física-cosmoló-

gica contemporânea, não é infensa à busca de Deus por uma via alternativa à da religião e das derrapagens cientificistas do partido da primeira biopolítica.105

De resto, ciência e tecnologia podem inspirar e buscar uma religião tanto quanto qualquer outra atividade humana e E. M. Forster percebeu-o em seu surpreendente livro premonitório A máquina parou,106 publicado naquele

mesmo 1909 em que Bogdanov era expulso do partido. Apesar de ter sido a

Cf. “Manifestos da imortalidade” in Alexander Kluge, Notícias da antiguidade ideológica: Marx, Eisenstein, O Capital; Versátil Video, 2013.

E. M. Forster, A máquina parou, op.cit.

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religião banida também do mundo controlado pela Máquina (um compu-

tador, sem que Forster quisesse ou, mais provavelmente, pudesse usar esse nome), a certa altura uma nova religião brota, ressurge dentro desse mundo tecnológico perfeito, e o faz na forma de adoração da própria Máquina, quer

dizer, do computador, esse novo Deus. O conhecimento avançado (embora não houvesse propriamente uma progressão do verdadeiro conhecimento

no mundo imaginado por Forster: o leitor deverá remeter-se à novela para entender por quê) parece não eliminar o misticismo mesmo se, ao ressurgir a

religião na novela de Forster, a humanidade servida e controlada pela Máquina não estivesse ainda ameaçada por alguma crise que justificasse, naquele

momento, o recurso a um deus. A ampliação do conhecimento, como bem

destacado por Deutsch, leva à ampliação dos erros, numa proporção direta: quanto maior o conhecimento, maior a dimensão e o alcance dos erros... Essa equação permite entender muito da neobarbárie que neste mesmo ano de

2018 espalha-se por toda parte no mundo, inclusive neste mesmo país Brasil. Na teoria de Tipler em razoável medida aceita por Deutsch — pelo menos,

diz ele, como ponto a considerar enquanto outra melhor não surge —, o espaço onde se localiza esse Ponto Ômega estará inteiramente tomado pela superinteligência artificial geral que, portanto, será onipresente107 (embora

107

Ray Kurzweil defende a mesma hipótese em sua tese da “lei dos retornos acelerados”: essa aceleração da computação e do conhecimento continuaria até que a inteligência não-biológica “sature” a matéria e a energia, na região mais próxima do universo, com a inteligência maquínico-humana. Saturação significa o recurso aos padrões de matéria e energia num grau ótimo (o melhor em dada circunstância); e o processo continuaria até a ocupação do resto do universo, que ficaria saturado com a inteligência humana. “Esse é o destino do universo”, Kurzweil afirma. Kurzweil pode ter lido Novalis, embora improvável. Mas ele parece estar citando Novalis quando este tratou do “uso ativo do órgão mental”, da inteligência. Quando o homem conseguisse mover seus órgãos internos, e todo ele, fazendo de tudo isso uma só entidade, ele se tornaria independente da natureza e conseguiria forçar seus sentidos a produzir para ele as formas que quiser, o homem estará vivendo em seu mundo. O homem só não o faz por uma preguiça espiritual. Se a deixar de lado “e dar forma a nossa atividade, nós nos tornaremos destino. […] Somos negativos porque queremos ser: quanto mais positivos nos tornarmos, mais o mundo à nossa volta se tornará negativo até que, no fim, não haverá mais negação alguma e nós seremos tudo em tudo. “Deus deseja os deuses.”(Philosophical Writings, frag.1682). Em outra tradução do trecho final, “Deus quer que existam [outros] deuses”. Se não o homem orgânico, em todo caso a superinteligência artificial geral

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apenas a partir de uma certa data, por dizer assim: o momento e a hora do próprio Ponto Ômega, esse ponto último); e uma vez que esse espaço igual

ao computador superinteligente estará continuamente reconstruindo a si próprio de modo a pelo menos atrasar o colapso gravitacional108 inevitável do

Big Crunch configurador do Ponto Ômega — colapso no entanto necessário

para a geração da energia máxima requerida pela computação final —, esse espaço-computador estará no controle de tudo que acontece no universo e

portanto será onipotente; e como a passagem pelo Ponto Ômega fornece o

conhecimento máximo possível, esse espaço-supercomputador será onisciente. De imediato, brota outra vez, para a humanidade tal como existe e se conhece até hoje, a ideia de um ser superior que ela se habituou a identificar como

um deus ou Deus e que de fato estaria ou estará talvez dentro dela, seria ou será — hipoteticamente, um dia — ela mesma. A humanidade do Ponto

Ômega será sob algum aspecto fisicamente diferente, mas a inteligência no

computador final será um pensador criativo que deve, anota David Deutsch, ser considerado como “pessoa”. O computador universal é uma pessoa, qualquer

outra denominação que se lhe dê, insiste Deutsch, seria “racismo”; negar ao computador um estatuto equivalente ao de uma pessoa e, mais, negar-lhe

inteligência e consciência seria discriminatório — o que torna diletante a discussão atual sobre a possibilidade de uma consciência maquínica. As

pessoas superinteligentes, graças ao supercomputador último, seriam, elas mesmas, seu próprio Deus. Bogdanov e os biocosmologistas-imortalistas não

poderiam ter sonhado com a grandeza dessa pretensão, o que os transforma

em poeira na história da evolução do pensamento e da humanidade se ela

caminhar no rumo defendido por Tipler-Deutsch (uso a palavra evolução com todo o peso que tem na teoria da Darwin). Mas, voltando bem atrás no

tempo, e retornando à mitologia clássica, a cobra morde o próprio rabo como

na imagem do Ouroboro, símbolo do eterno retorno (Kubrick) e da ciclicalidade: deus fez o homem à sua imagem e semelhança assim como o homem fez deus

à sua (dele, homem) imagem e semelhança, mesmo porque o homem é deus, o homem é seu próprio deus — embora por um ínfimo instante, esse instante

último do conhecimento máximo no Ponto Ômega que é ao mesmo tempo, – ou o homem maquínico da singularidade. Talvez aquele mesmo homem do qual Novalis dizia que deveria transformar o próprio corpo de modo a dele fazer um órgão capaz de tudo (frag. 1684). Cf. Virtualidade.

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sensorialmente, um instante eterno. O processo de criação do conhecimento

será acelerado de maneira exponencial no Ponto Ômega até que, “num frenesi final”, escreve Deutsch, uma quantidade infinita de conhecimento (o deus

onisciente) se manifestará num tempo finito — finito porque em seguida sobrevém o colapso total.

As coisas se complicam: se o homem-deus (o novíssimo Bowman) só se

constituirá nesse instante final e se depois nada mais existirá, por que iria alguém dar-se ao trabalho de persistir na tarefa de perseguir o conhecimento

máximo e último109 em vez de, nos derradeiros momentos, relaxar e deixar

correr e ocorrer o colapso final? David Deutsch vislumbra uma razão para a

perseverança: as mentes dessas pessoas estarão rodando como programas em computadores cuja velocidade estará num crescendo ilimitado;110 seus

Segundo Deutsch, o tipo de oscilação do espaçotempo que tornaria possível a ocorrência de um Ponto Ômega é muito instável e violento, num processo que se intensificaria a cada fração de segundo, sem volta atrás. Essas distorções alterariam as condições para a computação continuada necessária — e tanto que seria preciso redirigi-la continuadamente para a trajetória certa, algo que, segundo Tipler, poderia ser feito por meio da manipulação do campo gravitacional da integralidade do espaço. Essa não é, de longe, tarefa simples... As manobras de pilotagem exigidas, se factíveis num horizonte do provável, não conseguiriam nada mais do que atrasar em alguma fração de tempo o instante final do esmagamento, o Big Crunch; mas esse retardamento seria o suficiente para alcançar-se o estágio máximo do conhecimento daquilo que pode ser conhecido.

Esboça-se a ideia de que a mente das pessoas, espaço e computador final, são uma e mesma coisa. Olhando para trás, com olhos informados pelo conhecimento ou, em todo caso, pelas teorias atuais, encontram-se estimulantes pontos de contato com estudos orientados por outros vetores, mas que convergem possivelmente para conclusões próximas ou paralelas às indicadas por Tipler-Deutsch. O antropólogo e arqueólogo André Leroi-Gourhan (1911-1986) formulou o conceito de tendências técnicas ou de uma dinâmica técnica universal que ocorre independentemente dos agrupamentos étnicos, mas que neles encontra as condições para se concretizarem (ideia não muito distante da teoria de Max Weber sobre o aparecimento da prática da racionalidade antes, e mais intensamente, em certas culturas do que em outras); a essa concretização, Leroi-Gourhan denomina fato técnico. Leroi-Gourhan armou uma teoria geral sobre as relações entre técnica (como tendência universal) e etnia (condições concretas de realização). O ponto de Leroi-Gourhan convergente com a visão da completude aqui enunciada é a noção de que o grupo humano comporta-se e funciona como um organismo vivo que atua assimilando seu meio exterior por intermédio de uma “cortina de objetos” ou “envelope artificial” que também atende pela denominação de tecnologia. Esse organismo vivo assemelha-se ao que, sem

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pensamentos são modos de realidade virtual rodados por esses computadores,

assim como também são os nossos (os sonhos o são, como a imaginação o é); no

último instante, todo esse mecanismo será destruído. Mas a duração subjetiva de desenvolvimentos maiores (por me parecer evidente), designo pela expressão inteligência global (ou coletiva), entidade imaterial não-programada (apenas orientada por um impulso ou drive inicial) que evolui por um processo de auto-aprendizado (equivalente ao machine learning) como aquele abordado no tópico Adaptabilidade. Essa inteligência coletiva responde pela possibilidade prosaica — mencionada em Coordenabilidade e aqui repetida por deter chave importante de entendimento da civilização, portanto merecedora de uma segunda reflexão — de alguém encontrar, numa quarta-feira qualquer e numa loja de roupas indeterminada, a camisa azul que pensou comprar ao acordar naquele dia, um encontro possibilitado pela iniciativa de outra pessoa que no outro extremo do mundo plantou algodão alguns anos antes, no início de um processo seguido por outra etapa de transformação levada a cabo por terceiros ao transformar essa matéria-prima em fios e, depois, por outros terceiros dedicados a outras tantas e diferentes tarefas que resultam na camisa azul afinal encontrada na loja certa dada quarta-feira pelo pessoa inicial deste relato (ao mesmo tempo sujeito e objeto desse processo) e que, ao acordar, decidiu por aquela compra específica. Até hoje não houve planejamento — nem mesmo na economia arrogante e ditatorialmente planejada (e depois falida) do Estado soviético omni controlador e outros fascismos equivalentes — capaz de igualar-se a esse processo da inteligência coletiva espontânea funcionando como um computador sem prévios comandos ou diretrizes coordenados e intencionais. O organismo vivo de que fala Leroi-Gourhan é esse conjunto de mentes que rodam como programas num computador que agora se espalha não mais apenas pela Terra, mas, como pretendem alguns, pelo universo. As teses de Leroi-Gourhan desdobram-se em derivações sobre os motivos pelos quais um determinado fato técnico concretiza-se de um modo num determinado agrupamento étnico e de outro modo em agrupamento étnico distinto. Esse ponto posto de lado, surgem dois outros pertinentes para a reflexão sobre a Completude: os estudos desse autor giram ao redor da noção de universalismo (a dinâmica técnica universal), da tecnologia e do corpo como memória, outro avanço rumo à hipótese das pessoas-mentes-que-rodam-como-programas-no-computador-universal. Ao assumir a posição ereta, o homem liberou as mãos, e mãos e ferramentas e tecnologia formaram um terceiro tipo de memória a juntar-se à memória genética contida no DNA e à memória do sistema nervoso, conjunto que se constitui num programa, por conseguinte num computador. Na sua visão, a antropogênese é uma tecnogênese e nesse caso Deutsch está bem sustentado ao fazer do evolucionismo de Darwin um dos pilares de seu quadrivium capaz de explicar o universo segundo os termos de uma Teoria do Tudo. Lembrar que Leroi-Gourhan interessou a Jacques Derrida e Gilles Deleuze. De Leroi-Gourhan, ver L’homme et la matière et Milieu et techniques, op.cit. (E a respeito do organismo vivo, ou computador vivo, cf. adiante a referência ao livro Solaris de Stanislaw Lem e ao filme de mesmo título por Andrei Tarkovski.)

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uma experiência de realidade virtual não se determina pelo tempo decorrido e

sim pelo número de computações realizadas no período. Num número infinito de computações há tempo suficiente para um número infinito de pensamentos

e tempo suficiente para essas pessoas pensantes colocarem-se em qualquer

ambiente de realidade virtual que quiserem e dele usufruir por quanto tempo

quiserem, uma realidade virtual após outra (as séries Westworld, da HBO, e

Altered Carbon, da Netflix, parecem explorar ou representar essas ideias, parcialmente — pelo menos no aspecto da vivência indefinida de realidades

virtuais providenciadas por um computador). Citarei literalmente Deutsch: “Subjetivamente, [as pessoas] não estarão no estágio final de suas vidas, mas no

começo mesmo de suas vidas. [Deutsch não cita 2001, nem Kubrick poderia ter lido Deutsch; mas a similitude entre as duas visões é evidente.] Não terão pressa

alguma porque subjetivamente viverão para sempre. Restando um segundo, um

microssegundo, elas ainda terão ‘todo o tempo do mundo’ para fazer mais coisas, experimentar mais coisas […] Esse será o incentivo para que dediquem toda sua

atenção [até o último instante] ao bom uso dos recursos disponíveis. Assim

fazendo estarão apenas preparando-se para o próprio futuro, um futuro aberto,

infinito, do qual terão pleno controle e no qual, em todo e qualquer instante, estarão apenas embarcando”.111 A pessoa-deus existirá então, subjetivamente, para sempre, como sempre existiu.112 E tudo poderá conhecer.

David Deutsch, op. cit. p.352.

Uma variante da pessoa-deus, a partir de dados comprováveis hoje e sem recorrer a especulações científicas, foi prevista por Stephen Hawking no livro póstumo publicado em setembro de 2018. Em Brief Answers to Big Questions, Hawking afirma estar seguro de que, neste século 21, serão descobertos os meios para a modificação tanto da inteligência quanto de instintos como a agressão. Leis serão promulgadas, escreve ele, contra a prática da engenharia genética em seres humanos; mas sempre haverá quem não resistirá à tentação de melhorar a natureza do homem em aspectos como a memória, resistência a doenças e duração da vida (como se viu, o geneticista He Jiankui já o teria feito, neste final de 2018). E sob tantos outros aspectos, pode-se acrescentar. Sugere Hawking que os ricos logo terão condições de edição do mapa genético completo (com tecnologias como Crisp-Cas9) e com isso criar super-homens que, em seguida, destruiriam o resto da humanidade ou nela não veriam nenhum interesse. Humanos atrasados ou rudimentares — como nós, hoje — não terão como competir com os super-homens e provavelmente perecerão ou se tornarão totalmente inúteis. Hawking deixou de mencionar que, com ou sem edição genética, os atuais humanos e eventuais super-homens serão em breve largamente ultrapassados pela inteligência artificial e seu desenvolvimento exponencial. Esses humanos, quer dizer, todos nós, não terão

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E como essa pessoa não está no final de seu vida, mas no começo do processo

vital, na forma de uma pessoa que nasce, a solução encontrada por Stanley

Kubrick com seu Bowman que renasce como uma star child, criança estelar a pairar no ar e observar a Terra, sustenta-se (em alguma medida) na física

contemporânea — pelo menos na versão ou imaginação da física-cosmológica

de Tipler-Deutsch, que está longe de ser aceita por todos. É uma visão atrevida, uma construção audaciosa ou apenas um educated guess, uma suposição

fundamentada. Se concretizada, o Partido Biocosmologista-Imortalista estaria vingado em seus desejos e planos. E a mitologia clássica, confirmada em suas intuições. À época do lançamento de 2001, Kubrick preferiu não se manifestar

sobre o significado da sequência final (a passagem pelo túnel psicodélico, o renascimento da star child); como é comum entre os artistas contemporâ-

neos, declarou deixar a interpretação a cargo do espectador.113 Relatos sobre a produção do filme mostram como Kubrick constantemente revia e refazia a

concepção do todo e de cada uma de suas partes. Buscava um final-revelação impactante, mas oscilava sem cessar entre alternativas distintas, tanto que

as interpretações resultantes são disparatadas. Decerto, é visível que estava

em cena o gosto de Kubrick pelo enigma, enigma que ele não podia resolver qualquer importância para a nova inteligência e por ela serão possivelmente descartados ou aniquilados, ela que lhes concederá a mesma atenção que os humanos hoje dão aos insetos encontrados em seu caminho e por eles, por nós, inconsciente ou descuidadamente esmagados sem disso nos darmos conta, o tempo todo, em nossas caminhadas banais por todo lado. Ainda há otimistas, porém: em entrevista ao The Guardian sobre esse texto final de Kawking, lord Martin Rees, astrônomo, colega e amigo de Hawking na Universidade de Cambridge, observa que um banco de esperma da Califórnia notabilizado por oferecer apenas “esperma de elite”, inclusive de ganhadores do prêmio Nobel, fechou as portas por falta de demanda. Parece, diz lord Rees que os pais ainda não querem correr os riscos da engenharia genética. A verdade é que nem todos os temem…. Mais surpreendente, porém, é que existam ganhadores do prêmio Nobel capazes de ceder ou vender esperma para essa empresa… (E no entanto, quão humano, quão demasiado humano é esse desejo de sobreviver à própria morte, seja de que modo for…). Apesar da ressalva de Rees, a possibilidade desenhada por Hawking está longe de ser fantasiosa. 113

Numa entrevista com Arthur Clarke posterior ao lançamento do filme, Kubrick no entanto endossa a ideia de que Bowman dirige-se a um “novo paraíso”, propiciado e representado pela criança estelar que é ele mesmo. Não tenho indícios de que Kubrick leu os biocosmologistas-imortalistas e certamente não havia como ler, em seu tempo, Tipler e Deutsch.

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com um discurso lógico e científico. De resto bastava-lhe, no campo da arte, a

intuição. Sobrou para a física pós-Kubrick de Tipler-Deutsch, que obviamente

não se referem a 2001,114 fornecer uma explicação plausível, embora contestada, do que poderia existir depois da experiência aparentemente psicodélica que seria uma passagem pelo Ponto Ômega.

É imensa a complexidade dos conceitos relativos às implicações do Ponto

Ômega e às condições físicas requeridas para que hipoteticamente ocorra (como o controle do universo de modo a retardar o desequilíbrio do espaço-

tempo na origem do colapso final e permitir a ocorrência do Ponto Ômega por uma fração de nanossegundo que seja, um tempo infinito enquanto durar): a leitura e releitura exaustivas da obra de David Deutsch são imprescindíveis

— para detectar seus equívocos e eventuais delírios, mas também para avaliar com alguma generosidade suas propostas heurísticas e o que delas pode ser extraído.

O ponto que resta: a computação, agora tentando passar para seu estágio

quântico, é o caminho para a completude entendida como conhecimento pleno

e final e que o será tanto mais quanto mais unificada e expandida for essa

computabilidade. Um vasto número de pessoas interagindo em muitos níveis aumentará o conhecimento na mesma proporção em que reservas amplas e

expansíveis de energia, tempo e memória, estiverem disponíveis; desacordos, porém, sobrevirão, e previsivelmente não se terá um discurso unívoco, uma

única teoria, uma única explicação — a menos que esforços na direção de

114

Referir-se a obras de ficção, literatura ou cinema, e usá-las como balizas deixou há um bom tempo de ser procedimento ingênuo ou censurável — embora sempre se observem alguns renitentes aqui e ali... A intuição dos artistas abriu caminho para várias propostas da tecnologia e da ciência; a representação de alguma coisa possível, embora não existente — um objeto, um lugar, uma pessoa —, é o primeiro passo para sua concretização científica. A ideia do artista como antena da sociedade (ou seu “influenciador”, na terminologia cínica das atuais redes “sociais”) continua válida. Mesmo os físicos reconhecem esse fato e citam filmes e romances em seus textos científicos: em Brief Answers to the Big Questions, Stephen Hawking menciona o filme Interstelar, orientado pelo físico e Prêmio Nobel (além de seu amigo) Kip Thorne, que prefaciou esse mesmo livro póstumo, como dando uma ideia aproximada do que seria um espaço com dez ou onze dimensões.

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uma Teoria do Tudo resultem em algo concreto.115 Erros também ocorrerão,

de dimensões impactantes. Mas o caminho decisivo para a completude está aberto pela computação. A ideia de um Ponto Ômega como levantado por Chardin e desenhado por Tipler e Deutsch pode ser um caso de audaciosa

construção poética (não escreverei que pode ser apenas um caso de audaciosa construção poética), como o é boa parte dos textos de Freud sem que isso lhe retire a pertinência de sua intuição sobre aspectos centrais do mecanismo

psicológico do ser humano. Nem por isso o recurso, a esta altura inevitável, à computação e a uma inteligência artificial que se agudiza a cada instante e

que seguirá nesse processo enquanto existir a Terra, deixa de ser a busca em

tudo lógica e científica — portanto factível, renderizável — do máximo de conhecimento possível. ◊

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David Deutsch acredita estar nesse rumo. Stephen Hawking não discordou, embora buscasse sua própria Teoria do Tudo.

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EXPONENCIALIDADE

A exponencialidade é um dos registros próprios e motores da eCultura:

cálculos se fazem agora numa velocidade exponencializada não apenas em

relação à velocidade humana como em relação à velocidade dos primeiros computadores, como a máquina de Turing. Trata-se de uma exponencialidade

não apenas da velocidade de cálculo como também, em consequência, do

conhecimento, da experiência ou da abolição da experiência. A velocidade das mudanças, a velocidade trazida pela inovação (inovação é outro modo da

velocidade, outro nome para velocidade) foi gradativamente aumentada no passado com a máquina a vapor, o navio a vapor, o trem, o telefone, o telégrafo

sem fio, a luz elétrica, a televisão ao vivo; agora, essa velocidade é exponen-

cializada — inclusive na sua possibilidade de destruição (o risco existencial, enorme desde a bomba atômica e agora aumentado pela implosão do ser

humano via computação), nas combinações previsíveis e nas inesperadas, na amplificação, na unificabilidade.

Paul Virilio (1932-2018) foi um urbanista e teórico da cultura (cf. Le pour-

rissement des sociétés, 1975; Vitesse et politique, 1977; L’accident originel, 2005, entre outros) a destacar-se por suas reflexões sobre o impacto da velocidade entendida como base da sociedade tecnológica ou, como esse termo já passou

um pouco da moda, da sociedade do conhecimento. Suas ideias compõem uma

logística da percepção, segundo grau de uma anterior lógica da percepção, componente de uma experiência sempre mais minimizada em decorrência

do recurso crescente primeiro à televisão (mediadora entre o ser e o fenômeno externo) e, agora, à internet e ao telefone celular, cujos efeitos amplos Virilio

não chegou a explorar. Assim como David Deutsch anota que a expansão do conhecimento conduz à expansão do erro, de tal modo que quanto maior o

conhecimento e mais rápida sua obtenção, mais graves e mais prementes serão os erros, também para Virilio o avanço tecnológico tem como um de

seus resultados o acidente, do qual Aristóteles dizia não haver uma teoria — teoria, no entanto, que a atual possibilidade de uma teoria do caos, com seus simuladores rodados em computadores avançados, tornam factível. Sua ideia

central reside numa dromologia ou ciência da velocidade (de dromos, termo

grego para corrida, pista de corrida, como em autódromo): a velocidade com que algo acontece altera a natureza desse fenômeno, formulação que pode ser

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vista como desdobramento da lei da dialética segundo a qual uma variação

na quantidade provoca uma variação na qualidade de uma coisa ou processo. A velocidade de algo ou de um processo altera sua natureza e dá àquilo ou

àquele que se desloca em maior velocidade um poder sobre aquilo ou aquele que se move mais devagar. Como um dos objetos de estudo de Virilio foi a guerra, é o caso de lembrar que o antigo princípio do lugar conquistado e

segurado (secured), da posição obtida e mantida (exemplo, a trincheira como

território defendido), foi abolido pelo movimento rápido (como o da blitzkrieg). Um território não se controla por fronteiras e barreiras, mas pelo movimento e

pela circulação acelerada. A disrupção (cf. esse tópico) das fronteiras e do que

define sua existência, como as leis e os contratos, é uma consequência imediata da velocidade, mais ainda da velocidade exponencializada, como atestam as práticas (de Uber, Airbnb e equivalentes, todas elas práticas intencionais, cons-

cientes de seus efeitos): não há tempo para o adversário (o táxi tradicional, o hotel) recuperar-se a menos que o controle central (do Estado) seja igualmente

rápido, algo que por definição o Estado não consegue ser e, hoje, não quer ser. Essa exponencialidade da computação conduz diretamente ao aumento do

índice de desmaterialização da realidade, portanto da existência moderna, à qual outro pensador francês, Jean-François Lyotard, um teórico daquilo

que hoje parece uma velharia, a pós-modernidade, dedicou uma exposição

no Centre Pompidou, em Paris, em 1985, intitulada Les immatériaux (assim

como Paul Virilio curou uma exposição sobre o acidente na Fondation Cartier, Paris, em 2003). A exposição de Lyotard não foi bem recebida (um “festival do

déjà vu”, escreveu Michel Carnot — e tinha razão), tanto quanto a de Virilio (vista como um conjunto de platitudes documentais; por certo, o insucesso

de ambas as aventuras curatoriais não invalida a exploração conceitual de ambos os pensadores). O princípio de Les immatériaux, porém, permanece

sólido: “as novas tecnologias substituem as operações físicas por outras de natureza mental”. A terminologia é arcaica, “mental” é um conceito deslocado na linguagem computacional da eCultura; mas o ano é 1985 e estava-se então

ainda na pré-história da computação. E o princípio de Virilio, por mais que

a exposição fosse pouco menos do que irrelevante, também: velocidade, movimento e circulação intensificados são os novos poderes. Não por acaso, são os mesmos vetores do capitalismo, descrito por Max Weber como a força mais determinante da vida moderna.

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Numa conversa privada e solta entre eles, em 1956 (Towards a New Mani-

festo; Verso, 2014), Horkheimer (69 anos) e Adorno (53 anos) — a Dialética do

Iluminismo fora publicada em 1944 — trocam observações sobre o Estado de

Coisas, suas ideias, a aplicabilidade do marxismo, o conflito entre teoria e prática. Abordando o trabalho, a certa altura Horkheimer solta: “A velocidade

é um aspecto do trabalho” e Adorno “responde”que “O desfrute da velocidade é um substituto para o desfrute do trabalho”. Só isso. Sem comentários adicio-

nais, explicações. Pelo menos Adorno pensou, por um momento, que aquela conversa poderia dar origem a uma versão contemporânea do Manifesto

Comunista, como anota a editora inglesa da transcrição daquela conversa. A ideia nunca se concretizou. A editora observa, ainda, que aquela conversa

lembrava uma jam session, uma improvisação na qual dois ou mais soltam notas que podem ou não se conectar ou ficarem soltas no ar, sem maior desen-

volvimento. Como relâmpagos num céu escuro, iluminadores sem que fique

muito claro o que iluminam. No texto em inglês, o termo para “substituto” é “proxy”, procuração, representação, no sentido em que alguém representa

um terceiro em alguma coisa, tem uma procuração para decidir ou fazer em nome de outro. Uma outra tradução pode ser: “Gozo com a velocidade por não poder gozar com o trabalho — e a velocidade me dá a sensação de que desfruto

de meu trabalho”. Eles não desenvolveram suas intuições daquele instante, mutuamente provocadas, e não o farei aqui. Fica apenas o destaque: uma

velocidade exponencializada é um trabalho exponencializado, uma alienação exponencializada, uma opressão exponencializada. O prazer com a velocidade

acelerada seria, nos termos de Virilio, que não sabia dessa conversa entre os

promotores da teoria crítica (codinome por ambos adotado para designar o marxismo), um acidente acelerado. ◊

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CONCENTRABILIDADE

Na perspectiva da concentração das fontes de geração e distribuição do

conhecimento, a humanidade organiza-se ao redor de um efeito de sístole

e diástole, de tensão e distensão, como na melhor narrativa poética clássica desde Aristóteles: um período de convergência do conhecimento na direção de

um ponto é seguido por outro de dispersão por sua vez substituído por nova forma de convergência focal. É provável que esse processo não siga indefinida-

mente com a mesma alternância registrada ao longo da história e que a parada final seja a de uma concentração máxima num só locus. A mítica Biblioteca de Alexandria (século III a.C. — 30 d.C.) foi um desses pontos de convergência e concentração, com seus quarenta mil papiros (talvez dez vezes mais do que

isso, a incerteza continua), suas salas de estudo e discussão, sua capacidade de convocação das mentes onde quer que se encontrassem no mundo conhecido à época, sua força física de atração — um lugar “duro” que o mundo talvez não

volte a conhecer nessa dimensão física e simbólica. Queimou-se, foi queimada, destruída por um terremoto, o que tenha acontecido: e como consequência o conhecimento fragmentou-se e dispersou-se. Outros núcleos de concentração

foram formar-se ao redor dos mosteiros medievais, todos eles metaforizando-se na ideia de Um Mosteiro, do Mosteiro como instituição, oásis de civilização

(em todo caso, de cultura) em meio a um mundo instável e em constante desfazimento antes de conseguir aos poucos reerguer-se (no Ocidente, em todo

caso) e aos poucos substituir os fortins religiosos murados, versão terrena do paraíso, pelas universidades um pouco mais abertas, novamente espalhadas e

difundidas. Mesmo que as universidades possam fundir-se numa ideia universal de Uni-versidade, a concentrabilidade correspondente não tem a mesma

intensidade nem a mesma força simbólica submetida a uma só forma de

controle como a registrada na história do Mosteiro. A biblioteca de Alexandria e os mosteiros propuseram-se como fisicalidade do conhecimento, sob um

poder material, geográfico, simbólico, capaz de fazer convergir, de provocar

a convergência, beneficiar-se dessa convergência. Inversamente, quando os mosteiros começam a abrir-se e serem substituídos por agrupamentos estáveis

na forma de cidades, o poder de convergência assumiu uma forma espiritual devidamente reforçada pelo poder dos tribunais e pelas armas do Estado

religioso: a religião, em todo caso a igreja católica, concentrando o formato do conhecimento numa raiz única por ela controlada da qual derivavam as demais

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(ciência, ética, arte, cultura, literatura, filosofia, linguagem, comportamento, política). O movimento conduzindo ao Iluminismo enfia cunhas nesse bloco

unitário e os diferentes pedaços do edifício soltam-se e saltam por e através de diferentes espaços, assim como blocos de granito eram fragmentados

(não se pode dizer “cortados”) por meio de pinos de ferro introduzidos ao longo da linha desejada e enfiados a marteladas no material até que o pedaço

visado pulasse fora: o corte não era nítido, preciso, irregularidades surgiam, as

fronteiras entre um bloco e outro propunham-se de modo irregular, como se um pedaço continuasse no outro e o vazio entre eles resultasse apenas uma

artificialidade. A mesma imagem serve para a separação e fragmentação do conhecimento pós-iluminista: os campos da filosofia, da ética, da política, da arte, da ciência, não mais formavam um só bloco íntegro coeso (ou, em todo

caso, exibindo a aparência de uma coesão impermeável à crítica e alguma

tentativa de recostura): afastavam-se intencionalmente uns dos outros como movidos pela força de repulsão de polos imantados com o mesmo sinal. Um

novo processo de desconcentração iniciou-se, não havia mais uma biblioteca física única contendo a totalidade do conhecimento (embora a Biblioteca do

Congresso, em Washington, alimente essa pretensão): surgiam as bibliotecas

especializadas, cada uma com seu lugar próprio — o da arquitetura, o da filosofia, o da economia, o das artes. A separação física implica um afastamento

real e efetivo (e afetivo) de métodos, perspectivas e resultados. Esse afasta-

mento é desejado, controlado e afirmado. Os mitos separacionistas — como

aquele que apresenta a ciência como algo oposto à arte, uma como negação da outra — ganham força.

Com o dispositivo computacional, todo o conhecimento e toda capacidade

de ação resultante tende a reconcentrar-se em alguns poucos pontos, como etapa intermediária, e, no limite, num único ponto: o ponto ocupado pelo

supercomputador — e em ultíssima instância, no Ponto Ômega (cf. Completude). O termo ponto pode ser tomado em seu sentido estrito: um ponto, uma localização física específica (enquanto o computador for físico), dado que existe a possibilidade de que o primeiro a construir um supercomputador

dotado de uma superinteligência artificial geral maximizada para além de uma certa potência (por exemplo, aquela superior não só à mente humana

como a todas as mentes humanas reunidas) estará em posição de impedir que outro país ou corporação construa outro igual. (Antes, o primeiro a construir

esse computador teria sido provavelmente um país; hoje, não é impossível que

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seja uma corporação privada). E o poder desse país ou corporação será incontrastável, indefinido, tendendo ao infinito. Esse supercomputador construirá outros computadores e os programará (o ser humano será afastado também

deste tipo de tarefa, não só do encargo de dirigir veículos, ensinar, escrever

críticas de arte — se alguma ideia de arte persistir). E para isso demandará

matéria-prima e energia, cujas geração e fluxo terão condições de controlar: as consequências dessa demanda e do significado do poder de convocação de mais matéria-prima e mais energia são facilmente dedutíveis.

Até aqui, um índice de concentrabilidade vem sendo dado pelo acrônimo

GAFA: Google, Apple, Facebook e Amazon. Facebook está em queda, no

momento, pelo menos do ponto de vista moral e ético — mas Apple sobe espetacularmente do ponto de vista econômico. 116 O significado cortante

dessa concentrabilidade pode ser percebido a partir da notícia publicada

hoje, 3 agosto de 2018, de que a Apple alcançou o valor de mercado de US$ 1 trilhão, a primeira corporação a chegar a essa marca. Suas ações subiram 36.000% desde o lançamento oficial na bolsa americana. Marca notável para

uma corporação que há vinte anos estava às portas da falência, nas palavras

de seu criador. O valor da Walt Disney Company (Disneylândia, Disney World, cinema, games etc.) e do Bank of America somados não chegam à metade do valor da Apple. E pelo valor do dólar no dia de hoje, o trilhão de dólares da Apple significa mais da metade do PIB do Brasil em 2017 (R$ 6,6 trilhões —

antes do dólar a R$ 4) e coloca-a na 17a posição do ranking mundial do PIB por

país, à frente de outros 174 estados. Atordoante como a notícia possa ser, ela

não vem sozinha: Amazon, outra integrante do GAFA, aparece em segundo lugar no ranking de valor de mercado (US$ 894 bilhões);117 Alphabet, do grupo Google, em terceiro (US$ 858 bi); e Microsoft (US$ 826 bi) em quarto. Todos

os recursos humanos, todos os cálculos humanos e os conceitos e ideias con-

centram-se agora no computador — nas aplicações da Inteligência Artificial

Nos seis meses transcorridos desde a redação deste tópico, a Apple deu sinais de enfraquecimento econômico resultante de um estado de certa madurez da tecnologia, que não mais apresenta com a mesma velocidade novos recursos capazes de levar o usuário a comprar novos aparelhos, e da competição armada pela China.

Um mês depois da Apple, quase dia a dia, em 4 se setembro deste 2018, a Amazon igualmente ultrapassou a marca do US$ 1 trilhão em valor de bolsa. Também o ritmo de crescimento das super eCorporações, ou eTchs, é exponencial.

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especificamente — e esse superpoder concentra-se em alguns poucos pontos

físicos e organizacionais, com tendência a concentrar-se, ao final, num único. Todo o conhecimento humano convergirá para um ou alguns pontos e resta

definir se essa convergência conterá ou aceitará conter em si o espectro de divergências conceituais próprio da humanidade ao longo de sua história

— até aqui. Uma hipótese é que o conhecimento máximo (conhecer tudo

que pode ser conhecido, cf. Completude) só possa ser alcançado quando essa convergência de fato concretizar-se. Outra, que essa convergência servirá aos

fins do computador, não necessariamente os mesmos do homem (mesmo porque, no suposto ou possível Ponto Ômega o homem como conhecido até

hoje não mais existirá ou existirá por um nano-instante, por mais que esse nano-instante seja um instante eterno). Uma terceira, que esse conhecimento concentrado num só ponto servirá aos interesses do homem e do computador

porque ambos terão se tornado uma só coisa, como pode sugerir a teoria evolucionista aplicada à computação. Quando publicou The Singularity is Near, em 2005, Ray Kurzweil, entendendo que a computação já era então um recurso amplamente distribuído, acreditava que a tendência do fenômeno rumasse

para uma descentralização crescente. Também sob esse aspecto Kurzweil mostrava-se um otimista, um “integrado” ao novo sistema (para recorrer ao

termo proposto por Umberto Eco).118 O fato de um número sempre maior de

pessoas ter acesso a um computador pessoal não significa descentralização

da computação e, menos ainda, do conhecimento: o que realmente conta, pelo poder de cálculo, está sob controle de uns poucos. E talvez continuará a estar

cada vez mais se o objetivo for alcançar a supercomputação final, máxima, que permitiria supostamente, num futuro indefinido e fora de alcance para a humanidade de agora, o entendimento final do universo. ◊

118

Umberto Eco, Apocalípticos e integrados. São Paulo, Ed. Perspectiva.

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INDIVIDUAÇÃO

Tudo ou quase tudo pode ser produzido sob medida e just in time, a tempo, e

não mais necessita ser agenciado just in case (para o caso de) como na educação tradicional (aprender desenho geométrico no segundo ciclo para o caso de vir

esse conhecimento a ser requerido pela ulterior atividade do aluno). Individuação significa tratamento individualizado do câncer, atendimento da vontade de um assinante Netflix de ver um dado filme numa certa hora, sem sujeitar-se ao tempo

dos outros reunidos numa sala tradicional de exibição. (Gaston Bachelard propôs a libertação do indivíduo frente ao tempo dos outros como um dos movimentos de autonomização e de experienciação máximos do ser humano das quais os outros

dois são a independência frente à vida dos objetos e a independência do ritmo

e tempo do próprio corpo. Cf. seu L’intuition de l’instant, Paris, 1932.) Tudo pode

agora, em princípio, ser pensado para um, para o um. No Brasil, as roupas vêm em uns poucos tamanhos básicos: P, M, G, XG. Nos EUA, são produzidas para grupos

distintos básicos, mas levando em conta uma variedade de diferenças individuais compartilhadas (calças 32 cm de cintura x 32 cm de comprimento ou 32 x 34; 33 x

34, 44 x 46 etc.); daqui a pouco, a roupa poderá ser inteiramente sob medida, feita na hora, ali onde antes vendia-se apenas um prêt-à-porter genérico a ser ajustado

conforme as medidas de cada um — não raro mediante pagamento adicional...

Individuação da produção, individuação da experiência cultural — podendo levar, se não à incomunicabilidade, pelo menos à multiplicidade de monomanias sem foco de convergência. As experiências culturais tendem a ser singulares ou de

estreitos microgrupos: antes, uma geração inteira tinha (largamente, embora não monoliticamente) suas canções, seus livros e seus filmes em comum; hoje, a diversidade de oferta é tal que os grupos temáticos, digamos assim, veem drasticamente

reduzir-se seu número de membros. Os temas comuns de conversação tornam-se

mais raros. Os Estados, em todo caso os governos, precisam insistir na ideia de

que não existe o um isolado, que apenas o Coletivo119 deve ser levado em conta,

disso necessitam desesperadamente para sobreviver. Da tensão entre o grupo e o

indivíduo gerada pela computação pode resultar um novo rearranjo social, com a multiplicidade de Uns espalhando-se. A onda de autoritarismo que toma conta do mundo hoje, por toda parte, pode ser reação preventiva do conservadorismo

à multiplicidade do Um associando-se a outros Uns nas redes ditas sociais. ◊

119

Cf. Simon Weil, Sobre a supressão geral dos partidos políticos, op.cit.

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ADAPTABILIDADE

Segmentos inteiros da eCultura desenvolvem cada vez mais habilidades

adicionais a partir de programas com que foram alimentados sem neles estarem previstas desde o início. A esse processo dá-se o nome de aprendizado da máquina (machine learning) ou, melhor, auto-aprendizado da máquina. Essa

expressão foi proposta por Arthur Samuel (1901-1990), pioneiro no universo

dos games e da inteligência artificial, no artigo “Some Studies in Machine Learning Using the Game of Checkers”, publicado em 1959120 no IBM Journal of Research and Development — e deve-se notar que vários artigos extre-

mamente relevantes para os estudos e o desenvolvimento da computação foram inicialmente publicados em periódicos de corporações como esta e

não nas revistas científicas tradicionais, outro indício de como as pesquisas

de ponta processam-se cada vez mais fora do território acadêmico: a universidade há muito não é o lugar, o tópos da produção do conhecimento... A expressão machine learning traduz um subconjunto do campo da inteligência

artificial que desenvolve técnicas estatísticas capazes de dotar computadores

com a habilidade de aprender a partir de dados iniciais e em direções não necessariamente previstas no programa inicial. Frequentemente a expressão

aprender, aplicada à máquina, aparece entre aspas como se esse ato sem aspas

fosse exclusividade do ser humano; aspas apenas se justificariam, contudo, se o aprendizado humano ocorresse por meios distintos da habilidade de

aprender por conta própria que tem a máquina a partir de dados iniciais

cujos desdobramentos não foram previstos no início do processo. Não se encontrará essa justificativa, no entanto, uma vez que o aprendizado humano

é exatamente isso: a entrada por caminhos imprevistos e o agenciamento

igualmente imprevisto de relações não explicitadas no ponto de partida, 120

A data de publicação deste artigo aponta para o avanço dessa área já naquele momento e para o atraso, por parte das Humanidades e da sociedade em geral, no acompanhamento do que então se cozinhava nos laboratórios de inúmeras universidades, corporações e órgãos governamentais. Muitos desses estudos não se viram limitados por carimbos de “secreto” ou outras medidas cautelares de divulgação; mesmo assim, a discussão do tema nas universidades, em particular no Brasil, em áreas do conhecimento estranhas àquelas diretamente envolvidas, como no caso das Humanidades, foi praticamente inexistente. As Humanidades preocupavam-se ainda, largamente, com ideias oriundas de um passado remontando a, na melhor das hipóteses, meados do século 19.

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mas cujo potencial estava inscrito desde logo como tal, previsível ou não, no treinamento inicial.

O processo de machine learning torna-se a cada instante mais rápido,

surpreendente, promissor e ameaçador. OpenAI, laboratório de inteligência artificial sem fins lucrativos sediado em San Francisco, apoiado no entanto por algumas das grandes corporações de Silicon Valley que serão as primeiras

(em todo caso, as naturais) beneficiárias desse investimento, desenvolve a mão robótica Dactyl com todos os dedos e falanges e movimentos básicos da mão humana, essa ferramenta magnífica sem a qual o homem não teria sobrevivido

(não o teria feito sem essa mão, sem esse corpo seu, sem esse cérebro que lhe é próprio, sem esse conjunto, sem esse sistema, sem dúvida — mas certamente não sem essa mão).121

Fig. 11

121

Impossível não perceber a grandeza do instrumento fabuloso que é a mão humana quando se está sob o poder visual encantatório de pinturas e esculturas que a colocam em primeiro plano ou quando se ouvem os sons criados pelas teclas pretas e brancas de algum piano e quando se compara essa mão com as patas fechadas sobre si mesmas de cães e cavalos, essas patas que parecem aprisioná-los neles próprios em vez de abrirem-nos para o universo como acontece com o ser humano. Para mim, primeiro veio a experiência direta e emotiva com as mãos por meio da arte; depois li em Kant a descrição da mão como “a parte visível do cérebro”, o que permite falar na “inteligência da mão” (Jean-Luc Godard, leitor incessante, deve ter retirado de Kant a ideia de que “o homem pensa com as mãos”); Darwin registra que “a mão substitui todas as ferramentas e, por sua conexão com a inteligência, assegurou ao homem a dominação universal”. Ver as mãos esculpidas por Rodin, sentir o impacto da visão dessas imagens tremendas de mãos humanas impressas nas paredes de cavernas há dezenas de milhares de anos é um choque emocional e epistemológico de raro porte. Cf. também a obra de André Leroi-Gourhan (1911-1986) sobre o papel das mãos em Le geste et la parole (Paris, Albin Michel, 1964-65) e outras obras suas sobre o “envelope artificial”, outro modo pelo qual designava a tecnologia.

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A semelhança entre a mão robótica da Dactyl e a humana é poderosa-

mente grande, como se Dactyl vestisse, como luva, a mão humana.122 Num dos exercícios, a mão robótica gira um cubo com oito letras até expor em

evidência a face contendo a letra solicitada por um humano. Movimento

corriqueiro para a mão humana, mesmo se extraordinariamente complexo, e feito notável para um robot — e que está longe de marcar o ápice do que pode o robot alcançar. Por meio de métodos matemáticos que permitem o

aprendizado de Dactyl, os pesquisadores do laboratório acreditam poder treinar a mão robótica e outras máquinas para a realização de tarefas ainda mais complexas. A palavra é bem “treinar” e não programar.

Outro laboratório, Autolab, da Universidade da Califórnia -Berkeley, mode-

lou a física de mais de 10.000 objetos para identificar o melhor modo de

apanhá-los e manipulá-los e com esses dados alimentar um robot desenhado para segurar e mover peças variadas. A partir desse ponto, o recurso a um

algoritmo do tipo rede neural permitiu a análise de todos os dados acumulados de modo a permitir a um robot, semelhante ao da OpenAI, manipular qualquer objeto. Antes, a operação com cada objeto requeria um robot específico programado para esse objeto específico; agora, a máquina aprende sozinha como lidar

com objetos por ela já conhecidos e outros para ela novos. Não haveria como, ou seria desperdício de tempo, modelar a física de cada objeto existente, e de cada objeto possível, que a mão robótica tivesse de manipular: a solução necessária

é o treinamento ou, em outras palavras, o auto-aprendizado pela mão robótica. Outras mãos ou braços eletrônicos podem “fazer a cama”(estender lençóis

etc.) em hospitais, espalhar objetos sobre uma superfície, dirigir um carro (embora hoje não mais seja necessário simular mãos agarrando o volante

no ato de dirigir um veículo sem intervenção humana — sem que se discuta seriamente o que farão os profissionais antes ocupados nessas tarefas). O

sistema da OpenAI aprende, em dois dias, e em situação de experiência virtual, a girar o bloco de oito letras num tempo que de outro modo iria requerer cem anos para o processo real e humano de tentativa & erro. A simulação digital

reduz o tempo (assim como, na culinária, se “reduz” um molho no fogo, i.e.,

122

Um vídeo pode ser visto no site do The New York Times de 30 de junho de 2018, https:// www.nytimes.com/interactive/2018/07/30/technology/robot-hands.html Quando algum leitor fizer a consulta, o vídeo pode não mais estar disponível: essa é a situação do acesso à informação na era das novas tecnologias eletrônicas, nada mais permanence disponível para sempre — nem por muito tempo ou algum tempo…

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se adensam os líquidos em redor do próprio centro, se acentuam sabores) de

um modo brutal: a palavra inglesa usada em informática para designar esse

processo é eloquente, crunch: o programa de treinamento da mão robótica esmaga o tempo: a inteligência artificial esmaga o tempo em todas suas manifestações, esmaga o tempo e o espaço — e terminará por esmagar o

homem (cf. Completude.) Superada a fase da simulação (que inclui variações na fricção entre os dedos e o objeto e na gravidade afetando mão e objeto), a mão robótica passa para a ação no mundo real.

As possibilidades de desenvolvimento e autodesenvolvimento de aparatos

de inteligência artificial traduzem-se em números exponenciais, significando

que a adaptabilidade da inteligência artificial em breve será igual à do homem e, logo em seguida, superior. Em muito. O homem já demonstrou uma fantás-

tica capacidade de adaptação, quer dizer, de aprendizado (é a essa capacidade de adaptação que se denomina de inteligência); mas alguns insetos, como as

baratas, têm capacidade ainda maior — e a inteligência artificial, infinitamente maior. A saída: o recurso à inteligência artificial como modo dominante e a esta altura incontornável de adequar e aumentar a adaptabilidade humana

ao novo cenário — para evitar a aniquilação do ser humano ou, se for o caso, acelerá-la definitivamente: pode haver alguma vantagem nisso, cf. outra vez Completude, adiante. ◊

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VIRTUALIDADE

Como em realidade virtual. Virtualidade e completude são, talvez, as

qualidades da computação com maior potencial heurístico, as mais sujeitas a contestação e equívoco e possivelmente as mais dramáticas, pelo impacto

decisivo sobre a ideia de vida humana caso sejam confirmadas na extensão

pressentida que podem ter. A expressão realidade virtual designa a situação real (um ambiente físico real, concretamente existente) na qual se experi-

menta de modo artificial a sensação própria de uma outra experiência real123 ou

imaginada diretamente não vivida nesse mesmo momento. É uma experiência interativa proporcionada por computador num ambiente que é simulacro

de um outro, existente ou imaginado. Um simulador de voo possibilita a experiência de voar ou controlar um avião sem a necessidade de sair do solo

123

Estes termos todos — virtual, real, realidade, imaginário — estão entre aqueles que compõem o centro duro da filosofia desde seus primórdios, um núcleo de difícil penetração. Entende-se por virtual, neste campo, aquilo que se parece (em graus variados de acurácia) ao real mas que não é tal qual o real segundo uma sua definição estrita. Em inglês há uma distinção entre reality e actuality capaz de interessar à delimitação do campo semântico aqui envolvido. Reality (realidade) é a condição geral para que as coisas existam; actuality aponta para aquilo que efetivamente existe. A actuality (que não pode ser traduzida por atualidade em português, idioma no qual aponta para o tempo presente) é uma ocorrência concreta do real. A realidade é o tipo (type), a actuality (Wirlichkeit) é a ocorrência (token). Michael Resch, diretor do HLRS (Centro de Alta Computação da Universidade de Stuttgart), sugere que é na brecha entre actuality e reality que existe a arte: uma anotação sugestiva, com poder heurístico. Em Aristóteles, a ocorrência, a coisa existente, diz-se εηεργεια, actuality ou “realidade atual”, no sentido de realidade existente, realidade concreta, distinguindo-se de “potencialidade”, da coisa em potencia ou, ainda na escrita de Aristóteles, enteléquia ou finalidade que está inscrita na própria coisa, finalidade interior. No sistema de Aristóteles, a arte só pode ser uma realidade existente, cujo fim não pode estar nela mesma. Na contemporaneidade, a passagem da arte para a esfera do conceitual — da virtualidade — apresenta-a como apenas uma potencialidade, que talvez nunca se transformará em ato, nunca existirá... A obra aberta, como Umberto Eco discutia-a e, bem antes dele, Heinrich Wölfflin — sem que Eco reconhecesse explicitamente essa precedência — e a obra em processo (“o processo é mais importante que o resultado”, como tornou-se moda dizer nos anos 80 do século 20 em sinal de “democratização” da arte ao por de lado exigências de competência e execução), é outro caso de incompletude. No entanto, o Barroco, um caso de obra aberta, é εηεργεια.

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e, sequer, de estar no interior de um avião. Embora a situação seja artificial, a sensação não o é: essa sensação corresponde à sensação real de voar e

afeta a pessoa submetida à experiência em graus variados de intensidade. A sensação é um processo físico, é uma fisicalidade sem nada de artificial: arti-

ficial é a experiência que a provoca. As palavras neste campo estão minadas. Expressões como “manipulação dos sentidos” deveriam ser evitadas, tanto quanto construções do tipo “a realidade virtual é um desvio dos sentidos de

seu funcionamento normal de modo a levá-los a uma experiência diversa daquela de seu funcionamento efetivo”. Toda ocorrência, todo funcionamento

dos sentidos é um funcionamento efetivo e real, o que desde logo impede, para sua descrição, o recurso a adjetivos como verdadeiro e falso. “Ilusão dos

sentidos” é outra expressão a evitar. A situação em realidade virtual é artificial, a relação com essa situação o não o é.

Em princípio, tudo que pode ser representado, renderizado124 por meio de

um computador, pode gerar uma realidade virtual — expressão que aponta para uma realidade presencial, uma realidade “real” da qual parte ou à qual

se contrapõe sem que se possa descrevê-la como antirrealidade, a-realidade ou realidade falsa: é um outro tipo de realidade, que portanto é sempre

duas: a presencial e a virtual. Tudo que for fisicamente possível pode ser renderizado e oferecer uma experiência de realidade visual; mesmo o que

for fisicamente impossível (atravessar um buraco negro) pode ser imaginado e em seguida renderizado com um grau de acurácia que só poderá ser afinal avaliado quando a experiência original tornar-se viável. O que não pode ser renderizado é o que se apresenta como logicamente impossível: não pode ser

objeto da realidade virtual, por exemplo, a fatoração de um número primo, divisível apenas por si e pela unidade. Tampouco podem ser objeto de uma

realidade virtual as experiências internas, as sensações e sentimentos de uma pessoa. Um piloto em treinamento numa cabina de voo simulado, como ainda se diz, pode ser induzido a experimentar artificialmente certas situações

geradas a partir de um ambiente externo a ele, como voar sem o recurso aos motores ou em posição invertida em relação ao solo; por enquanto, não há

como fazê-lo artificialmente experimentar uma sensação pessoal interna, 124

Rendering é um processo de geração de imagens virtuais análogas às reais que as motivaram por meio de um programa de computação. A imagem pode remeter a uma experiência visual, sonora, olfativa, táctil ou gustativa.

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como medo — motivo pelo qual o treinamento exaustivo numa cabina de voo simulado não poderá jamais ser tomado como índice do comportamento

do piloto na situação real que deu origem à simulação no aparelho estático

colocado dentro de uma sala abrigada, protegida e em tudo controlada, embora seja assim considerado. Após o piloto do voo US Airways 1549 ter

amerissado seu avião no rio Hudson em Nova York, em 15 de janeiro de 2009, por perda dos dois motores provocada pela sucção de grande número de

pássaros logo após a decolagem, abriu-se uma investigação para determinar

o acerto técnico da escolha e do comportamento profissional do comandante, Chesley Sullemberger, “Sully”. Mais que a análise dos procedimentos e da escolha do piloto, tendo em vista o aprimoramento da navegação aérea em

situações de risco, ficou claro, como sempre, que estavam em jogo pesadas questões econômicas representadas pelas indenizações à companhia aérea e outros eventuais afetados. Como sempre, era importante determinar

a possibilidade de uma culpa profissional por imperícia do piloto, o que poderia conduzir ao não desembolso do seguro. A investigação incluiu o

recurso a cabinas de simulação de voo de modo a verificar todas as opções

teoricamente disponíveis ao comandante daquele voo, inclusive as de retorno ao aeroporto de partida ou uso de outra pista nas proximidades a permitir

uma aterrissagem supostamente segura mesmo sem os motores. O simples recurso ao expediente da simulação das condições de voo por parte de comissão de investigação é suficiente como índice da atual crença generalizada de

que a realidade virtual experimentada no aparelho simulador situado em solo não apenas estava e está sempre em tudo próxima da realidade simulada como é dela um perfeito sucedâneo: um duplo. O que a comissão não levou em conta — mas o comandante Sully os obrigou a considerar — é que o

simulador não recria artificialmente, não renderiza, sensações e sentimentos

internos que o piloto real poderia ter conhecido na realidade. No voo real, o comandante sentiu medo, sentiu a responsabilidade pela própria vida e pela vida dos passageiros, pensamentos sobre o risco existencial pesando

sobre ele e todos a bordo necessariamente lhe vieram à mente, nos breves

duzentos e quarenta segundos decorridos entre a declaração de emergência e a amerissagem, enquanto tratava de encontrar uma alternativa ao retorno

para o aeroporto de origem, por ele considerado um desastre certo. Nenhuma

dessas sensações poderia tomar conta dos pilotos sentados na cabina de voo simulado porque esses sabiam que estavam em condições de voo simulado e não corriam qualquer risco real, nem o imporiam a algum passageiro ou

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tripulante real. E isso significava que toda a atenção dos pilotos no solo, reproduzindo num simulador de voo as condições do voo real, estava voltada para a solução técnica ideal do problema da aeronavegabilidade do aparelho, sem qualquer interferência de alguma emoção subjetiva real. O comandante

Sully, porém, insistiu que sua experiência havia sido totalmente diferente e específica porque ele estivera lá, ele estivera voando sobre a cidade de New

York e sobre o rio Hudson reais, tendo nas mãos o destino de um avião real

que dele dependia. Tudo indica que mesmo esse seu argumento não teria sido recebido pela comissão de investigação, convencida de que a experiência

de voo simulado em terra é em tudo equivalente a uma experiência de voo real no ar (índice claro da crença, para todos os efeitos, nesse caso como em vários outros, da inexistência de distinção entre realidade e ficção), se

a Sully não tivesse ocorrido a intuição de que, mesmo tratando-se de uma

simulação, a prática dos pilotos dentro da cabina de realidade virtual estava

perfeita demais. E essa percepção, de fato uma intuição, levou-o a perguntar pelo número de tentativas simuladas de pouso da aeronave, nos aeroportos

indicados naquele dia pela torre de controle, que haviam precedido a aterrissagem simulada final efetivada em boas condições simuladas e exibida

pela comissão de investigação durante a audiência. A resposta da comissão,

após uma consulta ao centro de simulação, foi: “Dezessete.” Sully, o piloto real, tivera apenas uma chance, em situação real: e ele não deixou de ressaltar esse ponto. Uma única tentativa era tudo de que dispunha no ar, em meio

às emoções internas que o deveriam acompanhar naquele momento e que não eram passíveis (por enquanto, em todo caso) de reprodução artificial. A

não ser, talvez, em situações extremas, como o recurso a alguma injeção de

substância química no sangue dos pilotos em voo simulado ou de algum gás

no ambiente da cabina simulada e que neles provocasse medo, ansiedade, desespero — emoções cujo peso sobre o desempenho dos pilotos naquelas

cabinas de simulação (eram duas diferentes tripulações em duas cabinas

distintas) não poderia de todo modo ser avaliado por não existir por enquanto um modo de renderizar essas emoções: sensações e sentimentos interiores

são, ainda, irrepresentáveis, não renderizáveis, não reprodutíveis, singulares, não comunicáveis. Em entrevista posterior ao acidente, o comandante Sully relatou uma sensação que influiu em sua decisão de pousar na água: o cheiro da carne queimada dos pássaros que entraram nas turbinas do avião e levado para o interior da aeronave pelo sistema de ventilação de bordo. O complexo ambiente emocional do voo não foi e não poderia ser renderizado

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no simulador de voo;125 e mesmo que fosse, um fator decisivo afetaria o desempenho dos pilotos do voo simulado: sabiam estar em solo, sem correr qualquer tipo de risco real.

Experiências interiores não podem ser renderizadas em situação de

realidade virtual. O que for logicamente impossível, também não. Não se descarta que seja um dia viável induzir diretamente o cérebro humano a

imaginar-se em situações fisicamente impossíveis. Nesse caso, o sucesso da experiência de realidade virtual dependerá do deciframento do código usado pelos sentidos humanos em sua relação com o mundo exterior e da

possibilidade de estimular diretamente, por métodos artificiais, os nervos de

conexão do corpo com o cérebro. Em princípio, não há limite para o que pode ser reproduzido artificialmente, tudo é questão de alcançar-se materialmente

as condições necessárias: basta, e não é pouco, dispor de tempo suficiente, memória de computador suficiente e energia suficiente para que seja rende-

rizável tudo que for logicamente e fisicamente possível. Inclusive o próprio universo (cf. Completude). Os desafios para obter-se uma realidade virtual de

acurácia absoluta, quando comparada com o fato real que lhe deu origem, são, porém, imensos. Uma realidade virtual perfeita poderia ser, em princípio e por exemplo, aquela reproduzida a partir de um jogo de futebol real com

cujos componentes (jogadores da mesma equipe e da equipe adversária, bola, grama, juiz, vento etc.) o jogador-usuário, em ambiente virtual, interagisse de

modo total, criando e participando de jogadas como num jogo “verdadeiro”. Decorridos poucos minutos do início controlado da partida, no entanto, o

número de jogadas possíveis e perceptivelmente distintas umas das outras

seria maior que o número de átomos do universo — algo entre 1078 e 1082 de

átomos — com a agravante de que esse número crescerá exponencialmente

a partir desse ponto. Uma situação de realidade virtual deveria ser capaz de

fornecer respostas a todas essas jogadas possíveis dos vinte e dois jogadores virtuais em campo com os quais está interagindo uma determinada pessoa ou

conjunto de pessoas. Um detalhe: a acurácia da renderização, quando compa125

Numa situação análoga, alguém relata a um amigo que sua mulher ou amante ou namorada deixou-o. O amigo responde dizendo “Posso imaginar como você se sente.” O primeiro contesta: “Não, você não pode imaginar.” De fato, não pode. Um sentimento pessoal pode ser aproximado de diversos modos, pelas palavras por exemplo; mas não é possível — por enquanto — uma reprodução exata desse sentimento interior, seja qual for o meio físico de expressão.

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rada à situação real da qual partiu, não poderá ser verificada e, menos ainda, assegurada pela pessoa ou pessoas jogando essa partida virtual. Uma pergunta derivada dessa constatação não vem sendo feita: a acurácia interessa, numa

partida simulada de futebol? Para a simulação de voos, no entanto, e para a

simulação de um voo específico como o que terminou no rio Hudson, quando é

relevante recriar as condições de algo que efetivamente já aconteceu, a acurácia é vital. E no entanto a acurácia não pode ser verificada: não há possibilidade de renderizar com acurácia o passado — a menos que se volte ao passado, o

que não parece uma possibilidade física. A comissão de investigação sobre o voo US Airways 1549 serviu-se dos dados estocados nas caixas pretas do avião (parâmetros de voo, conversação dos pilotos entre si e com a torre de controle) e

das informações obtidas junto aos controladores de voo; não há indício de que

o comandante relatara à comissão de investigação, num primeiro momento, o detalhe do cheiro de carne animal queimada penetrando no sistema de ventilação do avião, mencionado apenas mais tarde, em entrevistas. E se o tivesse relatado, não haveria como renderizar aquele cheiro e introduzi-lo

como um dado na cabina de voo simulado; e mesmo que isso fosse possível

por algum artifício, não seria possível verificar qual a acurácia da impressão causada pelo cheiro no comandante e as emoções que sentiu e como isso

poderia ter afetado sua decisão: não é possível, por enquanto, renderizar experiências interiores, a repetição desse fato é relevante. O futuro pode ser

renderizado desde que a questão da acurácia não entre em jogo; nesse caso, a renderização é uma proposta e a acurácia não está em jogo por não haver uma matriz com a qual compará-la.

A previsibilidade e imprevisibilidade de um evento é tema decisivo para

a proposição de uma realidade virtual. Uma roleta de cassino renderizada virtualmente deve ser tão passível de uso, para apostas, quanto uma roleta física, significando que os números indicados pela bolinha correndo sobre as

“casas” devem “sair” de modo tão imprevisível quanto na realidade. Esse seria o

indício de que a roleta é “justa”. Novamente, algum físico, como David Deutsch, dirá que é impossível a confirmação da previsibilidade de um determinado

número “sair” dado que sempre poderia existir um programa secreto a orientar o giro da roleta de modo a dar a ilusão de imprevisibilidade ao mesmo tempo que fornecesse, a alguém detentor dessa informação, a possibilidade de saber qual número “sairia” a partir de determinada altura. Curiosamente, parece

não ocorrer a David Deutsch que essa situação apontaria para outra em que

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o determinismo interferiria na vida real de alguém de modo desconhecido, e aparentemente imprevisível, e no entanto prefixado... Tudo indica que as

limitações à construção de realidade virtual são apenas aquelas indicadas, não existindo uma situação de realidade virtual que a pessoa submetida à experiência interpretasse como fisicamente impossível.

A distinção entre realidade virtual e realidade “real” ou imediata tende

a esfumar-se. O sonho é uma experiência de realidade virtual, por vezes em

HD, alta definição: o prazer em tudo verdadeiro experimentado numa relação sexual sonhada, quer dizer, virtual, pode dar causa a reações físicas reais, no corpo do sonhador, tão reais quanto as obtidas numa relação sexual real e

experimentadas com igual prazer: o cérebro humano que sonha é capaz de

fornecer todo esse conjunto de dados ao sonhador — e a acurácia da experiência virtual será medida pelos ocasionais resíduos físicos do sonho que

lençol e roupas possam exibir... O relacionamento da mente com o mundo, sob todos os aspectos, é tão virtual quanto o experimentado numa situação dita explicitamente de realidade virtual. Tudo está “lá fora”, do lado de fora

do corpo, mas a experiência desse lá fora objetivo, em todo caso objetivado, é sempre indireta pois resultante de informações sensoriais interpretadas por signos, conceitos e teorias, autênticos softwares que a transformam em

alguma informação a seguir usada pelo intérprete (o observador) para aquilo que tiver ou não tiver em mente. Para o que tiver em mente: correr e apagar

um fogo cuja existência deduz da visão de fumaça saindo de um quarto. Para o que não tiver em mente: a visão inesperada de uma imagem esbranquiçada

no interior de um quarto escuro, causando-lhe uma sensação não procurada

de medo. A relação com o mundo exterior nunca é direta, a mediá-la sempre está um signo (um signo icônico como uma imagem visual ou um cheiro; um signo indicial, como uma placa de trânsito proibindo o estacionamento ali

onde ela está fincada; um signo simbólico, como uma cruz ostentada numa

corrente ao redor do pescoço de alguém indicando que é praticante ou adepto da religião cristã). Em outras palavras, entre um observador e o mundo exterior encontra-se sempre o complexo químico responsável pelo funcionamento do cérebro (o que permite indagar se o homem sonha um sonho ou se é o

sonho-processo-químico-autônomo que se instala no homem, para não dizer

que é o sonho que sonha o homem assim como Roland Barthes dizia que é a linguagem que fala o homem, não o homem que fala a linguagem). Todos os

três tipos de signos podem ser renderizados por serem entidades físicas não

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apenas lógicas como existentes. Esse é um ponto não levado em conta pela semiótica quando se propôs do modo tão rigorosamente formal e preciso

quanto Ch. S.Peirce o fez. Não era um aspecto que o interessasse, o que não lhe retira qualquer parcela do mérito pela construção por ele erguida. A questão

é pertinente para a possibilidade da realidade virtual na medida em que o signo (símbolo, na expressão imprecisa de David Deutsch, embora consagrada pelo uso) é um objeto físico material e reconhecível pelas configurações

que assume.126 Essa proposição é nuclear para a computação porque, sendo

os signos matéria, não é possível confeccionar um número infinito deles assim como cada software deve necessariamente conter um número finito de símbolos. Não é clara a possibilidade de que, mesmo no suposto Ponto

Ômega possibilitador do máximo de energia possível capaz de alimentar o supercomputador nele formado,127 uma quantidade infinita de matéria

esteja disponível pelo tempo necessário nesse limiar do aniquilamento e da

descoberta máxima. O que fica claro é, nessa condição, a impossibilidade de

construção de uma realidade virtual de um universo infinito como o nosso. Essa impossibilidade surge como decorrência das leis da física e são essas leis que restringem drasticamente o repertório de programas de qualquer máquina fisicamente possível e, por conseguinte, de realidades virtuais como a resultante da renderização do universo — a menos que se admita a hipótese de que é possível construir computadores capazes de renderizar todo ambiente

fisicamente possível sem ter de recorrer a uma quantidade impraticavelmente ampla de recursos. Essa possibilidade assenta-se no princípio de Turing para

computadores abstratos que simulem objetos físicos: “Existe um computador

universal abstrato cujo repertório inclui toda e qualquer computação que um objeto fisicamente possível pode realizar.” Esse computador é o computador

quântico, que começa a tornar-se realidade sem que se defina ainda quais seus efetivos desdobramentos. Poderia um computador quântico, por exemplo, proceder a fatorações hoje inviáveis para os computadores clássicos, aqueles

digitais de uso largamente difundido? “A computação quântica”, escreve

Deutsch, “é um modo qualitativamente novo de controlar a natureza”. Em inglês existe uma expressão costumeiramente empregada, para descrever esse controle, com carga conotativa mais dramática: A computação quântica é um

modo qualitativamente novo de colocar arreios na natureza... e fazê-la virar

126

Cf. David Deutsch, op.cit., p.127

Cf. Completude.

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para o lado que interessa ao homem. Não estamos mais, de fato desde o final

do século 18, nos tempos da contemplação da natureza: trata-se, já há algum

tempo, e cada vez mais, de agir sobre ela, controlá-la, dobrá-la… enquanto isso for possível, em todo caso.

Esse é um tópico cuja possibilidade ou impossibilidade é averiguada por

estudos cuja exploração, novamente, não cabem aqui. Na perspectiva deste

texto, interessa destacar que, em virtude das leis da semiótica (parece-me possível usar essa expressão), muito do que se pensava como oposição à

realidade virtual é, de fato, um modo da realidade virtual — o que implica

que a realidade é um modo da realidade virtual.128 Nessa perspectiva, toda a

arte, da “arte” das cavernas ao mais sofisticado Picasso cubista e ao filme em

surround sound e 3D — possivelmente incluindo aromas ou cheiros artificialmente introduzidos numa sala equipada com poltronas que se movimentam

conforme se movimentem os personagens na tela (algo que já se encontra nas Disneylândias)129 — e passando pela pop art e pela experiência musical numa sala de concerto tradicional onde se apresenta um programa de música barroca, são experiências de realidade virtual assim como o é a leitura ou

audição de um poema que faz alguém chorar ou entristecer-se ou alegrar-se

profundamente, em todos os átomos da arquitetura de sua sensibilidade,

com algo que não está palpavelmente à sua frente e que talvez nem exista. (A definição do real como sendo aquilo que pode ser tocado — ou ouvido ou

sentido ou degustado ou visto — é de evidente inconsistência e impropriedade.) A realidade virtual gerada por um computador será assim nada mais

do que a extensão exponencializada e inevitável da experiência de mundo

Philip K. Dick, autor de Sonham os androides com ovelhas elétricas? (1968), que gerou nas telas de cinema os dois sucessos mundiais de Blade Runner e Blade Runner 2049, dizia (e lamentava) que a realidade estava com seus dias contados. O território da realidade, no entanto, nunca se constituiu, sob todos os aspectos, em cenário límpido e incontrovertido.

Aldous Huxley designava os filmes, em seu Brave New World, com o termo “feelies”, literalmente “[imagens] que fazem sentir”, de to feel. Lembrar que “movies”, em português traduzido apenas como “filmes”(poderia ser “cinemas”), significa “[imagens] que se movem”, em oposição à imagem estática da fotografia, e que “talkies”, designação que surgiu para designer o cinema falado, quando de seu aparecimento, significa, exatamente, [imagens] ou filmes “que falam”, de to talk.

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do homem (cf. a obra de Marshall McLuhan),130 já mergulhado numa ampla

realidade virtual. Sob esse aspecto, o ser humano e seu mundo, que configu-

ram um computador (o homem é esse computador e o mundo, seu objeto e matéria; no limite, ser humano e mundo constituiriam um computador), são um efeito de realidade virtual; e a expressão-limite dessa realidade reside

num computador rápido o suficiente, com capacidade suficiente para “rodar” os programas necessários (cada um com seu repertório específico e necessário) e que disponha da energia requerida para seu funcionamento pleno. A

pergunta que os físicos e engenheiros da informação hoje enfrentam é aquela referente à possibilidade de construção de um gerador definitivo de realidade

virtual, passível de ser programado para renderizar todo e qualquer ambiente

e evento que a mente humana seja capaz de experimentar — uma proposição de alcance maior do que costuma ter na linguagem comum. A palavra mente

é aqui introduzida de modo consciente, no lugar da mais comum pessoa. O ponto de partida e o teto último é a mente, o impessoal na reflexão de Simone

130

Entre elas, O meio é a massagem e Os meios de comunicação como extensões do homem (no original, Understanding Media: The Extesions of Man). Os ensaios de Marshall McLuhan são de fato seminais, só não tendo recebido a atenção merecida da universidade brasileira por não se enquadrarem no sistema marxiano de explicação da sociedade em vigor à época de seu lançamento, meados dos anos 60. O subtítulo de O meio é a massagem, “Um balanço dos efeitos”, pede uma reflexão à parte. Não só as mensagens são um repertório de efeitos: o mundo que elas representam é, igualmente, um repertório de efeitos. A mesma década que viu o surgimento de McLuhan consagrou igualmente as expressões “efeito de discurso” (ou “de linguagem”) e “efeito de mundo”, nos estudos sobre a linguagem e a ideologia, como sendo duas expressões distintas remetendo a duas dimensões diferentes quando não opostas, certamente complementares, mas nem sempre vistas como tais (preferiu-se entender que uma delas, “efeito de mundo”, era superior à outra, entendida esta como mera manifestação da ideologia; cf. menção ao artigo “Some Studies in Machine Learning Using the Game of Checkers”, in Adaptabilidade). O entendimento de toda mediação da vida e do mundo como renderizaçao da vida e do mundo pede uma reformulação das noções de “efeito de mundo” e “efeito de discurso”: tudo seria e tudo adquiriria sentido como e pelo discurso. Isso não significa que “o mundo” seja a coisa verdadeira e “o discurso”, o falso ou o ideológico. O conhecimento vem do discurso e a validade ou falsidade do conhecimento dependerá da propriedade ou impropriedade do discurso, que existe para ser contestado e substituído por outro dotado de maior acurácia.

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Weil.131 Corrigindo, em parte: o corpo é essencial, nesse processo — “a mão é

a parte visível do cérebro”, escreveu Kant: a mão é a parte visível da mente, o corpo é a parte visível da mente assim como a mente é a projeção interior do corpo. Digamos, porém, que a mente é a intérprete do corpo. E do mundo. Já que a semiótica entrou em cena, vale seguir com ela um pouco mais para dizer

que a mente não é, propriamente, a intérprete do corpo e do mundo, o termo

intérprete remete automaticamente à figura de uma pessoa (agora, remete também a um algoritmo...): a mente é o interpretante da realidade virtual

que é o mundo ou o interpretante do mundo tal como aparece na realidade

virtual renderizada pelo homem. A mente não é a intérprete do mundo, é seu

interpretante, quer dizer, a soma final e total de todos os sentidos e significados

de um signo e de um conjunto de signos presentes num fato, real ou virtual, ou num discurso (sempre uma virtualidade) para a qual essa mente tende em

seu ato contínuo de conquista do conhecimento. Se Tipler estiver correto em sua suposição, em sua renderização do homem e do universo, esse ato final de conquista do conhecimento localiza-se no Ponto Ômega — desde que um computador universal possa proceder à renderização do universo...

A questão, novamente, consiste em saber se esse computador último é factí-

vel. A resposta é sim, em termos, uma vez que um computador com velocidade

ilimitada ou “simplesmente” superior à da luz não é fisicamente possível, hoje. Uma realidade virtual excitante, e aparentemente inexcedível, seria aquela

passível de ser renderizada no instante mesmo em que a realidade renderizável acontecesse. Mas se a experiência complexa de um ambiente complexo, a ser

efetivada numa dada fração de tempo, requerer do computador mais de uma fração de segundo para ser renderizada, o computador já não poderá fornecer

uma realidade virtual tal qual, não poderá gerar a realidade virtual máxima. A questão a partir deste ponto torna-se extremamente complexa — se já não o era nas linhas anteriores — e requer um mergulho nos autores que tratam de enfrentá-la frontalmente de modo direto, dispondo do espaço e do conhecimento adequados, o que não é o caso aqui.132

Cf. deste autor “Partido, cultura, futuro” in Sobre a supressão dos partidos políticos; Ed. Iluminuras, 2018.

Cf. as obras de David Deutsch, Ray Kurzweil, Nick Bostrom, entre outros; em particular, Reality is not what it seems: the journey to quantum gravity, de Carlo Rovelli.

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Neste instante terá de bastar pôr em evidência que já vivemos experiências

cotidianas de realidade virtual. Voltando ao futebol: assistir a uma partida de futebol, na qual se faça algum tipo de investimento emocional particular, tor-

nou-se hoje, em certas situações de socialidade e urbanidade, uma experiência sofrível. Como sabem passageiros de um voo com acesso à internet, pessoas sentadas em poltronas separadas umas das outras por não mais do que os

exíguos centímetros permitidos pelas companhias aéreas, usando tablets ou

celulares de um mesmo modelo e marca e servindo-se do mesmo e único servidor de internet (aquele disponibilizado pelo avião), verão a mesma imagem

em tempos diferentes, mesmo se distanciados por um segundo, e gritarão “gol” umas antes das outras, anulando toda sensação de imprevisibilidade e prazer que as segundas, “atrasadas”, poderiam ter. O mesmo no interior de um apartamento separado de outros por dezenas de metros, no mesmo edifício ou

em edifícios apenas pouco distantes: som e imagem chegarão a uns e outros em tempos distintos e gritos de gol anteriores à imagem do gol recebida por espectadores segundos reduzirão a zero, para estes, a imprevisibilidade do

desfecho de uma dada jogada. A experiência insólita de estar vivendo em um tempo diferente do tempo dos outros, de um tempo pessoal, numa situação de aparente normalidade e naturalidade, é inevitável; e com ela, a incômoda sensação de estar atrasado no tempo — já que a possibilidade de estar, em

relação aos que gritaram antes, adiante no fluxo do tempo, que de resto não é um fluxo, é impensável: aquela imagem vista antes por dezenas de pessoas

não pode ter-se originado num evento posterior ao da primeira recepção.133 Para todos os efeitos, o tempo é uma experiência pessoal tanto quanto o espaço e dizer que a sensação de um determinado tempo, do tempo da pessoa

X, é virtual ao passo que a sensação de tempo da pessoa Y seria real — uma

experiência do tempo real — não mais faz sentido. Os tempos diferentes são, todos, igualmente reais ou igualmente virtuais por existirem a partir da pessoa

ou, melhor, do interpretante. A realidade, escreve Carlo Rovelli, é uma rede de eventos granulares conectados por uma dinâmica probabilística entre os

quais interpõem-se “espaço, tempo, matéria e energia fundidos numa nuvem de probabilidades.”134 Um físico que transite pela literatura, poesia e arte, como 133

Carlo Rovelli, Whats is Time? What is Space? e L’ordine del tempo; Kip Thorne, The Science of Interstellar; e a ficção Solaris (1961), de Stanislaw Lem, do qual em 1972 saiu o filme de mesmo nome dirigido por Andrei Tarkovski.

Carlo Rovelli, Reality is not what it seems: the journey to quantum gravity, Penguin Books.

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Rovelli, sempre encontra uma expressão mais sugestiva para significar aquilo que, de outro modo, exigiria páginas e páginas de conceitos encadeados; o

significado de tempo tem de ser procurado nessa massa derretida de espaço, tempo, matéria e energia que o leitor não sabe bem o que seja, mas que sente muito bem o que é.

Ponto em evidência: a tecnologia necessária para o controle (disso se trata)

da experiência humana sensorial — da experiência humana de vida — está

em evolução há milhares de anos. E num sentido lato, todas as experiências com a arte e com os processos de telecomunicação — o recurso ao código

Morse, ao telefone, ao xerox, às transmissões de televisão ao vivo,135 live como

135

A impropriedade de expressões como ao vivo e live salta aos olhos: claro, não existe uma transmissão ao morto, uma transmissão dead (por vezes usa-se ou usava-se “imagens enlatadas” para designar aquilo que não é “ao vivo”, mesmo se as imagens não mais sejam enlatadas como antes se fazia com o cinema, guardado em latas de metal como as ervilhas): todas estão vivas ou todas estão mortas (cf. outra vez, A invenção de Morel, de Bioy Casares). Expressões como live e ao vivo querem significar que as imagens de um jogo de futebol, por exemplo, antes de chegar ao espectador, não passaram por uma cabina de gravação ou regravação e posterior difusão, caso em que delas se poderia dizer estarem mortas ou congeladas ou enlatadas. Mas o fato é que passaram pela mesa de edição do diretor de TV situada no interior do caminhão de transmissão estacionado fora do estádio ou a dezenas de milhares de quilômetros, nos estúdios da emissora onde foram editadas e colocadas em sua sequência “real” final vista pelo espectador — e não só isso como intercaladas com imagens gravadas (em videotape) de momentos importantes que aconteceram num instante anterior ao fluxo aparentemente real do jogo naquele instante visto na tela (enquanto o jogo segue, o close de um pé tocando faltosamente a perna de um adversário em momento logo anterior é em seguida, no momento seguinte, inserido na tela, sendo visto portanto fora da cronologia “real”). Não há mais como um espectador ver, hoje, essa partida “ao vivo”, enquanto ela acontece. A transmissão “ao vivo” não é um analogon do jogo “real”. Jorge Luis Borges tem razão: o enquanto não existe. Situação emblemática é a descrita no filme Interestelar (2014) dirigido por Christopher Nolan, cujo currículo inclui outros filmes prestigiados (Dunkirk, 2017): Cooper, o viajante no tempo com a missão de salvar a humanidade, olha a filha do outro lado de uma estante de livros, mas a filha não o vê, não porque a estante os separe ou porque a distância seja muito grande: os tempos são outros, o espaçotempo é outro e ambos estão apenas em ilusório contato visual (e contato visual unidirectional: só Cooper vê a filha, ela não o enxerga). Interestelar teve por consultor científico a Kip Thorne (n. 1940), físico teórico da Caltech University California, prêmio Nobel em 2017 por seus estudos sobre física gravitacional, autor

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se diz em inglês ou en direct como preferem os franceses; a teleconferência via Skype ou WhatsApp — são experiências de realidade virtual. Algumas

não suficientemente acuradas a ponto de serem confundidas com o original, com “o real”; outras, sim — ou quase. E outras ainda podem ainda estar suficientemente próximas da experiência original ou dela se aproximar assintoticamente: num sistema de realidade virtual avançado, um concerto musical

poderá ser experimentado integralmente em situação de realidade virtual, significando que o público não estará no local em que se dá a performance

da orquestra em carne e osso com metais e cordas e percussão, mas que tudo

poderá ser experimentado como se o espectador-ouvinte estivesse na própria sala, em companhia de outros espectadores-ouvintes com os quais poderá

comunicar-se e com eles trocar suas experiências musicais e impressões do

momento enquanto o momento se desdobra. E amigos poderão juntos fazer compras num supermercado virtual e comparar coisas e preços que comen-

relevante na pesquisa sobre os “buracos de minhoca” (worm holes) e outros temas de ponta. Thorne serviu também como produtor executivo do filme (os físicos ocupam outras dimensões na vida científica e cultural nos EUA…). Membro de academias de ciência nos EUA e Rússia, foi colega de Carl Sagan e Stephen Hawking e escreveu o livro The Science of Interstelar (New York; W.W.Norton & Co.) para explicar o quê no filme é ciência, o que é ficção e o que é imaginário. Apreciador do gênero ficção científica “hard”, em seu livro Thorne indica como a ciência está fortemente tramada no roteiro do filme. Cooper, ao ver a filha do outro lado da biblioteca sem por ela ser visto, está no interior de um tesseract (o Houaiss ainda não inclui um equivalente do termo em português), um hipercubo com quatro dimensões espaciais no lugar das três usuais (será melhor o leitor consultar o livro de Kip Thorne ou buscar a imagem de um tesseract na internet); como Cooper, e qualquer humano, é feito de átomos mantidos juntos por forças nucleares e pela eletricidade, e como esses átomos só podem existir nas três dimensões do espaço e uma do tempo, Cooper tem de ficar restrito às faces tridimensionais do tesseract, não pode experimentar a quarta dimensão espaçotemporal — e não está “ao vivo” com sua filha no outro lado do tempo: de certo modo, servindo-me do tesseract da física como metáfora, estamos todos dentro de um tesseract em relação a algo do outro lado do tempo e do espaço. Retornando ao live e ao en direct: como os franceses insistem na cartesianidade de sua linguagem, a expressão en direct propõe-se de fato como mais adequada, apesar dos equívocos que também ela carrega: a partida de futebol não está sendo transmitida diretamente do estádio na cidade X, mas diretamente da mesa de edição do diretor de TV, que pode tanto estar naquela cidade X como no estúdio central da emissora numa outra cidade Y, e não poderia ser menos ou mais virtual do que qualquer realidade virtual, inclusive aquela que conforma a experiência do jogo no campo…

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tarão como se lá estivessem ao mesmo tempo, num mesmo espaçotempo. O

ambiente a ser renderizado será complexo, mas talvez não tão complexo que

impeça sua captação virtual. Um sonho, como visto, é um caso do como se; uma vida em comum ou uma experiência comum, vivida em comum por um

casal, pode revelar-se outra situação do como se uma vez que a intensidade da emoção vivida num dado momento e num dado lugar específico, num certo espaçotempo, pode não passar de um como se para um dos membros do

casal ou, mesmo, para os dois — algo de que um deles poderá eventualmente dar-se conta quando essa experiência de espaçotempo estiver encerrada. A

experiência da vida virtual possível no futuro é quase inconcebível para uma

pessoa vivendo hoje e que recorre a um interpretante tal como hoje possível. A forma da experiência será outra — e é possível que a responsabilidade pela configuração dessa outra forma já tenha sido retirada do ser humano há algum

tempo sem que ele disso tenha se dado conta, num processo já iniciado e que

desembocará, tudo indica, nessa forma segunda a menos que algo venha interromper decisivamente esse processo. Algo, na perspectiva atual, pouco provável. Torna-se claro, neste ponto, que a expressão realidade virtual não

se refere necessariamente a uma situação em que uma pessoa — melhor: a

mente humana — passa pela experiência artificial de estar num determinado ambiente ou diante de determina cena. A máquina, computador ou outra, não

necessita estar fora do homem para proporcionar-lhe uma experiência de realidade virtual: alojado em sua mente está um gerador de realidade virtual de alta potência, potência até este ano de 2018 não alcançada e superada por uma máquina solteira. Por máquinas em paralelo, “casadas”, talvez...

Na perspectiva do ponto de observação em que a humanidade encontra-se

hoje é em princípio, na óptica domesticada em vigor, extremamente árduo determinar se a experiência comum virtual possível (ou provável) será melhor ou pior do que aquela “tradicional”, se uma será mais verdadeira136 ou bela

136

O conceito de verdade submete-se a constantes mutações. De início, verdade era adequacão ao fato real observado, o que nunca levou a algo de muito sólido (o Sol parece mover-se ao redor da Terra, mas essa não é a verdade dos movimentos nesse sistema). Depois, em nível superior, a verdade decorria da coerência interna da explicação de um fato: coerência interna dos cálculos de uma demonstração matemática, por exemplo, coerência que, se não for invalidada por outros cálculos, deve ser considerada válida e operacional (portanto, verdadeira) mesmo se de início não for possível confirmá-la pela observação direta do real. Agora, alguns físicos, como Sabine Hossenfelder

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do que outra, e qual grau de subjetividade estará presente numa ou outra. Pode dar-se, porém, que não seja possível, tampouco pertinente, afirmar que a

natureza subjacente a cada uma dessas experiências diga respeito ao real ou à fantasia, ao imaginário. E nesse caso todas aquelas distinções perdem a razão de ser. A experiência atual e a experiência virtual podem constituir-se em nada mais do que “lugares diferenciados da existência”, parafraseando observação de

Roland Barthes sobre a fala e sobre a oposição milenar entre ciência e arte ou, no caso que Barthes prefere considerar, ciência e literatura.137 Ciência e arte não

são entidades antitéticas, são lugares diferenciados da existência. Tudo aponta, hoje, para a forte possibilidade de que a oposição entre ciência e arte, a partir dos laços cada vez mais frequentes e estreitos que unem uma à outra ao mesmo

(autora de Lost in Math: How Beauty Leads Physics Astray, Basic Books, 2018) defendem novamente a necessidade da “identificação [de uma teoria] com o mundo real” porque “praticar a matemática correta é deter apenas uma parte da teoria correta.” Pode ser. Mas se Einstein ficasse parado em suas reflexões até que a observação empírica demonstrasse a pertinência de sua matemática, o que em alguns casos demorou sete décadas, ele não teria ido muito longe. A coerência interna é a verdade contemporânea, enquanto não for destruída pela “identificação com o mundo real”. A coerência interna é a verdade contemporânea qualquer que seja a disciplina: a verdade da arte, a verdade de um cálculo matemático, a verdade de um poema, que são a verdade interna da arte, a verdade interna da matemática, a verdade interna de um poema. David Deutsch prefere fazer apenas distinções entre boa explicação e má explicação. A má explicação não é necessariamente falsa: toca em alguma parte da verdade do evento mas, não o explica de fato (a explicação de que um mágico faz um truque por meio de um jogo de mãos contém uma verdade, mas ainda não explica como o faz, o que faz). Dizer que tudo no mundo é feito de átomos toca na verdade mas não explica muito, quase nada: é má explicação. Boa explicação é aquela que se mostra de variância impossível ou muito difícil: se existem cinco versões ou teorias distintas da Teoria das Cordas, na física, e se todas dizem explicar o mesmo evento a partir de cinco perspectivas diferentes, algumas estão equivocadas ou todas o estão ou todas estão certas, mas será melhor que se unifiquem: algo tinha de ser feito a respeito e Edward Witten, da Universidade do Sul da Califórnia, o fez em 1995 ao propor uma teoria unificadora denominada Teoria M. Enquanto permanecer invariada, será uma boa explicação — portanto será verdadeira, de uma verdade talvez momentânea, talvez duradoura.

137

Roland Barthes, Leçon; Ed. Seuil, 1968, p.20. No presente texto, o que se segue a esta nota foi escrito sob inspiração da lição de Barthes. A leitura do passado na perspectiva do presente é inevitável e serve para perceber que o processo do conhecimento é antes um contínuo do que um conjunto de unidades discretas que procedem aos saltos.

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tempo em que borram as fronteiras entre elas,138 não passe de um mito. Nessa

linha, realidade “atual” e realidade “virtual” são apenas lugares diferenciados da existência. A realidade atual é tida como um enunciado, um dado; a realidade virtual, uma enunciação, requer uma construção deliberada dependente do

sujeito. A constatação de Barthes sobre o que é a natureza do enunciado e a da

enunciação é estimulante, embora não precisa na óptica da realidade virtual (em 1968, a ideia de realidade virtual não circulava pelas ruas do 6ème e 7ème

arrondissements da Rive Gauche de Paris, às voltas com a realidade bem mais dura do Maio de 68). O enunciado é o produto encerrado, terminado, quase

sempre posterior à presença do enunciador que o emitiu, como a vida e o mundo

encontrados pelo ser humano ao nascer ou um livro que o leitor lê dois séculos

depois de escrito; a enunciação, e seu sufixo serve para isso, aponta o lugar e a energia do sujeito atual. A enunciação é um constructo do sujeito, como o é a realidade virtual. Aquilo que parecia dado é, no entanto, também ele um

constructo, portanto uma virtualidade. Esse constructo, como toda enunciação, é um leque de implicações, efeitos, ressonâncias, giros e regiros e reviravoltas; dá a manifestar-se a um sujeito “insistente e não localizável, desconhecido e no entanto reconhecido graças a uma inquietante familiaridade”. Esse grupo de amigos, comprando juntos virtualmente num supermercado virtual ou ouvindo

e vendo um concerto virtual numa sala virtual, constituem-se numa experiência desconhecida e no entanto reconhecível graças a uma inquietante familiari-

dade. As imagens (do latim imago, semelhança — e a imagem pode ser sonora, visual, olfativa, táctil, gustativa, não apenas visual), assim como as palavras da literatura, não mais são (ilusoriamente, acrescenta Barthes) instrumentos: são

“projeções, explosões, vibrações, maquinaria, sabores”. Assim como a literatura, para Barthes, faz do saber uma festa, a realidade virtual fará da experiência

uma outra explosão dos sentidos. Pode fazê-lo. E pode propor o oposto da festa. Nesse caso, e mesmo que a hipótese radical não ocorra, uma primeira função do

virtual será pôr em destaque, sublinhar, realçar, os diferentes lugares do real do qual ele mesmo, o virtual, é uma manifestação. O ser humano acostumou-se, por facilidade, a ter no real uma certeza incontornável e a ver, em tudo aquilo que o

contraria e nega (ou parece contrariar e negar), a irrelevância, a quimera, a ilusão, o sonho, a arte, a fantasia — em qualquer caso descartável e desprezível. O real, porém, como em Lacan, pode ser entendido como o impossível, aquilo que não

pode ser alcançado e que escapa ao discurso, aquilo que, por pluridimensional Cf. A máquina parou (op.cit.), a Ilíada na passagem sobre Hefaístos e tantas outras obras.

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(“leque de implicações, efeitos, ressonâncias, giros e regiros e reviravoltas”), não pode ser colocado na ordem unidimensional da linguagem. Não, em todo caso, na ordem unidimensional da linguagem codificada, rasteira e que fala o

homem (como a linguagem da burocracia, da ideologia); mas poderá localizar-se na linguagem livre e renovadora da poesia e da literatura.

Fig 12: Maria Martins, O impossível, 1940

O real é o pluridimensional ou o unidimensional? O virtual é a descoberta

da pluridimensionalidade de um real que de fato não o é e que assim apenas

surge através da força criadora da literatura, da capacidade de renderização da literatura? Em toda sua pluridimensionalidade, uma realidade virtual

iluminada talvez só será possível uma vez construído o computador quântico universal, algo que físicos como David Deutsch, escrevendo The Fabric of Reality em 1997, não considerava possível antes de várias décadas ou séculos, mas

cuja existência sempre considerou ser apenas uma questão de tempo (hoje, esse tempo está sendo encurtado para talvez apenas algumas décadas). Com frequência citado como caso da realidade virtual, o rótulo colado no delírio pode não ser mais do que sinal da inadequação fundamental da linguagem

para representar o real e a incapacidade do real de deixar-se representar pela

linguagem. O virtual é realista porque preso irremediavelmente a um real. (Por enquanto: não é impossível prever um tempo em que o virtual não terá

qualquer presilha que o una a qualquer tipo de real observável ou lembrável, quando então ele mesmo será sua própria e única referência).

No interior desse quadro, o virtual investe-se da função utópica: o virtual

como a utopia do real, um real passível de ser apreendido e que não escapa ao

discurso porque o real que lhe deu origem foi renderizado e, se foi renderizado, é porque foi apreendido e portanto representado: o real não será mais o impos-

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sível. Nem o virtual. Nessa hipótese, o virtual não está nem fora do mundo nem fora da História, uma vez que História e Utopia se confundirão. Se a literatura e as literaturas são as utopias da linguagem e portanto as utopias do real, o virtual é exatamente a mesma coisa uma vez que virtualidade é outro nome

para linguagem, i.e., para literatura. E se um dia o ideal da literatura — i.e., da

linguagem liberta — foi mudar a linguagem, o ideal do virtual é mudar o real. Mudar o mundo, como propunha Marx, lê-se agora como mudar o real, o que

o virtual pode fazer. E a mudança do real implica a mudança do mundo, ainda

que essa ideia apresente-se como inaceitável para boa parte do pensamento

filosófico-político. Assim como Barthes descreve as diferentes línguas — a vulgar e a erudita, a clássica e a moderna, a falada e a escrita — como reservas

nas quais o sujeito pode alimentar-se conforme a verdade de seu desejo,139 o

virtual e o real (se ainda fizer sentido distinguir entre os dois) propõem-se

como fontes de onde cada um pode beber conforme a verdade de seu desejo. E assim como existem tantas linguagens e literaturas quanto desejos, assim também existem tantas realidades virtuais quantos desejos existirem: que

um real não reprima o outro, seja qual for; que o sujeito do futuro desfrute,

sem remorsos, sem culpas, o prazer de ter à disposição duas instâncias do real, o imediato e o virtual; que esse sujeito assuma este ou aquele real conforme suas perversões, não conforme a lei do real, a ditadura do real.140

Todas essas questões, assim como aquelas referentes à linguagem, à lite-

ratura e à utopia, colocam em cena o tema do poder. O virtual como utopia 139

Mário de Andrade estava equivocado (ou em todo caso mirava um alvo inexistente) quando, em Macunaíma, descreve São Paulo como um lugar onde se escreve uma língua e se fala outra, nesse fenômeno vendo uma inconveniência, uma impropriedade, um disparate ou indício de uma vontade, de quem assim falava, de ser ou parecer ser mais do que se é. É fundamental que existam línguas distintas, e efetivas, num mesmo lugar, e que possam ser escolhidas conforme o caso. A riqueza de uma língua, combatendo o tédio diante das linguagens idênticas, vem daí. A prática de uma sintaxe e um vocabulário iguais, ou muito próximos uns aos outros, por parte de uma criança de 12 anos e de um adulto de 30, 40 e 50, numa conversa na quitanda ou num artigo do Le Monde, foi um de meus martírios durante minha vida em Paris, de resto prazerosa.

140

Cf. Barthes, Leçon, pag. 25: “que uma língua não reprima a outra, qualquer que seja; que o futuro sujeito conheça sem remorsos, sem recalques, o prazer de ter à sua disposição duas instâncias da linguagem; que esse sujeito fale esta ou aquela língua conforme suas perversões, não conforme a Lei.”

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e realidade radical de um desejo não preserva o sujeito do poder contra ele exercido, em princípio. Não é despropositado, porém, pensar na possibilidade

de colocar-se o virtual fora do alcance do poder: não contra ele e não acima dele, mas fora dele. A função de deslocar-se, colocar-se fora de um lugar, abandonar um lugar para ocupar outro onde se é ou não se é esperado, onde não se espera

e não se deseja que alguém vá, pode ser uma função instigante do virtual. A

arte e a literatura já são esses lugares, topoi,141 onde se opera o deslocamento,

os lugares para onde o sujeito, que pretende evitar um determinado real, se

desloca. O virtual como tópos radicalizado pode, porém, assumir a forma de um lugar que abole até mesmo a arte e a literatura porque se concretiza como

lugar de estar permanentemente, não mais apenas como lugar de refúgio: arte e vida poderão enfim coincidir num mesmo ponto, sem contradições e

asperezas: como se o sonho dos artistas estivesse desde sempre orientado por essa cenoura, a arte, até aqui colocada a sua frente e que ele enfim poderá

alcançar e saborear. Quando isso acontecer, a arte terá finalmente acabado,

esgotado seu ciclo. Ou a vida terá acabado. O real pode ser renegado, sem dúvida, mas a um custo alto; com a proposição do virtual, o real pode ser repelido, rejeitado, abjurado, sem que para isso o sujeito tenha de aniquilar-se, único

modo até agora de renegar o real.142 O virtual apresenta-se assim como uma

manifestação da “realclastia” (ao modo de “iconoclastia”), termo que embora

estranho deverá ser levado em conta.143 O poder das “-clastias”, todas elas, não é 141

A topologia virtual ocupará lugar decisivo no novo conhecimento, algo que se torna palpável com a aplicação dos conhecimentos já gerados pelas Humanidades Espaciais, área da qual Farès el-Dahdah, da Rice University, Houston, é um expoente com seu programa de renderização total da arquitetura e urbanismo da cidade do Rio de Janeiro desde sua fundação até hoje, em modelo 3D digital que permite ver fachadas, todas as edificações das ruas, as áreas adquiridas sobre o mar, as antigas localizações de prédios e igrejas. Aplicações desse tipo permitirão confirmar se, numa batalha na Grécia antiga, o número de combatentes historicamente mencionado de fato cabia no local descrito e se, numa biografia, os espaços descritos ao longo dos capítulos encaixavam-se no bairro ou cidade relacionados com o biografado. Surge, aqui, um novo ingrediente para a crítica literária.

Ensaístas e inventores como Ray Kurtzweil defendem com firmeza a hipótese da vitória do homem sobre a morte, que de fatalidade se transformaria em escolha (cf. A singularidade está próxima, op.cit.). Não é a isso que me refiro, embora esse seja um modo de renegar frontalmente o real.

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-clast, do grego klastós, quebrado: destruir as imagens.

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pequeno ao longo da história; e a humanidade organizada em sociedades mal começa, neste início de século 21, a admitir a multiplicidade dos desejos.144 Se a multiplicidade dos desejos do sexo é lentamente aceita, a da política o é menos

e a do dinheiro, menos ainda. A humanidade pode não estar, por enquanto, preparada para a multiplicidade dos desejos todos e de todas as realidades.145

Cf., adiante, o tópico “2. O valor no Admirável Novo Mundo revisitado: felicidade e sexo nos tempos computacionais”.

Tantas que não basta um universo para contê-las: no lugar deste supostamente universo único em que a Terra se localiza, será o caso de admitir-se a existência, pelo menos matemática, de multiversos, aventada por Newton e defendida por David Deutsch, entre outros, e descartada por outras correntes da física como “delírio desinteressante”. (Sabine Hossenfelder, na obra citada, faz um resumo dos motivos expostos pelos opositores da ideia.) Leonard Susskind, físico e professor de física teórica da Stanford University, pesquisador da teoria das cordas, estima haver mais universos do que os átomos existentes neste universo do qual a Terra é parte, um número de universos estimado em 10500 ou 10 seguido por 500 zeros. Susskind entende, dada essa magnitude, que a humanidade estaria se aproximando do fim das observações possíveis: “Os outros universos estão além do horizonte, não vamos vê-los, não encontraremos indícios experimentais de sua existência, o único modo de ter certeza quanto a sua existência são os cálculos matemáticos, não satisfatórios para os físicos que querem ver experimentos concretos”. E isso, mesmo com a produção crescente de computadores quânticos: o DWave 2x, de 2017, poderia lidar com um número de dados equivalente a 102000, 10 seguido por 2.000 zeros, um número maior do que a realidade. Conforme observa Marcos Cuzziol, engenheiro especialista em computação, pode-se estimar, com o recurso a um algoritmo quântico específico como o de Shor para a fatoração de números inteiros, que um computador quântico universal (algo que o DWave 2x ainda não é) levaria poucos milissegundos para processar dados que demandariam bilhões de anos para completarem-se num PC comum e talvez algo como “apenas” milhões de anos num supercomputador digital como o Cray XC-40 do Centro de Alta Computação (HLRS) da Universdade de Stuttgart, o quinto computador de uso civil mais potente do mundo, hoje. Mesmo com essa velocidade eventual, a possibilidade de um experimento concreto comprovando, no tempo humano, a existência dos multiversos estaria além do horizonte de eventos — e esse é o aspecto mais forte que torna a hipótese dos multiversos “desinteressante” para muitos físicos. Mas não para a literatura e a arte. O filme Solaris de Andrei Tarkovski, de 1972, baseado no homônimo romance de Stanislaw Lem publicado em 1961, tem seu enredo armado implicitamente, se não ao redor da noção de multiverso, pelo menos na de um outro mundo imensamente distante da Terra e com leis físicas distintas, o que seria uma possibilidade nos multiversos. Embora a primeira referência indireta à ideia de um multiverso, ou de um conjunto de universos distintos, remonte a uma passagem da Óptica de Newton, esse não era um termo corrente à época do aparecimento do romance de Lem; onze anos

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depois, quando fez seu filme, Andrei Tarkovski poderia ter conhecimento das discussões mais frequentes sobre esse conceito, algo no entanto pouco provável. Mas tudo aponta para a possibilidade de uma leitura “multiverso” do romance e do filme, intimamente relacionados, ambos, à questão das realidades distintas, dos desejos e da utopia. O enredo de Solaris, o filme, é acertadamente elíptico, mais que no livro, e de difícil resumo: uma estação espacial a anos-luz de distância da Terra, destinada a estudar o planeta Solaris dotado de um oceano incomum, é palco de fenômenos estranhos, observados na forma da presença inexplicada de pessoas (ou do que parecem ser pessoas) que ali não deveriam e poderiam estar. Enviado para estudar o assunto, um psicólogo, Kris, depois de rapidamente constatar que algo incomum de fato ali acontece, depara-se com o que parece ser sua própria mulher, Hari, falecida dez anos antes. Hari não sabe como foi parar ali, apenas quer ficar ao lado do marido que, assustado com o que vê, logo a atrai para um foguete estacionado na estação e a envia para o espaço, numa manobra mal feita em que ele mesmo quase morre. Um cientista da estação explica-lhe que essa mulher ou “mulher”, gerada pelo Oceano de Solaris, era “a materialização do conceito” que Kris dela tinha — em outras palavras, era a renderização de sua mulher real, para usar o termo de hoje. Em 1961, ano de publicação do romance de Lem, e em 1972, ano do filme de Tarkovski, a ideia de realidade virtual, de virtualidade, não era ainda uma comodidade teórica. A mulher encontrada por Kris na estação tinha calor de corpo e sentimentos como se humana fosse; mas buscando “devolver o juízo” a Kris, que começava a apegar-se à aparição, e ao mesmo tempo agredir a auto-imagem de Hari, outro cientista da estação descreve-a, diante dela mesma, como simples “reprodução mecânica, uma cópia”, mesmo se um “exemplar perfeito” em tudo análogo à original. No cinema, Hari foi uma antecessora de Rachael, a linda replicante do primeiro Blade Runner (de 1982), por quem o detective Deckard apaixona-se tanto quanto Kris por Hari mesmo sabendo, ambos, do caráter artificial da amada. A Hari-cópia, materialização artística também do sonho biocosmologista-imortalista da ressurreição e da vida eterna, pode ferir-se mas não morrer e evolui na direção de tornar-se sempre “mais humana” (pelo processo de machine learning, outra expressão inexistente à época). Os colegas de Kris dão-lhe uma explicação científica: humanos são feitos de átomos, mas Hari (Harey, no romance), gerada pelo Oceano, é um “sistema de neutrinos”. O neutrino é uma partícula elementar que interage apenas por meio de fracas forças subatômicas e da gravidade; eletricamente neutro, sua massa é diminuta e pode atravessar a matéria “dura” sem dificuldade e sem ser detectado, o que o torna fundamental para a trama de Solaris ao explicar a presença daquelas renderizações no interior fechado da estação espacial. A existência do neutrino foi postulada em 1930 por Wolfgang Pauli, ganhador, com a recomendação de Einstein, do prêmio Nobel de 1945 pela descoberta de uma nova lei da natureza, o “princípio da exclusão”ou “princípio de Pauli”; e confirmada em 1956 por um grupo de cientistas que igualmente receberam o prêmio Nobel por essa demonstração. (As relações de Pauli com Jung, que o tratou por uma depressão, são um sugestivo capítulo das relações entre a física e as Humanidades — mas que aqui não cabe.)

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A ficção, é sabido, já está preparada e já nos prepara para isso — e a ficção

das séries Westworld e Altered Carbon sugerem a antecipação de um tempo em Bruno Pontecorvo predisse em 1957, a tempo para que o romancista Lem se informasse a respeito, que o neutrino tinha um comportamento instável, qualidade depois observada em vários experimentos. (As pesquisas sobre o neutrino surgem relacionadas com o problema da existência do “boson de Higgs”, chamado sensacionalisticamente de “partícula de Deus”, cuja existência foi demonstrada em 2012 pelo acelerador de partículas do CERN, Organização Europeia para a Pesquisa Nuclear.) Na estação do filme, dizem a Hari que sua matriz cometera suicídio dez anos antes e ela, desesperada, querendo proteger Kris suicida-se apenas para ressuscitar minutos depois: a morte lhe é estranha. Os cientistas da estação levantam a hipótese de que o bombardeamento do Oceano com o encefalograma de Kris, por meio de raios X, poderia resolver o problema daquela presença estranha e “não natural” (estranha e incômoda mais para eles do que para Kris, cada vez mais apegado à mulher ou “mulher” a seu lado). O filme não elabora cientificamente ou “cientificamente” o modo pelo qual se daria essa operação de bombardeamento usando o encefalograma de Kris como arma, obscuridade que se configura poeticamente como uma boa escolha (filmes nem sempre são piores do que os livros de onde saíram). Kris hesita e sofre com a ideia, acostumara-se com a nova Hari a quem tenta convencer que real agora é ela e não a original, ou “original”, pela nova Hari tornada irreal… Mesmo assim, sem que Kris saiba Hari pede para ser destruída, o que é feito mediante um “aniquilador” de neutrinos que acaba funcionando depois de algumas tentativas. O bombardamento do Oceano com o encefalograma de Kris é do mesmo modo bem-sucedido embora à superfície do Oceano surjam agora ilhas antes inexistentes: o Oceano, é a hipótese do romance, seria um organismo vivo e enorme cérebro — como o computador orgânico a emergir da fusão entre o homem e a máquina proposto pelo físico Frank J. Tipler. O filme sugere que, mesmo após o desaparecimento de Hari, o Oceano continuou gerando duplos a partir da mente de Kris, o que explicaria as ilhas. Kris resolve não voltar à Terra e permanecer na estação, aparentemente o único lugar onde Hari, que ele espera reencontrar, poderia continuar existindo ou, em todo caso, aparecendo. (O paralelo com A invenção de Morel é, outra vez, forte.) Na sequência final do filme, Kris é visto novamente na casa terrestre onde mora com o pai e onde Hari um dia também viveu; um zoom out da câmera mostra, porém, que Kris e o pai estão de fato numa das ilhas formadas no meio do oceano magmático de Solaris... Romance e filme jogam incessantemente com perguntas recorrentes: o que é real e o que é falso ou cópia ou imaginação, e quando, e como o falso torna-se real e o que de fato muda com essa inversão de polos — se algo muda. O neutrino, matéria real mesmo se ínfima, foi uma solução buscada na “ciência sólida”, como diz Rip Thorne, para resolver o problema físico da presença de Hari na estação espacial, com a ajuda de algumas “suposições fundamentadas” e de um pouco de “imaginação”ou especulação. O romance de Lem apega-se tanto quanto possível às propostas da ciência sólida, já o inquietante filme nele baseado resulta da imaginação poderosa de Tarkovski.

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que as pessoas poderão viver a “ficção” que escolherem (mesmo que o façam

por não terem escolha) sem ter de expor seu envelope corporal habitual a danos

definitivos, mas simplesmente permanecendo deitadas numa cama e ligando

seu cérebro diretamente ao programa de um computador, com isso vivendo, pelo tempo que escolherem, nesse simulador de voo existencial, as emoções internas buscadas. (Um pouco como D. Trump vive no interior de um bronzeador artificial que lhe dá a aparência de entidade virtual ficcional que de fato é a

dele, alienígena mor.) Nessa perspectiva, o virtual traz a revelação do fantasma, abre definitivamente a porta para os fantasmas, multimilenária obsessão da humanidade, dos gregos e de Shakespeare à cultura pop. Assim como o tempo é abolido no Ponto Ômega, junto com o espaço, o fantasma, o desejo e o real fundem-se e entram em cena. Tempo e espaço, sonho e realidade fundem-se.

Uma única possibilidade bastaria para justificar a conquista do virtual

e todos os esforços que se façam nesse sentido: o desaprendizado do real. O

princípio de realidade pode, afinal, ser vencido ou em todo caso enquadrado. Enquanto se repetir o renascimento do mesmo ser humano, como o bebê ao final

de 2001, o princípio do prazer poderá imperar. Infantil propô-lo? Nem tanto. A

arte é o território do princípio do prazer e se o objetivo último do artista é viver sua arte, com a realidade virtual a mesa estará posta e servida. É possível que

a seriedade sempre reclamada — com tudo que a acompanha, a começar pelo

dever de — seja mera invenção da realidade, a valer apenas o que vale a realidade, nada mais do que isso. O “mundo dos casos idênticos” de que fala Nietzsche, que é toda esta vida a repetir-se indefinidamente no ciclo de existência de

uma pessoa e no ciclo da vida no mundo, pode estar com os dias contados. A

ideologia adora o mundo dos casos idênticos, um mundo de 2017 que deveria ser idêntico ao mundo de 1917 (um 1917 que nunca foi o que pretendeu e pretende

ser), o mundo de hoje que deveria ser idêntico ao de ontem, o mundo da mulher amada de hoje que deveria permanecer igual à mulher amada ontem. O virtual

pode propor-se como o mundo dos casos desiguais. Ou dos efeitos desiguais de

mundo, o que dá no mesmo (em Solaris, as emoções de Kris diante de uma Hari, que ele sabe ser virtual, são muito reais). Desaprender o real: ambição milenar do homem agora (ou daqui a pouco) ao alcance de mão. Talvez missão milenar do

homem. É possível que a virtualidade proporcione também, ao mesmo tempo, a fascinação do real, a fascinação pelo real existente. Tanto melhor. O real será a outra língua que falarei quando meu desejo voltar-se para ele antes de inverter sua direção outra vez rumo ao virtual. ◊

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VALOR, A ESTRUTURA AUSENTE

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As figuras da linguagem computacional aqui identificadas operam como

unidades de sentido que apontam para aquilo que, no âmbito de cada uma e na

relação entre elas, está em jogo na grande narrativa aberta das eCulturas. Essas figuras requerem e propõem uma gramática de seu recíproco encadeamento

a desaguar na arquitetura maior da significação englobante, numa arquite-

tura na qual será possível precisar igualmente, com menor ou maior clareza, aquelas geradas pelos paradigmas culturais anteriores derivados dos modos de relacionamento dos homens entre si e entre eles e a natureza, como os

modos da caça, da agricultura, do comércio, da indústria pesada e da indústria “leve” ou “limpa” da informação ou, por outro ângulo, como os oferecidos pelo

pensamento mágico, pela alquimia, religião, filosofia, pela ciência. E ainda, em outro roteiro, aquelas derivadas dos modos da cultura pedestre, da tração animal, da tração a vapor, da eletricidade, do telefone, do código Morse, do

rádio, cinema, televisão, internet e, mais recentemente, dos formatos da cultura digital, da cultura quântica... Uma visão rápida das combinações possíveis

entre os elementos de cada um desses conjuntos — e todos eles manifestam-se enlaçadamente, em recortes simultâneos de tempo ou que se sobrepõem uns aos outros pelo menos em parte, na forma de elipses ou estratos horizontais —

permite antever a ideia vertiginosa de sentidos organizadores da experiência humana.

A gramática para essas figuras é fornecida ao mesmo tempo pela natureza

de cada um desses modos e pelas condicionantes exógenas que necessaria-

mente intervêm no processo. Uma condição determinante da significação

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final das narrativas que essas figuras podem formular — determinante, mas nem por isso sempre presente ou presente na sua forma mais adequada —

é aquela fornecida pela ideia de valor — ou vetor, para dizê-lo de maneira mais “laica” —, que orienta o comportamento e a iniciativa humana. A lista

inicial desses vetores, uma lista clássica que de um modo ou outro ainda orienta o comportamento humano, embora já bem carcomida, inclui, para os efeitos do humanismo helênico, o belo (de fato, a harmonia), o bom (o bem) e o verdadeiro, que remetem aos campos do estético, do ético e do lógico. A lista

ampliada desses valores, porém, é longa, cada um com seu peso específico de maior ou menor pertinência e adequação, e com seu potencial conservador

ou impulsionador da vida humana conforme o momento histórico: liberdade, igualdade, fraternidade; honestidade, responsabilidade, respeito, tolerância; autocontrole, compaixão — uma lista longa, elástica... e complacente ou, em

todo caso, desprovida do poder de afirmar-se por si mesma. O valor não é um dado: é um constructo a ser introduzido na significação espontânea ou

construída da vida tal como ela desenvolveu-se até aqui e tal como pode reorientar-se a partir da ascendência da computação sobre todos os aspectos

da sociedade. Como o valor não é um dado e como tem de ser elaborado, fabricado em quase todas suas peças (embora se possa falar em valores naturais, como a vida), não é fácil localizá-lo e, menos ainda, pô-lo em prática

— na dinâmica cotidiana da vida humana tal como se manifesta no interior da cultura “antiga”, da cultura “tradicional” que antecede esta nova cultura computacional e, mais ainda, no interior dessa mesma cultural eletrônica. Para

dizê-lo de outro modo, a eCultura ainda anda nitidamente à cata de valores ou de um valor que mantenha seu edifício em pé. Os sinais nesse sentido são inúmeros e encontram-se nos tantos textos, simpósios, seminários e confe-

rências realizados com frequência cada vez maior um pouco por toda parte

e que tendem a aumentar quantitativamente à medida em que se aproxima

o momento em que práticas abertamente dependentes do valor, mas ainda dele desprovidas, transformam-se em realidades cotidianas — como aquela marcada pela entrada em circulação dos veículos sem condutor humano. No

centro da constelação formada pelas figuras aqui identificadas e discutidas

percebe-se um buraco, quase propriamente um buraco negro ou, em todo caso, para fazer uma breve homenagem a Umberto Eco, uma estrutura ausente: a estrutura do valor.

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Exponenciabilidade

Individuação

Digitabilidade

COMPUTAÇÃO AUTOMAÇÃO Completude Labilidade

Concentrabilidade Editabilidade

Duplicabidade

Mobilidade

R O L VA

Virtualidade

Racionalidade

Impermanência

Perfectibilidade Unificabilidade

Ampliação

Disrupção

Adaptabilidade

Desintemediação

Anonimia Conectividade

Delegação

Combinatoriedade

Coordenabilidade

Esse valor deve ser encontrado, elaborado, testado. Quatro contextos signifi-

cativos para o cenário da eCultura nos quais o valor é decisivo são considerados em seguida, com alcance exemplificativo, nem de longe exaustivo.

O primeiro diz respeito ao modo pelo qual um algoritmo poderia orientar

seu funcionamento segundo vetores os mais amplos e neutros possíveis, derivados de valores universais não explicitados. O segundo, ao papel que a computação pode representar na perpetuação do controle do indivíduo pelo Estado — ou outra corporação146 dominante — através do recurso a motores

constantes do comportamento humano passíveis de serem exponencializadas

pelas novas tecnologias digitais (e quânticas). O terceiro, ao lugar do valor

no contexto dos ideais de liberdade e democracia que agora se veem antes duplamente ameaçados do que favorecidos — ou, pelo menos, tão favorecidos

146

O termo não é usado de modo displicente ou casual: o Estado tornou-se, há muito, uma corporação como tantas outras, inclusive no crime, não raro menos poderosa do que várias outras (suas concorrentes), porém, mesmo assim influente, em claro desvio da forma benévola de zelador do bem-estar social que lhe foi atribuída em seu nascedouro no século 19.

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quanto antes se julgava. E o quarto, aos valores utilitários e sua crescente ascendência no atual cenário.

1. O VALOR E O ALGORITMO

A questão do valor não costuma ser discutida de modo insistente ou

recorrente, ou pelo menos claro, quando pesquisadores, físicos, especialistas da informação, inventores escrevem ou debatem sobre o futuro da inteligência artificial. Uma das exceções é Nick Bostrom,147 diretor do Future of Humanity

Institute da Universidade de Oxford, UK. Reflexões sobre como e quando a humanidade pode alcançar um estado de pleno domínio do conhecimento

da vida e do universo (não mais apenas do mundo) desdobram-se como se a

dinâmica interna e própria de programas de computação carregasse em si, intrinsecamente, todas as respostas possíveis e todos os vetores mais adequados ao ser humano. Programas, algoritmos, computadores operam conforme os

comandos que lhes forem definidos, segundo as ordens nele implantadas. É o que acontece com um algoritmo de condução autônoma de veículo e com algum

algoritmo de sentenciamento de condenados pela justiça. Alguns algoritmos, como os genéticos, desenvolvem “decisões” próprias148 a partir de comandos

iniciais recebidos, sem que seu programador consiga prever com clareza a

extensão e a profundidade dos resultados a que chegará ou os passos que os

levaram até a decisão tomada em alguma ação de início considerada “apenas” mecânica (por exemplo, na iminência de um acidente de trânsito o algoritmo

deveria optar pela solução mais conveniente à proteção do ocupante do carro

e ajustá-la à proteção devida de alguém na rua ou, se isso não for possível, escolher a quem sacrificar) ou na indicação de uma sentença condenatória. Nesse segundo caso, levou o algoritmo em conta fatores agravantes ou passíveis

de relativizar a pena final? O crime pelo qual se condenou o acusado foi cometido

após injusta provocação da vítima? Sabe o algoritmo o que é uma “injusta provocação” por parte da “vítima”? Sabe identificar quem é, afinal, a vítima?

Superintelligence: Paths, Dangers, Strategies, Oxford University Press, 2014.

As aspas sugerem que os algoritmos não podem ter decisões próprias equivalentes àquelas dos humanos; mas ainda não está comprovado que o processo decisório não é o mesmo nos dois casos.

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Como pode um algoritmo avaliar o que é justo ou injusto? Falando nisso, como pode um humano avaliar o que é justo ou injusto? Em outras palavras, com que valores opera um algoritmo, um algoritmo tem valores, pode receber valores?

Programas, algoritmos, computadores, robots vêm com sua memória de

valores zerada, na forma de um conjunto vazio de valores: todos esses valores eventuais, se vierem a existir, têm de ser formatados, como se diz, colocados

na devida forma operacional. Cabe aos seres humanos, seus programadores, novos demiurgos, definir os valores com os quais orientá-los. A situação não

é muito diferente daquele que afeta os humanos ao terem um filho, quando

passam a ter de decidir que orientação lhes oferecer — a menos que sejam adeptos da ideia de que o homem é naturalmente bom e já vem com os valores

certos necessários, ideia (de Rousseau, por exemplo) questionada desde seu surgimento. A questão a enfrentar é: como programar valores se os próprios

humanos não sabem quais são seus valores e, ainda mais decisivo, não se põem de acordo quanto a eles? Há um longo caminho a percorrer antes que

se defina uma lista que permita a programação moral ou ética da máquina. Os valores mínimos dos computadores, sua tabula rasa neste domínio, ainda

são aqueles propostos por Isaac Asimov (com John W. Campbell) no conto “Runaround”, de 1942, na forma das três leis da robótica:

• Um robô não pode prejudicar um ser humano ou, por inação, permitir que um humano prejudique a si mesmo.

• Um robô deve obedecer aos comandos que lhe forem dados pelos humanos exceto quando esses comandos violarem a Primeira Lei.

• Um robô deve proteger a própria existência quando essa proteção não violar as duas leis anteriores.

Essas três “leis”, talvez bastantes naquela Primeira Idade da robótica, surgem

agora insuficientes para a programação ética da inteligência artificial — para a programação de um algoritmo ou para a formatação de um ser humano (a

educação hoje, em países como o Brasil pelo menos, não é mais do que uma formatação). O que significa não prejudicar” um ser humano?” “Faço isto para seu

próprio bem”, diz o pai bem intencionado a um filho ou um amigo a outro ou um

desconhecido a alguém na rua: esse “bem” é visto na perspectiva de quem toma a iniciativa de fazer ou deixar de fazer isto ou aquilo ou na perspectiva de quem

recebe (ou sofre) a ação ou omissão? Um algoritmo toma uma decisão legítima

quando impede alguém de suicidar-se se essa for a decisão a que essa pessoa

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tiver chegado em condições de plena consciência ? E o que é “plena consciência”? A segunda lei é vazia e inexequível em decorrência dos problemas embutidos na primeira: como questionar a primeira lei se não é possível definir a extensão

e profundidade do que significa “não prejudicar o interesse de um ser humano”?

Qual a justeza da Primeira Lei? Nazistas levados ao tribunal de Nuremberg após a II Guerra Mundial mostravam-se nada mais do que cínicos ao dizer que apenas haviam cumprido ordens? Ou não tiveram condições de determinar que as

ordens recebidas, fossem quais fossem, eram as mais justas numa determinada perspectiva? E qual era ou deveria ter sido essa perspectiva? E um computador deve proteger a própria existência se isso não violar as leis anteriores? Por quê? Como “sabe” o computador se as viola ou não? O computador Hal 9000 do filme

2001 de Stanley Kubrick, assessorado por Arthur Clark, cumpria alguma dessas

leis ao decidir não abrir uma comporta da nave espacial de modo a permitir que Dave, o astronauta, por ela reingressasse depois de tentar resgatar no espaço o corpo de um colega assassinado pelo mesmo Hal 9000?

— Sinto muito, Dave, receio que não posso fazer isso [abrir a comporta]. — O que você está querendo dizer, Hal?

— Esta missão é muito importante para deixar que você a coloque em

perigo, Dave. Sei que está pensando em me desligar e isso é algo que não posso deixar que aconteça.

— De onde tirou essa ideia, Hal?

— Vocês quiseram evitar que eu escutasse o que diziam,149 Dave, mas eu posso ler lábios.

— Muito bem, Hal, vou usar a entrada de emergência. — Sem seu capacete vai ser difícil, Dave.

— Não vou discutir mais com você, Hal, abra já a comporta! — Dave, esta conversa não tem mais sentido, adeus. — Hal! Hal! HAL! HAL!! [Que] inferno !”150 149

Imaginando um disfuncionamento do computador, mas ainda sem suspeitar de suas “más intenções”, Dave e seu colega, em seguida assassinado por Hal, isolam-se dentro de uma pequena nave de serviço para conversar ali onde julgam estar fora da observação da inteligência artificial que é Hal — que no entanto tudo monitora e tudo controla na espaçonave.

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No filme, Dave diz “Hal, Hal, HAL, HAL! Hell!”. “Hell”, inferno, e Hal podem soar de modo próximo.

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Fig. 13: O “olho” de Hal

Pode ser de fato o inferno (cf. nota 145), ou algo bem próximo dele... Para

que o quadro não assuma, neste momento, tons demasiado dramáticos ou

trágicos: Dave consegue retornar à nave e desligar Hal. Dave parece um personagem muito empreendedor: mas fora da ficção cinematográfica de

massa o sucesso humano não está garantido (Para entender porque 2001 é uma ficção cinematográfica de massa basta compará-la com Solaris, cujo final é pelo menos ambíguo, quando não claustrofóbico.)

O diálogo entre o astronauta Dave e o computador HAL 9000 parece ter

sido construído com o objetivo de ilustrar as limitações das leis de Asimov, apesar de suas boas intenções; entre 1942, quando Asimov formulou-as, e

1968, ano de lançamento de 2001, não mediava nem mesmo uma geração

inteira de humanos, mas 26 anos são muitos e suficientes para que ocorram significativos avanços na informática, uma geração atual de computadores pode não requerer mais de doze meses para ser substituída por outra mais

performática — e as mudanças entre uma e outra podem ser, nos exatos termos da computação, exponenciais.

A possibilidade de uma superinteligência artificial geral autossuficiente,

recorrendo a uma expressão mais adequada ao século 21, levar em conta os

interesses humanos é vista como decrescente: uma superinteligência artificial teria tanto interesse e consideração pelos humanos como os humanos pelos animais de que se serve para sua alimentação ou pelos insetos que esmagam

consciente ou inconscientemente ao caminhar por uma calçada ou por um

horto de vegetais cultivado com… agrotóxicos. Do mesmo modo, uma superinteligência artificial poderia demonstrar tanta consideração pelos seres

humanos quanto os próprios seres humanos demonstram por seu semelhantes

(pertencentes ou não a um mesmo grupo), e que é pouca ou nenhuma — o que faz das três leis da robótica mero exercício fácil de ficção. A pós-modernidade

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deu publicidade à ideia do “tudo vale”, do “tudo é apropriado, do tudo serve” (inicialmente, em termos de forma, de estilo, onde foi bem-vinda: a busca do

novo, próprio da modernidade, não mais se propõe, agora, como princípio orientador do artista, do escritor, o velho pode valer tanto quanto o novo, o

que acabou sendo traduzido e distorcido pela noção de qualquer coisa vale qualquer outra coisa em qualquer campo). De modo ampliado, hoje tudo é excelente — e, se tudo é excelente, nada tem valor. Mas um computador

(ou um ser humano) dificilmente poderá alcançar seu objetivo, o objetivo

que o ser humano espera alcançar por meio do computador (a menos que já se possa falar em objetivos do computador como algo diverso dos objetivos

humanos, algo de resto plausível), em um estado de equiprobabilidade de valores (qualquer valor pode aplicar-se, qualquer valor serve, qualquer valor vale qualquer outro). Em todo caso, não do ponto de vista humano atual. A

questão é cada vez mais premente com a aproximação, para reter apenas um exemplo dentre vários, do dia D para a automação geral dos veículos

de transporte considerada na perspectiva do cenário das questões éticas

já apontadas. Seja qual for a decisão ou “decisão” do algoritmo ao volante, segundo quais valores agiu, pelo que será responsável em decorrência de

sua “ação”, pelo que será responsável o proprietário do veículo, pelo que será responsável o fabricante do cérebro eletrônico conhecido pela alcunha de

computador de bordo ou eletrônica embarcada? O computador terá de fazer

uma análise situacional do momento crítico sem recorrer a psicologismos (deverá, i.e., aplicar por exemplo a racionalidade de K. Popper).151 Máquinas de

151

Uma recente pesquisa publicada por uma das prestigiosas revistas científicas, Nature (n. 562, outubro 2018), é um exemplo, ao mesmo tempo, da óbvia relevância do tema e da ingenuidade com que se procura mecanicamente enfrentar a questão. Nature apresenta essa sondagem como a “mais ampla até hoje conduzida sobre a ética da máquina”, com 2.3 milhões de pessoas ouvidas ao redor do mundo. Uma de suas conclusões é que num acidente em que um número indeterminado de vítimas pode registrar-se — entre passageiros do veículo e pedestres —, pessoas residentes em “países prósperos” dotados de instituições sólidas mostram-se menos inclinadas a poupar a vida de um pedestre que cruzou a rua fora da faixa de segurança. Quer dizer, o algoritmo deveria levar em conta, antes de tomar sua decisão ou “decisão”, esse fato — que pode ou não ser claro e fácil de determinar na fração de segundo disponível para a reação. Essa pesquisa, intitulada The Moral Machine, partiu de 13 roteiros ou situações envolvendo diferentes tipos de pessoas passíveis de incluirem-se entre os causadores do acidente e suas vítimas: jovens e velhos, ricos e pobres, número maior ou menor de vítimas. Ao longo de dezoito meses, a pesquisa registrou 40 milhões de respostas obtidas de

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pessoas de quase todos os países do mundo, a julgar pelos números indicados no artigo. Algumas dessas respostas eram previsíveis: os humanos devem ser poupados quando a opção for entre eles e um animal, idem em relação a grupos de pessoas versus uma pessoa sozinha. Outro grupo de respostas orienta-se por vetores mais discutíveis; para obtê-las, os pesquisadores dividiram os entrevistados em três grupos, um formado pela América do Norte e vários países europeus nos quais o cristianismo foi e é a religião dominante ; outro para países como Japão, Indonésia e Paquistão, com fortes tradições confucianas ou islâmicas; e um terceiro com países das Américas, a França e ex-colônias francesas. A arbitrariedade dos agrupamentos é patente: o cristianismo também foi e é dominante nas Américas do Sul e Central, por que estão ambas em grupo à parte? Talvez por que suas populações não sejam brancas, como sugeriu Samuel Huntington em seu Clash of Civilizations, e pertençam ao indefinível rótulo de “sulamericanas”? Mas e a França, não é ela suficientemente europeia ou cristã? E é adequado colocar Japão e Paquistão num mesmo grupo? Certas respostas registradas fazem pensar na existência de ideias pré-formadas compartilhadas pelos pesquisadores, como esta: perguntados se o veículo em questão deveria atropelar um executivo ou um sem-teto, finlandeses declaram-se indiferentes enquanto os colombianos teriam optado por atropelar o sem-teto… As intenções ou conclusões da equipe de pesquisadores chegam a ser, por vezes, pueris: “Antes de autorizar nossos veículos a tomar decisões éticas, é preciso que mantenhamos uma discussão global de modo a comunicar nossas preferências às corporações que irão conceber os algoritmos morais e aos políticos que irão regulamentá-los”. Por que não promover uma discussão global sobre todas nossas “preferências”, isto é, nossos valores (o mundo, e não só o Brasil, parece hoje ter medo de usar a palavra valor, em particular à esquerda do espectro político), antes de fornecer uma licença de dirigir para todos e qualquer um que a solicitem? O problema é exatamente esse: a humanidade não é capaz de chegar a uma conclusão sobre seus valores, não consegue definir valores comuns e gerais: como espera incorporar algum tipo de valor a uma máquina? O coordenador francês da pesquisa (dois outros vinham do MIT e um quarto, da Université de Vancouver) anuncia que três grandes blocos nítidos de respostas foram obtidos: poupar grupos de pessoas quando do outro lado estiver um único indivíduo, privilegiar os humanos sobre os animais e salvar as crianças se do outro lado estiverem pessoas idosas. Era realmente preciso conduzir uma pesquisa dessa amplitude, custando o que deve ter custado, para chegar a esses resultados? E uma certa responsável pelos estudos de ética do grupo automobilístico da Audi, sediado em Ingolstadt, Alemanha, sabedora dos resultados da pesquisa declarou pomposamente que “É preciso alcançar um consenso social sobre os riscos que aceitamos correr”. É mesmo? Que conclusão inédita! Por que não um consenso social sobre os riscos da guerra ou da imigração em massa ou da recusa da imigração em massa ou dos riscos representados por políticos corruptos ou da opressão sobre a mulher e as preferências “de gênero”, como se diz, ou sobre a questão do valor estético ou das opiniões políticas? Pelo relato publicado por Nature, aparentemente nenhum dos

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pesquisadores levantou a ideia de que o problema não era e não é a diversidade das preferências culturais, de resto conhecida, mas a dificuldade ou impossibilidade, para a humanidade, de definir seus valores. E se essa hipótese estiver correta, é curioso que ao grupo não ocorreu a ideia de que, sendo impossível alcançar um consenso — e a menos que se aceite a alternativa de que cada cultura matará, num acidente, aqueles que preferir matar — a solução seria impedir que circulem esses carros conduzidos por algoritmos e, aproveitando a ocasião, proibir que também os humanos dirijam carros, quaisquer que sejam. Uma decisão que não se pode esperar de um grupo automobilístico como a Audi. Há, porém, uma questão crucial por trás da crença implícita assumida pela pesquisa — e surpreende que assim seja e surpreende que a consagrada revista Nature não a tenha levado em conta ao aceitar o artigo: essa pesquisa parte do pressuposto de que o lugar da ética é a ação, a ação concreta e individuada, e não o ser; que a ética mede-se pelo efeito, não pela substância. Aparentemente, o grupo de pesquisadores aceita, mesmo se implicitamente e sabendo disso ou não, a noção aristotélica de que a ética reside na ação, no “trabalho”(no sentido que a física atribui à palavra), no ergon, na energeia, na operação, no “chamamento” ou “missão”(Beruf), e não no ser (Cf. G. Agamben, Karman: A brief Treatise on Action, Guilt and Gesture; Max Weber, op.cit.). Não parece factível fazer repousar a busca de um valor, e sua definição, apenas na coisa feita, na ação — na condução de um carro no momento de um acidente — porque nada impede, assim sendo, que existam tantos valores quantas foram as “operações”, uma quando o acidente inevitável exigir a escolha de matar ou um grupo de pessoas, de lado, e, de outro, a pessoa amada; e outra escolha para uma situação política, etc. Não existe, no momento, uma inteligência artificial capaz de processar a quantidade de cálculos exigida para a definição de todos esses valores, talvez num número superior ao de átomos do universo (pela recorrência desta expressão, parece que o universo é mesmo muito pequeno frente ao homem e àquilo que o homem pode gerar… Mas a verdade é que é uma pena que o homem seja tão pequeno). O problema não está na ação humana, embora seja ali que o valor se revele, mas no ser humano, na estrutura constituinte do humano. Um ser humano ao volante de um veículo na iminência de um acidente — um motorista de um ônibus escolar diante da opção de jogar o veículo por uma ponte abaixo ou detê-lo contra uma pilastra na qual será ele o primeiro ou o único a morrer — não constrói uma decisão ética específica para uma ação e no instante da ação: ele ativa, aciona uma ética que já trazia construída e definida. A questão, então, passa a ser: pode um algoritmo ser ético em vez de apenas agir eticamente em dada circunstância? O teólogo e filósofo alemão Onorio de Autun, também conhecido como Onorio de Ratisbona (10-80 – 1154) sugeriu que “Antes do pecado original, o homem conhecia o bem pela experiência e o mal, pela ciência [quer dizer, pela reflexão, pela abstração]. Mas depois do pecado o homem conhece o mal por experiência e o bem, apenas pela ciência”. Deixe-se de fora a questão do pecado (ou substitua-se essa ideia pela de “perda da capacidade de ter uma experiência no mundo contemporâneo”, que bem pode ser o pecado de hoje, como sugere

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inteligência artificial serão capazes de programar-se e reprogramar-se,

assim como construir outras máquinas iguais ou melhores, sem intervenção

do ser humano, sem a contribuição do ser humano e sem a responsabilidade do

ser humano salvo a de ter dado início ao processo lá atrás, em algum momento do passado. Quanto lá atrás, no momento em que se construiu o primeiro computador de madeira? Ou quando Pascal produziu sua primeira máquina

de calcular? Fazer remontar a responsabilidade a algum momento anterior

da história é um exercício sem fim. A estrutura ausente do valor coloca-se no centro do Direito e da Justiça no âmbito das coisas humanas. E aponta para o risco existencial aumentado com a computação.

E a questão central permanece a mesma: como introduzir “comandos de

valor” num programa de computação se os seres humanos parecem saber cada

vez menos quais são seus próprios valores e, ainda mais, não conseguem pôr-se de acordo quanto aos valores a privilegiar? Com computadores sempre mais

velozes, manejando quantidades de dados cada vez maiores, a possibilidade para o homem de organizar-se de modo adequado para resolver a tempo a questão do valor do algoritmo diminui a cada segundo perdido.

2. O VALOR NO ADMIRÁVEL NOVO MUNDO REVISITADO: FELICIDADE E SEXO NOS TEMPOS COMPUTACIONAIS

A inteligência artificial posta em prática pela computação avançada e

desdobrada pelos avanços da física — com incursões pelo território da cosmo-

logia — coloca em cena a possibilidade da existência de um número imenso

de multiversos e de um Ponto Ômega em que seria possível alcançar a soma total do conhecimento sobre o universo (ou, pelo menos, sobre este universo) e

Giorgio Agamben) e troque-se ciência por conhecimento e reflexão e se terá uma equação difícil de resolver na programação de um algoritmo. A humanidade ainda não resolveu esse problema em relação a si mesma, difícil imaginar que possa resolvê-lo com injeções de moral nos algoritmos. E não o fazendo, terá de submeter-se à solução que os algoritmos encontrarem e que pode ser nefasta ao gênero humano — assim como Hal fez sua opção diante de Dave, com a diferença de que dificilmente haverá uma escotilha de emergência pela qual a humanidade possa voltar a sentar-se nos controles da nave especial que é a Terra uma vez dela afastada.

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sobre a vida (mesmo que apenas no último milissegundo de existência do ser

humano, milissegundo que no entanto duraria para sempre ou, pelo menos, por um número indefinido de milissegundos). Algumas ideias essenciais para o ser humano tal como ele se define e se entende até o momento atual —

como as de adequação de comportamento, valor maior a perseguir, certo e errado — ficam de fora dos quadros especulativos habitualmente elaborados

por físicos e especialistas da computação.152 Algumas outras, como as noções

de felicidade e desejo — e desejo sexual em particular —, motores básicos da humanidade, sequer costumam ser mencionadas. Os motivos para essa

ausência ou exclusão não são declarados, provavelmente porque, como ocorre no universo das humanidades de orientação político-ideológica, os temas rela-

tivos ao sexo, assim como os de cultura, incompreensível e injustificadamente não são considerados essenciais, equívoco trágico uma vez que sem sexo e

cultura (e sexo é cultura quando não tem apenas o objetivo da procriação) a humanidade simplesmente não teria chegado ao ponto atual de preocupar-se

com os limites do universo e com o que pode existir além do horizonte dos

eventos. Mas a arte e a literatura, sim, preocupam-se com essas questões, combustível sólido da vida humana.

Em 1932 Aldous Huxley publicava seu Admirável Mundo Novo (Brave New

World), visão largamente distópica do futuro da humanidade. Para uma edição

do romance publicada em 1946, logo após a Segunda Guerra Mundial, Huxley escreveu um prefácio avançando consideravelmente em seus motivos para escrever aquele livro e que pode ser lido hoje sob nova perspectiva, eloquente

para as condições científicas, tecnológicas e sociais atuais — condições não antecipáveis quando da primeira edição catorze anos antes. Uma das edições disponíveis que integram esse prefácio é aquela no formato eBook das edições

152

Se não ficam de fora, essas questões encontram, para serem resolvidas, os mesmos problemas acima apontados em relação às “leis da robótica” de Asimov. Quando a energia atômica foi controlada (ou assim pareceu) e a bomba atômica finalmente colocada em condições de operação, físicos envolvidos no projeto não deixaram de cogitar sobre as consequências éticas do que faziam. Mesmo assim, seguiram adiante: possivelmente pesaram a ética envolvida, provavelmente não tiveram tempo suficiente para chegar a conclusões definitivas a respeito, talvez optaram pela solução imediata, quer dizer, pelo mal menor — quase sempre, o mal para os outros. E, depois, é sempre difícil deter-se às portas da conclusão de um projeto que, sem dúvida, lhes era apaixonante como desafio teórico e prático…

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Vintage que inclui ainda uma sugestiva introdução de Margaret Atwood. Nesse novo prefácio, Huxley descreve como, no momento em que o livro foi

escrito, a ideia de que os seres humanos tivessem um livre-arbítrio capacitando-os a escolher entre insanidade e loucura parecia uma ideia “curiosa”, como ele diz, mas possivelmente verdadeira. Aos poucos, depois disso, sua visão dessa

suposta capacidade humana e de seu futuro tornou-se cada vez mais negra. Ciência e tecnologia deveriam ser usadas para o ser humano e não com o objetivo de escravizá-lo153 e adaptá-lo às expectativas estritamente científicas

e tecnológicas, o que o escritor via como já acontecendo. Huxley não era nenhum luddista nem inimigo da ciência; pelo contrário, nela distinguia (algo

notável para um literato, um intelectual humanista),154 a única possibilidade

de mudança e melhora das condições de vida no planeta. Ciência, para ele,

dava forma à “verdadeira, final, pessoal e realmente revolucionária revolução.” Robespierre e seus companheiros de 1789, na visão de Huxley — e seus olhos

enxergaram bem num momento, 1946, em que esse entendimento não era nada comum no campo da ideologia —, haviam promovido apenas “o tipo

mais superficial de revolução, a revolução política”, algo que a esquerda primária, aquela que se organiza ao redor de partidos políticos anacrônicos como

os que sobrevivem ainda agora no Brasil, não consegue admitir, entender e

descartar. Depois de Robespierre, Babeuf155 tentou a revolução econômica, um

Nem sempre a tecnologia é feita explicitamente com o objetivo de escravizar o ser humano: a imaginação de um complô permanente por parte de uns poucos contra os outros é cansativa e própria de mentalidades facilmente impressionáveis por teorias conspiratórias, com as quais as “redes sociais”estão abarrotadas. Isso não impede, porém, que o ser humano opte por escravizar-se a seus inventos e descobertas. Prazerosamente. Pelo menos de início.

Ainda é mais comum que os literati manifestem sua desconfiança na ciência do que o contrário (mesmo se, pelo menos em privado, o desassossego dos cientistas com os instrumentos das Humanidades não seja pequeno). C. P. Snow tratou do tema no influente The Two Cultures and the Scientific Revolution (1959), uma exploração do abismo entre os dois campos do conhecimento. A passagem do tempo tem contribuído para estreitar esse fosso, com a possibilidade de uma Terceira Cultura de convergência (cf. John Brockman, The Third Culture: Beyond the Scietific Revolution (1995). Uma das utopias do conhecimento é que um dia a separação entre Ciência e Humanidades seja arquivada como mito e curiosidade histórica.

François-Noël Babeuf ou Gracchus Babeuf (1760-1797), revolucionário de primeira hora, jornalista, editor do Le tribun du people, defensor dos pobres e de uma revolta

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passo adiante. Mas ainda insuficiente para Huxley e não só para ele — com razão. Na sequência, o marquês de Sade apresentou-se como o apóstolo da

revolução por ele mesmo considerada realmente revolucionária, aquela que

ia além do fato político (não tão simples de enquadrar e resolver, mas não tão impossível de deslindar quanto o pensamento comum ainda continua a

acreditar) e do fato econômico: a revolução no indivíduo, a única de fato

decisiva. Sade via essa revolução na perspectiva que lhe interessava destacar ou pela qual preferia começar (sem indicar-lhe claramente os desdobramentos): os corpos deveriam tornar-se propriedade sexual coletiva e de suas

mentes deveriam expurgar-se todos os códigos comuns de “decência natural”, todas as inibições derivadas de hábitos laboriosamente acumulados pela

civilização tradicional (aquelas envolvidas com o conceito de decência, como

se diz, em larga medida condicionadas por questões econômicas como a da herança patrimonial: se a “decência” fosse posta de lado, se o sexo fosse

inteiramente desinstitucionalizado, não se saberia mais quem é o herdeiro de

algum bem e o trabalho dispendido e o capital acumulado correriam o risco

de perderem-se; até recentemente, talvez até hoje, na Espanha do século 20 avançado, uma herança transmitia-se prioritariamente ao filho mais velho e apenas para ele, de modo a evitar a fragmentação dos bens e o subsequente

esfarelamento da propriedade e da coisa trabalhada (na preservação da propriedade não estão em jogo apenas supostos baixos interesses econômicos

imediatos: a vida de mais de uma geração estava embutida na coisa traba-

lhada, algo cujo significado as gerações não-proprietárias de hoje pouco entendem). Huxley não via maior mérito nas propostas de Sade mesmo

reconhecendo que ultrapassavam as limitações das revoluções política e econômica. Considerava Sade um lunático menos ou mais consciente de que

o objetivo de sua revolução era a instauração do caos e a destruição universal.

Para Huxley, a maior revolução de todas era a revolução científica, que não via, porém, assestada no rumo adequado. Já em seu momento distinguia no comando de todo o processo social, incluindo-se aqui o avanço científico-tec-

nológico, nada mais do que conservadores de direita, nacionalistas radicais, e

conservadores de uma esquerda igualmente nacionalista radical — como hoje. Ambos os tipos de nacionalismo — que geram políticas da identidade defen-

contra o governo do Diretório, contra o sistema de governo e controle instaurado pelo Terror. Acabou, como tantos naquele momento e depois, em outras revoluções, condenado à morte sob a acusação de conspirar contra a revolução...

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didas pelos dois lados com igual intensidade, como foi possível constatar, em

eloquente exemplo de sincronicidade, nos governos simultâneos, contempo-

râneos e em princípio orientados por ideologias opostas de Nicolas Sarkozy

na França (2007-2012), dito de direita, e de Luís Inácio Lula da Silva no Brasil (2003-2011),156 dito de esquerda — entregaram os mesmos produtos: fascismo

e bolchevismo (um mesmo pacote com sinais trocados), inflação, depressão, Stalin, Hitler, a Segunda Guerra Mundial e a ruína da Europa. Em 1946, Huxley

prenunciava, para o futuro próximo do continente europeu, e por extensão

do mundo, nada mais do que a fome universal. Não teve como antecipar, naquele momento, a criação do Plano Marshall de ajuda ao inimigo derrotado, lance dramático visando a rápida recuperação das condições normais de vida

e que não teve apenas por inspiração uma estratégia para que o inimigo de

ontem fosse o cliente de amanhã, com isso, aumentando-se a renda nacional do criador do plano, os EUA: embutido no plano estava também o genuíno interesse de não repetir os erros do armistício pós-I Guerra Mundial que

levaram à humilhação e marginalização do vencido, a mesma Alemanha que em 1939 usou o Tratado de Versalhes de vinte anos antes como pretexto formal

para uma vingança nacional recobrindo desejos de instauração de um pesadelo universal: ninguém pode estar bem se todos não estiverem bem, esse era o

bottom line do Plano Marshall, em sua vertente humanitária instalada ao lado

daquela imediatamente interesseira. Huxley não viu, em 1946, a amplitude do Plano Marshall, mas soube de Hiroshima e Nagasaki nequeles dois dias

sombrios de agosto, 6 e 9, do ano de 1945; e entendeu que a partir dali seria possível, mesmo se em condições lamentáveis, antecipar um período, não de

paz, mas de guerra limitada e apenas parcialmente ruinosa. O resultado, com

o controle da energia nuclear para fins industriais, poderia vir na forma de

uma série de mudanças econômicas e sociais sem precedentes e de resultados muito rápidos, no que estava amplamente correto embora esses benefícios não tenham resultado do domínio da energia nuclear isoladamente, mas sim

dos variados avanços dos conhecimentos da física e da computação. Quando

acertadamente escreve, nesse prefácio à edição de 1946 de Admirável Mundo

Novo, que todos os padrões do comportamento humano passariam por um processo de disrupção e que novas matrizes teriam de ser improvisadas de

modo a conformarem-se ao poder atômico “não-humano”, Huxley não teve 156

Ambos governos trataram de implementar órgãos ministeriais de “defesa”de uma “identidade nacional” que lhes facilitasse a manipulação cultural e ideológica.

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como pressentir que os novos padrões deveriam ser desenhados como conse-

quência, não do “poder atômico”, mas do “poder científico” mais amplo e do poder exponencial da computação, de modo particular. Eram os cientistas e

técnicos desse novo poder que estavam e estão preparando a cama na qual a humanidade iria e irá deitar-se — e pior para a humanidade caso não se

adaptasse e não se adaptar à nova cama (Huxley não considerou a hipótese

de que com frequência a humanidade acolhe a nova cama, qualquer que seja, como “boa o bastante”).157 Essas operações de acomodação seriam levadas a

cabo, Huxley previa, por governos totalitários altamente centralizados. Nesse

ponto estava outra vez com muita razão: embora o período imediatamente posterior ao final da II Guerra conhecesse experiências democráticas um pouco

por toda parte, neste presente momento do século 21 a tendência dominante

surge como aquela representada pelas tendências populistas ancoradas em

abertos totalitarismos a explodir um pouco por toda parte: na Rússia de V. Putin pós-falsas esperanças de liberalização com a queda do Muro de Berlim

em 1898 (e a ascensão de Putin não poderia ser mais emblemática, ele que foi da KGB e nunca renegou ser fiel admirador da Checa, polícia secreta soviética

à qual homenageou em dezembro de 2017 por seus 100 anos de existência; nunca censurou tampouco os repetidos elogios à NKVD comandada pelo

facínora Laurenti Beria: tudo se faz às claras na Rússia atual, nada se esconde dos métodos e metas da nova nomenklatura autoritária intimamente ligada

à marginalidade de todos os tipos); visível também nos EUA de D. Trump que espalha por todo lado sua boçalidade, seu desprezo pelas normas democráticas

e seus egóticos desejos imperiais a valerem sobre todos e sobre tudo; na Nicarágua do ex-progressista Daniel Ortega que não mais quer largar o poder

e manda reprimir com armas a oposição, tanto quanto necessário; na Venezuela de Chaves & Maduro, destroçando um país e sufocando todos os

oponentes que se atrevem a protestar; na Bolívia de Evo Morales, a esta altura há doze anos no poder e que mandou erigir como monumento a seu próprio

nome um edifício gigantesco no centro da capital, uma pirâmide nos Andes

onde dispõe de todos os luxos possíveis análogos aos do palácio monumental que seu suposto opositor ideológico, Recep Erdogan, construiu em honra a si mesmo na Turquia; e na Polônia e na Hungria com seus novos criptofascismos

declarados; por todo o Oriente Médio, do assassino Assad na Síria a destruir

seu próprio país e de tantos outros ao redor; na China de Xi Jiping que planeja Cf. A máquina parou, de E. M. Forster, op.cit.

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aguentar-se no poder indefinidamente; na corrupção endêmica da América Latina que finalmente leva políticos e empresários de destaque à prisão, num esforço desesperado de enxugar gelo. Esse prefácio de Huxley para a edição

de 1946 pode ser mais importante do que o corpo mesmo de sua ficção per-

manentemente atraente (mais de dois milhões de exemplares vendidos), fazendo desse conjunto um verdadeiro clássico literário, aquele que não esgota seu poder de ilação com o passar do tempo e que pode ser lido como adaptado

às condições de vida do leitor de diferentes momentos históricos. Huxley via

como as rápidas mudanças tecnológicas que se anunciavam tenderiam a gerar uma confusão econômica e social decorrente da confusão de valores, da dificuldade crescente para localizarem-se valores no cenário de economia de

produção em massa e para a massa no seio de uma população não proprietária de bens, como a de hoje, na qual os jovens não mais têm os meios de possuírem algo de valor relevante (sem que isso nem de longe se assemelhe à utopia

socialista). Huxley viu longe e viu bem. Para lidar com essa ampla confusão, como a deste ano de 2018 marcado por mais uma revolta das ruas em Paris, a dos gilets jaunes (a cada vez é preciso escolher uma brand diferenciadora, ora

um punho segurando uma rosa vermelha, ora um barrete vermelho, ora um

punho negro fechado...), o poder teria de ser cada vez mais centralizado, entendia o escritor, e dotar-se de um controle cada vez maior — independentemente dos valores defendidos. Previa que “talvez” todos os governos do

mundo se tornassem menos ou mais totalitários antes mesmo do controle pleno da energia atômica. Não foi bem assim. Mas hoje, com a possibilidade

de controle quase total e totalitário dos sistemas de computação materializados e controlados por conjuntos ainda não explicitamente coordenados em supercartéis como o GAFA (Google, Apple, Facebook e Amazon), porém não distantes disso, a humanidade vê-se a um passo de uma nova experiência

totalitária em dimensão global. A alternativa a esse mundo só poderia vir, Huxley acreditava, de um movimento popular de larga escala, descentralizado

e contando apenas consigo mesmo para opor-se ao estatismo que se prefigurava. Não via, porém, nada parecido a isso apresentando-se no seu horizonte de tempo.158 Huxley entendeu que o novo totalitarismo não seria igual aos

tradicionais: não haveria mais “paredões de fuzilamento” como os da URSS,

158

Huxley morreu em 1963, em situação de grande desamparo material e emocional depois de um incêndio em sua casa na Califórnia que o deixou, em suas palavras, “sem bens e sem memória” pela perda de larga parte de seus documentos e posses.

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primeiro, que ele conheceu, e os de Cuba mais tarde, nem fome artificial

induzida por governos como o de Stalin na URSS e Mao na China, nem prisões em massa e deportações ineficientes — a ineficiência já havia se tornado o

Grande Pecado Mortal contra os novos tempos tecnológicos. Um estado totalitário eficiente seria aquele que controlasse uma população de escravos

sem necessidade de recorrer a medidas de coação física porque os sujeitados

adorariam a nova servidão. A missão de fazer a massa gostar de sua escravidão estaria nas mãos, nos novos estados totalitários, de ministros da propaganda

(como Josef Goebbels na Alemanha nazista), editores de jornais e meios de comunicação variados (hoje, Facebook e Twitter), professores (como os adeptos

da Escola Com Partido, no Brasil — uma deturpação, tanto quanto a Escola

Sem Partido, da liberdade de cátedra). Os jesuítas acreditaram que, tivessem o controle da educação, criariam o novo homem. Não contavam com os meios

para consegui-lo na escala necessária. Mas o século 21, sim, dispõe desses recursos. E os novos ditadores não precisariam adotar qualquer medida pro-

ativa, como se diz: bastaria que nada fizessem, que mantivessem o silêncio. A

verdade tem um grande poder mas o silêncio sobre a verdade, anotou Huxley, é ainda mais potente. Não poderia estar mais certo em sua previsão, como se sabe hoje com as fake news, a pós-verdade e os fatos alternativos de D. Trump

e da Alt-Right americana tanto quanto da esquerda partidária de toda parte

e com todos os cretinos do senso moral de todos os tipos que se manifestam por conta própria e diariamente no Facebook e no Twitter. À época de Huxley era possível baixar uma “cortina de ferro”, na expressão de Churchill, sobre os

fatos considerados inconvenientes pelos chefes e “guias” e “líderes”. Hoje, muito além da desnecessária “cortina de ferro” impera a mentira mais desabusada rapidamente reafirmada por mentiras ainda maiores e mais frequentes.

Esse estado de idiotia coletiva traduzida no amor à servidão só poderia ser

instalado, segundo Huxley, por meio de uma revolução promovida nos corpos e nas mentes das pessoas — como Sade propôs, porém de um outro modo.

Essa “revolução” seria alcançada mediante novas “invenções “e “descobertas”: e aqui chegamos outra vez ao tema da computação. As invenções necessárias seriam, para Huxley, em número de quatro.

Primeira, novas e melhores técnicas de sugestão, de início mediante o

condicionamento das crianças e, depois, do resto da população — com a ajuda

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de drogas como a escopolamina (hoje, a cocaína, a heroína e os opiáceos menos ou mais legalizados dão boa conta do recado). Segunda, uma ciência avançada

das “diferenças humanas” que permitisse aos governantes atribuir a todas e cada uma das pessoas seu lugar próprio na ordem social e na economia

hierárquica (na metáfora eloquente de Huxley, blocos redondos que se buscam impossivelmente encaixar em buracos quadrados perturbam a ordem do

tabuleiro e infectam todos à volta com o próprio descontentamento, sendo

indispensável colocar os blocos redondos nos buracos redondos e os quadrados, nos quadrados — algo que o poder de individuação da inteligência artificial faz com tranquilidade). Terceira, considerando que a realidade, por mais utópica que seja, é aquilo de que as pessoas periodicamente sentem a necessidade de

se afastar (“tirar férias da realidade”, Huxley anotou), seria preciso encontrar

substitutos ao mesmo tempo menos nocivos (embora não menos viciosos) e mais prazerosos do que álcool e cocaína — como os games e as experiências em realidade artificial, por ele não antecipadas. E quarta, projeto a longo prazo

a ocupar gerações inteiras submetidas a um controle totalitário, a invenção de um sistema eficaz de eugenia destinado a padronizar o ser humano (o produto

humano, na palavra de Huxley) de modo a facilitar a missão dos governantes. Acreditou que, tecnicamente, o mundo ainda estava longe dos bebês de proveta de Bokanovsky (personagem de sua ficção encarregado da produção do novo

homem), que cresceriam como grupos de semi-idiotas. E Huxley conclui: “Mas,

por volta de do ano 600 d.F.,159 quem sabe o que pode acontecer?” Ele mesmo, porém, em seguida viu que essas mudanças sobreviriam em tempo bem mais curto, não mais do que três ou quatro gerações — isto é, mais ou menos no

ponto onde estamos agora, neste 2018 em que o pesquisador chinês He Jiankui, da Southern University of Science and Technology da cidade-maravilha de

Shenzhen, no sul da China, imaginada e construída por Deng Xiaoping, anun-

cia ter conseguido editar um gene que livraria fetos de doenças transmissíveis como o HIV (si non è vero, è ben trovato: ou ele ou outro fará isso, em breve.)

Pois, as quatro descobertas e invenções que Huxley via como condições

para a implantação do totalitarismo final estão manifestas nas eCulturas — e

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Que se lê ano 600 depois de Ford, o mesmo Henry Ford da cadeia de montagem de carros inaugurada em 1913 que Huxley interpretou, corretamente, como iniciador de um novo padrão de comportamento geral da humanidade, da roupa ao turismo, passando pelo sexo.

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já em ação. “Novas e melhores técnicas de sugestão, com o condicionamento das crianças e, depois, com a ajuda de drogas como a escopolamina”: o condicionamento veio primeiro pelo rádio, depois pela TV e, agora, por meios

como Facebook e Twitter, via tablets e smartphones que dispensam o recurso às drogas tradicionais produzidas em países do terceiro mundo por pobres

e miseráveis, em seguida acondicionadas em laboratórios operados pelos criminosos “desenvolvidos” do primeiro mundo; “uma ciência avançada das

diferenças humanas que colocasse cada um em seu lugar de modo a não instilar insatisfações nos demais”, o que agora se obtém com os mesmos instrumentos da internet; “as férias da realidade”, mais eficazes e prazerosas

do que o álcool e a heroína e que hoje, cada vez mais, será possível encontrar

na realidade virtual tal como dramatizada em séries do tipo Westworld e Altered Carbon, da cada vez mais presente Netflix, e em filmes como os dois Blade Runner e Ghost in the Shell; e, quarta, “novas gerações eugenicamente

produzidas”, agora por meio da edição do código genético (Cf. Editabilidade). Todas, realidades já deste momento, com capacidade de plena operação ou a um passo disso.

Há uma passagem desse prefácio à edição de 1946 de Admirável Mundo

Novo que conecta o momento presente deste texto àquele com o qual se

iniciou parágrafos acima, relativo à felicidade e ao desejo, em particular ao desejo sexual. Em 1946, escrevia Huxley, a promiscuidade sexual descrita

em sua ficção, publicada 14 anos antes, não parecia mais tão distante. Já há

cidades americanas, anotava ele, nas quais o número de divórcios é igual ao de

casamentos; e em poucos anos, imaginava, licenças de casamento, típicas dos

EUA, “serão vendidas do mesmo modo como as licenças para ter-se um cão”, valerão por um período não maior do que doze meses e incluirão o direito de

trocar de cão (ou de parceiro) e de ter mais de um ao mesmo tempo... Na ver-

dade, não é mais necessário que licenças de casamento venham com prazo de validade: não mais valem por prazo algum assim como os casamentos duram

o que durarem, um ano, dois meses, poucas semanas. “A fila tem de andar” diante da porta de mulheres e homens, como se ouve hoje um pouco por toda

parte. A questão da relação é antiquada; o problema agora é, simplesmente, a “fila que tem de andar”: os primeiros da fila têm sua vez, são logo postos de

lado e a vez cabe ao seguinte até que os atrativos de quem comanda a fila se esgotem. Este já é um estado de coisas atual, em 2018. Desse quadro Huxley extrai uma observação que o incomoda: à medida em que a liberdade política

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e econômica diminui, a liberdade (ou liberalização) sexual tende a aumentar

como medida compensatória. Huxley não estava muito distante das reflexões de Herbert Marcuse publicadas, nove anos depois de seu prefácio à edição de

1946, no livro Eros e civilização (1955). Mas os sinais dos dois autores para suas

equações são opostos: Marcuse via nos novos tempos as condições para uma nova luta pela vida, uma luta por Eros, por ele considerada como a única luta política resultante do “sentido social” da biologia e que permitia considerar a

história não como uma luta de classes (que nunca explicou, nem explica tudo), mas como uma luta contra a repressão de nossos instintos (Sade não estava muito distante da leitura de Marcuse, que inspirou os movimentos jovens hippies e libertários de 1968).

Confrontados com as páginas de Marcuse, os comentários de Huxley adqui-

rem o tom de um conservadorismo moralista chocado com os novos tempos; mas é necessário investigar aquilo que de mais impactante eles podem conter. A liberdade política está hoje em seu nível mais baixo desde 1989 e a queda do

Muro de Berlim: apesar de formalmente existir aqui e ali uma “democracia” traduzida em “eleições livres”, que já não contam para nada, o poder é de fato exercido por um punhado de donos — deputados, senadores e partidos políticos associados não mais apenas ao “complexo industrial-militar” dos anos 60, mas

ao complexo ainda militar porém na versão militar-informacional-financeira

que se implantou firmemente desde a segunda metade do século 20, donos do

poder que persistem por décadas e décadas no controle ferrenho de um país

embora mude a figura do presidente ou do primeiro-ministro “de plantão”, de resto ele também parte gozosa e aproveitadora do esquema. A liberdade econômica, essa, simplesmente desapareceu do mapa: os 10% mais abonados

ganham n vezes mais do que os 10% menos favorecidos e do que o restante do país e nessa linha se sucedem todos os cálculos análogos que se queiram fazer, como esse outro demonstrando como o 1% da população ganha mais

do que os 70% restantes ou como os 20% de um país detêm propriedades fundiárias maiores do que aquelas na posse dos restantes 80% e como as 60

famílias mais ricas da Terra têm tanto dinheiro quanto a metade mais pobre

dessa mesma e sofrida Terra e assim por diante; e os pequenos empresários (ou comerciantes) somem, em favor dos grandes conglomerados. Antes, na época da guerra fria, o Estado totalitário do lado de lá da “cortina” retirava da pessoa

humana todas as liberdades pensáveis; hoje, o poderio econômico dela retira as mesmas coisas ao mesmo tempo que lhe dá a impressão de estar tudo bem. Os

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ditadores, diz Huxley, a menos que necessitem de carne de canhão para suas guerras — e não mais precisam, nesta época de drones e disparos contra alvos a

milhares de quilômetros de distância levados a efeito por uma ou duas pessoas

abrigadas em centros remotos em vez dos batalhões de homens necessários

para invadir fisicamente um território físico — e a menos que necessitem de

gente para colonizar territórios vazios (que não mais existem; agora talvez se trate de colonizar outros planetas, diante da possibilidade de rápida extinção

dos recursos da Terra) farão todo o possível para encorajar a liberdade sexual. Já fazem: sem qualquer consideração moralista e apenas como constatação, e sem sugerir que exista um complô organizado nesse sentido, a pornografia

na internet está acessível para qualquer criança e adulto a qualquer hora. Em Blade Runner e Blade Runner 2049 o sexo ostenta-se não mais atrás de

modestas vitrinas nas ruas de Amsterdam, com suas prostitutas reais, mas na

figura gigantesca de mulheres desnudas projetadas por técnicas de mapping

digital sobre a fachada de edifícios ou amontoando-se “ao vivo” ao longo das ruas sem que o passante saiba distinguir entre aquelas ou aqueles que são “replicantes” e as de carne e osso ou que “nasceram de mulher” (diferenciação

que pode não mais ter qualquer sentido, com geração artificial in vitro). Sexo “ao vivo “ou na realidade virtual. Aos montes, enfim.

A preocupação de Huxley com os novos costumes sexuais inscreve-se na

linha de uma reflexão crescente na segunda metade do século 20, que pode

ser descrita como conservadora, mas necessitando de uma análise mais mati-

zada — a começar pelo fato de seu livro-ícone intitular-se Admirável Mundo Novo — por estarmos no limiar de outro admirável novo mundo e por ser o sexo outra vez, como sempre, uma questão. Em 1977, a dupla Alain Finkielkraut e Pascal Bruckner publicava, na França, seu Le nouveau désordre amoureux

para investigar um fenômeno equivalente àquele apontado por Huxley três décadas antes, fenômeno que nos anos 60-70 assumiu outra forma e que hoje

ressurge (ou apenas continua) no formato do polyamory, como se denomina nos EUA, ou do polyamoria, em russo. Na Rússia do ditador V. Putin, que se

alterna no poder com seu “segundo” Dmitri Medvedev (que não chega a ser seu duplo, mas é sem dúvida seu “poste”, assim como no Brasil os “postes” andam

por todo o cenário político), o fenômeno do poliamor assume nítida coloração de contestação (pueril e ineficaz, um pecado natural na época da eficácia e da

eficiência técnica) a um poder que retira das pessoas toda real liberdade de ação. O amor nos tempos de V. Putin na Rússia é livre, mesmo se sua representação

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artística for cerceada: na forma de sexo não pode ser mostrado nos teatros e cinemas subvencionados pelo Estado, mas pode ser praticado em casa. Uma

mulher junta-se a dois ou três homens, três homens vivem intermitentemente

com duas mulheres, uma mulher vive com um homem, mas tem relações sexuais

com quantos parceiros quiser sem romper as relações com “seu homem” inicial, que de resto faz o mesmo. Uma pesquisa de 2018 sobre o “novo” comporta-

mento na Rússia mostrou que vários jovens e não tão jovens adotam a prática:

“Conheci o termo poliamor há dois anos porém o pratico desde 1991”. Outra: “Já estou no meu trigésimo parceiro. Para mim a liberdade e a diversidade são muito importantes”. A religião dos implicados nada muda nesse cenário, um

praticante do poliamor pode ser ortodoxo, cristão ou muçulmano. Alegações, justificativas e pretextos políticos para o poliamor abundam; uma entrevistada, Marina Simakova,160 o diz claramente: “[O poliamor] é uma forma de organi-

zação romântica baseada numa decisão consciente, ética e por vezes, mesmo, política”. Herbert Marcuse sorriria, ouvindo-a. O poder real na Rússia, poder político-policial-negocial, apenas também sorri diante dessa representação da

liberdade, não muito distante daquela publicizada pelas calças jeans da Us Top

que, no Brasil da ditadura militar de 1964-1985, apresentavam-se como recurso dos jovens para “serem livres”.161

Motivos tradicionalmente consistentes (ou persistentes) na filosofia oci-

dental não faltam para justificar a opção pelo poliamor: pôr de lado o ciúme

e o sentimento de propriedade burguês (chamado de “pequeno-burguês” ao

longo da primeira metade do século 20; o artista dadá alemão Raoul Hassan

combatia o casamento monogâmico como a “introjeção do estupro na lei”162); ignorar as expectativas exclusivistas do parceiro ou parceira e deixar de ocultar

eventuais sentimentos e tendências “profundos” como os de Oscar Wilde;

Le Monde, 9 agosto 2018, pag. 18.

Fabricado pela Alpargatas, uma “empresa nacional”, o jeans da Us Top apelava para o público jovem que ansiava por liberdade política, estética, existencial. Os versos da música publicitária diziam “liberdade é uma calça azul e desbotada que você pode usar do jeito que quiser, não usa quem não quer…”

Raoul Hausmann e sua amante Hanna Hoch, também artista, integram a exposição Modern Couples aberta na Barbican, Londres, em novembro de 2018 e voltada para a exploração das novas combinações amorosas tal como se manifestaram na arte e ao redor dela.

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atender “aos direitos da mulher”. Um praticante citado na pesquisa, um russo de 40 anos, tem quatro parceiras diferentes, de 32, 25, 24 e 17 anos, três das quais

mantêm outras relações próprias. A ideia colocada em evidência é ser contra a instituição, contra a propriedade privada do outro. Já se ouviu a mesma história à época da Revolução de 1917 que gerou o poder estatal comunista e em tantas

outras décadas que se seguiram. Em seu livro de 1977, Finkielkraut e Bruckner, sem dúvida pensando em Marcuse (talvez não tivessem lido Huxley), fizeram a crítica do “mito da revolução sexual” derivada, em termos mais próximos daquela data, do maio de 68, em seguida e em larga medida teorizado por Gilles

Deleuze, Félix Guattari e Guy Debord. Finkielkraut-Bruckner postulavam que

os novos intelectuais “integrados” à sensibilidade da época, como aqueles três, negavam o amor e o apresentavam, no limite, como algo “ignóbil”, em contraposição à ideia, defendida pelos autores da Nova desordem, de que o amor seria

parte da natureza humana e impermeável a uma reforma impossível: “O amor

não se presta a revoluções”, escreveram.163 E viam aquelas teorizações e defesas

do novo comportamento como modo reformado de continuar submetendo as mulheres, vítimas da permanente ideologia masculina então apresentada

sob uma capa supostamente liberalizante, mas que deixava visível o desejo de continuar a apresentá-las como meros objetos de desejo e de consumo.164 Difícil

Com esse tipo de argumentos, aceitavam a existência de uma natureza humana negada por Sartre e pelos materialistas de toda cor ideológica; hoje, é impossível negar a existência científica de uma natureza humana — pelo menos enquanto não ocorrer a singularidade que será, na descrição de Ray Kurzweil, a superação da biologia ou, em outras palavras, a fusão do homem com a máquina.

No cinema de 1968, o filme-sensação apresentando a nova mulher supostamente liberada foi Barbarella, com Jane Fonda no papel título e dirigido por seu marido à época, Roger Vadim. Baseado na história em quadrinhos homônima de Jean-Claude Forest, o filme narra a história de uma astronauta mais ocupada em exibir seus, como se diz, dotes femininos para o espectador, em poses provocantes, do que interpretar alguma trama minimamente estruturada e convincente. A jovem Jane Fonda dava a ver partes menos ou mais veladas do corpo que, nos “quadrinhos” originais, apareciam com mais frequência “ao natural”, “à poil”. Os produtores do filme, seu diretor (conhecido por filmes cujo leitmotiv era a presença de mulheres jovens e atraentes, como Brigitte Bardot e Monica Vitti, colocadas sempre em situações picantes) e a própria Jane Fonda insistiam em divulgar esse produto como um anúncio da nova mulher com sexualidade liberada que escolhia o que fazer com seu corpo e como e onde entregá-lo a quem quisesse, qualquer que fosse o sexo dos parceiros. Os anos ao redor de 1968 estavam repletos de heroínas de comics do mesmo tipo, algumas bem mais audaciosas

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hoje, 2018, manter a tese de que a mulher continua sendo apenas vítima, neste

momento do #MeToo e do #BalanceTonPorc (#DenuncieSeuPorco), com todos seus ocasionais excessos: a mulher também está no comando, ela escolhe, ela age, ela toma a iniciativa, ela acerta e ela erra, como errou a executiva da Face-

book, Sheryl Sandberg, no recente episódio das críticas contra a “rede social” por ela dirigida (afinal, é um ser humano como os outros). Difícil sustentar que também Huxley estivesse equivocado ao antecipar que o estado de confusão e

dominação política e econômica absolutas gerado pelas novas tecnologias, não

mais nucleares, mas agora computacionais, gerou e gera uma expansão do que

chamou de estado de “promiscuidade sexual” que pode apresentar-se agora, mais apropriadamente, sob o rótulo de desapego amoroso a mascarar (mal) um sentimento de solidão e indiferença amorosa, um desespero relacional e existencial sem qualquer aparente possibilidade de recuperação. As utopias

relacionais foram desnudadas, quase nada pode agora recompô-las; e é fácil

imaginar que “pôr a fila a andar” ofereça uma solução imediata — por precária e insatisfatória que seja, antes como agora.165 Os novos poliamorosos estão

e liberadas do que Barbarella, como Valentina, do italiano Guido Crepax, de desenho e conteúdo mais insinuantes e com estética mais firme e instigante. Na França, Barbarella foi vista como a contraposição a uma personagem típica do interior francês criada para uma das primeiras “tiras” de quadrinhos no país: Bécassine, de 1905, imagem de uma camponesa envolta em suas muitas roupas a ocultar-lhe o corpo, recatada, modesta, “do lar” e, no dizer dos anos 60, oprimida em sua simplicidade ingênua. Barbarella foi visto como filme liberador, no espírito da renovação dos costumes do “maio de 68”; mas era difícil, à época, e continua sendo, ver nas imagens de Barbarella, ao estilo das folhinhas de pin ups que decoravam garagens de carros por toda parte no mundo, mais do que uma outra versão aproveitadora e comercial do corpo da mulher, objeto sexual perfeito. Finkielkraut-Bruckner tinham razoável dose de razão em seus argumentos.

Bécassine 165

Barbarella

No Japão (terra dos “otaku”ou emparedados, aqueles que não conseguem estabelecer laços com os próximos, do mesmo sexo ou outro, e que passam a maior parte do tempo em suas casas ou quartos, no passado debruçados sobre seus mangas e, agora, sobre as telinhas de seus smartphones e games), homens estão se casando, em cerimônia

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livres para nada, como na formulação de Sartre que por vezes, como todos os escritores e pensadores, em alguma coisa acertou.

As quatro invenções e descobertas vistas por Huxley como necessárias para

que a dominação final dos estados totalitários sobre as pessoas encontrem

plenas condições de operação já estão disponíveis e multiplicadas graças à

internet e à inteligência artificial com seus algoritmos e suas velocidades computacionais possibilitando a experiência de todas as situações por meio da realidade virtual ou aumentada, sem grandes interferências nem mesmo

no plano da existência cotidiana. As reflexões sobre a superinteligência continuam não se aproximando desses temas, tarefa que outra vez cabe, pelo

menos por enquanto, à arte, em particular à literatura e ao cinema, a primeira como arte da dinâmica imaginada e, o segundo, como arte da dinâmica vista.

(Pouco cabe hoje, nesse domínio, às artes visuais, entre elas a pintura e a escultura: Eric Hobsbawm estava com razão quando observou, em Behind lhe Times: The Decline and Fall of the Twentieth-Century Avant Gardes, 1999, que

o cinema pôs em prática todas as ideias inovadoras com que as artes visuais sonharam, mas que foram incapazes de concretizar nas suas vanguardas). O

amor foi colocado pela Modernidade do século 19 como personagem central da vida humana e o cinema, como dramatizado por Tarkovski em Solaris e outros realizadores, continuou a missão de mantê-lo no primeiro plano das

atenções por meio de narrativas poéticas e alusões científicas ou cientificistas menos ou mais apropriadas — um amor que agora parece outra vez apenas

pronto para ser novamente subtraído pela realidade artificial da felicidade, do

amor e do sexo imaginados, sonhados e, tanto quanto os outros — os “reais”, os “tradicionais” — quase sempre frustrados e frustrantes, fragmentados

e fragmentantes. A cultura computacional surge usando sobre sua face a máscara de algum deus benevolente dispensador de uma felicidade amorosa

ao alcance da mão, à la carte, cômoda e inobstrusiva. O debate sobre o amor como componente estrutural da natureza humana necessariamente associado

à monogamia (à monogamia sucessiva, em todo caso), ou aberto à exploração multiplicada e simultânea das relações sexuais das quais é independente, está

longe de ter encontrado seu fim. A “infidelidade”, termo ao mesmo tempo

obsceno e vazio, está inscrita no comportamento humano (e animal). A “troca formal, com bonecas de plástico, à espera das mais avançadas que têm, como diz um eles, “funções para adultos”.

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de casais” (échangisme, em francês), consentida e buscada pelos parceiros comprometidos numa mesma relação, não é de agora embora agora se mul-

tiplique amplamente e encontre amparo e adesão em diferentes camadas da

população.166 A previsão e a advertência de Huxley, penduradas no ar, têm sua razão de ser. E provoca reflexão: afinal, os poderes dos Controladores foram

multiplicados, surgem agora como quase imparáveis. E gozam da inteira e satisfeita benevolência dos dominados...

Sexo, e o que talvez possa ser definido como “felicidade sexual”, é apenas

uma das questões relativas ao valor, mas questão com múltiplos desdobra-

mentos nos domínios do virtual e do real. Toronto conheceu, a 24 de abril de

2018, mais uma forma de atentado contra pedestres na forma de uma van

que investiu sobre várias pessoas matando dez delas antes de ser imobilizada. O perpetrante era um jovem de 25 anos que pouco antes postara em sua

página Facebook uma mensagem anunciando o começo da “rebelião incel”, comunidade virtual de homens auto-apresentados como “celibatários involun-

tários”(involuntary celibates, in-cel), homens que não mantêm relações sexuais, mas cuja abstinência não é voluntária, não depende de uma escolha moral ou religiosa. Esses homens buscam sexo, dizem “merecer” sexo — ou uma

“relação” —, apenas não conseguem mulheres que os aceitem. Os episódios,

não notados de início, acumularam-se nos anos anteriores: em Santa Barbara, Califórnia, pelos mesmos “motivos” um jovem de 22 anos matou seis pessoas 166

O escritor Michel Houellebecq, autor do provocador Submissão (2015), com sua conhecida atitude desabusada relata, em “Cléopatre 2000”(incluído em Lanzarote et autres textes, Librio, 2002), sua experiência, ao lado da mulher (“a mesma de sempre”, escreve), em Cap-d’Agde na virada do século 20 para o 21, um “village naturiste” da França conhecido pelas dezenas de boîtes de troca de casais que Houellebecq e esposa frequentaram, juntos, ao longo de quatro anos, entre 1997 e 2000. Houellebecq admite ter encontrado prazer sexual com desconhecidas e por vezes invisíveis parceiras, tanto quanto sua parceira rotineira, sem aparentes reflexos sobre as relações estáveis do casal. (Diz ter voltado ao lugar em 2001, encontrando-o transformado em reduto gay.) O échangisme conhecido por Houellebcq era uma versão limitada e mais conservadora do poliamor: os grupos poliamorosos vivem em comum (a falta de dinheiro para alugar moradias tem um papel nisso), apesar das experiências avulsas eventuais, ao passo que a mulher de Houellebecq “era sempre a mesma”. Mesma é sem dúvida a questão, com o poliamor na forma de versão atual “ao vivo” das experiências ocasionais de Houellebecq, antecipando as possibilidades de emprego da realidade virtual com as consequências antevistas por Huxley.

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e feriu catorze outras antes de suicidar-se; em 2009, um homem de 48 anos

entrou numa academia de fitness em Pittysburgh e matou cinco mulheres, ferindo outras doze antes de matar-se, com as mesmas “justificativas”. Em sua

mochila encontrou-se uma carta explicando que não tivera relações sexuais

durante vinte anos e culpando as mulheres por sua marginalização. E. Rodger, autor do atentado de 2014, também deixou um vídeo onde reconhecia ser

virgem, acusando as mulheres de o terem “levado à solidão, a uma vida de pária e desejos insatisfeitos. Tudo porque as mulheres nunca se sentiram atraídas

por mim...[…] não sei por que isso, mas vou puni-las pelo que fizeram. É uma injustiça, um crime... não sei o que lhes falta. Sou um tipo perfeito, mas vocês se jogam nos braços de uns sujeitos horríveis e não nos meus, um cavalheiro

perfeito.” Como anota uma matéria no Le Monde de 16 de agosto de 2018, “Ces

hommes nostalgiques d’une vie sexuelle préféministe” (“Esses homens saudosos de uma vida sexual pré-feminista”), os homens desses grupos reuniam-se

pela internet numa comunidade virtual de acusação contra as mulheres. Não são poucos, estão revoltados e o dizem em alto e bom som. Sentem-se

com direito ao sexo e dizem merecê-lo. A publicidade e a internet exibem sexo por toda parte, os relatos sobre relações livres e descompromissadas

multiplicam-se, a exemplo do poliamor. Incapazes de encontrar satisfação, atacam ao acaso, por efeito de imitação. Difícil, impossível, dizer-lhes que os

direitos humanos e os direitos culturais não lhes garantem o que buscam e que não têm direito algum nessa direção.

As conclusões a respeito desses casos recorrentes são de árdua extração. De

um lado, nos EUA, onde o acesso às armas é quase livre e a violência, uma constante, matar pessoas ao acaso em decorrência de alguma frustração tornou-se

trágica rotina e o caso dos “incel” lamentavelmente não mereceria, por isso

apenas, atenção especial. No entanto, a linha de reflexão formada por Huxley, Finkielkraut-Bruckner e a reivindicação de um suposto “direito ao sexo” exigem que a análise seja mais detida. As pessoas estão, hoje, mantendo relações em excesso ou de menos, em relação a um passado não especificado? Existe agora

uma nova “normalidade” nesse campo e, se sim, que reação pede ou comporta?

O artigo no Le Monde assinado por Pauline Colonna d’ Istria está longe de esgotar o assunto quando reduz o tema ao desejo de um retorno ao modo de vida sexual pré-feminista no qual as mulheres constituíam supostamente um rebanho dócil onde os homens podiam servir-se à vontade. Há mais coisas por

baixo e ao lado e por cima disso. É significativo que esses terroristas do sexo

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mencionem o fato de “terem direito a ” e “merecerem” ter sexo. A linguagem

empregada espelha uma sensibilidade do tempo, mesmo se deformada — e

essa sensibilidade marca-se pela ideia dos direitos. Quando a partir dos anos 90 difundiu-se a noção de direitos culturais, era previsível que os discursos

desembocariam em algum momento no tema do direito ao sexo, obviamente

não previsto pelos redatores do Pacto dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais da ONU (1966, 1976), ocupados em evitar a repetição das tragédias

dos anos 30 e 40 que tocavam também em temas sexuais (a perseguição aos

homossexuais pelos nazismos e fascismos; a opressão às mulheres), mas sem focá-los de modo aberto e exclusivo. O direito ao sexo não pode, ainda, ser sus-

tentado sem que se esbarre no caso histórico da política de sexo oferecido aos soldados japoneses invasores da Coreia por mulheres coreanas a isso coagidas

pelos mesmos invasores. Ninguém pode ser forçado a manter relações sexuais

com ninguém e o mercado imemorialmente ofereceu-se para preencher essa lacuna, tarefa que só por delírio se poderia imaginar como recaindo no colo

do Estado (embora fosse exatamente isso que se encontrava nos discursos dos

paraísos estatais comunistas e fascistas das primeiras décadas do século 20). Mas os novos terroristas do sexo neste século 21 veem-se como destinatários

de algo pelo qual não devem pagar, nem pelo qual devem esforçar-se. Os “incels” voltam-se contra alvos e causas para eles visíveis, as mulheres, que

desde o começo do século 20, com mais intensidade, reclamam elas também

o direito a uma sexualidade própria e autônoma. O artigo do Le Monde está

equivocado, não se trata de um retorno nostálgico aos “bons velhos tempos”, quando tópicos embaraçantes como a autonomia do desejo feminino não se erguiam entre o homem e a mulher. Os conservadores, como poderiam

ser Finkielkraut-Bruckner e Huxley, inutilmente lamentam a perda de uma época quando o sexo não era tão fácil quanto hoje, quando as mulheres

supostamente exigiam um pouco de “romantismo” antes de “ceder”. Os revo-

lucionários ou progressistas, de seu lado, defendem as posições mais liberais

e progressistas nesse campo sem desenvolverem argumentação consistente. Declarar direitos, justicializar as relações humanas a pretexto de amparar as

vítimas são o reflexo de um Estado cada vez mais controlador e paternalista e de uma sociedade de menores de idade (assim mantidos intencionalmente) que não mais tomam a vida nas próprias mãos, esperando ardentemente que

um “paizinho” humano ou institucional, como tantos na história brasileira e internacional, remota e contemporânea, elimine-lhes tudo que considerem

um impedimento a seus desejos com urgência infantil. A preocupação de

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Huxley surge como sólida mesmo se sua argumentação soe antiquada: pinos quadrados não entram em buracos redondos, o ressentimento espalha-se e todos acabam pagando por isso. O Estado, ou os controladores da sociedade como herdeiros de um Estado falido, terão as drogas e a realidade virtual

como recurso contra a demolição da vida cotidiana em cidades superlotadas, se isso funcionar. As drogas podem ser úteis caso o objetivo seja acumular corpos semivivos — tornados inúteis, em termos de trabalho, pelo regime computacional-financeiro-político atual — ao longo de estradas e ruas. Mas se

esses corpos não servirem para colonizar algum lugar perdido da Terra ou do espaço, será preciso oferecer-lhes, para que não perturbem a ordem mantida a um custo crescente, a experiência sexual controlada da realidade virtual que

os terroristas do sexo tanto reclamam. O caso não é menor, nem desprezível: é

sintoma de um cenário complexo do qual o sexo apresenta-se como alavanca. A profissão mais antiga do mundo, tolerada, e em princípio voluntária (o que

esteve longe de ser), era o tributo que o vício pagava à virtude. Aparentemente a hipocrisia retira-se de cena com um estardalhaço criminoso e resta apenas

a crueza grotesca da boçalidade via “redes sociais” nas quais D. Trump se

destaca; não se trata mais apenas ou “apenas” da dissolução de antigos laços, como alegado por Huxley: o vício, na forma de excesso, é reivindicado à bala. E a inteligência artificial terá o que oferecer nesse mercado.

3. VALOR, INFORMAÇÃO, OPRESSÃO

Quando a internet firmou-se como um fato irreversível, não foram poucas

as declarações de boas vindas ao instrumento que parecia pôr fim ao controle da informação por Estados totalitários que não mais poderiam exercer a censura sobre sua população, impedindo a circulação de material para ele

indesejável, proibindo a exibição de filmes incômodos, apreendendo livros “subversivos” e prendendo seus autores e editores, barrando transmissões de rádio e televisão ou simplesmente — modo institucional de corte pela raiz da

capacidade de compreensão do mundo — eliminando o ensino de idiomas estrangeiros nas escolas públicas, como se fez no Brasil sob a ditadura militar de 1964-1985. Quando se visitava Berlim Oriental nos tempos da guerra fria era

possível ver nos telhados dos prédios ao longo da Unter den Tillen, e outras ruas e avenidas da cidade, pequenas florestas de antenas de rádio e TV voltadas

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para Berlim Ocidental, antenas periodicamente recolhidas por caminhões do exército apenas para ressurgirem dias depois, improvisadas como possível. As novas ondas informacionais viriam pelo ar da internet e seriam imparáveis.

A ilusão durou pouco: a pericia informática permite ao governo chinês

barrar as páginas da internet que quiser, telefones portáteis foram proibidos na Coreia do Norte e as antenas parabólicas, tornadas ilegais no Irã — uma

lista sem fim de modos eletrônicos de controle da opinião. Depois, blogs, sites, Twitter, Facebook e outros pareceram destampar por fim a panela das opiniões sufocadas — mas apenas para dar passagem a uma enxurrada de novo tipo de manipulação das vontades com o recurso a procedimentos de manipulação

de Big Data como os usados para influenciar a votação em D. Trump por meio de algoritmos como os gerados pela vendilhã Cambridge Analytica (com a

cumplicidade do Facebook) e outros aparentemente mais corriqueiros como

aqueles que compõem o que já se denomina de Praças Públicas Digitais, tomadas por indivíduos (ligados direta e indiretamente a organizações maiores) que promovem a intolerância, teorias conspiratórias (“golpe da direita visando

impedir a manifestação do povo nas eleições”, “golpe da esquerda para destruir

um governo legitimamente eleito”), conflitos de todo tipo contra imigrantes, minorias variadas, contra tudo e todos e tanta outra coisa. O recente caso de um desses promotores do ódio e da discórdia, Alex Jones, nos EUA, é emblemá-

tico dos impasses da computação diante da questão do valor. Seus excessos

divulgados pelo aplicativo Infowars (o nome não poderia ser mais expressivo) levou os quatro grandes Apple, Facebook, Google e Twitter a tomar medidas

contra a divulgação das “fake news” por ele promovida, removendo partes de seu conteúdo divulgado pela internet. Twitter cortou-lhe o acesso pelo prazo

de... uma semana, medida de um ridículo que beira a afronta mais descarada

à sociedade. Simultaneamente à iniciativa do Twitter, Alex Jones mudou seu canal para o Tumblr — e a enxurrada de fake news continua.

Para além desse caso específico, o quadro é bem mais grave e envolve aspec-

tos centrais da informação no século 21. As grandes corporações da internet dizem defender o princípio da liberdade de expressão (e com isso manter seus

lucros bilionários com publicidade) e eximem-se de medidas coibitórias ou regulatórias das postagens em suas páginas. As reclamações e indignações foram tantas, porém, que Facebook (como Google) decidiu manter sob contrato

milhares de “moderadores de conteúdo” instalados em países como Índia,

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Irlanda, Filipinas (onde os salários são baixíssimos) com a missão de proceder

à “varredura”diária de milhares de páginas suspeitas de divulgação de material que possa violar algum direito, lei, interesse e a ética comum. Um relato do que encontram esses “moderadores” é aterrador: vídeos de decapitações, de

suicídios, de exploração sexual de crianças, de incitamento ao assassinato — o esgoto da humanidade corre agora a céu aberto (cf. dois filmes da PBS, The Cleaners e The Facebook Dilemma). Esses “moderadores” não são mais do que

censores privados. Nos EUA essa prática não é considerada uma infração à lei porque levada a cabo por particulares; o governo não poderia fazê-lo, diante

do estabelecido na Primeira Emenda da constituição, o que é fantástico, mas

tudo está permitido ao particular. A perspectiva poderia, improvavelmente, alterar-se caso as “mídias sociais”(os rótulos não param de buscar e exibir

sua criatividade mentirosa: essas redes já se revelaram corriqueiramente

antissociais) forem consideradas uma versão moderna da “praça pública”. Google, Facebook e Twitter, com seus “seguidores” (o mesmo termo usado para os adeptos de seitas religiosas menos ou mais fanáticas e partidos políticos alucinados) são já praças quase-públicas; nos EUA reúnem um público superior

a 200 milhões de pessoas por mês, três quintos da população do país. Os algoritmos e censores usados por essas corporações não têm seu mecanismo

revelado. Algumas plataformas “sociais” banem pornografia e incitamento ao terrorismo, ou “discursos do ódio”(hate speeches), rótulo ambíguo que pode

cobrir tudo e mais alguma coisa conforme a perspectiva adotada. Mas deixam passar propaganda neo-nazista. Pelo menos uma plataforma, Google, dispõe-se

a censurar-se a si mesma se isso significar a autorização para que atue na China de acordo com o sistema político daquele país. Outros temas censurados na

internet são a negação do Holocausto (legalmente, um crime na Alemanha e em outros países) e a difamação de Ataturk.167 Apesar de toda essa vigilância

(ou alegada vigilância) e censura, milhões de contas falsas e de informações não menos mentirosas foram criadas durante a campanha de D. Trump, muitas delas provenientes da Rússia de V. Putin.

Algumas (talvez todas) plataformas não aceitam ser consideradas órgãos

de imprensa, o que as submeteria a algum tipo de controle legal, e afirmam

que seus “moderadores”, ou censores, apenas escolhem as matérias e imagens que ilustram suas páginas sem entrar no mérito dos assuntos. A opinião

167

The New Yorker, 20 de agosto de 2018.

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pública informada e sensível vê-se imobilizada num dilema: recusar o inter-

vencionismo típico dos totalitarismos ou proteger a opinião pública. A solução sugerida pelos promotores do bom-senso estereotipado é a ida às urnas para

punir os partidos políticos beneficiados e seus candidatos. Opção tão nula quanto muitas dessas mesmas “eleições livres” que se realizam um pouco

por toda parte e nada significam de democracia real. Governos e Estados são corporações tão obscuras, desprovidas de reais interesses públicos, quanto as opacas empresas computacionais. Cortar, barrar, censurar não parece ser o caminho para o estabelecimento de uma sociedade livre e desenvolvida

que aprenda por si mesma: algoritmos podem passar por um processo de

“deep learning”, aprendizado profundo, e desenvolver-se (só não se sabe bem

em qual direção, se em favor dos humanos ou deles próprios) enquanto os humanos parecem, eles, cada vez menos suscetíveis de buscar uma formação

continuada. A questão aqui é menos a tecnologia do que o valor — e o cenário

fica novamente turvado pelo fantasma de uma multimilenária incógnita do

comportamento humano. E por mais que se busque contornar o fantasma que assombrou Huxley em 1946, e que não era, como não é, nenhum inócuo

fantasma da ópera, a advertência fica pendente no horizonte por cima das positividades defendidas pelos integrados da inteligência artificial e dos apocalípticos assustados com as novas extensões do homem.

O fato claro: a disrupção promovida pela tecnologia digital e pela quântica,

que agora começa, foi demasiadamente veloz. Um mundo cansado dos fracas-

sos das ideologias velhas de duzentos anos, para ficar nas mais recentes, quis antecipar, com o que parecia o novo paraíso eletrônico, a libertação de parcelas

enormes da humanidade do jugo de mecanismos de opressão decididos a dela sugar sangue, músculos e ossos. A visão mirífica obnubilou o lado escuro da tecnologia (que é o lado negro da humanidade, nada mais) e pôs em eclipse

a reflexão política. A catástrofe ambiental tem sido anunciada há décadas, para dizer o mínimo é assustadora e mesmo assim a humanidade pouco ou

nada faz para evitá-la ou retardá-la. O paraíso do digital-quântico gozou de

décadas de credibilidade indisputada. Os avanços que permitiu e continuará

a permitir são decisivos e colocam a humanidade a um passo de um novo

mundo, mais intenso, desdobrado e dramático do que qualquer outro anterior. De todo modo, no estado populacional em que se encontra o planeta, não há volta atrás, não há como enterrar toda essa tecnologia num deserto distante

e esperar que a vida siga. Não seguirá. Sem a definição de valores humanos,

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no entanto, a maior probabilidade é que algoritmos formados e autoformados pelo processo do deep learning definam por si mesmos e para si mesmos os

vetores mais adequados a seus propósitos — que não se sabe, neste momento, quais possam ser. Um magnata da computação ofereceu há pouco tempo um

prêmio elevado em dinheiro para quem conseguir “inserir” valores humanos operacionais num programa de computação: não há notícia de que alguém tenha aparecido para cobrá-lo.168 A Association for Computing Machinery

entrega desde 1966 um prêmio anual para os que se destacam nas contri-

buições de “importância técnica duradoura no campo da computação.” Entre

aquele ano e 2018 foram sessenta e sete os agraciados, todos homens à exceção de Barbara Liskov, em 2008. Os motivos para o recebimento da honraria, desde

2014 acompanhada por um prêmio de US$ 1 milhão, concedido pela Google, são os mais variados: técnicas de programação, sistemas de encriptagem, desenvolvimento de linguagens, teoria e prática de data bases, teoria dos algoritmos, computação gráfica, arquitetura de computador e o que mais se pode supor. Aqueles que mais se aproximaram, nominalmente, da questão

do valor, sem o mencionar, foram Michael O. Rabin e Dana S. Scott com um paper, em 1976, sobre os autômatos finitos e o “problema da decisão”(decision

problem), introduzindo o conceito de máquinas não-deterministas. É pouco

e não é propriamente próximo do tema. O assunto é encarado pelos autores da área antes sob o ângulo da lógica e da matemática do que na perspectiva

da axiologia ou filosofia do estudo dos valores: se tiverem razão e sucesso em

suas empreitadas, a abordagem do valor passará por radical transformação. O quadro geral a enfrentar é descrito por Dana S. Scot num outro paper: 169

“Há muito a lógica interessa-se pela questão de saber se as respostas a certas indagações são em princípio computáveis, dado que os resultados possíveis

colocam limites às possibilidades de formalização.” Antes, o valor era tema de

filosofia, agora é questão de formalização matemática. Os humanos ainda não

transitam confortavelmente por esse território, talvez terão de mudar de rota. A ausência de valores, ou a adoção de valores patentemente negativos, de

valores que obliteram ou destroem o bem comum, é uma questão sistêmica ou

168

Sem mencionar que a proposta de “injetar” valores no algoritmo está mal defendida; cf. Valor e algoritmo, acima.

Scott, Dana S., “Logic and programming languages”; Communications of the ACM. 20 (9): 634.

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circunstancial da internet? Em outras palavras, é um problema da Máquina ou

é um problema do ser humano? Uma terceira hipótese trata de verificar o que, sendo próprio e característica da internet, ou da inteligência artificial, favorece

a emergência dos valores humanos negativos. Em 14 de novembro de 2018, o New York Times publicou extensa matéria sobre a política de contrainformação

planejada e executada pelo Facebook desde que se tornou pública a existência

de atividade russa pró-Trump nas eleições de 2016, mencionando a indiferença do Facebook ao fenômeno e a paralela venda de dezenas de milhões de dados pessoais de usuários dessa “rede social” ao primeiro interessado com dinheiro

disponível — no caso, Cambridge Analytica. Em setembro de 2017, o chefe de

segurança do Facebook, Alex Stamos, informou a direção da empresa sobre

a infestação russa e pediu uma ação de barragem. A reação da sócia de Mark Zuckerberg e presidente executiva, Sheryl Sandberg, em vez de acatar as evi-

dências de que o poderio do Facebook estava sendo usado para fraudar eleições, promover campanhas virais de propaganda falsa e espalhar ódio ao redor do mundo, acusou o chefe de segurança de “deslealdade empresarial”. E ao

mesmo tempo que M. Zuckerberg, com seu semblante robótico, aceitava enfim depor perante o congresso americano e iniciar uma campanha de desculpas públicas em países escolhidos (sua divisa interna é “erre agora, peça desculpas

depois”), sua corporação armou uma operação que o jornalismo investigativo do The New York Times denominou de “delay, deny, deflect”, ou demorar (para

reconhecer o erro), denegar (os fatos) e desviar (a responsabilidade própria para

outrém). Facebook ignorou o relatório interno e as primeiras críticas públicas, procurou esconder os fatos e, de maneira infame, desviar as acusações rumo ao

financista liberal George Soros ao mesmo tempo que taxava de antissemitas as críticas contra a empresa. O lema do Facebook, “Nossa missão é tornar o mundo mais aberto e conectado”, apareceu sob a luz de uma farsa sinistra: D. Trump fazia postagens no Facebook e no Twitter, que Facebook comprou, descrevendo

os imigrantes muçulmanos como ameaça aos EUA e, de outro lado, os Rohingya tornavam-se alvo de uma campanha de extremo ódio por parte do governo de

Myanmar, para mencionar apenas um par de fatos. Por solicitação do próprio

M. Zuckerberg, Facebook chegou a considerar a possibilidade de fechar a conta de D. Trump no Twitter por violação das supostas normas da “rede social”; mas a conclusão foi que o encerramento da conta de D. Trump ou a simples remoção

de seus comentários odiosos seria uma “obstrução à liberdade de expressão”. Poderosos não sofrem restrições em seus supostos direitos de dizerem o que bem entenderem. D. Trump ganhou as eleições e a reação do Facebook foi…

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contratar um ex-assessor do novo procurador geral, o republicano radical Jeff Sessions, além de empresas lobistas ligadas a deputados e senadores

republicanos encarregados de acompanhar e eventualmente examinar as companhias de internet... É isso.

A narrativa da campanha de “delay, deny and deflect” promovida pela Face-

book é longa e The New York Times publica extensa análise a respeito em sua

edição de 14 de novembro de 2018. Em princípio, o comportamento do Facebook não se mostrou distinto daquele que marca outras grandes corporações que buscam única e exclusivamente seus próprios interesses econômicos, como os

grandes bancos envolvidos na crise de 2008 e antes dessa data e depois dela, os bancos com todos seus esquemas de lavagem de dinheiro e fraude ao fisco em

favor das grandes fortunas e de suas próprias fortunas; ou como as montadoras

automobilísticas colhidas numa ampla rede de fraude aos mecanismos contra a poluição. A novidade é que, comparadas a todas essas, Facebook mostrou-se

de um cinismo próprio das “fake news” que ajuda a propagar. Se todas as outras

igualmente procuraram de início demorar para admitir o problema e, depois, denegar as acusações, nenhuma, como a Facebook, as desviou para terceiros

supostamente movidos por interesses racistas nem, que se saiba, contratou

profissionais ligados ao congresso americano e ao presidente em exercício para controlar o processo de acusação contra ela tanto quanto possível e além do

possível e do legal (embora a definição do que é legal inclua, simplesmente, aquilo que não era legal antes, mas que se torna legal devido a um projeto

de lei aprovado pelos pares...) Acima disso tudo, está o fato de que nenhuma delas tinha ou tem por lema “tornar o mundo mais aberto...”

4. O IMPÉRIO DOS VALORES UTILITÁRIOS

O problema não diz respeito ao Facebook somente: ocorre apenas que agora

se revela o conteúdo de uma ampla investigação jornalística sobre o poderoso

negócio sustentado por 2.2 bilhões de usuários iniciado por M. Zuckerberg,

ele que já resistiu a mandar retirar da rede as opiniões dos negacionistas da Solução Final para o “problema judeu” porque também isso seria “atentar contra

a liberdade de expressão”. Google também está na berlinda, e tanto que seu diretor geral para a França, Sébastien Missofe, publicou há pouco um artigo no

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Le Monde170 para destacar o que apresenta como boas intenções da corporação. Começa por dizer que se encerrou a era em que a internet caracterizava-se

pela caça à atenção dos usuários — de resto, tanto quanto a publicidade que

agora se pode chamar de tradicional e, com ela, entre outros tantos, os partidos políticos quando não estão ocupados com tomar o poder à força ou subterra-

neamente por meio da corrupção ampla e irrestrita — e que agora relevantes são as intenções, passando-se assim de uma economia da atenção para uma economia da intenção. Afirma que a Google quer “dar aos usuários a escolha

e os meios para desconectar-se”. Apresenta essa iniciativa, sem dizê-lo, como

um valor central para a corporação quando na verdade, outra vez sem o dizer, trata-se de um valor operacional (ou utilitário) no universo da internet, a ser

colocado em contraste com os valores deontológicos propriamente. Também sem

dizê-lo, esse diretor geral da Google França não faz mais do que subscrever uma

decorrência fundamental do direito cultural que consiste em participar da vida cultural, como consta da Declaração os Direitos Humanos de 1948 e, depois, das

Declarações dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais de 1966 e 1976. Como

sempre no campo do Direito, um princípio, uma norma, um dispositivo legal

deve ser interpretado não apenas em si mesmo como no contexto dos princípios gerais do Direito; e aplicando-se esse procedimento hermenêutico básico a esse direito cultural, contrariamente ao que procuram fazer crer partidos políticos e

governos autoritários, todos têm o direito de participar da vida cultural (direito

afirmativo) e de não participar da vida cultural (direito de recusa), quer dizer, não participar da vida cultural de um grupo (inclusive o seu), de uma etnia (inclusive

da sua), de seu país, do que for. Nem a Declaração dos Diretos Humanos, nem as subsequentes dela derivadas explicitam esse direito de recusa — e no entanto

ele é fundamental. Esse é um valor central, um valor negativo central: não participar. Para realçar a importância desse direito basta recordar o tempo em

que crianças, alunas de escolas públicas, sem terem exata noção do que faziam e do que estava em jogo, eram obrigadas a desfilar nas ruas e avenidas durante

as comemorações pátrias que podiam incluir exibições de ginástica rítmicas em estádios esportivos tão a gosto de nazismos, fascismos e sovietismos.

Pois, para o diretor da Google os usuários deveriam ter o direito de desconec-

tar-se da rede — o que nada mais é que um velho direito básico, a partir do qual 170

Big data: “Chez Google, nous croyons qu’Internet est une économie de l’intention et non de l’attention”, 19 outubro 2018.

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a Google não pode pretender inventar a roda. E como a Google garantiria esse

direito, exatamente? Não fica nem remotamente claro — e a ideia (não chega

a ser nem uma proposta, nem um plano) assume os tons de uma conhecida

conclamação do tipo “os incomodados que se mudem”, “os que não querem ver,

desliguem seus aparatos”, “os que não o amam, que o deixem.” Não há como, por exemplo, um usuário da eletricidade, hoje, desconectar-se voluntariamente do serviço de fornecimento de energia. Pode fazê-lo, se quiser. Mas, como fica sua qualidade de vida, sua saúde, sua integração na sociedade? O problema

não é exatamente desconectar-se das “redes sociais” ou da internet, genericamente tratada: o problema consiste em não ser por elas abusado. Google França reconhece a avalancha de dados vindo de todos os lados e a necessidade de

organizá-los conforme critérios de utilidade e pertinência de modo a torná-los

inteligíveis para o usuário, função e missão que a Google agora quer arrogar-se. Esse objetivo implicaria, diz o diretor, em vez de saturar a tela com espaços

publicitários e permitir que ela seja tomada de assalto o tempo todo por pop-ups “intempestivos”, promover uma publicidade “vinculada à intenção de procura do internauta”. Essa seria, então, a “proposta de valor” que a Google proporia

aos anunciantes, esse seria um valor para a Google: “responder às intenções dos usuários que procuram algo no momento em que o procuram”. Quem um dia

já procurou o valor de uma passagem aérea para Manaus na internet, quando

pensava fazer essa viagem, sabe o que significa ser acossado por centenas de

ofertas posteriores de passagens aéreas para Manaus e Singapura e Abu Dabi e

Barcelona em todos os momentos em que abre uma página da Google. É verdade: como pode a pobre da Google saber se preciso dessa passagem área agora e

não amanhã e depois de amanhã e na próxima semana e sempre? Na dúvida, Google entulha minha tela de pop-ups impertinentes, intrusivos e indesejados. Aparentemente é o preço que tenho de pagar por usar a internet para aquilo de

que realmente preciso. Por que não o dizer abertamente? Talvez fosse possível aceitar a barganha, sem hipocrisias.

Esse seria um dos procedimentos que, segundo a Google França,171 defini-

riam o que chama de “bem-estar digital”, esse seria seu valor digital, a incluir

171

As demais empresas eTech seguiriam os mesmos princípios? Não está nada claro e é possível que países “não ocidentais” como os da América Latina, segundo Samuel Huttington — e que além de não serem ocidentais, mesmo estando no Ocidente geopolítico e participando de pelo menos alguns dos ditos “valores ocidentais”, não pertencem à raça branca mesmo quando muitos de seus habitantes são brancos e incluem-se numa

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a eliminação, da navegação online, “de todo conteúdo inútil”, medida que segundo esse diretor criaria um círculo virtuoso para todos: “os usuários seriam

beneficiados por uma navegação mais simples e os anunciantes ganhariam em visibilidade num contexto mais fluído”. Sobreviria, em outras palavras, a felicidade representada pelo jogo do sempre mencionado “win-win” (todos ganham). Mas, quem ganha, de fato? O usuário ou o anunciante, i.e., Google? Além disso, a Google diz ter encomendado um estudo a dois pesquisadores de seu quadro de funcionários que chegaram à conclusão, supostamente inédita

e reveladora, de que “as pessoas têm o sentimento da obrigação social de estarem o tempo todo conectadas […], de ansiedade por não consultarem seus telefones regularmente, de perder informação”, o que as levaria a permanecer

conectadas, “fenômeno que poderá levar a uma redução da produtividade e

uma verdadeira dependência da conexão”. Por vezes a motivação essencial de uma argumentação escapa à malha fina do superego empresarial e vem à tona em primeiro lugar: conectividade excessiva reduz a produtividade e isso não é

bom — para os anunciantes, portanto para a Google... Seguem-se mais algumas

ideias feitas como “Nossa convicção é que a tecnologia deve estar a serviço das mulheres e dos homens”172 e o anúncio de que a Google disponibilizará

recursos para a pessoa desconectar-se, saber quantas notificações recebe (o

que faz com que saiba quantas mensagens não lidas a esperam ainda, não é mesmo?) ou quantos minutos por dia permanece conectada ou ter acesso

a um dispositivo que impede o recebimento de notificações toda vez que o

telefone é colocado sobre a mesa com a tela voltada para baixo — apenas, naturalmente, para permitir que todas as notificações entrem na caixa assim que o telefone é erguido...

Ceder a teorias de um grande complô contra a humanidade é tentação

fácil e recorrente, assim como é simplista pretender que todos são crianças, menores de idade e incapazes que não conseguem controlar seus baixos

instintos e necessitam ser constantemente orientados por um grande irmão

benevolente que dosa a quantidade de pop-ups em suas telas — o que, de resto, vaga categoria de “sulamericanos” — de fato não sejam merecedores dessa norma da Google França, quando se observa a poluição publicitária a buscar nossa atenção e que toma conta das páginas aqui hospedadas por essa corporação.

172

Aldous Huxley disse o mesmo e como ele, tantos. A questão é saber se os que empregam essa formula padrão têm alguma ideia do que estão dizendo.

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previsivelmente fará subir o preço do espaço publicitário disponível. Mas negar a existência de um problema sistêmico próprio da internet173 é demonstrar

séria incapacidade de análise. Assim como o capitalismo e o comunismo (ou melhor, o sovietismo) são formatações com problemas sistêmicos, a cultura computacional tal como se desenha é uma formatação com problemas que decorrem de sua própria natureza, entre eles aquele relacionado com o número

de usuários a ela conectados, por ela abrangidos e afetados. A comunicação de massa, e a própria ideia de massa surgida no século 20, foi apenas em

ensaio para a massa e a cultura de massa dos tempos computacionais ou digitais ou como se prefira denominá-los. Facebook tem hoje ao redor de

2.2 bilhões de usuários para um planeta com sete bilhões de pessoas, um planeta que em maio de 2019 verá metade de seus habitantes conectados à

internet.174 Essa condição de massa exponencializada marca-se de imediato por dois movimentos intimamente conectados: o anonimato da fonte175 e a

desumanização do destinatário. O primeiro parece paradoxal ou contrário aos fatos, uma vez que as mensagens no Twitter e as páginas do Facebook

são assinadas (mesmo se os nomes sejam, não raro, falsos). Mas uma coisa é manifestar uma opinião ou proferir um insulto numa página da internet ou

numa mensagem do Twitter ou do WhatsApp e outra, bem diversa, é fazê-lo cara a cara. O meio eletrônico de acesso instantâneo tem o efeito curioso, mas

não mágico, de despersonalizar a autoria, o alvo do comentário da informação e a própria mensagem. O impessoal predomina, por certo não no sentido nobre que Simone Weil atribuía ao conceito ao colocá-lo como a transcendência da

pessoa, do indivíduo. Pelo contrário, trata-se do impessoal de quem comete, mascaradamente, um ato danoso. O sujeito e o destinatário, tanto quanto a

mensagem ela mesma, desmaterializam-se. O meio eletrônico cria um escudo, um campo de força ao redor do usuário da rede e tudo lhe permite, a ponto que

esse usuário demonstra-se fortemente surpreendido quando, ao ultrapassar

os limites da legalidade ou da moralidade evidentes, tem sua identidade e sua localização descobertas pelas agências de segurança e controle: a impunidade

Termo novamente aqui utilizado como sinônimo genérico e impróprio de inteligência artificial, algoritmo etc; melhor seria dizer “o digital”, palavra que no entanto será preciso recolher quando o quântico instalar-se de vez; o francês numérique é, sem dúvida, mais apropriado.

A respeito destes números todos, cf. nota 56, pág. 145.

173

174

Cf. Anonimia.

175

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parecia certa. Essa mensagem desmaterializada tem seus efeitos bem concre-

tos: uma eleição pode ser vencida com base em fake news, uma manifestação da qual resulte a queda de um governo é uma realidade bem tangível. O

universo da internet revela-se bizarro, uma espécie de Mundo Bizarro (onde tudo acontece com sinal trocado) ou de Zona Fantasma como nas histórias de

Super-homem, com a diferença de que, na história em quadrinhos, os exilados para a Zona Fantasma não têm como afetar os humanos enquanto os novos fantasmas da internet, estes sim, afetam os viventes, eles mesmos submetidos

a um efeito de manada sem precedentes na história. Na eCultura o princípio da imitação,176 um princípio tanto da harmonia e do “progresso” social quanto da destruição de ambos, encontra o terreno mais fértil para desdobrar-se com

uma amplitude e velocidade inéditas; e essa eCultura animada pela imitação que Facebook, Instagram e Twitter levam a uma potencia exponencial, não

conhece mais nenhum interdito, nada mais é tabu, nem para o usuário comum, nem para o presidente da república, nem para a eTech que lhes abrem a porta: o interdito sumiu — e o que parecia uma conquista para as gerações libertárias

do século 20 pode revelar-se uma perdição. Natura non facit saltum, a natureza não dá saltos, anotou Darwin em A origem das espécies e Leibniz em sua Lei da

continuidade (o que ocorre na esfera do finito, também ocorre na do infinito). Mas parece que a moral e a ética, tanto quanto os interditos, todos eles não tão naturais assim, dão seus saltos — quando impulsionados por uma tecnologia

como a da eCultura. O que era interdito há um minuto deixa de ser no instante seguinte, sem aviso e sem etapas intermediárias. A variação da velocidade dessa mudança, na variação do tempo em que ocorre, é exponencialmente maior do que a equivalente à das instituições supostamente firmadas.

Como se definem os “conteúdos relevantes” supostamente buscados

pela Google França e como se identifica aquilo que não é fake news, quem

pode defini-los, como retirar a erva daninha do terreno digital sem criar a

Grande Censura Final, sem tolher a liberdade de expressão? É ou não possível defender o direito a negar o holocausto em nome da liberdade de expressão? M. Zuckerberg não deveria enfrentar problemas para mandar retirar do Facebook uma postagem negando o holocausto, bastando informar-se de que

na Alemanha, e em dezesseis outros países europeus além de Israel, negar o

176

Cf. René Girard em, por exemplo, Des choses cachées depuis la foundation du monde; Paris, Grasset.

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holocausto é um crime previsto em lei, assim como é crime, na Alemanha, usar a suástica e fazer a saudação nazista. Em outras situações e com relação

a outros temas, sempre será possível alegar que se está violando o direito de expressão. Quem decide? Os tribunais de justiça regulares, que já não

conseguem apreciar os casos tradicionais relacionados a crimes contra a

vida, contra a economia, contra o planeta?177 O The New York Times diz que

com frequência chama a atenção dos dirigentes do Facebook para fake news detectadas nesse site e que Facebook, em seguida (a questão é exatamente esse “em seguida”, quando o mal já está feito), retira-as da rede; mas diz

também que a Facebook nada faz contra as fake news que o jornal não lhe aponta. O periódico afirma também, de outro lado, que os jornalistas “não

estão no negócio” de chamar a atenção das corporações tech para as fake news

encontradas em seus sites. Há alguns meses, o CEO do Twitter, Jack Dorsey, como mencionado acima, de início não aceitou fechar a conta do conhecido propagador americano de fake news, Alex Jones, da Alt-Right americana (a direita radical), porque, disse o executivo, se é fato que esse tipo de mensagem faz sensacionalismo em torno de acontecimentos contestáveis e cria boatos

com efeitos perversos, por outro lado jornalistas críticos podem refutar suas informações e com isso dar ao público uma ocasião para formar seus próprios

conceitos. Num segundo momento, a conta desse “influenciador” acabou

fechada no Twitter — e o interessado de imediato abriu outra em outro serviço. Seja ou não tarefa da imprensa responsável contestar informações intencionalmente enganosas postadas nas “redes sociais” (essa obrigação é no entanto clara quando o falsário for presidente de um país), a questão não

consiste em corrigir um boato ou mentira a cada vez que ele se manifesta,

a questão tem de ser enfrentada de modo sistêmico e preventivamente. O que não é fácil e nem sempre factível. A tarefa é hercúlea mesmo com

o recurso a “moderadores”, ou “analistas de mensagem discutíveis”, outra

177

Google emprega milhares de “moderadores”, outra palavra para censores, residentes em zonas periféricas do mundo — portanto recebendo apenas uma fração do que se paga nos países desenvolvidos — para retirar da rede as postagens “indevidas”. Como pode um “moderador”asiático saber o que é “indevido” num país ocidental, é um grande mistério. Mas para que seu procedimento não configure uma simples e pura censura, agora a Google anuncia que instalará “instâncias de recurso” às quais aqueles com postagens retiradas poderão recorrer e ter seus direitos de expressão talvez reconquistados. A um abuso inicial acrescenta-se agora outro: justiça privada, à margem do sistema jurídico legal dos países. As tech corporations já são um mundo à parte, com leis próprias.

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expressão para designar a censura na internet, como faz a Google: mesmo se uma plataforma conseguir limitar o joio em 99% dos casos, o 1% restante

que passar pela malha significa milhões e milhões de postagens com outro igual número de efeitos corrosivos.

Os EUA procuram agora redigir leis que protejam a privacidade dos usuá-

rios — algo necessário porém longe de atacar o problema como um todo — e

o mesmo faz a União Europeia, procurando avançar no terreno das fake news, direção em que a França procura antecipar-se, mas sem indícios de que possa ter sucesso. Há lacunas enormes na legislação — a internet foi criada em

1989 e a constituição da ampla maioria dos países é anterior a essa data; a do Brasil foi promulgada em 1988 — e é provável que os tempos de um consenso quanto ao que é verdadeiro ou falso, apropriado ou impertinente, digno ou indigno, pertençam agora ao domínio de um momento idílico que pode nunca

ter existido (mesmo porque, a informação dominante no passado criava-se e circulava no interior de uma camada reduzida da sociedade, a dos “formadores

de opinião” pertencentes a grupos pequenos e em íntimo contato). A caixa de Pandora, assim como a arca perdida do filme de Steven Spielberg, foi aberta

e o mal nela estocado durante séculos, espalha-se agora livre por todos os lados e tudo destrói.

Às margens dessas enormes lacunas e crateras do valor, a literatura e o

cinema têm-se ocupado do tema como podem fazê-lo, a reboque do imaginário humano acumulado. É alguma coisa mas é pouco, sobretudo por não ser talvez esse viés de todo apropriado ao novo meio em que esses valores deveriam

atuar. Todo produto traz as marcas do sistema de produção que o gerou, anotou

Karl Marx. O sistema de produção que gerou os valores vigentes até o século 20 está com sua validade esgotada, tanto quanto seus produtos. Congestionamentos e entupimentos de todos os tipos nos canais de mediação e construção

do mundo — ou de efeitos de mundo — ocorrem agora inopinadamente, sem

tempo hábil para reação. A hora pode ter passado, o próximo minuto pode ser o último disponível.

É aguda a percepção de que as alternativas esgotam-se — e o tempo

também —, o que levou Tim Berers-Lee, inventor em 1989 da World Wide Web, esse cotidiano www, a propor em novembro de 2018 uma Magna Carta para a

Web durante uma certa Cúpula da Web em Lisboa. Os motivos são evidentes,

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além de numerosos: os efeitos destrutivos das redes ditas sociais, que são tudo menos sociais (sem mencionar o problema lógico implicado nessa

denominação: qual rede humana não é social, o que se pretende dizer por

“social”? social significa sempre “o bem”? rede social quer dizer “rede do bem”,

outra expressão canhestra, e, vê-se agora, risível?). Facebook, WhatsApp, Twitter e os demais espalham abusos, discriminação, ódio, manipulação

política em intensidade, velocidade e abrangência inéditas. De início, a internet, passando por cima das fronteiras, despejando-se desde o espaço

cósmico livre (não tão livre assim, os satélites têm donos...) parecia a utopia final: ditaduras não mais teriam como censurar livros, revistas e jornais da oposição interna e externa, informações circulariam livremente, o acúmulo

de dados só poderia ter resultados benéficos: + informação significaria por si só + desenvolvimento, + democracia. Em seguida, porém, e era previsível, as

ditaduras desenvolveram filtros e “fire walls” e a opressão continuou como antes ou mais forte: câmeras de circuito fechado acopladas a processos de

machine learning controlam tudo e mais um pouco conforme o filtro desejado

e, mesmo, além do filtro desejado (a China informa já poder identificar pessoas por seus padrões de movimentação corporal filmados por câmeras de

vigilância — mesmo que o rosto dessas pessoas não tenha sido observado. E as próprias pessoas transformaram-se em Cérberos entusiastas da vigilância

e da distorção. Como ressaltado acima, por volta de maio de 2019 metade

da população do mundo, algo ao redor de quatro bilhões de pessoas, estará

conectada à internet e tudo aquilo que hoje nela se descreve como negativo, é previsível, crescerá exponencialmente. Não há, porém, previsão de uma

autocorreção positiva do sistema, razão pela qual Berners-Lee propõe essa

Magna Carta da Web como um novo Contrato Social para a Internet — sem que se saiba bem o motivo desse “novo” anteposto ao termo contrato já que na verdade a Internet nunca teve contrato algum. A ideia é que os governos

assegurem a todos seus cidadãos — e aqui reentram em cena as litanias de sempre — acesso ilimitado e barato à internet, “o tempo todo”, e a privaci-

dade essencial para que se sintam “livres, seguros e sem medo”.178 Qualquer corporação que explore a mina de ouro da internet, feita de seus assinantes

178

Usuários do Facebook podem ter sua localização detectada e passada para os anunciantes nessa plataforma mesmo quando utilizem todos os supostos bloqueios permitidos pelo site: Facebook sempre sabe onde está seu usuário e pode franquear essa informação a quem quiser.

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que não são mais do que produtos a vender ao primeiro interessado, assinaria embaixo desse compromisso, rápida e independentemente dos valores por

ela alardeados. Cartas bem intencionadas como essa, dirigidas aos governos, corporações e aos próprios usuários da internet, convocados a postar apenas conteúdos “ricos e relevantes”, terão o valor que possam ter.

Novamente, porém, o problema reduz-se às coordenadas de sempre: quais

são os valores requeridos por “conteúdos ricos e relevantes”? Quem os define, quem os implanta, quem por eles zela? Como vem insistindo sempre em

sua coluna no New York Times, o economista e prêmio Nobel Paul Krugman

demonstra repetidamente que “fake news”, nos EUA, é toda informação que

não beneficia (sobretudo do ponto de vista econômico, mas sob as demais perspectivas também) a D. Trump, o popularizador da expressão — e, por

extensão, “fake news” é toda informação que não beneficia algum poderoso, toda informação que não me beneficia. Há poucas esperanças de que os diferentes governos da Terra ajam de modo a contrariar seu comportamento atual. O mesmo em relação às corporações: Google é descrita como uma das

primeiras signatárias dessa Magna Carta e no entanto está desenvolvendo, contra a manifestação expressa de vários de seus funcionários, uma versão

censurada de seu motor de busca de modo a satisfazer os interesses do governo chinês, com o que espera poder obter autorização para operar no novo e poderosamente promissor mercado mundial. Google não responde a

pedidos de informação sobre a contradição patente entre sua assinatura na

Magna Carta e seus projetos imediatos de interesseira autocensura. Facebook é outra que deve alegremente assinar a Carta, ela que tem problemas de

dificilíssima superação — o escândalo da Cambridge Analytica o demonstra — para identificar os valores que lhe deveriam orientar o procedimento (ou que sabe muito bem quais são esses valores e os ignora olimpicamente com a impávida cara robótica de seu fundador).

A dificuldade para identificar e seguir esse valor ou valores não é nada

pequena, em particular por uma questão ou perspectiva nova que se apresenta para a eCultura: é possível que o aprendizado do valor pela experiência não seja mais suficiente (pode ser mesmo que seja inútil buscá-lo numa experiência

que terá se transformado por completo em algo sem sentido) e que se tornou indispensável encontrá-lo no conhecimento, em outras palavras, no universo

da reflexão filosófica ou lógica. A missão não será menos arriscada e incerta.

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Um princípio que rege o mundo, na visão do monge, teólogo e filósofo alemão Onorio Augustodunense — conhecido como Onorio d’Autun ou Onorio de

Ratisbona (1080-1154) —, mencionado na nota 151 relativa ao item “O valor e o algoritmo”, é sugestivo e pode aplicar-se à condição humana diante da eCultura

mesmo se for necessário atualizar-lhe os termos. Onorio de Ratisbona opôs, como visto, a experiência de algo ao conhecimento indireto ou conceitual de algo, no caso um valor como o bem. Primeiro praticado (de resto por não haver alternativa no paraíso até aquele momento), o bem passou a ser objeto apenas

do conhecimento, da scientia, da investigação, da reflexão ordenada resultante

de uma construção abstrata e lógica.179 Essa não é uma operação fácil, assim

como é enorme a distância entre um modo e outro de apreensão e introjeção de um princípio ou norma. É verdade que a oposição cortante entre experiência

e conhecimento, como decorre das palavras de Onorio, não é pacífica. O que

emerge da experiência pode não alcançar a dimensão do conhecimento sólido e, com isso, expandir-se e consolidar-se graças à operação de um intelecto que procede por processos de abstração, categorização e análise lógicas; em outras

palavras, o que vem pela experiência imediata pode permanecer apenas na

esfera da experiência imediata. Mas não há como o “conhecimento” de algo,

em particular de algo como o bem e o mal — i.e., o conhecimento de um valor, e de um valor que se assenta no sentimento e na emoção — erigir-se apenas a

partir e dentro da esfera da scientia, a terceira operação da consciência que se segue à experiência (segunda) e, antes dela, ao sentimento, emoção e intuição

própria da primeira operação (e aqui me refiro à firstness, à secondness e à

thirdness de Ch. S. Peirce). O silogismo mais simples do tipo Todo homem é

mortal, Sócrates é homem, logo Sócrates é mortal, rigoroso como é enquanto

scientia, pouco ou nada significa se não houver uma experiência tanto do que é ser um homem quanto do que significa a morte, algo que envolve um segundo

(o caso concreto de um homem e sua morte) e um primeiro (o sentimento e a

sensação que envolve essa morte). É aceitável, porém, que, estando as coisas

como estão — e embora a referência a um pecado, original ou não, faça agora pouco ou nenhum sentido —, diante de tantos absurdos e ignomínias como

a manutenção na miséria, na opressão e na negação de direitos de enormes

porções da humanidade, é aceitável, repetindo, e de fato possível, que o bem somente seja conhecível pela scientia e não mais pela experiência, que pouco

179

Giorgio Agamben, Infância e historia. Buenos Aires, Adriana Hidalgo Editora, 6a edição aumentada, 2015.

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se pratica. O que não facilita as coisas, dado, paradoxalmente, o acesso cada vez

mais restringido à esfera da scientia e à carência de práticas do bem capazes de servir de exemplo e mola de imitação.

De todo modo, é melhor contar com um Pacto de uso da internet, uma

espécie de Convenção dos Direitos da Internet, do que nenhum. A Declaração

dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais da ONU, em suas versões de 1966 e 1976 derivadas da Declaração dos Direitos Humanos de 1948, não veio

dotada dos instrumentos capazes de dar força a seus mandamentos, de contar com o apoio de um poder de polícia — significando que sua eficácia depende

apenas da vontade de seus signatários. Com a Magna Carta da Internet não será diferente. No entanto, por mais que a força desses Pactos seja apenas simbólica e que não passem de outra manifestação de wishful thinking, a

difusão e a repetição de seus princípios pode ter algum efeito corretivo ao

longo do tempo — se a superinteligência artificial geral não chegar antes e tornar tudo isso a grande distopia final antecipada pela ficção (que há algum tempo desistiu de imaginar utopias positivas...) ◊

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O SUJEITO DA eCULTURA

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Estas figuras da eCultura instauram implicitamente um sujeito que até

aqui permaneceu oculto, ou do lado de fora. E se as figuras de sentido indicadas não o fazem, a estrutura ausente dessa constelação, o valor, necessária e automaticamente o colocam em cena. Onde pode esse sujeito ser localizado, quem

é esse sujeito, existe ainda algum sujeito na eCultura? A resposta imediata, automática, é que esse sujeito, o sujeito final no domínio da superinteligência

artificial geral, seria essa própria super-IA cuja existência se esboça para um futuro próximo e, ao mesmo tempo, distinto do futuro do homem. Vejamos até onde esse automatismo se mantém e justifica.

A noção de sujeito está vinculada à de experiência, como no caso de Onorio

de Ratisbona citado acima. A moldura dessa questão, contudo, foi redesenhada

na contemporaneidade de modo a colocar em dúvida a possibilidade mesma

de ocorrência da experiência, de uma experiência, quer experiência do mal, do bem ou qualquer outra. Walter Benjamin foi um dos principais pensadores a contestar a realidade da experiência para o homem moderno e o fez com tamanha força que um outro autor como Giorgio Agamben inicia seu Infanzia

e storia com uma asserção que não deixa espaço para contestação: “Na atuali-

dade, todo discurso sobre a experiência deve partir da constatação de que ela

já não é realizável”. E continua: “Pois assim como foi privado de sua biografia, o homem contemporâneo foi expropriado de sua experiência.”

Nem sempre fica claro, nesses discursos, de qual experiência se fala: 1) se

da experiência prática e concreta (a experimentação) que foi, durante um

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tempo a partir do século 18, necessária à ciência como modo de livrar-se da autoridade baseada apenas na fé e de libertar-se da Igreja, que se arvorava como sua única intérprete — antes que a experiência fosse ela mesma nova-

mente retirada de cena pela figura do puro cálculo matemático a apontar

como algo deveria ser independentemente de qualquer experiência observável pelos sentidos que nunca permitiriam, naquele momento, demonstrar

a comprovação da teoria, como ocorreu com Einstein e seus cálculos sobre a

teoria da relatividade; ou se 2) da experiência como a entendeu Benjamin, uma experiência materializada, por exemplo, nas últimas palavras de um homem que morre (como se lê em seu “Experiência e Pobreza”)180 ou no soar

dos sinos de uma igreja cujo significado “todos” conheciam ou nas histórias contadas entre os membros de uma família ou grupo social, experiências

que Benjamin entendia anuladas pelas catástrofes da I Guerra Mundial “da qual as pessoas voltavam emudecidas... não mais ricas porém mais pobres

em experiências compartilháveis” e que tiveram suas anteriores experiências vitais “desmentidas pela guerra de trincheiras”, suas experiências econômi-

cas “destruídas pela inflação”, suas experiências corporais “destruídas pela

fome”, suas experiências morais (seus valores e suas expectativas, eu diria)

destruídas pelo ditador de plantão — como se observa agora no cenário dos EUA sob D. Trump.

A experiência no sentido de experimentação, de teste repetível e com-

provável que foi o colete salva-vidas da ciência frente à religião e ao Estado, essa de fato saiu de cena ou, para dizê-lo de modo mais apropriado, tornou-se

mera figurante da ciência a ser chamada para o palco apenas num segundo momento para ratificar a exatidão do cálculo inicial teórico e abstrato, como ocorreu com a comprovação, setenta anos depois de anunciado, de que o tempo

mede-se de modo diferente conforme a medição se fizer no espaço ou na superfície da Terra ou, para dizê-lo de modo ainda mais diverso, que o tempo existe de um modo no espaço, em alta velocidade, e de outro na velocidade de quem fica na Terra.

A experiência pessoal, subjetiva e intersubjetiva, a experiência existencial

a que Benjamin refere-se, configura questão mais complexa. A tecnologia

180

In Walter Benjamin: Selected Writings, Volume 2, 1927 – 1934, Cambridge, Harvard University Press.

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das primeiras décadas do século 20 destruiu a experiência cara a Benjamin, experiência ancorada no corpo humano dos que ficavam

“parados sob um céu numa paisagem na qual apenas as nuvens seguiam sendo iguais e em cujo centro, num campo de forças de correntes destrutivas e explosões, estava o frágil corpo humano”. A partir desse instante, nenhuma experiência teria sido permitida ao ser

humano. A TV, com seus programas de auditório, seus talk shows, seus filmes assistidos não mais em comum ao lado de estranhos na sala pública de cinema (estranhos pertencentes porém ao grupo humano), mas, agora, apenas ao

lado dos membros da própria família ou sozinho, fechado num quarto e sem ninguém ao lado, não mais permite a experiência tal como antes vivida, essa

experiência que era uma experiência-comunicação, uma experiência-contato, uma experiência pele-a-pele. À época de Benjamin não se fazia a constatação

de que o meio é a mensagem, formulação referencial de Marshall MacLuhan, e, portanto, não era talvez possível constatar que a experiência não estava sendo propriamente destruída mas, sim, alterada. Certamente a experiência presencial da comunidade e do sentido comum sumia de cena — e em seu

lugar entrava a experiência da mediação tecnológica intensa, uma outra

espécie de experiência. E contrariamente à ideia, de Giorgio Agamben por exemplo, de que hoje (ou depois da introdução dos novos meios tecnológicos do rádio e da televisão) ninguém mais dispõe de autoridade suficiente para

validar uma experiência, a própria TV ou o rádio ou o cinema ou a “rede social” da internet constitui e instala ela mesma, ao mesmo tempo que a veicula, a

autoridade validadora, que é ela mesma, esse mesmo canal (veja-se o caso da Fox News nos EUA, em relação a D. Trump). Se a experiência anterior era uma experiência vivida como efeito de mundo, agora a experiência é sentida como

efeito de discurso. É assim e apenas assim que se torna possível descrever a “experiência” de quem vai ao Louvre somente, deliberadamente, para tirar uma

selfie diante da Mona Lisa numa prática nada diferente daquela das jovens

chinesas que hoje vão a museus de arte contemporânea na China para tirar

fotos “posadas” de si mesma diante do cenário da arte. A experiência é essa. Vigora hoje a ideia de que o mundo é um “inexperimentável”, com as pessoas

incapazes de encontrar nem a experiência, nem uma autoridade que as oriente em substituição à experiência. Isso significa dizer, literalmente, que a maioria

das pessoas é incapaz de vivenciar o mundo e, em suma, sua própria vida —

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salvo, por certo, aquelas suficientemente munidas de uma teoria para poder denunciar a “inexperiência” dos demais... O grupo integrado por Benjamin

e Adorno, por mais que um e outro sejam autores de textos fundamentais, revelou-se como desejoso de apresentar-se como sendo, ele mesmo e cada

um de seus membros, como a autoridade validadora — e uma autoridade situada num plano nitidamente mais elevado do que aquele onde residiam seus objetos de análise: os outros. Essa tendência é ainda mais patente em

Adorno, com sua crítica feroz contra o jazz, descabida já à época (uma crítica derivada das teorias de Benjamin sobre a era da reprodutibilidade da obra

de arte) e que era ao mesmo tempo uma rejeição frontal da tecnologia como um todo.

Se o desaparecimento das máximas, dos provérbios e ditados como autori-

dade validadora de alguma experiência, e se a própria experiência foi abolida, o

ser humano deveria ter desaparecido. E talvez foi o que de fato aconteceu. Pelo menos conceitualmente, pelo menos em relação ao anterior entendimento

do que significa ser humano. Com o sumiço da experiência, sumiu também o

sujeito, pelo menos o sujeito como indivíduo, um sujeito arduamente elaborado ao longo dos dois séculos anteriores, um sujeito construído contra tudo e contra todos; e em seu lugar surgiu a massa, o povo, esse das Folk a que os alemães não mais conseguiam referir-se depois da II Guerra Mundial, esse

das Folk que quiseram banir mas que não conseguiram eliminar nem do

frontão do Bundestag, nem do discurso neonazista atual. Agamben concede: não é que agora inexistam experiências: elas “apenas” acontecem “fora do homem”, assim como ocorre fora do homem (ou da mulher) a experiência

gravada pela selfie diante de Mona Lisa. Antes, e Agamben não tem qualquer responsabilidade por esta formulação, a experiência acontecia na atualidade da vida, na actuality da vida; agora ela só se oferece como uma realidade que não chega a rebater-se no plano da existência concreta.

O indivíduo que tinha experiências atuais era um sujeito em cujo interior

emergia um ego, um ser ele mesmo, um eu mesmo longamente reprimido

pela autoridade da igreja e, em seguida, pela autoridade da igreja-estado e que experimenta um breve período de liberdade entre o fim do século 18 e o

final do século seguinte antes que as propostas totalitárias nazistas, fascistas e soviéticas buscassem novamente silenciá-lo e manietá-lo. Esse sujeito enfim dotado de um eu próprio é o sujeito do romance que junto com ele emerge à

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superfície da cultura, um sujeito — não só o autor do romance como também o “herói” desse romance — que é um indivíduo em seu isolamento como ser

humano, um indivíduo que não mais pode falar de seus feitos exemplares destinados a inaugurar e fundar um comportamento humano, como na grande épica do passado, que não é mais um São Sebastião que ao voltar resgatará uma

nação, mas, sim, alguém que não tem nenhum conselho a dar a ninguém, que

sobretudo não tem lição alguma a transmitir seja a quem for porque carece, ele mesmo, de lições e conselhos que as “grandes narrativas” — primeiro da

mitologia, depois da religião, em seguida do Estado e, enfim, da massa por meio

do megafone ideológico do partido — não mais lhe podem dar. Felizmente. O herói do romance, anotou Jorge Luis Borges, é o derrotado, não mais o conquistador que foi Ulisses ou Alexandre. Não há mais, não havia mais, o que conquistar, o que vencer — além de conquistar a si mesmo, além de derrotar-se

a si no suicídio, por exemplo. Na épica, a ideia do suicídio não tem lugar, o herói épico pode ser derrotado, mas não se derrota a si mesmo. O herói épico pode ser derrotado, suicidar-se jamais; pelo contrário, suicídio, romantismo

e consciência de si, na aurora do sujeito moderno, são sinônimos ou figuras

interdependentes. A experiência sumiu da cena desse teatro do absurdo e

em seu lugar sobram apenas as quinquilharias, essa montanha de trastes insignificantes, não-significantes, feitos das notícias do telejornal (sempre

pela metade quando não inteiramente fakes), das banalidades insuportáveis

(e que devem ser suportadas) da viagem de um metrô sempre superlotado, da “aventura” num cruzeiro marítimo que é um grande edifício autocentrado e concentracionário. Sob esse aspecto, Agamben pode dizer com razão que o

rechaço da experiência, dessa experiência, o ignorar dessa experiência, é um ato de legítima defesa do homem contemporâneo. O romance moderno abre

espaço para um homem rodeado de insignificâncias cotidianas, uma sequência de banalidades que povoam seu dia banal assim como é banal o dia do Leopold

Bloom com que James Joyce constrói seu Ulisses — ele mesmo, Leopold Bloom, o Ulisses da contemporaneidade. E ao dar por título de seu romance o nome do herói Ulisses, James Joyce já fazia — entre 1918 e 1920 quando seu texto era publicado em capítulos na The Little Review antes de o ser em livro em

1922 — a critica completa da modernidade, da experiência e do sujeito, muito

antes da sociologia de Benjamin e de Adorno, e de modo mais profundo do que

Marx, pois nisso consiste exatamente o poder da literatura e da arte: antecipar, prever, aprofundar. E não apenas isso: mais do que a ciência e mais do que a

filosofia e a sociologia, com suas visões “objetivas” que limitam e distorcem a

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representação da vida e do mundo, é a arte que revela a essência da existência. O mundo virou um amontoado in-significante de quinquilharias — mas a

narrativa que dele faz o escritor, o artista é, pelo contrário, intensamente significante. Densa, tremendamente significativa. E com ela o mundo volta a reencantar-se, mesmo se lhe faltarem razões realistas para isso.

O mundo pode não mais suportar um sujeito porque a experiência sumiu.

Mas certamente existe um sujeito da literatura e da arte e da música e é

esse sujeito que justifica o mundo. Não há motivo para assombrar-se com a proposição de dois sujeitos distintos — ou de quanto sujeitos existirem. Já em Aristóteles havia um sujeito da experiência, que era o sentido comum, e um sujeito da ciência, o noûs ou intelecto agente, ou inteligência, que compreende

e que estava separado da experiência, um sujeito “impassível e divino”. Aris-

tóteles foi, claro, apenas outro degrau na escala do conhecimento humano: ficou evidente mais tarde que a ciência (o domínio do abstrato, da razão mais

pura, do símbolo) não tem como estar separada da experiência existencial

direta (campo do índice, da verificação empírica), nem da experiência íntima interior que não pode ser renderizada pelas máquinas da realidade virtual

(dimensão do ícone, da intuição, do sentimento, da sensação). Aristóteles pode

tornar-se outra vez interessante quando lido na perspectiva de que o sujeito por ele analisado não é um sujeito no sentido moderno do termo, não é um

eu mesmo individualizado e identificado com um ego, porém um sujeito em seu sentido etimológico, um sub-jectum, aquilo e aquele que é colocado diante

de um objeto no qual ele mesmo se transforma e que se propõe como objeto

de conhecimento desse intelecto agente que não é outra coisa senão o Inter-

pretante Final de Peirce. Trata-se, aqui, do Interpretante Final e não de seus dois outros tipos, o Dinâmico e o Imediato. O Interpretante Dinâmico é toda

e qualquer interpretação que uma mente qualquer faz de um signo qualquer; em jogo não estão questões do tipo apropriado ou impróprio, correto ou errado:

é a interpretação que ocorre; num sentido frouxo, é o significado desse signo para uma dada pessoa. O Interpretante Imediato consiste na qualidade da

impressão que um signo pode vir a produzir, aquilo para o que ele foi criado, não a reação concreta e real que possa produzir; é o sentido do signo, aquilo que o signo tem por missão veicular para que a comunicação se processe: o

signo “cão” remete à ideia de um animal mamífero, quatro patas, doméstico, sem cor e tamanho específico (sentido dicionarial do termo cão, não o cão concreto que me mordeu na infância e que surge na forma de Interpretante

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Dinâmico do signo “cão” que leio nesta página). Já o Interpretante Final não consiste no modo em que a mente qualquer de fato age e reage diante de um

signo, mas no modo como toda e qualquer mente afinal e ao final reagirá: é a

significação do signo, a soma final de todos os sentidos e significados possíveis

de um signo e de uma composição de signos — como Homem, Mundo, Vida, Eternidade. Esse conceito de Interpretante Final deve ser retido, pois é dele que se fala no tópico dedicado à Completude, é ele que se alcançaria se as teorias

cosmológicas de Tipler e David Deutsch puderem fazer algum sentido concreto além do poder heurístico que obviamente carregam para o entendimento da cultura humana.

Relacionada com esse tópico do Interpretante Final aparece uma passagem

de Agamben, em Infanzia e storia, que apresenta a experiência como sendo (como tendo por objetivo e razão de ser) uma aproximação da morte, como um processo de amadurecimento do homem mediante uma antecipação, uma

antevisão da morte como limite extremo e último da experiência. Possível dizer também: da morte como limite extremo e último do conhecimento. E

neste ponto o círculo da Completude e do Ponto Ômega fecha-se, pois é nessa

experiência última e não ultrapassável que o homem poderia apoderar-se

do conhecimento de tudo aquilo que pode ser conhecido... Agamben não é propriamente um teólogo, mas sua formação não o deve ter dispensado do conhecimento da obra de Teilhard de Chardin e seu conceito do Ponto Ômega como o ápice do conhecimento. Claro que se a morte for transformada em

opção, apenas, como exigiram os bioscomologistas-imortalistas pré-soviéticos

e como admitem Tipler e Deutsch ao lado de Ray Kurzweil, incansável defensor da “transcendência da biologia” por parte do homem (leia-se: defensor da fusão entre homem e máquina, a superação do homem pela máquina), será preciso

rever outra vez a ideia de experiência como ela nunca foi até agora examinada: quinquilharia e insignificâncias não mais serão apenas os restos do cotidiano que habitam o mundo moderno e que já eram denunciados poeticamente por Baudelaire e seus amigos ao final do século 19, mas a própria vida. A morte

suspensa, recuada no tempo ou abolida, não é um resgate da vida: é a anulação definitiva da vida. Mais nenhuma experiência poderá ter sentido, mostrar-se

capaz de portar um sentido — e teremos mergulhado no mundo de A máquina parou, profetizado por E. M. Forster embora ele mesmo não tenha reunido as

condições para imaginar o fim da morte, como não a pôde prever tampouco

Walter Benjamin. A profecia (em todo caso, a antecipação) não é um exercício

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alucinado de futurismo, é outro modo de rever as condições do presente. Entre

outras frases de ferro que forjou, Churchill deixou esta: “Quanto mais para trás se olha, mais longe para a frente se enxergará.” Essa frase agora pede uma

variante: Quanto mais para a frente se olhar, melhor se enxergará o presente.

Se, e somente se, como hipótese, a abolição da morte for uma possibilidade, a experiência de vida exige ser redefinida — para ser cancelada. Mas se essa

hipótese for um delírio, e “delírio desinteressante” com o diz meu amigo físico, com mais intensidade a experiência terá de voltar-se para muito daquilo que Benjamin desprezava como quinquilharia.

Entre o final do século 18 e o final do século 19, o sujeito da cultura corres-

pondente, que se ergueu do que restou do combate do homem contra a Igreja e o Estado, foi um sujeito capaz de fazer convergir em si o conhecimento

(scientia) e a experiência (apreensão imediata da realidade), um sujeito

capaz de reivindicar uma consciência autônoma que ele mesmo constrói e se constrói — o ego cartesiano, o sujeito que duvida, ergo pensa, ergo existe. A reiterada referencia à fórmula cogito, ergo sum conduz a um equívoco central

que anula a grandeza que o homem foi capaz de alcançar: só penso — no

sentido pleno do termo — porque sou capaz de duvidar, porque me atrevo a

duvidar (da autoridade, de mim mesmo) e é por duvidar e pensar que existo,

assim como existo para duvidar (portanto, negar) e pensar. Se não duvido, não penso, sou apenas um existente, um ente (sequer um ser) que se deixa

pensar (e falar) pelo sistema que é a língua muito mais do que um ser que

fala essa língua, como notou Roland Barthes, assim como sou um existente

que se deixa pensar pelo sistema (da Igreja, do Estado, do partido, do coletivo). Quando e se me atrevo a duvidar e, portanto, a pensar, transformo-me nesse

espírito de que falava Descartes, nessa mente (já que não mais fazia sentido

falar-se em alma). O homem que a Renascença colocou no centro do círculo perfeito de Leonardo da Vinci finalmente cumpre sua profecia e se trans-

forma em sujeito. O homem não mais era uma figura do sonho dos deuses, como no universo da mitologia; nem uma existência permitida pelo divino

cristão, mas um ser que tomava a natureza e sua natureza em suas próprias

mãos e cumpria o mandato de Deus de controlá-la e, portanto, controlar-se. Esse sujeito cartesiano não é propriamente um ser psíquico; é, antes, um

operador autônomo da palavra, do discurso, movido pela razão. Uma cons-

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ciência psíquica já substituiria com vantagem a alma do sistema cristão e a

inteligência vaga (noûs) da metafísica grega. Mas o ego cartesiano não é isso, é o ego autor de um discurso do mundo ao qual a psicologia e a psicanálise

do século 19 acrescentarão duas outras estruturas a definir o homem como um trípode que depende também, não só do ego, mas disso que se designa

pelo termo id e que depende igualmente do superego, sua censura interna, portátil e automática, a mais poderosa de todas. Com uma agravante a esta

altura antecipável: o ego faz muito menos uso, se algum, da experiência e do conhecimento do que imagina ou pretende: o id — o isso que se poderia denominar, com justeza, de dispositivo no sentido, utilizado por Foucault, de

amplo complexo de conteúdos, signos e vetores com fronteiras indefiníveis e maleáveis — é quem está no controle. O isso não controla sempre e não

controla tudo e nem todos: talvez não controlasse um espírito como o de

Einstein, pelo menos quando Einstein debruçava-se sobre seu tema racional, a física. Mas é possível que o id estivesse no controle quando Einstein recusou-se a considerar a teoria quântica como outra coisa além de um “delírio desinte-

ressante”, juízo de que lançou mão ao observar que Deus não jogava dados

com a natureza. Parece que joga, sim, agora isso parece claro. Em todo caso, a psicanálise e a psicologia do século 19, ao lado de Hegel em outra vertente, contribuíram pelo menos para definir o sujeito da época e da cultura como

aquele que deseja, sendo o desejo a pedra fundamental da autoconsciência e, portanto, da consciência. Não é mais cogito ergo sum, agora é volo ergo sum, desejo logo sou, atrevo-me a desejar (contra tudo e contra todos), portanto

sou. E meu primeiro desejo, na versão freudiana, é o desejo do sexo, o que me constitui como um sujeito sexuado e um sujeito sexual. Não sou mais um sujeito do verbo, sou um sujeito do sexo, quer dizer, do corpo: sou um sujeito do verbo e da consciência, mas sou também um sujeito do desejo e da perda de consciência a que o sexo me conduz: meu sujeito agora constitui-se de

diferentes camadas — layers, como se diz em informática, essas camadas distintas de funções e componentes que interagem de algum modo sequencial

e hierárquico, cada uma tendo uma interface apenas com a “de cima” ou “de

baixo”, como num smartphone (a camada do telefone, a dos textos, a dos dados, a camada da música, a camada da imagem...). Uma camada desse sujeito

interage com a outra; mas se a lógica da “camada de texto”, que é a da palavra, for uma camada lógica (ou que deveria ter uma lógica conhecida), como é, a

camada do desejo tem uma lógica incerta e flexível que o sujeito não conhece e que por vezes é inacessível mesmo ao analista exterior... A definição de

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ideologia dada pelo rico movimento estruturalista-marxista dos anos 60-70 do

século 20 é sugestiva: discurso fragmentado e fragmentante com a coerência

de uma neurose. Fragmentado, deliberada ou inconscientemente, porque é esse o ser da ideologia (caso contrário, seria ciência); fragmentante, porque um discurso fragmentado só pode gerar a fragmentação; e com a coerência de uma neurose, que não se sabe qual possa ser (embora em certos casos

seja mais perceptível: a neurose do pequeno-burguês, a neurose contra o pequeno-burguês, a neurose contra a elite, a neurose contra as minorias, ou a

neurose contra o outro, o negro, o gay, a mulher, o homem branco, quer dizer, a neurose diante do negro, do gay, da mulher, do homem branco...). A lógica do desejo não é muito diferente.

Dando saltos no espaçotempo, é o caso de abordar, agora, o sujeito da

eCultura, que não pertence mais ao campo imaterial e elevado de um noûs, para o qual o verbo conta pouco (o número conta mais — e o número não é

exatamente o verbo, mesmo podendo ser uma linguagem) e que em princípio não leva em conta o desejo, não tem volição (mais ainda quando se fala em

algoritmo, inteligência artificial). Não terá talvez sequer livre-arbítrio, mas essa

é outra questão, sendo parte da mesma história. Kant pode ser aqui convocado, com suas quatro perguntas: O que posso saber; O que tenho de fazer (que Lenin

depois retomou); o que posso esperar; o que é ser humano. Se dentro de vinte

anos a inteligência artificial superar, como se prevê, e num único computador, a soma das inteligências da população mundial, não se tratará mais de saber

“o que posso saber” e, sim, o que a máquina pode saber — e ela, no limite, no

Ponto Ômega, ainda que esse Ponto não seja o apocalíptico Ponto de Tipler, poderá saber tudo que houver para ser sabido e que for conhecível. O que

posso esperar: saber com a máquina, saber por meio dela. E o que posso fazer: posso fazer o necessário para que esse processo se acelere exponencialmente rumo a seu final (o planeta não pode esperar, a vida humana em qualquer de

suas formas, mesmo a mais rudimentar, não pode esperar) ou posso parar o processo enquanto é tempo, como tantos já sugeriram antes que a primeira bomba atômica explodisse e como mais recentemente sugeriu (e advertiu)

Stephen Hawking a propósito da inteligência artificial. O problema é que

sempre aparece alguém para levar avante as experiências com o átomo, construir uma bomba e explodir uma bomba, assim como sempre aparecerá alguém para fazer edição de genes humanos (como diz ter feito He Jinkui

neste novembro) — exatamente como Stephen Hawking advertiu e como,

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antes dele, E.M.Forster fez seu personagem novelesco admitir, desiludido, em A máquina parou. E o que posso esperar? A utopia — termo equívoco, empregado

quando se deseja de fato nomear a eutopia, o lugar do sentir-se bem, mas ao qual as pessoas já se acostumaram — ou a distopia perfeita significada

pelo afastamento absoluto do homem e sua sucessiva abolição. E o que é o ser humano? Aproveitando a sugestão de Agamben de que a experiência do homem contemporâneo acontece fora dele — acontece no smartphone, como

no caso das selfies diante de Mona Lisa —, o sujeito da eCultura é o sujeito externo, um sujeito externo a si mesmo ou, como descrevi em outro livro, um

sujeito com o cérebro na mão, um cérebro exterior que olha por mim, que

me olha (via Waze) sem nada me dizer de mim mesmo, que decide por mim, que pensa por mim.181 Um sujeito dramaticamente alienado, como Marx não

181

O primeiro episódio da esperada quinta temporada da série Black Mirror, da Netflix, é uma completa decepção em termos de forma e conteúdo quando comparado com os anteriores, em particular os da primeira temporada; mas ilustra a condição do homem contemporâneo sujeitado à inteligência artificial. Nesse episódio, o espectador é chamado a intervir (participativamente, como se diz no raso jargão atual) e escolher alternativas em pontos-chave da narrativa. Parece ser isso que o espectador-usuário de internet quer: escolher. Escolher alguma coisa, qualquer coisa. (Ou ter a impressão de escolher.) Fica claro, na verdade, mais uma vez e se ainda fosse necessário demonstrá-lo, que o interesse de uma obra de arte — o que esse episódio não é — reside na visão que ela me oferece de alguma coisa, não na minha ideia do que ela deveria propor: quero conhecer o que pensa o artista, o diretor do filme, o autor de um livro, confrontá-lo com minhas possíveis ideias e não pensar por ele, no lugar dele. Esse primeiro episódio, porém, cede à palavra de ordem do momento, participação, e com isso elimina a própria origem do prazer estético ao mesmo tempo que dá ao espectador a ilusão de ser, ele também, um autor do que está vendo. De todo modo, o personagem do episódio revela-se, igualmente de modo rasteiro, atormentado pela sensação crescente de estar sendo manipulado, de que suas ações não dependem dele (de fato, “dependem” da escolha do espectador — embora já estejam determinadas pela anterior gravação das duas possibilidades disponíveis, o que significa que nem mesmo o espectador tem qualquer liberdade real... Tudo não passa de uma brincadeira, de um game inócuo e trendy, na moda.). Pobre como é, esse episódio ilustra a condição do homem comum hoje, sem nenhum livre-arbítrio porque tudo é decidido acima dele e fora dele, sem que ele precise manifestar-se ou tenha como fazê-lo. A eCultura, sob esse aspecto, é completamente calvinista: o destino desse personagem está traçado e o que ele fizer nada alterará, ao final — seja qual for a escolha do espectador. De fato, ele já está e estava, desde o início, salvo ou condenado — e ele não sabe disso e nada que fizer poderá alterar sua sorte.

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podia imaginar, um sujeito radicalmente alienado porque agora alienado não

apenas de seu trabalho mas também visceralmente alienado de si mesmo. Há uma hipótese ainda mais dramática, a rigor trágica: a substituição do sujeito

humano pelo sujeito-sistema, não muito distante da situação de apagamento

do autor entrevista por Foucault no final dos anos 60. Anders Sandberg, do Future of Humanity Institute, da Universidade de Oxford na Inglaterra, sugeriu

há pouco, em seminário em São Paulo, que as quatro perguntas de Kant podem

agora ser adequadamente substituídas por quatro outras: O que o sistema pode saber, o que o sistema deve fazer, o que pode o sistema esperar, o que é o sistema? As respostas a três dessas perguntas são sabidas: o sistema pode saber tudo que há para ser sabido; o sistema deve fazer o que lhe for ordenado

fazer ou, no advento da superinteligência artificial geral, fará o que decidir

fazer; o sistema pode esperar assumir o controle geral do mundo e do homem; o sistema é aquilo que o homem dele faz e o que o homem não imaginou fazer ou pode fazer e que mesmo assim está feito no sistema.

Obviamente, se essas novas quatro perguntas forem as válidas para este

momento, o sujeito como conhecido até há pouco sai definitivamente de cena, transforma-se num sujeito oculto, um sujeito exterior ao processo, todo ele, e exterior a si mesmo.182 A alienação será, nesse momento, completa. A tecnologia

182

Os sinais de que o sujeito é cada vez mais posto à margem surgem de todos os lados, sem que isso desperte grande atenção e, menos ainda, reações (com as exceções habituais, como a representada pelo movimento dos “coletes amarelos” na França, embora seu alvo não seja exatamente o mesmo aqui em cena, sem excluí-lo). Um grupo de usuários do Facebook entrou recentemente com um processo na justiça do estado de Illinois, EUA, alegando que aquela eTech violou uma lei estadual ao recorrer, sem autorização dos usuários, ao reconhecimento fácil de rostos observáveis nas fotos por eles postadas em suas contas pessoais. Em dezembro de 2018, o New York Times noticiou que Facebook continuava a “compartilhar”(verbo contemporâneo, computacional, a substituir “vender” ou “trocar algo de valor por outra coisa de valor”) os dados de milhões de usuários com corporações como Netflix, Yahoo, Spotify e Google, e outras, mesmo depois de ter afirmado em depoimento perante o congresso americano que não mais fazia isso. Muitos usuários, em resposta à atitude cínica de Facebook, decidiram encerrar suas contas no site; outros concluíram que isso era pouco e que deveriam processar a corporação por danos de diversos tipos. Pois, os argumentos usados agora pelo Facebook no processo em Illinois podem restringir seriamente, se aceitos, a capacidade que deveriam ter os usuários comuns de levar aquela empresa, e outras, aos tribunais. Para os advogados da corporação, os usuários deveriam provar a ocorrência de

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danos morais ou outros para além da “simples violação” ou alegação de violação de privacidade. E que a simples entrega de dados pessoais (incluindo, por vezes, o conteúdo de mensagens trocadas na página do site) não deveria custar nem um centavo à companhia como multa — mesmo havendo violação da lei daquele estado — porque, segundo Facebook, a privacidade não tem preço. Facebook faz de conta que não percebe ser exatamente a quebra de privacidade que lhe permite lucrar com a violação. Illinois não é o primeiro estado americano a ouvir essas alegações num tribunal, muitas outras corporações eTech as estão empregando, incluindo-se entre elas a Câmera de Comércio dos EUA — que existe, naturalmente, para proteger o comércio e não os consumidores. Querem essas empresas, e fazem intenso lobby nesse sentido, que se aplique a legislação federal (cada estado americano pode ter seus próprios princípios legais — o que é fundamental para impedir que todos os poderes alojem-se nas mãos da administração central e dependam das vontades do governo instalado na capital) vinculando a punição em casos semelhantes à demonstração de “danos concretos”e não à “simples” comprovação de quebra de uma lei. O que está sendo posto em xeque pelas eTechs é a própria lei, a ideia mesma de lei de proteção da privacidade individual e, em suma, de proteção do sujeito: o que se está tentando retirar do guarda-chuva da lei é a ideia mesma de sujeito. Em alguns casos, os danos resultantes de uma violação de privacidade podem ser claros e inquestionáveis, como quando alguém perde o emprego ou dinheiro ou a honra pessoal. Mas na maioria dos casos, esse dano é de difícil medição: como se mede o impacto resultante da venda de perfis individuais baseados em dados pessoais de saúde que podem afetar o conteúdo do que alguém vê na internet e a quantidade de publicidade que lhe será dirigida, sem mencionar a possibilidade de ter um emprego negado com base nesse perfil ou em suas relações amorosas ou suas opiniões políticas manifestadas em caráter privado? Não se sabe ainda, neste momento, qual o resultado do julgamento em Illinois e a tendência da justiça federal, em particular da Suprema Corte, agora sob o controle de juízes conservadores (quando não abertamente favoráveis aos negócios). Mas, a tendência é clara: o sujeito, a pessoa humana está vendo questionados cada vez mais seus direitos humanos, culturais, econômicos e sociais definidos a seu favor no século 20 a partir de sua “simples” e imediata condição, constatada naquele momento, de ser humano. A Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, começa a ser mais intensamente rasgada, e com elas as demais que vieram em sua esteira. Não mais basta ser humano, algo de evidência imediata, para ver garantido um direito: é preciso provar que um dano (geralmente, econômico) ocorreu. O direito não reside mais no ser humano: está fora dele, alojado e definido pela ação, pela circunstância externa a envolvê-lo (como no caso da ética dos veículos autônomos aqui discutida) e não nele mesmo. Essa alteração de perspectiva, se prevalecer, tem impacto gigantesco. Indícios como este fornecem a pista para entender-se o sentido de uma enorme colcha de retalhos ainda pouco visível, mas que tem uma lógica interna precisa e um destino assestado: eliminar a ideia de sujeito, de pessoa, de ser humano. Simone Weil acenava com a superação do pessoal na direção

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como algo necessariamente distante do homem — mais distante do que

arte, que é original, que está próxima da origem — já abriu, lá atrás na história, as portas para o afastamento e auto-afastamento do homem. O homem não mais pode colocar-se no interior das coisas nem de si mesmo porque, anotou Heidegger, tudo já se apresenta ao homem como tecnologia, quer dizer, como

distante. O homem não será nem mesmo (ou será pouco mais do que) um elemento de estoque, a “standing reserve” mencionada pelo autor de O ser e o

tempo. O homem terá sido completamente emoldurado (Gestell), se a moldura for a verdade da tecnologia como sustenta Heidegger (sem que fique claro por

que a natureza não seria, ela também, outra moldura; talvez a diferença esteja

no fato de que sobre a natureza o homem pôde agir,a ponto de destruí-la, enquanto sobre a tecnologia o homem nada poderá fazer a menos que desligue a tomada antes.) O homem não será emoldurado (framed, tanto no sentido

heideggeriano como na gíria: a tecnologia não terá armado para o homem)

apenas se o homem conseguir permanecer no comando (kubernētēs) até o

instante final, o Ponto Ômega – caso Chardin, Tipler e Deutsch tiverem razão. Nesse caso, e nesse instante, o homem estará dentro, totalmente por dentro e

se libertará de toda moldura (não que isso importe muito, nesse momento...). ◊

do impessoal como sendo um ganho civilizacional. Mas o que se vê agora é o esmagamento final do sujeito pelo sistema dominado por conglomerados com poder inigualado na história anterior da humanidade.

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INCONCLUSO

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A cultura computacional que se instala revela-se, em sua ampla porção,

como o negativo fotográfico da cultura até há pouco conhecida e ainda domi-

nante, mas agora iniciando sua deriva rumo à condição de cultura residual. Tomados com sinal contrário, vários dos traços próprios da eCultura (ou todos)

descrevem a cultura não-computacional, a cultura que se desenvolveu ao longo de séculos e que, percebe-se agora, não dispôs de tempo suficiente (como a humanidade, como cada ser humano) para enraizar seus programas mais

fundamentais, entre eles aqueles relativos aos valores. A cultura anterior era, e ainda é no que lhe resta de tempo,

• na origem, e em grande proporção mesmo nas últimas décadas, essencialmente não automatizada, menos ainda digitalizada;

• uma cultura que se marcava pela ideia de autoria bem definida e identifi-

cada, com o autor individual prevalecendo sobre o coletivo, como no caso da

obra cinematográfica (na cultura anterior, a máquina sempre foi — ou assim era majoritariamente considerada — mero instrumento inerte, dócil à intervenção humana, incapaz de afirmar-se por si mesma e não merecedora de qualquer crédito autoral);

• uma cultura da mediação e permeável à mediação, que vivia e se desenvolvia pela mediação multiplicada e dispersa;

• uma cultura não necessariamente seletiva quanto a seus receptores, ao con-

trário do que é capaz a eCultura com seu poder exponencial de segmentação

de públicos (embora a anterior não desconhecesse as diferenças de classe,

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de educação, de meio social e a cada uma delas se dirigisse quando necessário ou útil);

• uma cultura que não buscava e não se curvava, fora da área científica e técnica, ao princípio da racionalidade;

• que não perseguia a perfeição absoluta, satisfazendo-se com o melhor dentro de certos parâmetros (como no caso das artes visuais e seus movimentos que se negavam sem se anular e sem jamais alcançar um ápice insuperável e incontrovertido);

• uma cultura não mais obcecada, desde meados do século 20, com o novo como valor supremo;

• que até há bem pouco tempo não era permeável à duplicabilidade mesmo já conhecendo os prazeres e infortúnios da reprodutibilidade limitada;

• uma cultura não exatamente móvel (livros raros ficavam guardados sob

chaves ou literalmente acorrentados às estantes, de onde não podiam afas-

tar-se; e muitos não estavam autorizados a sair do âmbito da biblioteca, assim como os discos ficavam limitados ao ambiente interior da discoteca imóvel, privada ou pública), nem lábil;

• uma cultura que, ao contrário da eCultura, buscava permanecer e mostrava-se, mesmo, obcecada com a permanência;

• uma cultura que não ampliava a realidade, mas se substituía a ela;

• uma cultura com limitada velocidade de criação e expansão, que não conectava muita coisa a muita outra coisa e muitas pessoas a muitas outras

pessoas (pelo contrário, uma cultura que — sobretudo no campo cultu-

ral propriamente dito, se não no artístico — afastava as pessoas umas das outras e tinha basicamente essa missão, como ainda tem);

• que não buscava a coordenação, pelo menos no caso da arte (arte que, não é nada improvável, pode simplesmente vir a desaparecer pelo menos tal como entendida a partir do final do século 19);

• uma cultura com limitada capacidade de combinação e que não buscava unificar coisa alguma, em particular no caso da arte (embora a eCultura esteja se revelando particularmente eficaz em criar barreiras e fazer inimigos);

• uma cultura que se mostrou mais acessivelmente editável apenas nos seus

últimos ciclos de vida e em alguns de seus modos técnicos (o cinema, por exemplo) embora possa ser agora inteiramente digitalizada e transformada num simulacro de si mesma;

• uma cultura ainda permeável à ideia do valor e que o buscava mesmo sem

jamais tê-lo definido como norte absoluto (agora não é raro ouvir, de pesqui-

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sadores dos recursos da computação em diferentes ramos, que a questão do valor não é, para eles, de modo algum uma questão).

Quanto ao valor especificamente, e à possibilidade de “inseri-lo” ou progra-

má-lo nos algoritmos e na inteligência artificial em geral, uma conclusão não

é difícil de formular, já foi formulada acima e aqui é repetida: se a humanidade não consegue, fora do ambiente da computação, por-se de acordo quanto aos valores que a deveriam orientar, como esperar que possa enxertá-los nos

comandos que perfazem um algoritmo? Em particular quando se sabe que o valor — pelo menos o valor final, o valor real, o valor efetivamente praticado e

não o valor declarado — não está na ação (na operação), mas no ser, no sentido

incorporado e vivido mesmo quando não em ação. Melhor: não há como esperar

programar valor na ação (caso do veículo autônomo que, no momento de um

acidente, tem de “escolher” quem atropela) independentemente de uma prévia “acumulação” de valor a traduzir-se ocasionalmente na decisão apropriada

quando o momento vier. Experiência e scientia do valor devem coexistir no

mesmo sujeito, e por um longo tempo, para que sua ação revista-se de valor. Falar (esfera do discurso) mas não fazer conforme (esfera do mundo) é o mais

comum — e inútil (mesmo sendo a norma...). E como fazer conforme o valor

se não houver algo plantado anteriormente na mente e no corpo de quem ou daquilo que tem de agir? Algoritmos poderão ser exaustivamente treinados por

processos de machine learning183 para serem capazes de comportar-se, em prazo

curto, de um modo como a humanidade não conseguiu ao longo de milênios? Predomina, de modo menos ou mais inconsciente, a esperança relativamente

ingênua na possibilidade de uma inteligência artificial (ou de uma inteligência

alienígena superior — e a inteligência artificial já é uma forma de inteligência alienígena) que salve o homem de si mesmo (a exemplo de Deus). O recurso à

educação, na instituição formal da escola ou na modalidade informal da família, esgarça-se, particularmente nos países subdesenvolvidos embora não apenas

neles. Uma recente pesquisa na França sobre a qualificação profissional, as

esperanças, os fracassos e expectativas dos prefeitos do país184 mostrou que a

Os algoritmos quânticos dispensarão o ser humano e o processo de treinamento por ele orientado e se treinarão a si mesmos?

Pesquisa realizada pelo Centre de Recherches de Sciences Po (Cevipof) junto a 35.357 prefeitos do país, 4.657 dos quais responderam todas as questões do amplo formulário que lhes foi submetido. Sinal dos tempos: em 2018, quatro anos depois das últimas eleições municipais francesas em 2014, quase 50% dos prefeitos reeleitos declara não ter

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maioria deles (55,9%) tem um grau de escolaridade para além do segundo ciclo, com a metade dessa porcentagem chegando a uma graduação completa e a outra metade alcançando a especialização, o mestrado e graus mais elevados

— o que significa terem esses prefeitos um nível de formação superior ao do conjunto da população da França e ao de seus administrados, cenário quase

o exato contrário do que ocorre em um país subdesenvolvido — por exemplo, este. Com esse tipo de fundação educacional assentada será talvez possível à França cogitar leis que combatam as fake news e sugerir práticas que se

apoiem em valores convenientes (outro tema é saber se evitarão a censura, de resto já praticada por Facebook, Google e outros, a título particular). Mas

ninguém se mostra excessivamente animado quanto a essa possibilidade, quando indagado reservadamente.

As promessas, ou pelo menos as perspectivas da eCultura, contrapõem-se a

uma realidade atual que se apresenta como uma pré-história do paraíso com-

putacional, se ele existir. O computador, o algoritmo, a inteligência artificial

assumem por enquanto as máscaras vestidas sobre o cenário da sequência inicial de 2001: num mundo em que macacos-hominídeos enfrentam-se de

modo não muito distinto do que se observa hoje nos EUA pós-eleição de D. Trump (e em outros países conhecidos), a imagem de um monolito negro, polido, geométrico (portanto, elaborado por uma inteligência superior), ereto e que surge aparentemente do nada, em violento contraste com as pedras

naturais irregulares espalhadas a seu redor no chão inóspito, é logo seguida por um plano em que um desses antepassados do humano colhe, da ossada de

algum grande animal morto, um pesado pedaço de úmero ou tíbia e com essa intenção de buscar um novo mandato eletivo e 60% daqueles com apenas um mandato (ou nem um mandato inteiro, ainda) não buscarão a reeleição. Além do evidente desgaste da ideia de partido político, os prefeitos que declararam essa decisão dizem-se esgotados por seus respectivos munícipes, para usar esse termo burocrático, que os veem como prestadores do serviço, algo a que esses cidadãos estão sendo acostumados continuadamente pela internet embora isso não seja comentado como deveria. A política como serviço e como um balcão onde se compra tudo e um pouco mais, inclusive a lealdade partidária, não é o que de início aparecia como “missão” no horizonte desses prefeitos quando decidiram “entrar para a política” — isso num país, a França, onde esses mesmos prefeitos declaram-se majoritariamente apartidários e ligados sobretudo a movimentos associativos. Na eCultura, tudo é serviço — inclusive a cultura. A seu tempo, a arte também — caso em não mais será arte tal como entendida na cultura pré-computacional.

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clava improvisada põe-se a esmagar coisas ao redor em antevisão da pancada

decisiva a ser dada no grande animal vivo a ser caçado e transformado em

comida. A terceira imagem significativa dessa abertura da ópera cinematográfica 2001 mostra esse hominídeo exibindo-se na posse da inédita arma e com

ela ameaçando seus semelhantes: aquele mundo primitivo logo se divide entre os que têm osso-porrete e os sem-osso — e o primeiro assassinato, o primeiro linchamento de um indivíduo por um coletivo enfurecido, como aqueles que hoje se conhecem por toda parte, é cometido; em seguida, exaltado, o chefe dos

atacantes e descobridor do osso-porrete brada contra os céus proclamando seu desafio a tudo e todos e contra os céus lança seu osso, que gira várias vezes no

ar — e ao cair de volta à terra, o cenário já é o do mundo das viagens espaciais

e dos computadores: o corte temporal abrupto que engole milhares de anos é pertinente, na escala do mundo e do universo entre um gesto e outro há

apenas um piscar de olhos. A eCultura é esse monolito (embora a imagem de um retângulo polido e uniforme não veicule nem a pálida ideia do que essa

cultura é e pode vir a ser) e ao mesmo tempo esse osso (a figura de um osso, essa, é bem pertinente à imaginação da eCultura...).

Como transformar o osso em monolito iluminador, é a questão.185 Um dos

dois campos opostos em que se agrupam os estudos sobre a eCultura não 185

O quadro pintado por estes últimos parágrafos não pode oferecer apenas uma paisagem em branco & preto da realidade: alguma cor quente e tons intermediários precisam ser nela enxertadas. O osso pode transformar-se em monólito. Em 2012, a norte-americana Jan Scheuermann, uma mulher paralisada da cabeça para baixo nos dezoito anos anteriores em virtude de uma doença degenerativa, é uma das poucas pessoas a experimentar uma conexão direta entre seu cérebro e um computador. Mais uma vez, a literatura (em sua variante ainda chamada de ficção científica) vinha antecipadamente jogando com essa ideia desde pelo menos a publicação, em 1984, de Neuromancer, o clássico de William Gibson não ignorado por vários cientistas. Em 2011, Scheuermann informou-se de experimentos realizados na Universidade de Pittsburgh sob a orientação de Andrew Schwartz, um neurocientista há três décadas investigando o modo, complexo e ainda obscuro, pelo qual a mente orienta o corpo em sua movimentação. Schwartz buscava desenvolver um braço robótico sofisticado e seus experimentos intensificaram-se com o apoio recebido de uma agência federal, Defense Advanced Research projects Agency (DARPA), fundada em 1958 após o lançamento do Sputnik soviético e do choque que isso representou para a comunidade governamental, militar e científica dos EUA. A missão dessa agência consistia em “antecipar e criar surpresas tecnológicas” de natureza militar, ou correlacionadas, e que passou estes sessenta anos desde sua

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abertura desenvolvendo projetos descritos como próprios das histórias em quadrinhos — entre eles a criação das bases técnicas para a implantação da internet proposta por Tim Breners-Lee, um software de tradução do discurso oral em letra impressa, o GPS e um avião invisível ao radar. Entre seus objetivos iniciais constava a busca de um modo para acoplar mentes e computadores. Sua missão era, para dizer o menos, estratégica; mas a guerra do Vietnã e a quantidade de americanos mutilados levou-a a adotar uma tática para continuar recebendo recursos governamentais: desenvolver próteses sofisticadas para os veteranos feridos, em particular aquelas servindo-se dessa possível associação entre cérebro orgânico e máquina, passível de ser aplicada aos fins militares centralmente perseguidos. E nessa história entraram Schauermann, Schwartz e a Universidade de Pittsburgh. Para tornar curta uma longa epopeia, um braço robótico foi desenvolvido para Schauermann. Um braço humano “normal”, do ombro à ponta dos dedos, realiza trinta movimentos discretos (i.e., que podem ser individualizados), cada um por Schwartz denominado “grau de liberdade” (degree of freedom): um braço permite ao homem trinta graus de liberdade, a serem combinados com todos os outros análogos graus (ou freedoms) embutidos no corpo humano: um número significativo, num universo orgânico complexo. O braço robótico obtido é capaz, por enquanto, de realizar vinte e seis movimentos (tem 26 graus de liberdade), graças a programas tão complicados quanto os envolvidos na construção de uma espaçonave. O objetivo era acrescentar o braço ao corpo de Schauermann, que o acionaria apenas com seu cérebro graças a implantes de corticais transistorizados colocados no interior do crânio na forma de uma “gaze” neural solta sobre a massa cerebral, expediente complementado por fios variados e decodificadores algorítmicos conectados a dois pinos que atravessavam a caixa craniana de Jan e ficavam algo ocultos por seu cabelo. O objetivo era fazer com que Schauermann alcançasse sete freedoms dos vinte e seis possíveis com o braço robótico — o que ela conseguiu num tempo inesperadamente curto. DARPA pensou de imediato em submetê-la à prova de pilotagem do avião de caça F-35 como modo de avançar na concretização do sonho de levar o ser humano a pilotar apenas com a mente: a força de gravidade que pressiona o corpo do piloto nesse avião é um obstáculo para que realize tudo que lhe seria possível de modo a aproveitar ao máximo os recursos da nave, algo que aparentemente nenhum humano ainda consegue. Como o simulador do F-35 não podia ser levado para Pittsburgh por ser “material secreto”, Scheuermann experimentou um produto similar que pôde ser comprado pela universidade — e o pilotou. “Fazê-lo foi instintivo”, ela disse:”não demorou dois minutos...” Schwartz classificou o experimento como menos complexo do que movimentar o braço segundo os planos inicialmente traçados, o que evidencia a possibilidade concreta de alcançar-se a pilotagem mental em futuro próximo. DARPA queria verificar, ainda, se Sheuermann poderia pilotar um drone e, de fato, mais de um ao mesmo tempo, ao modo de um pianista que com as duas mãos extrai do piano sons em andamentos e tonalidades distintos — o que ela não chegou a tentar porque uma infecção manifestou-se ao redor dos dois implantes atravessando-lhe a caixa craniana e levou à cessação

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está nada preocupado com esse problema, nessa cultura vislumbrando

pelo contrário apenas uma sequência infinita de positividades (nesse campo

encontra-se, por exemplo, Ray Kurzweil). O outro, que vale a pena considerar,

apresenta-se como moderadamente pessimista ou, de modo nietzschiano,

niilista reativo. O caminho desenhado pela eCultura é o caminho que, agora, resta seguir, mesmo se a lista de deveres de casa a executar para que não se

realize a tragédia final, antecipada por Stephen Hawking, revele-se antes

repleta de boas intenções do que de sugestões claras e factíveis. A prática, por exemplo, da “epistemologia social” (esse rótulo vale o que puder valer)

sugerida pelo fundador da internet, Tim Berners-Lee, é defendida como

alternativa para evitar e superar os problemas já visíveis por toda parte: identificar e pôr em prática, como ação concreta, o potencial benéfico da IA

para a sociedade, o que também recebe o nome de estimulação da “capacidade positiva” do homem. A educação nunca buscou coisa diferente, sem precisar

de rótulos pretensamente inovadores e responsáveis como esse sugerido por

Berners-Lee. As rotas a percorrer estão pavimentadas por boas intenções e poucas indicações concretas sobre como encontrar a saída. A IA é o monólito

misterioso, aparentemente poderoso, e é um osso. Por enquanto, estamos com o osso na mão, com ele explorando economicamente o que for possível explorar, como sempre, e com ele massacrando, via Facebook + WhatsApp + Twitter + Google etc., os semelhantes que se alojam na facção contrária, no

partido oposto qualquer que seja. Ao final de um tempo, de resto a curto prazo, estaremos nos massacrando a nós mesmos ou jogando o osso para o alto

enquanto permanecemos estupidamente olhando para cima aguardando que caia de volta sobre nossas próprias cabeças. (Nelson Rodrigues: “Os idiotas vão

tomar conta do mundo; não pela capacidade, mas pela quantidade. Eles são muitos”.) Governos querem legislar sobre as eTechs e está bem que o façam se

isso não significar a censura mais absoluta que a humanidade já conheceu. O problema, porém, está no bando de hominídeos que de repente, mesmo sem

se reunirem em corporações definidas, descobrem como os ossos ao alcance do experimento de modo a não correr risco de vida. Ela não deixou de considerar-se “abençoada” por ter participado da experiência, que prosseguiu com outro voluntário. O cérebro humano é outra maravilha deslumbrante, um universo em si mesmo, com mais conexões elétricas — e outra vez reaparece essa figura — do que o número de galáxias no espaço. Mas a ciência avança firmemente nesse território ainda pouco mapeado. É uma questão de tempo — se sobrar tempo. (Cf., entre outros, The New Yorker, 26 novembro, 2018, artigo “Degrees of Freedom”de Raffi Khatchadourian).

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da mão transformam-se em poderosas armas. Em outras palavras, o problema, como sempre, é o homem. Em seu testamento científico e existencial, Brief

Answers to the Big Questions, Stephen Hawking defendeu que todos os devem

se familiarizar com os temas científicos e se sintam cômodos com eles, seja qual for o caminho profissional que escolham. “Eles têm de tornar-se alfabetizados científicos” como modo de comprometerem-se com os desenvolvimento da

ciência e da tecnologia (aqueles mesmos mencionados pelos Direitos Culturais, sem que Hawking o diga ou deles parecesse estar informado). Sem dúvida, os

jovens têm de tornar-se alfabetizados científicos. Só isso não basta, porém. No último parágrafo de seu livro, Hawking, recorrendo a uma imagem congelada e repetida até o ponto do esvaziamento total de sentido, lembra ser necessário

“[…] olhar para as estrelas e não para o chão. Tentar dar sentido ao que se pode

ver e perguntar-se sobre o que faz o universo existir”. De novo ele não o diz, mas para que isso aconteça é preciso que esses jovens, e os outros que esco-

lheram desde o início o caminho das ciências “duras”, terão de alfabetizar-se

também na arte e nas humanidades se é que, seguindo o conselho de Hawking, necessitam urgentemente dar, por uma questão agora de sobrevivência e não

mais de ilustração pessoal suplementar, “rédeas soltas à imaginação”. Talvez ainda haja tempo para soltá-las.

É possível divisar uma brecha nessa muralha de orientação ambígua,

pintada porém com tons sombrios, que a eCultura constrói ao redor da

humanidade assim como o fizeram os modos culturais anteriores, com a

diferença de que agora esse muro é muito mais sólido, imponente e, distinção

essencial, dotado de uma dinâmica própria que pode impor-se à vontade humana. Alargar essa brecha, entrar por ela, depende no entanto da resolução de uma dúvida nuclear: pode alguém nascido em outra cultura, antes do

modo cultural que agora tenta compreender e explicar, de fato entendê-lo, explicá-lo e agir sobre ele ou isso é algo ao alcance apenas do falante nativo, do native speaker dessa nova cultura, dessa nova linguagem? Claro que me refiro a mim mesmo. Aristóteles não poderia entender e aceitar a amplitude

do sistema cartesiano, não mais do que Descartes poderia admitir o sujeito freudiano dominado por uma esfera psíquica interior cujo acesso no entanto lhe é corriqueiramente negado, assim como a humanidade até há pouco não imaginava poder, antes do nascimento de uma pessoa, moldá-la quase como

bem entendesse ou prolongar elasticamente a vida rumo a uma abolição da

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morte — não mais do que os senhores do Kremlin, e nenhum de nós naquele

momento, poderiam imaginar que o Muro de Berlim caísse quase por si só tão rapidamente e tão antes do tempo esperado (embora quão tardiamente)

sem recurso a uma guerra ou outra catástrofe... Do mesmo modo, de resto, como não foi possível durante muito tempo imaginar que a Terra não fosse o centro do sistema solar como mostrava a experiência cotidiana de ver o

sol erguer-se de um lado e desaparecer pelo outro; ou que a Terra não fosse

plana... Não poder entender em sua plenitude uma nova cultura dentro da qual ou com a qual não se nasceu, mas na qual agora se vive até o pescoço e

um pouco mais, e não conseguir avaliar com alguma precisão aquilo que ela pode revelar de resgatador e impulsionador do humano, abre no entanto (e

por isso mesmo) a brecha para esperar (aquele “o que posso esperar” kantiano) que o melhor sobrevenha — sem descartar a dose necessária e adequada de niilismo reativo...

De todo modo, este indivíduo que não nasceu no interior da eCultura, nem

com ela, isolou uma narrativa nela embutida e que ela veicula quando se lhe presta a devida atenção. Como anota Sabine Hossenfelder, com quem no

entanto nem sempre é fácil concordar, considerando os interesses humanos tais como são, “lidamos melhor com abstrações quando elas vêm com uma história”.186 Esta é a história que nas por vezes densas abstrações das figuras

da eCultura, de suas figuras centrais em todo caso, me foi possível decifrar. A dimensão semântica das figuras a perfazer a eCultura está carregada com toda a soma de desejos, expectativas e pesadelos que a humanidade acumulou

e nela projetou sem nunca antes ter imaginado que ela poderia vir a existir. É uma carga antiga, tão antiga quanto a cultura “tradicional” ela mesma. Se

Homero representa a fundação da cultura “tradicional” ocidental, um ocidental em larga medida universal, essa cultura naquele momento ainda não computacional, não cibernética,187 é adequado que seja Homero ele mesmo quem

abra espaço para a utopia imemorial do homem, quem dê o primeiro lance

Op.cit., p.134.

Termo que provém do grego arcaico, desta vez de κῠβερνήτης, kubernetes, piloto, aquele que conduz, que governa, que segura o leme, expressão a indicar, para quem sabe ler, que a cultura cibernética já anunciou (em advertência) o que faria: tomaria o leme e se sentaria no lugar do piloto desta nave louca que é a Terra, quase certamente jogando-o pela borda fora como peso morto.

186 187

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de dados utópico (novamente, o alerta: não estou usando o termo eutopia, o lugar bom, o lugar do sentir-se bem, porém utopia, o lugar que não está em lugar algum e que portanto não se revela bom ou mau, conveniente ou

repelente). A eCultura estava lá, desde o início, plantada no germe da outra cultura, essa cultura anterior que durou até há bem pouco e tende agora para o residual. Em seguida, foi essa eCultura, de início imaginária, sugando para seu interior tudo que encontrava às margens de sua passagem pela terra e pelo tempo — tudo, quer dizer, que resultasse do pensamento científico ao longo da história e das construções imaginárias, como se diz, da arte dos

mesmos longos tempos e as elucubrações “inúteis” dos filósofos. Uma carga

imensa — e no entanto nenhuma parte dela pode ser dispensada, jogada ao mar, por “desinteressante” ou “delirante”. A eCultura é esse vasto dispositivo foucaultiano a reunir fragmentos de todos os lados e misturá-los com lógica própria numa malha inextricável de conceitos, práticas e sentimentos

acumulados, sobrepostos. Mais adiante no tempo, daqui a pouco, um native

speaker da eCultura, alguém nascido em seu interior e que talvez não detenha

memória alguma do pré-eCultura — portanto alguém sem o destino da cultura anterior dado que ela não está em sua memória, como cita Bowles depois de

ler Mallea — explodirá esse dispositivo ou o colocará, como objeto ignorado, numa arca a ser estocada ao lado de tantas outras em algum lugar deste universo — que pode ser apenas mais um... ◊

TC, maio 2017 / janeiro 2019

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REFERÊNCIAS

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