Fim de Semana em Família com os Povos Guarani, Munduruku, Pankararu, Tabajara, Wapichana e Xavante

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FIM DE SEMANA EM FAMĂ?LIA COM OS POVOS Guarani, Munduruku, Pankararu, Tabajara, Wapichana e Xavante



FIM DE SEMANA EM FAMÍLIA COM OS POVOS

Guarani, Munduruku, Pankararu, Tabajara, Wapichana e Xavante São Paulo, 2016



Durante o mês de novembro, a programação do Fim de Semana em Família do Itaú Cultural reúne artistas e representantes de seis povos indígenas – Guarani, Munduruku, Pankararu, Tabajara, Wapichana e Xavante –, que apresentam ao público um pouco de seus costumes e de suas histórias. Este livro é uma forma de fazer que esse novembro indígena dure por mais tempo e que esses fragmentos de costumes e histórias ocupem outros espaços. Os textos são de Daniel Munduruku, Cristina Floria e Cristino Wapichana, e as ilustrações de Mauricio Negro. Os povos indígenas, para nós, não são índios. São Guarani, Munduruku, Pankararu, Tabajara, Wapichana e Xavante – nossos contemporâneos que conhecem e preservam suas antigas tradições e convivem com a modernidade sem deixar de ser quem são. O Fim de Semana em Família é uma programação que ocorre no Itaú Cultural todos os sábados e domingos. Em cada fim de semana, há duas atividades diferentes, entre oficinas, contação de histórias, shows e espetáculos teatrais. Tem ainda o Cantinho da Leitura – espaço cheio de livros para a criançada ler à vontade – e a Feirinha de Troca, em que basta levar um livro, um gibi ou um DVD e trocar por outro disponível no local. Confira a programação completa em itaucultural.org.br. Itaú Cultural

* É uma regra da antropologia, aceita pelo movimento indígena, usar o nome do povo sempre no singular e começando com letra maiúscula, ainda que substantivo.



Autenticamente Brasileiros O escritor Daniel Munduruku reflete sobre a construção equivocada que nossa sociedade fez e faz dos 305 povos ancestrais do Brasil, resumidos à palavra “índio” e excluídos da contemporaneidade em uma imagem romântica do passado É comum as pessoas chamarem os habitantes ancestrais do Brasil de índios. É um costume que se arrasta há cinco séculos e carrega uma triste constatação: a gente não os conhece como realmente deveria. Tudo o que sabemos sobre essas experiências de humanidade se resume a imagens lançadas em nossa cabeça e construídas sem muita empatia, sem muita simpatia. Muitas vezes, nós os tratamos como figuras folclóricas, um desenho nas tarefas escolares ou uma fotografia no livro didático ou, o que pode ser pior, como numa reportagem de televisão nem sempre favorável a eles. Ou seja, aprendemos a nos distanciar de todo o conhecimento ancestral porque a sociedade brasileira não aprendeu a chamá-los pelos nomes. Não aprendemos, por exemplo, que eles são povos habitantes desta terra chamada Brasil há pelo menos 10 mil anos (e só isso já é motivo de sobra para se orgulhar); que são 305 povos que falam 275 línguas diferentes; que formam um contingente de quase 1 milhão de pessoas; que ocupam 12% do território nacional, nas áreas mais preservadas do país; que estão presentes em todos os estados brasileiros, sem exceção. Como nós os tratamos como seres do passado, não aprendemos a vê-los como nossos contemporâneos. Ninguém fala de sua luta pela sobrevivência física e espiritual, pelos direitos que foram conquistados e que estão na Constituição brasileira; ninguém nos conta que hoje estão nas universidades e no mercado de trabalho; ninguém anuncia que há indígenas que escrevem livros, compõem músicas, atuam no cinema e nas novelas; que produzem lindos e premiados filmes; que são professores universitários; que são artistas plásticos de sucesso; que são funcionários públicos concursados; que fazem mestrado e doutorado... Enfim, apesar de pertencerem


a tradições antigas, são seres da modernidade. Há algum mal nisso? Claro que não. Ao contrário. É aí que mora a sabedoria deles: aprendem a conviver com elementos culturais alheios à sua própria cultura sem deixar de ser o que são, sem deixar sua identidade, sem perder seu pertencimento. A palavra índio é um apelido que pesa sobre a identidade desses povos todos. É um apelido porque esconde sua verdadeira identidade. Ao chamá-los assim, estamos desprezando a diversidade e toda a sabedoria que esses povos poderiam ensinar à própria sociedade brasileira. Temos de chamá-los pelo nome correto porque isso lhes confere identidade e a dignidade de sua própria experiência de serem humanos, como em todas as outras culturas. Temos mais uma chance de conhecê-los agora. Quer dizer, ao menos parte pequena dessa grande diversidade de culturas e línguas brasileiras, autenticamente brasileiras.



OS POVOS QUE ESTARÃO PRESENTES NO FIM DE SEMANA EM FAMÍLIA

Guarani Localização: ES, PA, PR, RJ, RS, SC, SP e TO População: 70 mil Língua: guarani

Família linguística: Tupi-Guarani O povo Guarani tem um contato muito antigo com a sociedade brasileira. Desde o século XVI, já se tem notícia da existência deles, que habitam oito estados brasileiros e tiveram diferentes nomes ao longo da história, entre eles: Chiripá, Kainguá, Monteses, Baticola, Apyteré e Tembekuá. No entanto, denominam-se Avá, termo guarani que significa “pessoa”. Estão presentes também na Bolívia, no Paraguai e na Argentina. Formam um povo único nos elementos essenciais de sua cultura, mas mantêm diferenças nos modos de praticar a espiritualidade, falar a língua e interagir com o meio ambiente. O povo Guarani no Brasil está dividido em três grupos distintos: Kaiowá, Nandeva e M’bya. Talvez o mais conhecido seja o Kaiowá, que está concentrado em Mato Grosso do Sul, onde sofre constantes agressões em seus direitos humanos. Os Guarani são um povo que tem uma capacidade de resistência muito grande, concentrada especialmente no modo espiritual de encarar a vida. Muitas das aldeias ficam próximo às áreas urbanas, por causa da aproximação histórica que foi ocorrendo como invasão de seus territórios tradicionais, o que muito poderia ter alterado seu modo de viver. No entanto, o que se percebe é uma força que os


envolve e lhes permite continuar acreditando em sua cultura e em seus ancestrais. É, talvez, um dos únicos povos indígenas com um local sagrado para reuniões, ensinamentos e cultos aos ancestrais. O olhar ocidental sobre os Guarani os percebe como mendigos ou pobres, por viverem em situação de exploração e de constantes conflitos agrários, como os que acontecem em Mato Grosso do Sul e que envolvem antigas disputas por territórios indígenas. No entanto, essa é uma visão equivocada, porque não considera a visão do próprio povo Guarani sobre seu conceito de vida, pobreza e riqueza. A espiritualidade se baseia na crença da terra sem males, alcançada por constantes exercícios de desapego e de participação na vida comunitária e pelo uso do cachimbo ancestral cuja fumaça abre um pontal para o contato com os seres espirituais do outro mundo. Assim, todos os membros desse povo aprendem os elementos básicos da cultura a fim de manter-se em sintonia com a terra sem males. Como forma de resistir às dificuldades que enfrentam, os jovens têm usado o estilo musical do hip-hop. Também se utilizam da literatura como instrumento. Um dos principais escritores indígenas em atuação no Brasil é um jovem Guarani que reside em São Paulo, Olívio Jekupé.



Munduruku Localização: AM, MG e PA População: 15 mil

Línguas: munduruku e português Tronco linguístico: Tupi

O povo Munduruku se denomina Undejenha, palavra que quer dizer “nós, os verdadeiros”. Munduruku era o nome dado a esse povo e quer dizer “formigas gigantes”, “formigas guerreiras”, porque eles eram muito temidos pelos povos vizinhos. O contato com a sociedade nacional é antigo. São mais de 300 anos, mas os Munduruku só foram efetivamente convencidos ao contato permanente há pouco mais de cem anos, quando começaram a conviver com a sociedade brasileira. Ainda hoje, guardam a cultura tradicional, mas por força da situação de contato muitos elementos culturais foram se desfazendo e outros integrados, misturados a costumes da sociedade brasileira. O idioma, por exemplo, que é falado por quase todos os membros, congregou palavras brasileiras porque não havia como criar vocábulos para substituí-las. Como esse povo não mais possui grandes extensões de terra, alimenta-se de produtos industrializados, que muitas vezes afetam sua saúde. O mesmo pode ser dito das roupas, dos produtos domésticos e dos eletrodomésticos, que são comprados em lojas de departamentos. No estado do Pará, os Munduruku vivem em mais de cem aldeias, espalhadas por um grande território já demarcado, mas que está ameaçado por projetos de construção de enormes hidroelétricas, fato que causará grande impacto na vida deles. A cultura material é muito sofisticada, sobretudo a plumária – já considerada uma das mais bem elaboradas artes entre os indígenas brasileiros. Eles moram em casas de pau a pique (mas já existem construções em alvenaria) e tiram seu alimento da floresta (os que moram mais distante dos centros


urbanos), onde caçam, pescam, plantam roçado e coletam frutos e plantas medicinais. Gostam de pintar o próprio corpo durante as cerimônias e os rituais tradicionais. Em tempos antigos, costumavam tatuar o corpo inteiro com tinta preparada do jenipapo. Cada pessoa ocupa um papel importante na manutenção da comunidade, e por isso meninos e meninas são preparados de forma diferente na fase de crescimento: os meninos aprendem com seus pais a caçar e a pescar, o conhecimento da natureza e a confeccionar o material necessário para o bom desempenho nessas artes. Isso porque caberá ao menino a tarefa de proteger a aldeia em caso de invasão de corpos estranhos – desde gente até animais perigosos. Já as meninas aprendem com as mães a cuidar de outra parte importante da aldeia: a casa, os objetos de uso doméstico, a roça, a coleta de frutas e os remédios naturais. Cada um fazendo sua parte, a comunidade vive em harmonia. As crianças gostam de brincar, claro. Correm pela mata próxima, nadam no igarapé, andam de canoa, atiram com arco e flecha, confeccionam seus brinquedos utilizando caroço de frutas, palha de milho, gravetos, cipós e casca de palmeiras, jogam futebol, passeiam com seus animais de estimação etc. Fazem tudo isso enquanto ajudam nas tarefas domésticas, pois estão sempre acompanhando os adultos: essa é a maneira tradicional de aprender. Hoje em dia, também vão à escola porque sabem que é importante aprender as coisas da cidade para poder conviver mais harmonicamente com a sociedade brasileira. Legal, né?



Pankararu Localização: MG, PE e SP População: 8 mil

Língua: português No Nordeste do Brasil há muitos povos indígenas diferentes. Nessa região aconteceram os primeiros contatos entre os povos originários e os estrangeiros que por aqui chegaram no século XVI. Não foi um ENCONTRO, com letras maiúsculas. Talvez fosse mais interessante dizer (DES)encontro, que culminou em muitas perdas de ambos os lados. Essa situação sempre acontece quando um lado quer impor o jeito de olhar o mundo ao outro. Isso, claro, ocorreu no Brasil inteiro, mas foi no Nordeste que tudo começou. O povo Pankararu, que também participa desse nosso encontro (com letras minúsculas), é originário de Pernambuco e migrou para diferentes locais. Hoje está presente em Minas Gerais e em São Paulo. Falamos desses três estados porque estamos pensando em comunidades formadas por aldeias, vida comunitária e rituais tradicionais. No entanto, há cidadãos Pankararu espalhados por todo o Brasil, pois ainda ocorrem migrações.

Em Pernambuco

A maior parte da população se concentra em Pernambuco; estimase que haja mais de 5 mil pessoas. Vivem em casas muito parecidas com as residências regionais, mas conseguem manter uma unidade familiar por meio dos ritos que praticam homenageando os ancestrais e os seres da natureza, por quem nutrem muito respeito. Estão presentes na região há muitos séculos, mas as primeiras notícias que se têm deles são do início do XVII. Nesse século ocorreram vários conflitos fundiários que se arrastam até os dias de hoje, muito embora o povo já tenha uma terra demarcada desde 1940. Por força dos conflitos – questões ligadas à seca, que ocorre de forma


cíclica na região, e à construção de uma hidrelétrica, entre outros acontecimentos –, grupos inteiros migraram para outras regiões brasileiras, seja para fugir da violência cometida contra eles, seja em busca de melhores condições de vida. Foi assim que chegaram a Minas Gerais e a São Paulo.

Em São Paulo

Na região metropolitana de São Paulo, somam atualmente quase 2 mil pessoas cadastradas. A partir dos anos 1950, e principalmente nos de 1960 e 1970, assim como ocorreu com muitos nordestinos, os Pankararu foram atraídos para a cidade a fim de uma vida melhor, garantia de emprego e oportunidade de dar aos filhos educação e maiores chances de profissionalização. Sabem o que eles vieram fazer aqui? Atraídos pela grande oferta de mão de obra na construção civil, muitos acabaram trabalhando na construção do Estádio do Morumbi. Legal isso, né? O interessante é que, próximo ao local, os trabalhadores Pankararu começaram a se apossar de terrenos às margens do Rio Pinheiros. Ali construíram uma comunidade chamada Favela da Mandioca, mais tarde nomeada Favela do Real Parque, onde até hoje residem. Os Pankararu no Real Parque somam 170 famílias e estão reunidos na Associação Indígena SOS Comunidade Pankararu. Como fruto de sua organização, conseguiram sua inclusão, em 2000, no programa de verticalização de favelas da prefeitura de São Paulo, que reservou duas unidades habitacionais exclusivamente aos indígenas, beneficiando 25 famílias. Não pensem, no entanto, que está tudo resolvido. A verdade é bem mais cruel que isso, e esse povo está lutando para manter seus rituais mesmo vivendo numa cidade tão imensa como São Paulo. Entre as principais festas celebradas nas comunidades Pankararu, podemos citar o Atucá, ritual no qual os mais antigos e entendidos membros do grupo ingerem uma bebida chamada Jurema para


entrar em diálogo com os encantados – seres sobrenaturais que, quando invocados, os protegem e os aconselham. O Toré também é um importante ritual dos Pankararu. É tido como uma brincadeira, por ser uma festa que reúne todo o grupo, além de eles poderem tocar e cantar qualquer música Pankararu, sem restrição. Por último, destaca-se a festa do Imbu. Além de ser um evento em que importantes rituais são realizados (entre eles a noite dos passos, o flechamento do imbu e a queima do cansanção), pode ser considerado uma festividade porque no final acontecem vários rituais coletivos e aglutinadores, a fim de que todos cantem e celebrem em conjunto, como ocorre no Toré. É para dançar esse Toré que nossos ilustres convidados nos brindarão com sua presença. Uma verdadeira aula de história para todos nós.



Tabajara Localização: CE e PB População: 3 mil

Línguas: tupi e português Tabajara quer dizer – no Tupi antigo – “inimigo”. Foi um nome dado pelos povos que os circundavam no século XVI. Atualmente, habitam apenas dois estados, mas tradicionalmente circulavam por toda a região do Nordeste brasileiro. Que fique claro que o nome é apenas uma forma de mencionar o povo, e não uma autodenominação. Conta a história que os Tabajara eram inimigos dos Potiguara e com eles faziam muitas guerras – e quase sempre eram vencidos, porque seus opositores eram mais fortes e em maior número. A situação mudou quando esse povo conseguiu um aliado mais poderoso para lutar a seu lado: os portugueses. Se isso foi bom ou não, sempre restará uma dúvida, mas a verdade é que a partir daí os Tabajara começaram a sofrer um processo de dizimação, que só foi amenizado por meio da estratégia adotada de misturar-se com a população brasileira para evitar perseguição. Isso equivale a dizer que eles passaram a migrar para outras regiões, ocupando áreas urbanas onde procuravam reconstruir sua identidade cultural. Nesses novos lugares, foram buscando formas de retomar sua cultura, muito embora já trouxessem elementos de outras tradições espirituais, como a católica. Hoje em dia, a população Tabajara está em processo de reconhecimento étnico, pois reivindica seu direito ancestral por um território onde possa viver sua cultura, mantida através dos cantos, das danças e das histórias. É um povo que valoriza muito a vida espiritual. Acredita – como muitos outros povos indígenas – que somos parte da natureza e dela devemos cuidar. Tem no pajé seu principal líder espiritual, que


procura manter o equilíbrio da comunidade por meio de cantos tradicionais e também do cuidado com a saúde de cada um de seus membros, além de ser responsável por contar as histórias que trazem consigo a memória ancestral de sua gente, não deixando que ninguém se esqueça de onde veio, para onde vai e o que faz neste mundo que é de todos nós. Vivendo no Nordeste, é um povo valente, forte e resistente. Ainda que conviva com a sociedade brasileira há centenas de anos e que muito de sua cultura tradicional tenha se transformado em razão das migrações e das lutas, é um povo que precisa se manter vivo para nos oferecer coragem e determinação. Uma representante dos Tabajara, Aurilene Tabajara – que reside em São Paulo –, irá nos brindar com algumas histórias, danças e cantos tradicionais de sua gente para nos lembrar que formamos um único, belo e valente país.



Wapichana Localização: Guiana, RR e Venezuela População: 13 mil

Língua: wapichana

Família linguística: Aruak O povo Wapichana (“homens-gatos”) habita parte dos campos naturais de Roraima e parte dos lavrados da República Federativa da Guiana há mais de 4.500 anos. Ainda preserva sua cultura e sua língua, falada por 40% da população. Os que moram no Brasil falam a língua materna e o português, e os que habitam as terras guianenses falam wapichana e inglês. Uma minoria domina somente a língua wapichana e outras línguas de povos próximos. O contato com a sociedade brasileira data de meados do século XVIII. Mais da metade dos Wapichana mora em cidades próximas às aldeias e está bem adaptada à sociedade brasileira, participando de eleições como votantes e candidatos a representantes da sociedade na política. Partes de suas terras foram demarcadas e homologadas, entre elas a Reserva Raposa Serra do Sol. As dezenas de aldeias Wapichana são dirigidas coletivamente, embora cada uma eleja seu tuxaua (líder), que tem a missão de representar os interesses dentro e fora da aldeia. Os Wapichana são agricultores e suas roças são coletivas. Também coletam frutos silvestres, pescam e caçam. Muitos são funcionários públicos, como educadores, agentes de saúde e atendentes de demandas de educação e saúde nas aldeias e nas cidades. As casas são retangulares, com paredes de adobe e cobertas com palhas de buriti. Para preservar e fortalecer a cultura, as aldeias realizam festas e as pessoas se vestem tradicionalmente, cantam, dançam, comem as caças que abateram e bebem o parakari (caxiri),


bebida de mandioca feita pelas mulheres. Comem beiju e farinha de mandioca, com damurida (cozido de carne ou peixes bem apimentado). Tomam aluá de milho e de batata e comem os frutos da roça. A espiritualidade está bem presente na vida cotidiana, e o marynan (pajé) é o responsável pela conexão com o mundo espiritual, no qual o tuminkeri (criador de todas as coisas) observa sua criação. O pajé, que tem conhecimento das plantas medicinais e dos espíritos das florestas e dos campos, ensina os segredos para a cura de enfermidades e para outras necessidades, como proteção em caçadas, pescarias e coletas de alimento. É o pajé quem cuida da saúde física e espiritual do povo Wapichana. Nessa sociedade, todos têm seu papel. As crianças, embora possuam nome tradicional, são chamadas de koraidaona. Na puberdade, quando mudam a voz, os meninos passam a ser tominaru e, quando se casam, são chamados de daionaoara, que significa ao mesmo tempo “homem” e “marido”. No caso das meninas, diz-se que são kadineibi. No despontar da puberdade, com o aparecimento da primeira menstruação, tornam-se kashinaru e, quando o corpo está desenvolvido, passam a ser mawisse, “mulher jovem e bela”. Os pais têm a missão de ensinar todas as coisas práticas importantes para a vida. Os avós são os detentores do conhecimento e os responsáveis por manter o povo e as tradições vivos. A transmissão oral educa o espírito e conscientiza o povo de seu lugar e de sua origem no mundo. As crianças devem brincar e ser criança; o adolescente deve ser adolescente; o jovem, jovem; o adulto, adulto; e os velhos, velhos – são os sábios que fecham os olhos e contam histórias de como tudo começou... De como o mundo e os seres passaram a existir.



Xavante Localização: MT

População: 14 mil

Línguas: a’u wêe português

Tronco linguístico: Macro-Jê Os a’uwês, autodenominação do povo indígena Xavante, vivem no estado de Mato Grosso, numa região de cerrado. De acordo com registros históricos mais antigos, são provenientes do estado de Goiás e atravessaram o Rio Araguaia e o Rio das Mortes para fugir do contato, do extermínio e da dominação dos colonizadores. Atualmente, estão na região compreendida pela Serra do Roncador e pelos vales dos rios das Mortes, Kuluene, Couto de Magalhães, Batovi e Garças, no leste mato-grossense. São guerreiros, caçadores e coletores. Vieram do lugar onde começa o céu, da raiz do céu, onde o Sol nasce. Mantêm sua história na memória e com a palavra transmitem conhecimentos ancestrais. Falam a língua a’uwê, da família linguística jê, pertencente ao tronco linguístico Macro-Jê. Somam cerca de 14 mil pessoas, distribuídas em mais de 200 aldeias, entre as terras indígenas Pimentel Barbosa, Marechal Rondon, São Marcos, Areões, Sangradouro/Volta Grande, Parabubure, Chão Preto, Ubawawe, Marâiwasede e Wedeze. É uma sociedade de tradição oral, em que o conhecimento é transmitido e reconstruído de geração para geração, num processo de vivência comunitária na qual tudo se aprende no fazer concreto pertinente a todas as atividades do cotidiano, dos ritos, das cerimônias, envolvendo todas as pessoas da comunidade. Uma curiosidade a respeito desse povo é que há um contato relativamente recente com a sociedade brasileira. Eles foram contatados pela primeira vez na década de 1940, ou seja, são um


dos muitos grupos indígenas que só conhecem o Brasil como nação desde o século XX. Guardam, por isso, parte de sua cultura intacta, e seus rituais são mantidos e realizados a cada ano com muita seriedade e empenho. Esse povo deu ao Brasil o primeiro e único deputado federal indígena: Mário Juruna. Ele ficou conhecido nacionalmente por usar um gravador para registrar a fala de outros políticos e poder, em seguida, cobrar as promessas que faziam. Os Xavante sempre tiveram como estratégia o envio de jovens à cidade para que aprendessem a ciência do warazú (brancos) e pudessem estabelecer um bom contato com a sociedade brasileira. Isso é muito interessante, não é mesmo? Em nosso encontro com esse povo, poderemos conhecê-lo melhor, bem como toda a sua riqueza cultural.



O QUE TODOS TÊM EM COMUM? Normalmente generalizamos quando falamos dos povos indígenas brasileiros. Eles não são todos iguais, mas, de fato, os povos aqui retratados trazem elementos comuns:

Tratam a natureza como parte de si

Isso quer dizer que eles são parte da natureza e procuram tratála como algo sagrado. Têm um amor profundo pelo lugar onde vivem e respeitam o processo natural de renovação da terra. É da natureza que tiram seu sustento, remédios, perfumes, frutas e materiais com os quais confeccionam objetos de uso doméstico. É com ela que aprendem a sobreviver, desenvolvendo técnicas de manejo florestal, criação de pequenos animais, caça, pesca, coleta de frutas e plantação de mandioca, batata-doce, cará e inhame, entre outros alimentos. Têm na natureza uma mãe e a tratam assim, pois acreditam que ela cuida deles e eles dela. É uma relação fraterna e sagrada. Não se acham donos do chão que pisam, mas parceiros de jornada, parentes que caminham rumo ao mundo dos ancestrais.

Ritualizam a vida

Sentem-se parte do universo e por isso interagem com ele por meio de rituais em que agradecem os recursos da natureza. Fazem também rituais de passagem, como quando os jovens se tornam adultos. Essas cerimônias alimentam a vida porque os nutrem do conhecimento dos antepassados e assim conseguem manter a tradição no presente, ainda que estejam próximos ou não dos centros urbanos.


Educação para o presente

Esses povos são movidos por uma ideia recorrente: o presente é o melhor tempo. Ou seja, educam as crianças para viver o momento atual porque assim elas se comprometem com suas comunidades. Isso parece ser diferente de tudo o que se vive no mundo de hoje, não é mesmo? No entanto, essa é uma prática muito antiga que reflete a riqueza cultural desse povo e pode ser uma lição para todos os que estão na correria do mundo globalizado.

E COMO É QUE ELES REPRODUZEM ESSE CONHECIMENTO? COMO O TRANSMITEM ÀS CRIANÇAS E AOS JOVENS? Através de brincadeiras

Isso mesmo. Eles ensinam enquanto promovem brincadeiras entre crianças e jovens. O conhecimento é passado de maneira muito integrada, sem divisão, sem separação entre brincar e aprender. Assim, as crianças podem correr na mata, subir nas árvores, nadar nos rios e nos igarapés, e confeccionar brinquedos com material natural, como cascas, cipós, folhas e sementes. Sempre que fazem isso, estão acompanhadas pelos olhares atenciosos dos adultos para que não se percam ou se isolem demais. As crianças também ajudam nas tarefas diárias. Podem ir ao roçado, coletar frutas no mato, buscar água no igarapé, preparar os peixes


que os pais trazem das pescarias que realizam, buscar lenha para manter acesas as fogueiras e olhar as crianças menores. Dessa forma, ajudam no dia a dia da aldeia.

Ouvindo histórias dos mais velhos

Outra maneira de aprender é por meio das histórias que os mais velhos contam. Cabe aos avós repassar os conhecimentos usando as histórias como metodologia. Sabem o que as histórias contam? Contam o começo de tudo: como as coisas foram criadas, como receberam seus nomes, como homens e a natureza podem conviver harmonicamente; elas dizem de onde viemos, para onde vamos e o que estamos fazendo neste mundo; elas nos ensinam a construir as casas, a respeitar os pais, a conviver uns com os outros; falam sobre nosso lugar no mundo, sobre os rituais, sobre os cantos sagrados e sobre como organizar a vida para vivermos bem e felizes neste universo. As histórias nos oferecem um caminho a ser trilhado seguindo as pegadas de nossos ancestrais. Elas são, portanto, nossos guias e nossas referências existenciais. Isso parece complicado, mas não é. Nossos avós sabem que só gravamos as coisas dentro de nós quando as repetimos muitas vezes, permitindo que elas façam morada em nosso coração. Talvez por isso eles não se cansem de contar histórias sem fim em noites especiais às crianças das aldeias. Os pais também contam histórias, mas a tarefa principal é dos avós, a quem chamamos carinhosamente de velhos. Os pais educam o corpo das crianças; os avós, o espírito. Por isso gostamos deles e fazemos questão de cuidar desses que são nossos sábios.


Indo à escola

As crianças indígenas também vão à escola. Isso mesmo: escolas iguais às da cidade. Claro que os prédios são diferentes e o material didático quase nunca chega por lá, mas nos dias de hoje é importante que as crianças indígenas também frequentem escolas, onde aprenderão as principais operações matemáticas, as regras do português, o conhecimento das ciências humanas e da natureza. É bom aprender essas coisas porque já estamos vivendo bem próximo dos grandes centros urbanos e precisamos dos conhecimentos das cidades para nos relacionarmos melhor com as pessoas e com os governantes. Na escola, as crianças são alfabetizadas na língua tradicional e em português, e as disciplinas estudadas são mistas. Ou seja, elas aprendem por meio das matérias do núcleo comum, mas também há outras que as ensinam a viver na floresta e, assim, a continuar seu modo de vida tradicional. Esse tipo de escola é uma vitória dos povos indígenas, que se esforçaram muito para que o governo brasileiro aceitasse que fosse assim. Esse modelo de escola se chama bilíngue e diferenciado. Achamos isso muito bacana porque trata as crianças como parte de um povo que precisa manter seus conhecimentos ancestrais. Você também não acha?

Lutando por melhores condições de vida

A vida dos povos indígenas brasileiros não é fácil. Apesar de ser tranquila, sem a correria dos grandes centros urbanos e sem a pressão de ter de cumprir o tempo do relógio, não é moleza viver de um modo ancestral. O trabalho é pesado, a vida está sempre à mercê da natureza, que não pode ser controlada, a tecnologia usada não é tão desenvolvida e nem sempre funciona, e há dificuldades de locomoção de um lugar para o outro por causa das distâncias. Há também outros problemas, como a invasão de seus territórios por fazendas de gado ou grandes lavouras de monoculturas; garimpeiros atrás de ouro e outros minérios; mineradoras que querem extrair riquezas do solo e do subsolo; madeireiras que destroem o


meio ambiente para vender as toras das grandes árvores, gerando desmatamento e consequente degradação ambiental; empresas que constroem imensas hidroelétricas inundando territórios inteiros e prejudicando milhares de famílias ribeirinhas e indígenas; o Estado brasileiro, que não presta assistência adequada, colocando em risco a saúde de todos, seja homens, seja mulheres ou crianças; ausência do Poder Público para defender os interesses desses povos, que estão sempre em perigo de vida por causa de interesses econômicos em suas terras tradicionais. Apesar de todos esses problemas, há uma resistência secular dos povos indígenas, que acreditam em suas culturas, suas crenças e seus modos de vida. Acreditam que a terra não é um bem para ser comercializado, mas parte da vida. Por isso, defendem com unhas e dentes seu direito histórico de permanecer onde estão e onde vivem desde muitos séculos atrás.

CONCLUINDO Histórias que precisam sobreviver

Cada povo tem sua história, não é verdade? Cada história precisa sobreviver para ser conhecida pelas gerações que virão depois, não é assim? O Brasil é um país enorme e com lindas histórias que precisam ficar na memória e na vida de todos os brasileiros. Um país com grande diversidade de povos que precisam ter suas histórias conservadas, pois todas trazem o melhor de cada um deles. Aqui há muitas culturas e muitos povos distintos. E é essa diversidade que torna nosso país tão bonito e tão rico – não apenas rico materialmente, mas também imaterialmente. Isso quer dizer que temos um tesouro


imaterial abundante contido nas muitas culturas que trafegam nestas terras desde tempos imemoriais. Tudo isso está presente nos ritmos musicais que inventamos; nas crenças que desenvolvemos; nas danças que mexem com nosso corpo; nas histórias que alimentam nossa imaginação; nos festejos que alegram nosso calendário anual; nas artes que colorem cada traço de nossa identidade nacional. É um país de muitos colares multicoloridos; cocares criativos; folguedos populares; danças ancestrais... Enfim, um país lindo, maravilhoso, diferente e diverso. Por causa de tudo isso, é também um lugar que acolhe sua diversidade, nosso verdadeiro orgulho. A diversidade das culturas indígenas é um patrimônio que o Brasil precisa conhecer melhor para poder se orgulhar ainda mais de tudo o que possui. O país precisa saber como esses povos olham para a vida e respondem aos desafios que ela lhes impõe; como olham para o céu para desvendar no calendário da natureza seus segredos e seus mistérios; os motivos pelos quais pintam e enfeitam seu corpo para agradecer à grande Mãe Natureza tudo o que ela proporciona; precisa aprender seus métodos de educar filhos comprometidos com o lugar onde moram; conhecer suas histórias e suas explicações para o sentido da vida; enfim, se aproximar para ver de perto a grandeza dos povos ancestrais, que merecem continuar existindo por tudo o que representam num mundo em constante transformação. Só assim seremos mais humanos; só assim poderemos nos chamar de brasileiros; só assim poderemos ter orgulho dessas histórias que precisam sobreviver.




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