Ocupação Paulo Freire

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São Paulo, 2021


EXPEDIENTE Coordenação editorial Carlos Costa Edição Duanne Ribeiro, Fernanda Castello Branco e Milena Buarque Conselho editorial Amanda Lopes, Ana de Fátima Sousa, Carlos Costa, Claudiney Ferreira, Kety Fernandes Nassar, Letícia Santos, Mônica Abreu Silva e Thays Heleno Projeto gráfico Guilherme Ferreira Produção editorial Victória Pimentel Supervisão de revisão Polyana Lima Revisão Karina Hambra e Rachel Reis (terceirizadas) Ilustrações Catarina Bessell (terceirizada)




“Toda leitura da palavra pressupõe uma leitura anterior do mundo, e toda leitura da palavra implica a volta sobre a leitura do mundo, de tal maneira que ‘ler mundo’ e ‘ler palavra’ se constituam um movimento em que não há ruptura, em que você vai e volta. E ‘ler mundo’ e ‘ler palavra’, no fundo, para mim, implicam ‘reescrever’ o mundo. Reescrever com aspas, quer dizer, transformá-lo. A leitura da palavra deve ser inserida na compreensão da transformação do mundo, que provoca a leitura dele e deve remeter-nos, sempre, à leitura de novo do mundo.”

Essa escola chamada vida: depoimentos ao repórter Ricardo Kotscho


SUMÁRIO

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Editorial ........................................................ 11 Paulo Freire: uma saudade, uma influência, uma interferência sempre positiva na minha vida Ana Mae Barbosa .................................. 17 Modos de usar a caixa de ferramentas de Paulo Freire ................................................... 31 Saúde Eymard Vasconcelos ............................... 33 Educação Alice Akemi Yamasaki ...................... 46 Segurança Centro de Orientação ao Adolescente de Campinas (Comec)........................................ 62 Música Estêvão Couto Teixeira ......................... 74 Teatro Abel Xavier ............................................ 83 Fotografia ImageMagica .................................. 89 Arquitetura Usina – Centro de Trabalhos para o Ambiente Habitado (CTAH) ............................. 93 Inclusão Lana de Lima Teixeira D’Ávila ........... 98 Encontro com crianças e mulheres refugiadas em Berlim Ilse Schimpf-Herken ........... 107 O “andarilho da utopia” em suas andanças pelo mundo André Bernardo ...................... 115 Ficha técnica, legendas e serviço ............... 128



EDITORIAL “Pensar certo significa procurar descobrir e entender o que se acha mais escondido nas coisas e nos fatos que nós observamos e analisamos.” A importância do ato de ler: em três artigos que se completam

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“Quero dizer que não sou mágico, que este método possui fundamentos e a experiência já nos mostrou que é eficiente.” Esse é o início de um dos principais documentos da primeira experiência de alfabetização em massa de jovens e adultos da educação brasileira. No município de Angicos, no Rio Grande do Norte, em 1963, Paulo Reglus Neves Freire (1921-1997) capitaneou uma equipe de professores e monitores que tinha um objetivo audacioso num país submerso em míseros dados educacionais: alfabetizar a população adulta em cerca de 40 horas e com baixos custos por aluno. O método desenvolvido pelo filósofo, escritor e educador pernambucano ensinou a leitura da palavra escrita – e, assim, a possibilidade da leitura do mundo – a 300 pessoas, que passaram a ter o direito ao voto e a consciência de seu papel no universo rotineiro do trabalho. A vivência, iniciada com um movimento porta a porta, terminou por inspirar o Plano Nacional de Alfabetização – que ficou apenas no papel após o golpe militar de 1964 –, além, é claro, de causar um grande alvoroço na cidadezinha localizada no sertão do estado. A célebre empreitada, hoje conhecida e reverenciada mundialmente, só se tornou possível por certa combinação de fatores em determinado contexto. E demarcar esse cenário é crucial para iniciar-se na compreensão dos estudos traçados por Paulo Freire. Deixando uma “cultura de biblioteca”, em definição própria, para “combater o analfabetismo”, um resultado concreto, Paulo caminhou por conceitos como pluralidade, transcendência, diálogo, humildade, trabalho e amor, entre tantos outros, procurando “crescer e permutar” com o humano. “A se relaciona com B, portanto

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ambos se simpatizam na busca de algo. A humildade consiste em não hipertrofiar nada nesta busca.” Assim, celebrar o centenário de um homem que percorreu mais de 30 países, coordenou projetos de alfabetização longe de sua terra natal – mas sempre envolto em dada “nordestinidade” –, escreveu mais de três dezenas de obras e foi traduzido em mais de 20 idiomas é tarefa premente e inesgotável. A cada ano, há notícias de Paulo Freire em novas esquinas do mundo, ainda que, por outro lado, falte tanto de sua filosofia em nossas salas de aula. Ontologicamente criador, Paulo Freire pediu, correspondendo à sua definição do humano, para nunca ser seguido, e sim reinventado. Portanto, buscando atestar – será que ele valorizaria esse empenho? – a atualidade e a relevância dos campos de estudo iniciados pelo autor, convidamos dez representantes de diferentes áreas de conhecimento e expressão para contar, nesta publicação, como têm relacionado o seu trabalho aos saberes apreendidos de Paulo Freire, numa prática que leve sempre à liberdade, marcando o mundo e sendo marcados por ele. Além desta publicação, que também reúne as reverberações do educador em outros países, a Ocupação Paulo Freire, produzida integralmente durante a pandemia de covid-19, apresenta uma série de conteúdos on-line, no desejo de ampliar o mergulho na vida e na vasta obra de nosso homenageado. O projeto Ocupação, criado há 12 anos, celebra artistas essenciais que fazem parte da arte e da cultura brasileiras. Saiba mais em itaucultural.org.br/ocupacao. Itaú Cultural (IC)

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“No momento em que você começa a negar-se o direito de estar fazendo, a qualquer momento, juízos de valor, você começa a aprender a viver uma virtude que acho politicamente tão fundamental a este País: a virtude da tolerância. Tolerância que nos ensina, superando os preconceitos, a conviver com o diferente para, no fundo, brigar melhor com o antagônico. É isso a tolerância.”

Essa escola chamada vida: depoimentos ao repórter Ricardo Kotscho




PAULO FREIRE: UMA SAUDADE, UMA INFLUÊNCIA, UMA INTERFERÊNCIA SEMPRE POSITIVA NA MINHA VIDA Ana Mae Barbosa

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Paulo Freire mudou a minha vida como mudou a de milhares de pessoas neste Brasil, possibilitando que compreendêssemos as ordens sociais que nos oprimiam e nos ajudando a desenvolver a capacidade de organizar as ações em direção à realização de nossos ideais. Sou, hoje, uma das poucas pessoas que tiveram o privilégio de despertar para o mundo intelectual por meio das aulas de Paulo, aprendendo noções de gramática para passar num exame de ingresso na carreira de magistério primário e também descobrindo a mim mesma e as minhas circunstâncias históricas. Eu tinha 18 anos quando fui sua aluna não só de português, mas de teoria da educação, em um curso intensivo em 1955. Ao mesmo tempo, estudava para o vestibular de direito, contra a vontade de minha avó. Ela foi quem me criou – fiquei órfã muito cedo – e era contra mulheres na universidade. Sou de uma família tradicional e conservadora, já em decadência econômica quando nasci. Perderam o dinheiro, mas não a pose e o conservadorismo. Na primeira aula do Curso de Preparação para o Concurso de Professores de Quarta Instância, já iniciando suas pesquisas sobre o ensino baseado no universo do aluno, Paulo propôs uma redação sobre as razões que nos levavam a querer ser professoras. Respondi explicitando que não queria ser professora, mas que esse era o único trabalho que minha família admitia como digno para uma mulher. Ele não me devolveu a redação, pediu que eu chegasse mais cedo no dia seguinte para conversarmos. Foi uma longa conversa, na qual me convenceu de que educação não era repressão, mas um processo de problematização, libertação e conscientização.

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A partir daí, Paulo Freire influiu não só nas minhas ideias e nas minhas escolhas, mas também na minha vida. No curso organizado por ele e por sua primeira mulher, Elza Freire, eu, que sempre odiei as aulas de desenho geométrico, conheci as teorias modernistas do ensino da arte com Noêmia Varela, uma das professoras, e mais uma vez me surpreendi com a educação errada que eu tivera em um colégio de freiras. Certa vez, uma delas rasgou um desenho meu na frente de toda a classe, porque eu não havia copiado exatamente o que ela desenhara na lousa. Tendo passado no concurso para professora, alfabetizei por dois anos com a orientação de Paulo e fiz estágio na Escolinha de Arte do Recife, da qual ele era presidente, passando logo depois a professora efetiva. Noêmia Varela era a diretora e, frequentemente, ela e Paulo se falavam por telefone sobre os projetos da escolinha. Seus filhos foram alunos da instituição e, quando ele ia conversar com Noêmia, com aquele jeito só dele, também conversava com as professoras. A escolinha ainda existe e fez parte de um grande movimento em prol da arte-educação no Brasil iniciado em 1948. Tivemos 140 escolinhas no país, 1 no Paraguai, 2 na Argentina e 1 em Portugal. Cheguei a São Paulo quase ao mesmo tempo que Madalena, filha dele. Começamos a trabalhar juntas numa escolinha dessa rede que eu organizei com a ajuda do intelectual e bibliófilo José Mindlin. Paulo nos auxiliava bastante enviando livros e fazendo comentários sobre nosso trabalho em cartas. Madalena e eu ficamos muito amigas. Eu a admiro muitíssimo. Minha relação com a família Freire era tão intensa que

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não foi interrompida sequer pela diáspora promovida pela ditadura militar, que a lançou a países estrangeiros e também fez a minha sair do Recife para Brasília e, posteriormente, para São Paulo. Fui aluna de Paulo; Madalena foi minha aluna informal; Ana Amália, minha filha, foi aluna de Madalena e, depois, professora de Carolina, filha de Madalena, na escola primária. Considero Madalena, Fátima e Cristina – filhas de Paulo – minhas irmãs em espírito. Quando fiz livre-docência na USP, ele participou da minha banca. Minha tese foi o livro A imagem no ensino da arte, o primeiro no Brasil a defender a entrada da imagem em geral e da arte em particular na sala de aula, de modo a aperfeiçoar a leitura de imagens e a função crítica. Minha postura escandalizou meio mundo da linha modernista expressionista. Paulo então me lembrou de que, quando eu estava no terceiro ano de direito, fui conversar com ele sobre abandonar a faculdade, por causa do machismo da época, e ele me aconselhou a persistir, dizendo que o direito desenvolvia uma capacidade hermenêutica que eu poderia aplicar em qualquer área na qual fosse trabalhar. Pontuou que eu estava incluindo a hermenêutica nas aulas de artes visuais. Nunca mais reclamei do tempo perdido estudando direito. Paulo Freire e as artes O problema de quem pesquisa Paulo Freire no campo das artes é que ele foi um grande defensor destas em todas as instituições nas quais trabalhou, mas não escreveu sobre arte na educação. Entretanto, suas ações foram um mani-

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festo em favor das artes – e não se esqueçam de que ele foi professor da Escola de Belas Artes do Recife [fechada nos anos 1970; sua estrutura e seu acervo foram integrados ao Centro de Artes e Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE)]. Ele e Elza Freire iniciaram, com a professora Miriam Didier, um projeto de alfabetização por meio da arte com crianças de uma escola pública no Recife da qual Elza era diretora. E, com Raquel Crasto, grande educadora, tiveram uma escola que priorizava a arte e que o faz até hoje: o Instituto Capibaribe. Há um livro que liga Paulo Freire às artes pelo conceito de diálogo. Trata-se de Dialogues in public art, de Tom Finkelpearl, publicado há 21 anos pela MIT Press, no qual o autor homenageia Paulo Freire com uma singela frase: “Este livro é dedicado a Paulo Freire (1921-1997), teórico e praticante do diálogo”. No livro há uma entrevista do autor com Paulo Freire, em que Finkelpearl compara suas ideias sobre a relação entre professor e aluno com as de vários teóricos, alguns da arte – Rosalind Krauss, Johanne Lamoureux, Mikhail Bakhtin, bell hooks e Miwon Kwon defendem a arte como comunicação. O autor usa os textos do educador para demonstrar que também a relação entre arte e público não é uma comunicação de mão única. O aluno e o público não são meros repositórios. O objetivo do diálogo na epistemologia de Paulo Freire e nos depoimentos de outros 25 autores de artigos e artistas entrevistados no livro – como Mel Chin (um dos meus artistas preferidos), Maya Lin, Vito

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Acconci, Douglas Crimp, Elisabeth Sisco e Krzysztof Wodiczko – não é convencer ninguém de alguma coisa ou ideia, é desenvolver a capacidade crítica. Sem ela, ninguém transforma informação em conhecimento nem estabelece relações entre conhecimentos de diferentes áreas. Paulo Freire pensou a educação dos oprimidos, mas nunca foi um populista. No livro de Finkelpearl, ele diz que, para trabalhar com comunidades, não era necessário vê-las como proprietárias da verdade e da virtude, mas sim respeitar os seus membros. O educador diz, ainda, que o erro dos sectários que atuavam em programas nas comunidades não era a crítica, a negação ou a rejeição de intelectuais acadêmicos arrogantes, mas desconsiderar a teoria, a necessidade de rigor e seriedade intelectual. A conferência da Semana de arte e ensino Fui duas vezes a Genebra, na Suíça, visitá-lo no exílio. Na primeira, fui sozinha e fiquei hospedada com a família Freire. Fátima me ajudou a explorar a cidade. Na segunda, fui com a minha família, e os meus filhos nunca se esqueceram das noites em que jantávamos juntos saboreando aquele tipo de conversa de que se lembra para sempre. A tristeza de Paulo por não poder voltar era amenizada tanto pela mágica de Elza – que conseguia ingredientes para fazer comidas brasileiras, até tapioca – quanto pelo frio, do qual ele gostava. Certa vez, era inverno e comecei a sentir frio na sala. Perguntei se não tinha aquecimento. Ele respondeu que sim, mas que mantinha pelo menos uma janela aberta para usufruir do frio. No ano em que chegou de volta do exílio, em 1980, eu

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o convidei para abrir a Semana de arte e ensino na Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP), um congresso que foi um dos primeiros movimentos de redemocratização do Brasil, talvez o maior evento de arte-educação até agora no país. Sua palestra, que ocorreu no auditório da Faculdade de Arquitetura (FAU), por ser o maior da USP, foi ouvida por 3 mil arte-educadores. Foi necessário convocar o auxílio da TV Cultura para filmar e transmitir em um telão fora do auditório, no lugar que chamavam de Salão Caramelo. O nome dele não fora divulgado como palestrante nem no pré-programa nem na imprensa, para não parecer que o estávamos usando como chamariz para o evento. Sua primeira aparição em público havia sido uma apoteose, sendo ovacionado por todos que lotavam o Teatro da Universidade Católica de São Paulo (Tuca) e suas vizinhanças. No programa da Semana de arte e ensino, entregue aos participantes no dia da abertura, assim justifiquei a ausência de seu nome: Todas as decisões, inclusive o temário dos debates, foram submetidas à aprovação em reuniões gerais abertas ao público e convocadas por jornais. Decidiu quem quis e quem pôde participar. Só uma coisa foi mantida em segredo: a participação de Paulo Freire como conferencista. Meu enorme respeito por ele e pelos arte-educadores me fez temer que a divulgação de sua participação pudesse parecer uma forma de atrair participantes para a Semana de Arte e Ensino. Ele estará falando aos arte-educadores

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não porque é o maior educador brasileiro, mas porque desde os velhos tempos do Recife ele e d. Elza sempre mantiveram estreita ligação e influência na arte-educação. O tema de sua palestra é um mote que, à moda nordestina, lancei para ele como desafio. Um dia depois de um intrigante bate-papo na Escola da Vila disse para ele: “Você diz que os pais aprendem com os filhos e os professores com os alunos. Então, você, que tem dois filhos arte-educadores e um estudante de arte (Joaquim), o que aprendeu com eles sobre arte-educação?”. Ele aceitou o desafio de responder à pergunta para todos nós durante essa Semana e aceitou também que outra pessoa desse o título para este desafio. Foi Haroldo de Campos quem, conversando comigo sobre o programa, batizou sua conferência de “O retrato do pai pelos jovens artistas”.

Naquele dia, meio tonto em razão da labirintite, ele ficou feliz por rever amigos e conterrâneos, como Noêmia Varela e o designer gráfico Aloísio Magalhães, e por conhecer gente nova, como os críticos de arte Mário Barata, Yan Michalski e Walter Zanini, além do compositor Hans-Joachim Koellreutter, também convidados a falar e que assistiram à sua conferência de abertura.1

1. Aloísio Magalhães já foi homenageado pelo programa Ocupação. Confira excertos da exposição e outros materiais, como entrevistas, em itaucultural.org.br/ ocupacao. Quanto a Hans-Joachim Koellreutter, o Rumos Itaú Cultural apoiou um projeto que ampliou os acessos físico e digital ao acervo do artista. Saiba mais em bit.ly/ic-koellreutter.

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Os originais dos anais da Semana de arte e ensino foram perdidos na fase de revisão para publicação, um fato estranho. Educador do mundo subdesenvolvido, propulsor da libertação no mundo desenvolvido Testemunhei a influência que a pedagogia de Paulo Freire transformada em teoria operou nas universidades americanas, africanas, inglesas e europeias em geral. Suas obras estão na internet; leiam e julguem seu valor por vocês mesmos. Se tiverem dúvidas sobre a sua importância no mundo, consultem Pedagogia da libertação em Paulo Freire, organizado por Ana Maria Araújo Freire (Nita), sua segunda esposa, que demonstrou ao Brasil que Paulo é referência máxima no pensamento de grandes filósofos e educadores, como Henry Giroux, Joachim Schroeder, Joe Kincheloe, Maxine Greene, Shirley Steinberg, Arantxa Ugartetxea, Donaldo Macedo, Joachim Dabisch e Arve Brunvoll. Todos eles escrevem no livro publicado por Nita, que tem bravamente defendido a memória de seu marido. Quando ingressei, em 1977, no programa de doutorado da Faculdade de Educação da Universidade de Boston, nos Estados Unidos – com uma carta de apresentação de Paulo –, um curso sobre Pedagogia do oprimido estava sendo ministrado. Foi inimaginável a minha aventura emocional e cognitiva ao ter como objeto de estudo o próprio processo libertador que me havia resgatado dos modelos bancários de operação mental. Nunca fui tão bem tratada e ouvida em uma universidade como na de Boston. Graças a esse tratamento muito especial, consegui cumprir todas as exigências do programa em um ano e voltei seis meses depois

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para defender a tese, poupando-me de ter de ficar separada da família. Paulo Freire, Jonathan Kozol e Ivan Illich eram os grandes heróis da educação naquela época. Os outros foram esquecidos, mas Paulo continua, principalmente pelo fato de que Pedagogia do oprimido é base para os dois movimentos mais significantes na teoria da educação hoje: a pedagogia crítica e a pedagogia cultural, inspiradas em seu conceito de conscientização e no conceito de experiência de John Dewey, parentes epistemológicos. Aliás, o primeiro livro de Dewey que li, Meu credo pedagógico, me foi dado por Paulo ainda no Recife. Pedagogia do oprimido foi escrito num período de acerbada crítica educacional, por volta de 1968, e foi a resposta convincente para os movimentos reivindicatórios dos estudantes do mundo desenvolvido. Operou uma curiosa contradição: o educador do mundo subdesenvolvido, com suas teorias construídas na prática da pobreza do Terceiro Mundo, sendo válvula propulsora da libertação do mundo desenvolvido. Mas contradições sempre foram o alimento do pensamento crítico de Paulo Freire. Minha aventura cognitiva mais importante Foram essas as bases fenomenológicas que vigoraram no curso de pós-graduação Arte-educação e ação cultural que Paulo Freire ministrou na ECA/USP em 1987, a meu convite. Ele estava relutante em aceitar, mas Elza me ajudou a convencê-lo. A verba que consegui do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) para pagá-lo era modestíssima. Tivemos 120 estudantes,

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de todas as áreas da USP, do direito à engenharia. Muitos eram só ouvintes, outros, alunos especiais, mas havia muitos mestrandos e doutorandos regulares, o que resultou em uma enorme quantidade de trabalhos para ler e dar nota, atividade que assumi consultando-o frequentemente. Ele deu nove aulas e eu apenas três, para substituí-lo quando viajou. Foi a aventura cognitiva mais importante da minha vida e hoje é um marco histórico, pois foi o único curso regular que Paulo Freire ministrou na USP. O curso foi gravado em áudio e transcrito pela professora Maria Helena Rennó, mas perdido na editora da ECA, outra estranheza. Seria preciso que a Faculdade de Educação se renovasse, com novos pesquisadores humanistas e com vocação para o social, para que um de seus professores, Moacir Gadotti, amigo fiel de nosso mestre, criasse o Instituto Paulo Freire (IPF), que honra e dignifica a sua memória. Só tenho ouvido elogios dos pesquisadores que procuram o IPF, onde um dos filhos de Paulo, o Lute, trabalha. A atuação na Secretaria de Educação de São Paulo Logo depois que assumi a direção do Museu de Arte Contemporânea (MAC) da USP, organizei um grupo de estudos sobre museus no Instituto de Estudos Avançados (IEA), também da USP. Paulo foi um dos convidados para falar e nos deu um conselho valioso, que segui: consultar os sindicatos de trabalhadores para saber o que suas famílias entendiam como arte, os seus hábitos culturais e como foram construídos, para planejarmos estender o museu até a classe trabalhadora. Gravamos sua palestra, que deixei nos arquivos do IEA.

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Mais tarde, a pedido de Paulo, o MAC pôde colaborar com seu trabalho na Secretaria de Educação do município de São Paulo. Quando foi secretário de Educação da Prefeitura de São Paulo (por dois anos), colocou os estudos de arte no mesmo nível de importância de todas as outras disciplinas. Isso havia acontecido no Brasil somente em dois outros projetos: o do jurista Rui Barbosa, em 1882-1883, nunca implementado integralmente, e o do professor Fernando de Azevedo, no Distrito Federal, em 1927-1930. Coordenei o grupo de estudos de reestruturação curricular das artes com professores universitários e da rede escolar por mais ou menos um ano. Por fim, minha orientanda e arte-educadora do MAC nessa época, Maria Christina de Souza Lima Rizzi, assumiu a coordenação desse grupo, que Paulo dizia ser o mais numeroso da secretaria, pois enfocava todas as artes, inclusive o cinema. Ao fim do mandato do educador Mario Sergio Cortella, que o sucedeu brilhantemente como secretário, todos os professores de arte haviam sido atualizados. Durante vários anos depois disso, o melhor ensino de arte em uma rede pública no Brasil foi o da Prefeitura de São Paulo. Alguns de nós que trabalhamos com Paulo estamos reunindo memórias do tempo da secretaria. Devemos reavivar nossa memória em homenagem a ele, que tinha uma aguçadíssima. Meu preferido, Pedagogia do oprimido Para terminar estas reminiscências, devo confessar que meu livro preferido continua sendo Pedagogia do oprimido.

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Essa obra é filosofia, sociologia, educação e, acima de tudo, um tratado de epistemologia. É um livro nascido da luta empreendida por seu autor para dar aos indivíduos de todas as classes sociais o direito de ser sujeito de seu próprio processo de conhecimento e para despertar neles o interesse, a agudeza e a coragem necessários para participarem do processo de transformação de suas sociedades. É pedagogia do “re + conhecimento” cultural e, principalmente, a pedagogia do pensamento crítico contextualizado. A consciência da prática gerou a teoria que permeia a Pedagogia do oprimido. A preocupação era aliar a clareza do conteúdo aos meios que possibilitavam aos alunos “dizer suas próprias palavras para nomear o mundo”. Fui sujeito da pedagogia em favor dos oprimidos de todas as classes sociais, de todos os gêneros e de todas as origens praticada por Paulo Freire.

Ana Mae Barbosa é educadora, pioneira da arte-educação no Brasil, tendo desenvolvido a chamada abordagem triangular para o ensino de artes.

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MODOS DE USAR A CAIXA DE FERRAMENTAS DE PAULO FREIRE “A educação é comunicação, é diálogo, na medida em que não é a transferência de saber, mas um encontro de sujeitos interlocutores que buscam a significação dos significados.” Extensão ou comunicação?

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Ensinar e aprender ao mesmo tempo, saber ouvir, entender o mundo do outro, construir de forma conjunta. Para além de seu objetivo inicial – a alfabetização de adultos –, o método e a filosofia de Paulo Freire podem ser aplicados a múltiplas áreas. Nesta seção, trazemos experiências desses usos práticos e teóricos das ideias de Freire. Em entrevistas, pesquisadores, artistas e outros profissionais mostram como essa referência se desdobra em realizações na saúde, na arquitetura, na fotografia, no teatro, na música, na inclusão, na segurança pública e no audiovisual. O panorama evidencia que o método freiriano é vivo: sempre inspirador e em contínua transformação.

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SAÚDE

Eymard Vasconcelos

Pioneiro na pesquisa e na prática da educação popular na saúde, Eymard Vasconcelos aponta a influência de Paulo Freire em sua formação. Nesta fala, ele destaca o caráter transformador do contato com as vivências do povo e defende a atenção ao atendido e ao seu contexto social como método. Professor aposentado da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), Eymard coordena o grupo de pesquisa Educação Popular em Saúde e a Rede de Educação Popular e Saúde.

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Em que aspectos de sua atuação e pesquisa se vê a influência de Paulo Freire? Como foi o seu contato com o autor e como utilizou seu método e/ou suas ideias? Tenho 68 anos. O meu contato com Paulo Freire começou no meu tempo de estudante, em 1974. O movimento estudantil da área da saúde organizou um encontro nacional, a primeira Sesac [Semana de estudos sobre saúde comunitária, realizada pelo centro acadêmico do curso de medicina da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)], que proporcionava um estágio, no qual o nosso grupo foi para um pequeno povoado do Vale do Jequitinhonha. Usamos uma frase do Paulo Freire e nos espantamos: “Diante dos problemas maiores, não procure dar respostas, faça roda de escuta”. Quando fizemos isso, aquele povoadozinho bem simples se mostrou e tivemos acesso a uma realidade da saúde que nunca imaginaríamos. Eu estava em crise com o curso de medicina – não era o que eu esperava, estava pensando até em largar – e, a partir daí, peguei gosto. Esse jeito de fazer saúde deu sentido ao meu trabalho profissional. Desde então, tenho me aproximado cada vez mais de Paulo Freire. Terminei o curso em 1975, fui fazer residência e, logo depois, como vários colegas, fui para uma periferia do Brasil, tentando trabalhar em tempo de resistência da sociedade civil contra a ditadura militar. Vim aqui para o Nordeste, na região do brejo paraibano, justamente porque havia uma diocese que estava acolhendo muitas pessoas que trabalhavam na perspectiva da educação popular e da teologia da libertação. Foi uma grande escola de educação popular, um mo-

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mento muito fascinante, surpreendente, eu nunca esperei ter um tipo de prática tão rico. Mas era tempo de ditadura e acabei sendo expulso da região. Eu já era professor de universidade e os políticos articularam a minha saída. Fui fazer o mestrado em Minas Gerais, na área de educação, em que valorizavam muito o Paulo Freire. Aquilo era uma prática forte – participávamos de um movimento de educação popular –, mas não tinha uma conotação teórica muito grande. Nesse mestrado, eu me aproximei um pouco da teoria e vi como ela estava presente em práticas [que tinha observado em muitos] lugares em que já havia surgido o Movimento Popular de Saúde (Mops). Usávamos muito Paulo Freire, mas não sabíamos, não tínhamos noção da força do seu pensamento. A primeira publicação sobre a educação popular na área da saúde foi minha, Educação popular no serviço de saúde, de 1986. Antes havia várias experiências, um caldo cultural de educação popular, mas as pessoas não percebiam tão claramente a força de Paulo Freire nisso tudo. Desde então, comecei a produzir mais teoricamente, a participar de grupos e de projetos de extensão. O meu papel como docente me surpreendia. Ao usar a educação popular na relação com os alunos, assisti a transformações muito grandes. Começamos a chamar aquilo de extensão popular e, depois, de pedagogia universitária freiriana.

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O momento da consulta, no seu trabalho, parece ecoar muitas das ideias de Freire. Se ele coloca educando e educador no mesmo nível, a relação médico-paciente parece estar no mesmo sentido, segundo o que li sobre suas ideias. Você concorda com essa proximidade? Que papel pode ter a consulta e que troca pode haver entre paciente e médico – diferentemente do que vemos no campo da saúde em geral? A educação popular chega à saúde por meio de movimentos fora do aparelho do Estado, que ajudaram a formar muitas das referências para o que seria o Sistema Único de Saúde (SUS). O SUS é criado em 1988, mas já havia dezenas, centenas de experiências orientadas pela educação popular, com participação de agentes comunitários, controle social. Tudo isso veio muito marcado pela educação popular. Quando o SUS é criado, grande parte dos militantes se desloca para o aparelho do Estado, e parece que a educação popular perdeu o sentido, mas começamos a ver, no começo dos anos 1990, que a educação popular podia ser feita nos serviços oficiais de saúde também. Nesses serviços havia educadores populares, e a sua prática fortalecia a participação popular e reorientava a globalidade do serviço. Mas eram coisas pontuais, aqui, acolá, um serviço ou outro, então, o desafio era generalizar essa participação, essa perspectiva da educação popular para todo o serviço de saúde. Começamos a trabalhar a educação popular não mais de maneira subversiva, mas como algo dentro das políticas públicas de saúde. Daí, começamos a ver que a educação popular não era só para as atividades coletivas, as ações educativas na co-

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munidade, nos grupos, mas entrava também nas consultas – o que começamos a chamar de “construção compartilhada da solução sanitária necessária”. Tenho alguns artigos sobre essa utilização da educação popular na consulta em várias áreas – medicina em geral, fisioterapia, nutrição, psicologia. A educação popular reorienta o modo tradicional de atuar em cada uma dessas profissões. Tudo isso é muito diferente do tradicional, como você disse; o doutor sabe, se for um médico mais humano, vai colher bem a informação, ouvir, mas a conduta quem define é ele. O paciente pode até ser chamado a participar para poder compreender, mas a sua conduta é definida [pelo outro]. Só que nós, como educadores populares, percebemos que nunca damos conta de compreender a totalidade da vida do paciente e, na hora em que somos solicitados, o chamamos – a pessoa de quem estamos cuidando – para participar da construção do cuidado. Construímos práticas de cuidado extremamente inovadoras. E é isso que tem seduzido muitas pessoas para a educação popular em saúde, essa criatividade. Muitas vezes, as pessoas veem como um discurso ideológico, um discurso crítico, mas, antes de tudo, o que encanta são essas práticas extremamente inovadoras que estão dando um ar novo de prática holística, um jeito de construir uma prática de saúde mais integral.

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No mesmo sentido, um articulista afirma que, segundo você, “não podemos continuar a ver apenas as carências existentes na população”. Ainda mais: “Eymard crê que precisamos aprender também com as suas potências”. Isso soa muito freiriano. O que os médicos podem aprender com aqueles que atendem? Como podem estar mais abertos a esse aprendizado? Sim. Não só soa, como é muito freiriano. Muitos dos trabalhadores da área da saúde que lidam com a educação popular leem pouco Paulo Freire, porque ele tem uma linguagem um pouco complexa. Mas eles participam de grupos e movimentos nos quais aprendem no fazer. Sinto que a educação popular está presente no cotidiano de muitos serviços, não tanto por leituras de Paulo Freire, mas por causa de uma perspectiva cultural que se espalhou muito fortemente na área da saúde. São todos muitos freirianos, apesar de nem todo mundo se dar conta disso. Tivemos aqui a expansão do Programa Saúde da Família – que talvez seja um dos maiores mercados de trabalho para os profissionais da saúde –, a Estratégia Saúde da Família e a Atenção Básica. Foram contratadas pessoas que não tinham formação apropriada, que não conheciam o mundo popular e as suas diferentes culturas, e a educação popular virou um campo de aprendizado. Porque posso não entender muito do mundo popular ou de saúde coletiva, mas, se começo a ouvir as pessoas, mergulho em sua realidade mesmo sem ter lido Paulo Freire ou muita coisa teórica. A educação popular – as práticas, o modo de fazer participativo – foi um jeito de profissionais de universidades tradicionais abrirem o seu olhar. Começaram a fazer, a se surpreender

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e se encantar com essa construção compartilhada. Vejo muito isso nos estudantes que vão para as comunidades com a noção de que são pessoas privilegiadas e que têm que dar uma retribuição à população. Vão lá como provedores. E, quando o projeto se orienta nessa perspectiva freiriana, eles começam a sentir que estão aprendendo muito mais do que ensinando. Mudam totalmente o olhar. Isso que vivi em 1974 vejo se reproduzir cotidianamente entre os estudantes hoje: a descoberta dessa potência de agir, potência criativa, de viração, que tem a população; [a descoberta de que] a vida deles tem aspectos inusitados dos quais, por mais que eu estude antropologia ou sociologia, não dou conta – cada situação é diferente; [e o aprendizado dessa] coisa de repararmos muito nas carências. Isso é usual em todos os profissionais que se aproximam do mundo popular. Mundo popular, classes de carentes. Pena que o SUS vem se burocratizando, com muita cobrança de eficácia pelos gestores, de metas quantitativas. Então, essa dimensão do trabalho junto com a comunidade, de aprendizado, fica um pouco abafada por essa cobrança muito forte de produtividade numérica, mas de alguma forma está presente. A pandemia que estamos vivendo, com esse desafio do imponderável, está mostrando que muita coisa está sendo feita a partir dessa herança cultural freiriana que já está no serviço de saúde.

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Mais uma comparação. Fala o mesmo articulista que, para você, “o atendimento individual deve ser encarado como um espaço essencial de atuação política”. Paulo Freire também ressaltava que a educação é inseparável da política. Os médicos, em geral, reconhecem esse papel político de seu trabalho? Como você define essa relação entre saúde e política? Sempre tivemos, na área da saúde, profissionais – antigamente, mais médicos, porque tinham uma liderança maior – muito críticos, progressistas, que, a partir desse lugar do poder, tinham embates críticos quanto ao modo da organização social. Mas sinto que este é um modo tradicional de fazer política: pessoas empoderadas – por serem doutoras – enfrentando politicamente os outros poderes. Acho que a educação popular traz um jeito de fazer política um pouco diferente. Primeiramente, tira do centro esse “eu, doutor, enfrentando os poderes danosos da sociedade”. Não. Eu fortaleço as pessoas que hoje são silenciadas para que elas também possam fazer esse enfrentamento. Sempre existiu a suspeição de que o marxismo e a educação popular estivessem muito próximos, mas, ao mesmo tempo, sempre houve uma tensão muito grande, porque o pessoal marxista, mais da tradição comunista, se impacientava muito com a educação popular, que prioriza uma ação mais no longo prazo, cultural. No tempo da ditadura, uma liderança comunista ficou ironizando: “Vocês acham que vão mudar a ditadura fazendo reuniõezinhas para lá e discutindo para cá? Nós temos de enfrentar o poder militar organizado”. O que transformou mesmo a ditadura foi a mudança da cultura da sociedade civil por esse trabalho, que, em grande parte, a Igreja tomou para si naquela época.

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Lembro que muitas lideranças do movimento estudantil tinham uma irritação grande com os nossos projetos de extensão, porque aí se caminha no ritmo da relação entre os estudantes e a população, a partir das demandas da população, e, muitas vezes, a questão dos grandes enfrentamentos não está colocada – embora esteja colocado o protagonismo das pessoas no enfrentamento do mandonismo, do marido, das violências locais, e na relação entre crianças e pais. Muitas vezes, vemos pessoas sem essa perspectiva freiriana chegar a grupos organizados já querendo algo, querendo discutir. Enfrentam e calam quem apresenta divergências, colocando-se como “o intelectual”, reproduzindo, assim, a dominação do doutor sobre pessoas que estão em processo de aprendizado – e essas são ambíguas, contraditórias. É preciso acolher todas essas diferenças com paciência, criando espaços de conversa. Se chegarmos com um discurso panfletário, silenciamos essas pessoas. Agora, uma coisa mais de longo prazo, mais profunda, é um pouco o jeito de fazer política de educação popular. É valorizar muito o fortalecimento de protagonismos que hoje estão silenciados, e isso são processos de formação que demoram anos e anos. Acho que é um deslocamento da política para o cotidiano, e isso tem uma eficácia política muito grande.

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A pergunta anterior fala de “atendimento individual”, o que nos leva de volta à consulta, mas você fala sobre expandir o tratamento à família e ao grupo social. Em Paulo Freire, também é preciso ter a visão do social para compreender melhor o indivíduo. Tem motivo semelhante a sua proposta? Sim. Quando começamos a conversar com as pessoas que estamos atendendo, ficam muito claras as relações familiares e das vizinhanças [implicadas no problema sendo tratado]. Se nos dispomos a ir atrás desse problema e compreender mais, isso vai se expandindo. Nem precisamos ler muito Paulo Freire, não, a realidade mostra isso de forma gritante. Vejo isso nos estudantes de agora: podem até não gostar de ler Paulo Freire nem nada mais social, mas, quando mergulham nessa realidade – pelo humanismo que têm e que os faz ir atrás disso –, de repente, estão discutindo organização comunitária, vizinhança, religiões. É tão gritante o quanto isso marca a vida das pessoas, a vida do Pedrinho que tem asma; da mãe que tem dificuldade, mora sozinha e tem de pedir ajuda à vizinhança; do pessoal da igreja que dá apoio... Todos esses nós, essa rede de relações, ficam evidentes e, às vezes, é essa realidade que faz com que estudantes que eram ou tinham posturas teóricas reacionárias comecem a ler outras coisas. A realidade pede isso. O compromisso que temos com a solução do problema nos leva a ampliar a sua abordagem. Claro que uma visão teórica facilita isso, mas muitas vezes o compromisso técnico de uma forma mais ampla e disponível nos leva a fazer essa viagem do individual para o social.

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Outro conceito que me parece decisivo no seu ideário é o de cuidado. Queria que você falasse um pouco sobre o que entende por isso. Leio que o papel do afeto, da amorosidade, é fundamental, para além do método e da exatidão da cura – o que também lembra Paulo Freire. Muitas coisas vão lembrar Paulo Freire porque o tenho como uma inspiração de origem – e mesmo quando o lia muito pouco, porque as suas ideias já estavam espalhadas, principalmente dentro das igrejas orientadas pela teologia da libertação. Aprendíamos com os companheiros. Na educação popular, Paulo Freire é um sistematizador principal, mas participa de um movimento que é muito maior do que ele próprio. E essa questão do cuidado, da atenção em saúde, é uma das coisas que marcam quem se aproxima da população não como um provedor, um grande sábio, detentor das técnicas necessárias, mas de um jeito mais compreensivo. No contato que vamos tendo com as pessoas, essas técnicas ajudam, mas são muito limitadas – e vamos percebendo que o que nos demandam de técnica é algo que nem imaginávamos, é a conversa... Gosto muito de usar a metáfora da mochila. Você tem uma mochila com os conhecimentos acadêmicos, mas, quando chega a uma comunidade, não sabe o que dela vai servir. Muitas vezes, você vem arrotando uma solução e as pessoas nem ligam, porque aquilo não as toca. Mas, de repente, você fala alguma coisa e: “Isso é interessante, doutor”. Daí, você vai vendo que são outros tipos de conhecimento que pode trazer. Nós nos surpreendemos com o que do conhecimento técnico é necessário para cada

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situação particular. Acho que essa é uma grande inovação de educação popular. Lembro que, quando eu estudava, [para lidar com os problemas se ensinava a] enxugar as lágrimas e ser frio, porque a emoção turva a sua objetividade científica. Essa visão, de alguma forma, ainda está presente, apesar de ter se desgastado um pouco. Quando nos aproximamos do mundo popular, começamos a perceber a força do afeto. O mundo popular latino-americano é extremamente emocionado, afetuoso, e isso nos transforma. Você fala coisas que nunca imaginaria falar – e isso é que transforma. Não é só porque o afeto é importante para as pessoas se sentirem acolhidas; eu diria que essa emoção gera outra epistemologia. Você vai sendo educado em um tipo de conhecimento molhado de afeto, de emoção. Isso é fundamental e acaba até nos fazendo ver com um pouco de ironia a objetividade, porque percebemos que tem uma exatidão que passa pelas coisas do coração. Paulo Freire usava as palavras geradoras para disparar seus processos educacionais. Imitando um pouco essa prática, gostaria que você definisse quais são as palavras-chave do seu trabalho. Paulo Freire trabalhou muito a palavra geradora nos processos de alfabetização. A educação popular começa no processo de alfabetização de adultos, o escrever, o lidar com as palavras tem um sentido diferente da área da saúde. Nós falamos mais de problemas geradores, de situações geradoras. Quais as palavras-chave? Acho que, na verdade, são palavras-chave da educação popular, como o diálogo. É

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muito fácil falar de diálogo, mas ele pressupõe uma confiança do outro, algo mais profundo. Posso chegar a uma comunidade e as pessoas falarem muito, mas os véus só vão cair à medida que perceberem o seu compromisso com elas. [É preciso perceber no] mundo popular uma vontade de ser mais, essa vontade de ser mais que está em todas as pessoas e que é o que gera saber e prática. Vontade de ser mais é um conceito importante, e a partir daí você vai dialogando e tem a questão do compromisso. Se não tem compromisso, as pessoas não se abrem.

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EDUCAÇÃO

Alice Akemi Yamasaki

Doutora e mestra em educação pela Universidade de São Paulo (USP), Alice Akemi Yamasaki é professora da Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense (Feuff ), em Niterói, no Rio de Janeiro. Exerce atividades no Departamento Sociedade, Educação e Conhecimento (SSE) e é docente do mestrado profissional em diversidade e inclusão (CMPDI), ambos da mesma instituição. Atua nos seguintes temas: diversidade e inclusão; formação de professores; educação e infância popular; cultura popular e violências no contexto escolar. Desenvolve projetos de pesquisa e extensão nos campos da educação popular e de cinema e educação.

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Alice, antes de mais nada, como Paulo Freire surge em sua trajetória pessoal e profissional? Como se deu o seu contato com o autor e como você utilizou seu método e/ou suas ideias? Sou uma educadora freiriana que se formou por meio do diálogo crítico e profundo com vários educadores e educandos, participando de diversos processos formativos nas últimas décadas. Minha formação foi e continua sendo realizada no enfrentamento que a vida nos trouxe. Entre os episódios que forjaram a minha formação social estão a participação e a presença nos movimentos de professores das escolas públicas em que estudei, nos anos 1980. Marcante em minha formação como docente foi o testemunho vivo dos meus professores da universidade com suas lutas em plena Assembleia Nacional Constituinte. Foram momentos importantes, como afirma Paulo Freire (1999), que mostraram que “não é na resignação, mas na rebeldia, em face das injustiças, que nos afirmaremos”. Quando comecei a exercer a docência, primeiramente na escola de educação básica paulistana e, em seguida, na educação superior privada, nossos debates tematizavam o desafio de reconhecer a educação como direito social e um processo permanente de formação para o exercício da cidadania. Todos esses eventos impulsionaram minha caminhada profissional em direção ao desafio de superar as limitações cotidianas, em busca de um “ser mais” que aprimorasse, pacientemente, a prática da reflexão-ação-reflexão. Nos últimos 20 anos, como professora de universidades públicas, em cursos de pedagogia e em licenciaturas, pudemos desenvolver um trabalho de formação de professores que exigia cada vez mais estudos sobre a obra de Pau-

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lo Freire e uma compreensão mais aprofundada dos seus elementos teórico-metodológicos. No campo da relação entre universidade e sociedade, no início dos anos 2000, desenvolvemos um trabalho de formação, que se desdobrou com a criação de cartilhas de alfabetização de jovens e adultos. Entretanto, o aprofundamento teórico chegou com a pesquisa de doutorado, que buscou refletir sobre as violências na escola e o pensamento freiriano. Alguns projetos que desenvolvemos sob a óptica de Paulo Freire foram: Cultura de paz nas escolas (extensão e especialização, 2007-2011); inclusão digital de jovens do campo; Infância popular (2011 e 2014); formação de educadores infantis populares (2014-2019); e Ensino de ciências da natureza e direitos humanos (de 2016 até o presente momento). As disciplinas curriculares que temos ministrado com a presença dos referenciais teóricos de Paulo Freire estão na graduação (obrigatórias e optativas), na especialização/pós-graduação lato sensu e no mestrado profissional. Desse modo, por diferentes veredas, temos instigado e desafiado os jovens e os futuros educadores a assimilar as contribuições teóricas e a elaborar projetos e vivências que reinventam os conceitos e as metodologias desenvolvidos pelo autor. Vale ressaltar que, nos últimos cinco anos, temos nos dedicado a aprofundar as possibilidades de um ensino problematizador com alunos com comportamento superdotado, como parte de um projeto que vem sendo desenvolvido há quase uma década na universidade, contribuindo para práticas educativas que visem ao reconhecimento da dignidade humana e à inclusão de estudantes, com a oferta de oficinas interativas.

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À semelhança de nosso processo de amadurecimento intelectual, promovemos atividades práticas, como oficinas, que buscam dialogar com as experiências acumuladas pelas pessoas: por um lado, ao inaugurar a prática educativa dialógica, a escuta atenta do formador acolhe relatos que contribuem para conhecermos uma leitura de mundo instalada nas histórias de vida; por outro, os relatos das vivências fazem cada educador e futuro professor participante recuperar as próprias reflexões e questões envolvidas na atividade em sala de aula. Com isso, buscamos promover círculos de cultura em diferentes espaços educativos, escolares ou não, que reconheçam os participantes como sujeitos ativos, críticos e reflexivos da aprendizagem e da troca de experiências vividas. O processo é tenso, marcado por conflitos internos e coletivos, pois provoca uma fissura e uma ruptura com as práticas bancárias de educação e de ensino, que colocam o estudante como sujeito passivo e acrítico no desenvolvimento temático das situações de aula. A conversa reflexiva sobre a percepção de si mesmo e do outro, no e com o mundo, percorre o círculo de cultura e permite a vivência de um dos conceitos fundamentais para conhecer e reinventar Paulo Freire: a prática educativa dialógica. Tivemos ricas oportunidades de vivenciar o diálogo fundante entre educadores que iniciavam as práticas libertadoras de educação com comunidades tradicionais e grupos sociais, promovendo uma educação popular sobre Paulo Freire. Em alguns casos, a prática dialógica permitiu estabelecer os currículos de formação com os grupos populares, que assumiram protagonismo e voz no processo do seu aprender.

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Paulo Freire fala que é preciso sempre reinventá-lo. Como você pensa tê-lo reinventado, que mudanças foram necessárias? O que a prática, o contato com os alunos e as diferentes realidades trazem de adaptações? Um dos primeiros trabalhos que adotaram a concepção teórico-metodológica freiriana em nossa trajetória profissional foi a formação de educadores-educandos em assentamentos da reforma agrária do Bico de Papagaio, na região do extremo norte do estado do Tocantins, promovida no campus de Tocantinópolis da então Universidade do Tocantins (Unitins), atual Universidade Federal do Norte do Tocantins (UFNT). Naquela ocasião, o círculo de cultura envolveu estudantes universitários do curso de pedagogia, agricultores assentados em diferentes municípios daquele território e as docentes e pesquisadoras da universidade estadual. Como fruto desse esforço de troca de saberes populares e conhecimentos acadêmicos, elaboramos a Cartilha de alfabetização dos assentamentos, e a palavra geradora que se destacou foi “lama”. A força dessa palavra estava no conjunto de fenômenos e vivências típicos da região amazônica, como a temporada de chuvas que é conhecida como “inverno”, geralmente entre os primeiros meses do ano. A lama também dizia respeito às dificuldades de acesso e deslocamento entre os assentamentos e os centros urbanos, uma vez que a maioria das estradas era de terra, recortada pelas chuvas torrenciais do período, o que costumava isolar os moradores locais. Com essa vivência, a discussão de uma “leitura de mundo sobre a lama” permitia uma rica e impressionante denúncia sobre aspectos da vida real nos assentamentos, com detalhes desconhecidos da comunida-

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de universitária. A partir disso, a introdução da “leitura da palavra”, com os processos de alfabetização e letramento na língua e na matemática e com as várias dimensões de estudos históricos sobre os assentamentos, tornou muito mais significativo o aprendizado entre todos. Ao final do processo e do projeto, pudemos reinventar a ideia de que “ninguém educa ninguém, tampouco ninguém se educa a si mesmo, os homens se educam em comunhão, mediatizados pelo mundo”. Outro momento rico da reinvenção de Paulo Freire foi o trabalho de alfabetização de crianças caiçaras no município de Paraty (RJ), com a comunidade de Martim de Sá. Nessa experiência, pudemos exercitar a valorização da cultura tradicional caiçara adotando diversos materiais e recursos didáticos que buscaram valorizar os saberes dos educandos e dos familiares. Se, por um lado, a comunidade caiçara não era letrada, por outro, cultivava diversas práticas importantes e conhecidas entre eles para viver na costa brasileira. Entre outros conhecimentos, destacamos a construção de canoas e o seu manejo em mar aberto, bem como o domínio de técnicas de pesca artesanal, como o uso da isca de zangareio para lula e de cerco para peixes e outras espécies marinhas. Intitulamos o projeto de Cerco de saberes, a partir de um círculo de cultura que reuniu caiçaras e universitários. Como membro do grupo de pesquisa Desenvolvimento e Inovação em Ensino de Ciências da UFF (Dieci), tenho colaborado, em projeto mais recente, com oficinas interativas para alunos com comportamento superdotado. A parceria envolve mais três pesquisadoras e futuros profes-

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sores das áreas de ciências da natureza (física, química e biologia), além de contar com a presença de graduados das áreas de letras, matemática e cinema e de estudantes da educação básica de 9 a 16 anos. O planejamento e a execução das oficinas interativas têm sido fundamentados na perspectiva da educação problematizadora freiriana, com um desenvolvimento interativo que contribui com a transição de uma curiosidade ingênua para outra epistemológica, inclusive nestes tempos de pandemia e ensino remoto. Na sua visão, como a pedagogia freiriana pode se associar à linguagem cinematográfica? O que você e as outras duas autoras do artigo Reflexões entre e estética audiovisual, o cinema e a educação libertadora: diálogos com a formação na pedagogia social vivenciaram durante o curso de especialização em pedagogia social da UFF? Na UFF, temos colaborado ativamente com a afirmação do curso de licenciatura em cinema e audiovisual, apoiando-nos em pressupostos freirianos para fomentar e aprofundar o diálogo e as práticas educativas. A formação que temos promovido aos educadores audiovisuais tem sido norteada por aspectos muito convergentes ao pensamento de Paulo Freire, o que permite afirmar que é possível a interação da pedagogia libertadora com os estudos da linguagem cinematográfica. Ao assumir o cinema como arte e como política, o curso da UFF indica dimensões também presentes em uma educação libertadora: ao criar e produzir cinema e audiovisual em escolas e outros espaços educativos não formais, os educadores em formação promovem práticas que ampliam as possibilidades de expressão,

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de denúncia da realidade e de transformação do mundo. Nesse sentido, a interação entre linguagem (audiovisual) e pensamento freiriano revela uma complementaridade na prática educativa audiovisual. É um encontro com o potencial de revelar olhares sobre a realidade, com narrativas que provocam rupturas do estabelecido ou do lugar comum e massificado por meio da expressão audiovisual de perspectivas muitas vezes oprimidas e silenciadas. Diversos níveis de diálogo estiveram presentes nesse processo muito rico de trocas de saberes entre educador e educando, no qual diferentes conhecimentos das áreas específicas da pedagogia social e do cinema foram mobilizados para a construção de uma vivência inédita em nossas trajetórias individuais. A oficina proposta foi intitulada Audiovisual e Paulo Freire: contribuições para uma leitura de mundo. Inicialmente, houve uma troca prévia de saberes para que se promovesse a formação estética de educadores sociais, inserindo conhecimentos da linguagem cinematográfica entre os conteúdos típicos do campo profissionalizante do pedagogo social. A prática da oficina deu-se em duas partes: na primeira, uma exposição sobre a linguagem audiovisual, com destaque para uma brevíssima história do cinema, passando pelos elementos que compõem os estudos sobre o audiovisual e por uma atividade prática com cores e texturas, sensibilizando a turma para a dimensão estética e para uma reflexão sobre a boniteza presente no ofício assumido pelo pedagogo social. Para dialogar com os saberes dos educandos presentes, foram apresentadas imagens e vídeos que ilustravam os conceitos necessários, permitindo-se que os participantes compartilhassem suas

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vivências em torno de uma educação do olhar. Na segunda parte, propusemos mais um exercício audiovisual, que buscou romper com o olhar exclusivamente mercadológico e passivo do cinema por meio da atividade Fotografia narrada, um dispositivo do projeto Inventar com a diferença, coordenado por Cezar Migliorin. Os exercícios de linguagem foram sendo problematizados e dialogados com os educadores sociais, que trouxeram suas leituras sobre a imagem e o som em suas vivências no campo da pedagogia social. Como nasceu a mencionada oficina e quais foram os maiores aprendizados originados dela? Replicando uma pergunta levantada no resumo do artigo: quais foram os diálogos estabelecidos por vocês entre o conhecimento audiovisual, o pensamento freiriano e a pedagogia social? Sou uma das docentes da Faculdade de Educação que vem se surpreendendo e se encantando com a potência formativa do curso de licenciatura em cinema. Desde as primeiras participações em disciplinas obrigatórias da formação de professores do curso, temos sido provocados e temos provocado as práticas da educação audiovisual, buscando alimentar uma docência dialógica, crítica e criativa. A oficina reuniu pedagogas e licenciandas em cinema, apostando na provável fertilidade dessa interação dialógica. A experiência reuniu trajetórias muito potentes e comprometidas com seus respectivos campos de estudo. Cada uma trouxe bagagens de origem pessoal muito ricas, e foi importante a disponibilização de todas para a descoberta de novo conhecimento, aprofundando significativamente os saberes de experiências acumuladas por todas.

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Entre os aprendizados, afirmamos que a reinvenção do pensamento de Freire, e não a reprodução mecânica de suas ideias e orientações, implica refletirmos profundamente sobre a relação entre o que vivemos e a realidade que queremos alcançar com o projeto educativo, no caso de interface entre cinema, linguagem audiovisual e pedagogia social. A realização da oficina Audiovisual e Paulo Freire: contribuições para uma leitura de mundo permitiu-nos a criação e a vivência de uma situação-limite, na qual não tínhamos acúmulo anterior, era um processo de elaboração coletiva de um momento “inédito viável” de nossa vida acadêmica. As situações-limite que vivíamos antes de nos lançarmos ao projeto da oficina eram de existências mergulhadas em nossas áreas, em educação e pedagogia e em cinema, na educação formal e não formal. O encontro dessas três autoras, que encarnaram a relação de comunhão entre educador e educando, disponibilizando-se à aventura de viver a experiência de ler o mundo freirianamente, com recursos e conhecimentos da linguagem audiovisual, desafiou-nos a ir além de quem éramos até então. Nesse sentido, concordamos com Freire (1999) que “[...] a educação é um ato de amor, por isso, um ato de coragem. Não pode temer o debate. A análise da realidade não pode fugir à discussão criadora, sob pena de ser uma farsa”. Daí, outro grande aprendizado foi o aprofundamento de todos, pedagogos sociais e educadora audiovisual, nos campos da estética, da educação libertadora e da ética: a oficina trouxe muitos aspectos para refletirmos sobre os valores humanos e a boniteza da vida, assim como sobre a inseparabilidade entre decência e estética.

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Destacamos alguns aspectos dessa aprendizagem durante a caminhada coletiva: 1. A linguagem audiovisual potencializa e enriquece a prática educativa dialógica dos pedagogos sociais. Algumas das atividades com a linguagem audiovisual sugeriram oficinas a ser desenvolvidas também com os grupos sociais atendidos pelos pedagogos nas comunidades socialmente vulneráveis. 2. Os círculos de cultura freirianos com educadores audiovisuais enriquecem a formação artística, criativa e estética de educadores e educandos, revelando dimensões inéditas da prática pedagógica. Em projetos da pedagogia social, a utilização de fotografias, de filmes profissionais e da criação audiovisual pode potencializar as diferentes práticas dos pedagogos sociais com seus públicos. Tivemos a oportunidade de acompanhar a experiência de uma ONG que atende vítimas de violência doméstica com as oficinas de audiovisual, centradas na exploração de dispositivos propostos e recriados pelo projeto Inventar com a diferença, do Laboratório Kumã. Isso mostrou-se muito formativo e criativo para os participantes, sendo inédita a experiência vivida pelos jovens atendidos. 3. O conhecimento sobre a linguagem audiovisual contribui com processos educativos emancipatórios na medida em que rompe com a condição passiva daquele que exclusivamente “consome” a produção cinematográfica existente. Com a apreensão desses saberes, torna-se possível dar às comunidades e aos grupos sociais marginalizados pela sociedade de classes a possibilidade de narrar suas próprias

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histórias, assumindo a voz na denúncia das mazelas e no anúncio das alternativas do bem viver, dentro de outro mundo possível. Paulo Freire usava as palavras geradoras para disparar seus processos educacionais. Imitando um pouco essa prática, gostaria que você definisse quais são as palavras fundamentais para o seu trabalho e que sentidos você tira delas. As palavras (“ideias-força”) que considero fundamentais para o meu trabalho na docência são: compromisso com a vida e contra práticas necrófilas e necropolíticas; ética e boniteza são inseparáveis; prática dialógica, círculos de cultura e respeito aos saberes dos educandos na escola e em espaços educativos; e estímulo a projetos críticos e criativos de ensino que se propõem a enfrentar a violação dos direitos humanos. Para comentar os sentidos que essas ideias e palavras fundamentais trazem ao meu trabalho como docente, vou destacar cada uma. Compromisso com a vida. Ao assumirmos um compromisso ético com a vida, consideramos necessário combater as práticas de opressão, violências e necropolíticas. Para cultivar a biopolítica, enfrentamos cotidianamente diferentes formas e conteúdos de silenciamento e de negação do outro. Tal enfrentamento é coletivo, exigindo firmeza e amorosidade para que possamos alimentar nossa capacidade de ser mais, rompendo com as limitações historicamente impostas à classe trabalhadora e oprimida da sociedade contemporânea.

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Ética e boniteza são inseparáveis. É fundamental que os educadores e os futuros educadores sejam desafiados a exercitar a ética e os valores necessários para a conquista da dignidade humana. Em um país que vivenciou 400 anos de escravidão e que vivencia diversas violações de direitos humanos, como o extermínio de povos indígenas, os temas da dignidade humana e do respeito à vida precisam receber destaque em nossas salas de aula. Sem a ética, que valoriza a diversidade das culturas das pessoas, não é possível encontrar e reconhecer a boniteza do humano entre nós, pois, conforme já nos alertava Paulo Freire em sua obra Pedagogia da autonomia, “a necessária promoção da ingenuidade à criticidade não pode ou não deve ser feita a distância de uma rigorosa formação ética ao lado sempre da estética. Decência e boniteza [andam] de mãos dadas”. Prática dialógica, círculos de cultura e respeito aos saberes dos educandos na escola e em espaços educativos. Na formação de educadores, é necessário desafiarmo-nos insistentemente a reinventar Paulo Freire nas escolas e nos espaços educativos não formais. Nas licenciaturas e no mestrado profissional, temos encontrado terrenos férteis para uma formação crítica e humanista, como já pudemos destacar em cursos como enfermagem e cinema, além do programa de pós-graduação em diversidade e inclusão. Os futuros educadores contribuem com suas indagações e suas histórias de vida, trazendo para o círculo de cultura de nossas aulas ricas perspectivas que aprofundam a problematização sobre o ensino e a aprendizagem. As leituras de mundo trazidas pelos futuros educadores são importantes

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ingredientes para alimentarmos o diálogo que toma como ponto de partida os saberes que cada pessoa traz consigo, provocando-nos radicalmente a buscar o respeito aos saberes dos educandos. A interação questionadora faz com que cada participante abale sua zona de conforto, ampliando as linguagens academicistas mais especializadas e inserindo o ser humano e a sua dignidade como conteúdo de formação e educação. Projetos de ensino que se propõem a problematizar a violação de direitos humanos. Em todas as áreas de conhecimento, inclusive naquelas que se dedicam a fórmulas e algoritmos, é necessário oportunizar aos futuros educadores situações de formação que exercitem o “ser mais”. Um exercício acadêmico que tem se mostrado bastante rico e desafiador é a criação de projetos de ensino que promovam o diálogo entre a área de saber específica e a temática da violação dos direitos humanos, com passagem pelas várias gerações de lutas e conquistas alcançadas pela humanidade. Tem sido importante que os educadores em formação possam ser convocados a exercitar a sua própria pedagogia da autonomia, mobilizando a criatividade e formulando propostas exequíveis que denunciem as violações e promovam a educação de sujeitos de direito. Assim, finalizamos com mais um pouco dos saberes necessários com que Paulo Freire (1999) nos brinda: “Se trabalho com crianças, devo estar atento à responsabilidade de minha presença que tanto pode ser auxiliadora como pode virar perturbadora da busca inquieta dos educandos; se trabalho com jovens ou adultos, não menos atento devo estar com

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relação a que o meu trabalho possa significar como estímulo ou não à ruptura necessária com algo defeituosamente assentado e à espera de superação”. Referências FREIRE, P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1999. NOGUEIRA, S. R. A.; CARDOSO, F. S.; YAMASAKI, A. A.; BASTOS, A. L. Freire, Renzulli e as oficinas interativas para alunos superdotados. Educação em foco, Juiz de Fora, v. 25, n. 3, p. 147-170, set./dez. 2020. NOGUEIRA, S. R. A.; CARDOSO, F. S.; YAMASAKI, A. A. Contribuições à formação de professores das ciências da natureza e matemática na educação em direitos humanos. Trabalho apresentado ao IV Congresso Nacional de Formação de Professores e XIV Congresso Estadual Paulista sobre Formação de Educadores, Águas de Lindoia, 2018. NOGUEIRA, S. R. A.; YAMASAKI, A. A.; CARDOSO, F. S.; RANGEL, A. C. N.; SILVEIRA, G. V. C. Reflexões sobre ensino de ciências com jovens atingidos por barragens na educação do campo no Rio de Janeiro. Humanidades & Inovação, Tocantins, v. 7, n. 12, p. 261-274, 2020. PEREIRA, F. A.; YAMASAKI, A. A. A prática pedagógica dos monitores-alfabetizadores do Pronera no assentamento Santa Cruz II/Tocantins: tentativas, acertos, conquistas.

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In: QUILLICI NETO, A.; SOUZA, V. A.; BUIATTI, V. (org.). Formação docente: história, políticas e práxis educacional. 1. ed. Uberlândia: Composer, 2015. v. 1, p. 183-196. SOUZA, V. M.; MONGE, R. P. M.; YAMASAKI, A. A. Paulo Freire e a cultura caiçara: a amorosidade no “cerco de saberes”. In: IX Encontro Internacional do Fórum Paulo Freire. Revista UniFreire. Turim: Instituto Paulo Freire, 2014. p. 16-22. YAMASAKI, A. A. Fertilizar e semear educação popular com Paulo Freire: desafios à universidade, à formação de educadores e educadoras do campo e à educação audiovisual. In: GADOTTI, Moacir; CARNOY, Martin (org.). Reinventando Freire: a práxis do Instituto Paulo Freire. São Paulo: Instituto Paulo Freire; Lemann Center/Stanford Graduate School of Education, 2018. p. 201-230.

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SEGURANÇA

Centro de Orientação ao Adolescente de Campinas (Comec)

Voltado para a educação de “adolescentes e jovens em conflito com a lei”, o Centro de Orientação ao Adolescente de Campinas (Comec) foi criado na década de 1980. Sua prática se inspira nas ideias de Paulo Freire: tem “a palavra como instrumento de transformação do homem e da sociedade” e ensina os alunos “a ler o mundo e nele intervir positivamente”, baseado “nos princípios da ética, do respeito à dignidade e do estímulo à autonomia”. Participam desta entrevista a terapeuta ocupacional e coordenadora Larissa Mazzotti Santamaria e as psicólogas Ana Flávia Silva Luz e Natasha Contro de Souza.

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Como é a estrutura e a rotina de trabalho do Comec? Com que força de trabalho vocês contam e quais públicos impactam? Atuamos há 40 anos no atendimento a adolescentes e jovens (de 12 a 21 anos) e aos seus familiares. A peculiaridade do nosso trabalho está em efetivar ações socioeducativas com adolescentes e jovens em conflito com a lei, antecedendo as normativas sobre esse serviço e incorporando as legislações que se sucederam, sendo basilares o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA, 1990), o Sistema Único de Assistência Social (Suas, 2005) e o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase, 2006). A estrutura, composta desse cenário legal, executa as medidas socioeducativas (MSEs) de liberdade assistida (LA) e de prestação de serviços à comunidade (PSC), sendo o espaço físico caracterizado pelo cuidado e pelo acolhimento dos atendidos. Nossas intervenções dão enfoque às atividades grupais, embora não excluam o atendimento individualizado. Para a execução das ações, o Comec conta com um quadro de diretores e 35 funcionários, entre equipe de apoio e equipe técnica, sendo essa última composta de profissionais das áreas de psicologia, serviço social, pedagogia, terapia ocupacional e ciências sociais, entre outras. Nossa rotina atual abarca o acompanhamento mensal de 240 adolescentes e jovens no cumprimento de MSEs de liberdade assistida (160) e prestação de serviços à comunidade (80). O tempo de atendimento de cada caso é determinado pela Vara da Infância e da Juventude, variando de um a seis meses no programa de PSC e de seis meses a três anos na LA. Para a realização dos programas, o Comec faz um ter-

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mo de colaboração com a prefeitura municipal, sendo que cada um possui especificidades distintas diante das determinações judiciais que recaem sobre [esses jovens]. Em linhas gerais, cada caso conta com uma equipe interdisciplinar (psicólogo, assistente social, educador social e/ou orientador de medida) que, pautada em seus conhecimentos específicos, soma esforços com o conhecimento institucional e realiza a construção de um Plano Individual de Atendimento (PIA) para cada atendido, alinhado às decisões da Vara da Infância e da Juventude. O cumprimento das medidas socioeducativas está intrinsecamente relacionado à execução do PIA, que contempla diferentes eixos pertinentes ao desenvolvimento desses adolescentes e jovens, tais como cidadania (garantia de direitos, orientação jurídica e organização da documentação pessoal), escolaridade (inserção e acompanhamento), trabalho (formação e inserção profissional), saúde (orientações, avaliação e encaminhamentos), moradia e convivência familiar (intervenções e encaminhamentos pertinentes). As intervenções do Comec não se limitam aos atendimentos semanais dos adolescentes e jovens e de seus familiares. É também realizado o acompanhamento dos atendidos nos serviços necessários, havendo articulação em diferentes áreas por meio de discussões dos casos e envios periódicos de relatórios para a rede socioassistencial do município e a Vara da Infância e da Juventude de Campinas, além de serem efetivadas visitas domiciliares e demais ações pertinentes à execução do PIA. A força de trabalho é constituída pelo empenho dos profissionais contratados e da diretoria voluntária que

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compõem a instituição. As ações desse coletivo impactam diretamente a vida dos 240 adolescentes e jovens atendidos mensalmente, bem como a de seus familiares. Consideramos também que há repercussão no cotidiano dos profissionais que aqui trabalham, pessoal e profissionalmente. Vocês afirmam que têm como um dos referenciais a pedagogia freiriana. Como as ideias de Paulo Freire transparecem nas suas atividades? Nossa ação central está na elaboração conjunta entre adolescente, família, equipe técnica do Comec, Vara da Infância e da Juventude e demais serviços envolvidos ou necessários na intervenção de cada caso para a construção e a execução do PIA. Partindo dessas questões iniciais e normativas, adotamos como fundantes preceitos da filosofia freiriana no que tange à interação dos profissionais com os adolescentes e jovens e suas famílias. Constitui, portanto, a socioeducação a capacidade dos educadores de estabelecer laços afetivos com os adolescentes e suas famílias, de criar sentimentos de empatia, entendimento, valoração de ideias, apreço e compreensão da diversidade, sendo esses aspectos essenciais para o fortalecimento de valores humanos de solidariedade, alteridade e respeito. Para tanto, é necessária uma comunicação sincera entre envolvidos, capaz de produzir amor humano, desenvolvido paulatina e progressivamente, o que requer vivência. Em suma, nossa proposta de socioeducação contém uma série de fatos, atitudes, vivências, valores, ideias e ações com perspectivas de humanização individual e social, que buscamos incansavelmente observando as ideias

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de Paulo Freire referentes à pedagogia do amor, dadas por meio de ações concretas inspiradas nas dimensões social, ética e crítico-reflexiva. Nossas atividades envolvem o empenho para a efetivação de uma comunicação verdadeira com os atendidos, sendo a construção das ações realizada de forma conjunta, em consonância com a concepção freiriana. Nós, profissionais, possuímos um papel diretivo e informativo, levando os adolescentes e jovens a conhecer conteúdos, mas não como verdades absolutas. Esse processo possibilita que o aprendizado seja mútuo. Para tal, é necessário que as relações sejam afetivas e democráticas, garantindo a todos a possibilidade de se expressar. Essa relação se torna o diferencial no atendimento socioeducativo realizado no Comec. A elaboração do PIA considera as características subjetivas e objetivas do atendido, da família e da comunidade, de modo a compreender o seu contexto social e propor ações que façam sentido para a sua vida e o seu cotidiano. Buscamos, no espaço de socioeducação, propiciar trocas entre o adolescente e seu orientador, e, para que exista comunicação verdadeira, há necessidade do encontro, que não pode ser algo superficial, teórico ou externo. Ele tem que ser experimentado, vivido, formando uma unidade relacional com o ser encontrado naquele momento. O encontro exige, por parte do orientador de medida, mansidão, aceitação, compreensão, conhecimento, serviço, amor e a crença no bem que há no outro pelo simples fato de ele existir como pessoa humana.

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Paulo Freire fala que é preciso sempre reinventá-lo. Como vocês pensam tê-lo reinventado, que mudanças foram necessárias? O que a prática, o contato com os atendidos e as diferentes realidades encontradas trouxeram de adaptações? A filosofia freiriana parte do processo educacional escolar, esse é um diferencial, visto que o Comec não realiza a alfabetização dos atendidos, e sim o acompanhamento de seu desenvolvimento escolar. Realizamos a educação não formal por meio de ações socioeducativas e, assim, reinventamos as práticas propostas por Paulo Freire. Nossa ação abrange a educação como política, de forma não partidária, mas como processo emancipador e de formação para cidadãos mais cientes de seus direitos e capazes de realizar uma leitura crítica de mundo. Isso é, sem dúvidas, pedagogia freiriana. Na socioeducação que realizamos, feita com base na vivência real de pessoas reais, é preciso reconhecer a trajetória dos atendidos, protegendo-os de estigmas que criminalizam sua existência, sobretudo por terem cometido alguma infração. Esse olhar macro que nossos profissionais realizam e buscam construir com os atendidos possui pilares na obra de Paulo Freire, redigidos nas obras Educação como prática da liberdade (1967), Pedagogia do oprimido (1968), Pedagogia da esperança (1992) e Pedagogia da autonomia (1996). Em todas as nossas ações, consideramos a palavra como instrumento de transformação do homem e da sociedade, sendo parte da nossa responsabilidade ensiná-los a ler o mundo e nele intervir positivamente, pautados nos princípios da ética, do respeito à dignidade e do estímulo à

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autonomia como base para uma educação emancipadora. A principal adaptação é realizada na construção conjunta e coletiva daquilo que o plano individual de atendimento deve possuir como estratégias e metas, pois precisa haver sentido para que o adolescente e sua família se apropriem dessa construção. No que essa fundamentação “não só em Paulo Freire, como em um pensamento elaborado sobre a pedagogia”, como vocês escrevem, diferencia o Comec de outras instituições voltadas para menores infratores? Posto de outra forma, qual é o contexto de atuação da Comec em comparação com outros órgãos, como a Fundação Casa? Acreditamos que o diferencial do atendimento do Comec em relação às demais executoras de medidas socioeducativas em meio aberto está na metodologia utilizada, pela rigorosidade metódica e pela pesquisa permanente. A aliança indissolúvel entre a ética e a estética, o compromisso incessante com a competência profissional, o respeito pelos saberes do educando e o reconhecimento da identidade cultural, além da rejeição de toda e qualquer forma de discriminação, visando à reflexão crítica da prática pedagógica, à corporificação do exemplo, saber dialogar e escutar, querer bem aos educandos, ter alegria e esperança, liberdade e autoridade e a consciência do inacabado. Esses são elementos que incorporam os fundamentos de nossa prática. Ressalta-se que o contexto de atuação do Comec se difere daquele da Fundação Casa, uma vez que as unidades de internação são caracterizadas pela privação da liberdade, sendo denominadas instituições totais. Seu fechamen-

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to ou seu caráter total é simbolizado pela barreira à relação social com o mundo externo. Por outro lado, as medidas em meio aberto, como a liberdade assistida e a prestação de serviços à comunidade, contam com a garantia de liberdade, ou seja, o direito de ir e vir dos adolescentes e jovens. Isso faz com que lidemos com a imprevisibilidade cotidiana; logo, o vínculo do adolescente e jovem com a equipe técnica se torna fundamental para o seu desenvolvimento. Nesse sentido, as relações sociais estabelecidas pelos atendidos com os familiares, os amigos, o território de moradia, os serviços de saúde, a educação, a assistência social etc., bem como com sua equipe de referência na medida socioeducativa, são valorizadas de modo que venham a auxiliá-lo em novas escolhas e no seu projeto de vida. Para nós, é indiscutível a importância de olhar para a realidade dos adolescentes e jovens em conflito com a lei na perspectiva da pedagogia freiriana, tendo em vista o caráter histórico-contextual em que toda realidade oprimida se situa. Portanto, os adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa, como grupo social, participam da vivência em sociedade, ainda que excluídos, prejudicados em sua forma de pensar, sentir, criar e transformar. A relevância das medidas socioeducativas se destaca ainda mais pela objetivação da humanização do adolescente que praticou um ato infracional, sendo esse um aspecto importante na análise e na crítica do ato realizado.

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Vocês pensam que as instituições voltadas para adolescentes em conflito com a lei, de forma geral, poderiam se aperfeiçoar com uma abordagem freiriana? Se sim, em que sentido? Com que possíveis benefícios? Sim, consideramos de extrema relevância o conhecimento da pedagogia freiriana para instituições que atuam com adolescentes em qualquer situação. No âmbito dos adolescentes em conflito com a lei, vivenciamos a possibilidade de estabelecer uma relação autêntica, reconhecendo que, por diversas vezes, são estigmatizados e desacreditados em muitas de suas relações sociais. A relação empática e a construção conjunta de um plano de atendimento são elementos, em nosso ponto de vista, essenciais para a construção de um vínculo entre o adolescente em cumprimento de medida e a sua equipe de referência. A partir disso, é possível ocorrer uma circulação verdadeira da palavra, ou seja, abre-se um espaço de fala a fim de que ele se sinta livre para verbalizar suas histórias, experiências, angústias e riscos, entre outros aspectos. Acreditamos que essa forma de comunicação empática apresenta potencial de transformação dos contextos de exclusão, pois a partir dela é possível alocar o atendido para um papel de protagonista de ações de mudança de si e da comunidade à qual pertence. Desse modo, a proposta metodológica que se desenvolve em consonância com os pressupostos da educação popular descrita por Paulo Freire se compromete com a construção de conhecimentos que promovam condições para a superação de situações de exclusão e opressão social, sendo esse um benefício primordial para a execução das medidas. Essa parceria possibilita

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que o adolescente crie um novo caminho para percorrer, ressignificando seus atos. E, ao se libertar de chavões alienantes, seguiria e criaria o rumo do seu aprendizado e de uma formação da consciência política. Na sociedade brasileira atual, diversos grupos pressionam por punições mais pesadas aos adolescentes infratores, assim como pela diminuição da maioridade penal. Como vocês veem esses movimentos? Que políticas públicas vocês defendem para a área? Em um crescente, [transparecem] as questões sobre violência e criminalidade cotidianas, o que inclui o segmento populacional adolescente. Com diferentes posicionamentos acerca das realidades, noticiários, reportagens e outras formas de divulgação midiáticas ressaltam os adolescentes nas ocorrências de atos considerados violentos, potencializando os discursos sobre punições mais coercitivas, como é o caso da redução da maioridade penal. No Comec, as infrações consideradas graves não representam esse binômio construído em torno da adolescência e da violência; o que observamos é um número expressivo de adolescentes e jovens sendo assediados para o trabalho do narcotráfico, questão que o Brasil deveria colocar em pauta nas políticas públicas (exploração do trabalho infantil) no lugar dessa redução. Nós, do Comec, nos colocamos em definitivo contrários a tais ações. Vemos tal movimento como uma maneira de culpar o adolescente, separando-o dos contextos social, cultural, político, econômico e familiar, entre outros diversos aspectos. Ou seja, consideramos que tais argumentos criminalizam a pobreza sem considerar as vivências, o cotidiano

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e as violações de direitos atrelados aos atos de adolescentes em conflito com a lei. Defendemos a reflexão acerca do fenômeno da adolescência e juventude, especialmente desses adolescentes reconhecidos como “em conflito com a lei”, como parte de uma proposta de trabalho pedagógico e socioeducativo. Além das divulgações de seu trabalho e de pesquisas na área, o Comec compõe o comitê gestor do Sistema Municipal de Atendimento Socioeducativo de Campinas, que tem como premissa a garantia de direitos a adolescentes em cumprimento de medidas socioeducativas, sendo contrário à diminuição da maioridade penal. Observamos desconhecimento da população em geral do processo socioeducativo existente e, por vezes, a não aplicação correta e completa do que é preconizado pelo ECA e pelo Sinase. As legislações, quanto ao atendimento dos adolescentes e jovens em conflito com a lei, necessitam ser devidamente efetivadas e implementadas em sua totalidade, para que assim viabilizem o funcionamento dos ideais nelas prescritos e possam ser discutidas reestruturações plausíveis. Paulo Freire usava as palavras geradoras para disparar seus processos educacionais. Imitando um pouco essa prática, gostaria que definissem quais são as palavras fundamentais para o seu trabalho e que sentidos extraem delas. Para nós, do Comec, algumas palavras fundamentais nesse trabalho podem ser encontradas nos valores institucionais que os profissionais que aqui trabalham compartilham. Tais valores mantêm a coerência no grupo do trabalho,

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alinhados à missão e à visão dessa instituição. Sendo assim, destacamos: — ética: atuação profissional qualificada, pautada nas normativas e nas diretrizes dos conselhos de classe, comprometida com a escuta, a acolhida, a orientação dos atendidos e a transparência de suas ações; — respeito: promoção da socioeducação dos adolescentes e jovens e do atendimento de seus responsáveis/familiares, contribuindo para a eliminação de quaisquer formas de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão; — diversidade humana e cultural: respeito às semelhanças e às diferenças entre pessoas e culturas e defesa dos direitos humanos; — responsabilidade social: promoção da liberdade, da dignidade, da igualdade e da integridade do ser humano, apoiada nos valores que embasam a Declaração Universal dos Direitos Humanos e analisando crítica e historicamente as realidades política, econômica, social e cultural; — formação continuada: sucessivo aprimoramento profissional, contribuindo para o desenvolvimento da área como campo científico de conhecimento e de prática.

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MÚSICA

Estêvão Couto Teixeira

Mestre em educação pelo Centro de Ensino Superior de Juiz de Fora (CES/JF) e bacharel em música (flauta) pela Escola de Música da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Estêvão Couto Teixeira é autor da pesquisa Alfabetização musical – o legado de Paulo Freire e a aprendizagem da música.

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Estêvão, professor de percepção, música de câmara, piano e flauta transversal do Conservatório Estadual de Música Haidée França Americano, em Juiz de Fora (MG), é inventor do teclado didático para o ensino da música (Tedem), uma inovadora metodologia de ensino e aprendizagem baseada na visualização das formas musicais no teclado. O método Tedem é lei municipal em Juiz de Fora (nº 10.861/2004), com o propósito de reinserir o ensino da música nas escolas públicas da rede municipal de ensino fundamental. A Lei foi regulamentada pelo Decreto nº 8.587, de 7 de julho de 2005. A convite do Instituto Paulo Freire de Portugal, Estêvão realizou shows e oficinas de música com o método para cerca de 800 crianças de escolas públicas e privadas do país em dezembro de 2005 e em maio de 2007. Como Paulo Freire surge em sua trajetória pessoal e profissional? Como se deu o seu contato com o autor? O meu primeiro contato com Paulo Freire foi na escola, ainda adolescente, nas aulas de formação humana e cristã num colégio em que estudei em Juiz de Fora. No 3º ano – antigo 3º ano científico –, eu me mudei para outro colégio, a Academia de Comércio, na mesma cidade, e lá participei de grupos de estudo, nos quais também tivemos contato com textos dele. No entanto, a minha verdadeira imersão na obra freiriana foi depois, com o mestrado, com a pesquisa que fiz sobre uma alfabetização musical com o Tedem, em que precisei estudar como relacionaria o referencial teórico de Paulo Freire na minha prática musical. Foi um processo que se deu aos poucos, cada vez fui

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descobrindo uma nova maneira de utilizar as ideias de Freire no meu dia a dia com a música. Valorizando o repertório dos alunos e o que eles tinham para me mostrar, porque Freire disse que você ensina aprendendo e aprende ensinando. Então, [fui descobrindo] como poderia aproveitar ao máximo as experiências musicais que cada um dos alunos traz consigo. Na sua visão, como a pedagogia freiriana pode se associar ao campo da música? A pedagogia freiriana sempre dá oportunidade aos que estão excluídos da nossa sociedade, a valorização daqueles que nunca tiveram voz para se expressar, o direito à alfabetização. É por isso que o autor trabalhou tanto a alfabetização de jovens e adultos, porque o nosso país, o Brasil, tinha um índice muito alto de pessoas que não estavam – que não eram – alfabetizadas. Transferindo isso para a música, digo que a música popular brasileira teve muito pouco espaço nas universidades, nos conservatórios e nas academias, começando a conquistá-lo recentemente. Digamos que, no início do século XX, a música popular era totalmente excluída das escolas, sendo inclusive considerada de categoria inferior. O ensino musical esteve muito pautado em conceitos e obras de autores europeus. Foi somente com a Semana de arte moderna de 1922 que começou uma valorização da música popular brasileira. Então, a perspectiva freiriana se associa ao campo da música justamente nessa valorização da expressão genuína brasileira, da expressão popular dos músicos populares,

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que é tão rica e diversificada, e em como ela poderia ser levada para o meio acadêmico. E o que é alfabetização musical? Na sua opinião, como ela deve estar inserida nas escolas? Alfabetização musical é o ato de ensinar música, de ensinar a ler e a escrever, mas a ouvir também. E, dentro de uma visão freiriana, isso se amplia para uma questão de leitura de mundo, de formação de uma visão crítica. Nesse sentido, a alfabetização musical deve estar inserida num contexto em que a criança primeiramente vai aprender a lidar com sons, com uma música, a perceber quais são os sons graves e quais são os agudos. Posteriormente, ela deve ter contato com o papel, com a partitura. Agora, as escolas, as universidades e os conservatórios estão se preocupando mais com esse aspecto de valorização da percepção da audição, mas é muito comum vermos, nessas instituições, a valorização da música escrita, da música no papel. Isso, de certa forma, escraviza e pode dificultar, depois, o entendimento da música de uma maneira mais lúdica, mais criativa, que trabalhe o lado da improvisação, por exemplo. E digo isso porque, observando a própria criança, ela não aprende a escrever primeiro. Aprende a falar e depois vai passar pelo processo de alfabetização escrita, logicamente. Aliás, antes de tudo ela canta, e depois é que começa a desenvolver a linguagem verbal falada. Então, é essa valorização que trago para o campo da música. Com base nos conceitos freirianos – e o Tedem trabalha exatamente isso –, antes de introduzir a música no

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papel, é necessário trabalhar a ideia de sons mais graves e mais agudos, de visualização dessas geografias no teclado. E isso vai proporcionar outro tipo de concepção e de formulação de conhecimento da estrutura musical, para depois entendê-la no papel. O fazer musical também é um ato político, pois a cultura musical popular deve ser aceita, deve ser inserida nos processos de educação das escolas tradicionais e das universidades. Cada um tem as suas maneiras, as suas formas de expressão musical. Como é que pode um músico que, a princípio, não tem nenhuma teoria musical pegar a sua viola, a sua sanfona e tocar a noite inteira, sem parar, uma música atrás da outra, sem saber ler e escrever música? Você vai dizer que ele é um analfabeto musical? Esse novo conceito de alfabetização musical é também um princípio freiriano de valorização dessas novas formas, de expressões populares musicais. A academia, os conservatórios e as universidades deveriam aprender e estudar essa forma de apreensão da linguagem musical pelos músicos populares, valorizar todo esse conteúdo. Paulo Freire fala que é preciso sempre reinventá-lo. Como você pensa tê-lo reinventado com o seu trabalho no campo da música? No caso da música, creio que fiz uma reinvenção por meio do instrumento Tedem. É um protótipo de um teclado que não tem som e, a princípio, isso é uma incongruência, porque a música é a arte dos sons, mas justamente aí está o processo de reinvenção dentro da música na perspectiva freiriana.

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Os alunos primeiramente vão exercitar e trabalhar o lado da percepção musical, o lado da audição, sem entender a música no papel. O processo de escrita musical deve ser posterior a esse de assimilação da linguagem sonora, isso é muito importante. É o trabalho desse lado lúdico, mais solto, mais alegre e mais prazeroso da música. E cada aluno traz sempre uma novidade para o professor, por isso é interessante e importante a noção que Paulo Freire destaca de que se ensina aprendendo. Falando sobre o Tedem, poderia nos contar um pouco mais sobre ele e como se assemelha aos princípios freirianos de alfabetização – no caso, a alfabetização musical? É um teclado que uso para ensinar música de uma maneira diferente. É um instrumento que não possui som, serve apenas de painel de visualização das formas musicais, sejam elas escalas, acordes ou intervalos. O Tedem surgiu de uma forma inesperada, eu não pensei que estivesse criando um teclado, um método e muito menos um protótipo de algo que não existia: imaginei que outras pessoas já haviam pensado nessa maneira de ensinar música, com as teclas se levantando do plano do teclado. Depois, quando fui trabalhar o texto da patente, fiquei surpreso com muitas invenções tecnológicas com chips, questões eletrônicas, mas nenhuma tão simples assim, de um teclado didático em que as teclas se levantam. Ainda não havia nada desse tipo patenteado. O Tedem surgiu em 1987, quando comecei a dar aula no Centro Ian Guest de Aperfeiçoamento Musical, no Rio de Janeiro. Já estava dando aula de harmonia aplicada ao

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teclado e sempre tinha de chamar os alunos para ver as ocorrências harmônicas que eu tocava no piano. Todos se levantavam das suas cadeiras para poder me ver tocando os acordes e, depois, sentavam-se novamente. Com base nessa necessidade, bolei um teclado que era, a princípio, realmente as teclas de um piano fixadas num painel. As teclas se movimentavam e, quando ficavam levantadas, era possível mostrar aos alunos qual era a formação daquele acorde. Foi assim que ele surgiu e, a partir daí, foram sendo descobertas novas formas de sua aplicação. E também de que maneira ele teria trabalhado dentro de um conceito freiriano, exatamente da valorização da formação musical que cada aluno traz consigo para a sala de aula, de cada um desses conteúdos que devem ser inseridos e absorvidos no processo de educação musical. Paulo Freire usava as palavras geradoras para disparar seus processos educacionais. Gostaria que definisse quais são as palavras fundamentais para o seu trabalho e que sentidos você tira delas. As minhas palavras geradoras no campo da música seriam o trabalho primeiramente sobre as notas musicais, as quais todos conhecem. Quais são as notas musicais que todos nós conhecemos? Dó, ré, mi, fá, sol, lá, si, dó, si, lá, sol, fá, mi, ré, dó – na verdade, são sete notas musicais. Como é que eu trabalho, qual é o início do meu trabalho no processo de alfabetização musical com o Tedem? Trabalho inicialmente com um grupo gerador de apenas duas palavras, que no caso seriam duas notas: sol e lá. E por quê?

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Primeiramente, porque essas duas notas estão numa região vocal facilmente cantada; segundo, porque a alfabetização musical nas escolas está muito associada ao instrumento da flauta doce, no qual essas duas notas são fáceis de ser executadas. Trabalho também com o berimbau, que é um instrumento que toca apenas duas notas basicamente. São duas notas, uma nota mais aguda e outra mais grave. Então, essas seriam – comparando com a metodologia freiriana – as palavras geradoras. A partir delas, vou criando os ritmos diferentes, mudando inclusive os sons, mantendo esse mesmo intervalo, mas trabalhando com outros sons para que o aluno tenha consciência de que pode executar esse mesmo intervalo em outras tonalidades. A partir daí, depois que o aluno está seguro, começo a trabalhar três notas musicais – sol, lá e si –, e assim por diante, até a escala completa, a escala diatônica de dó com as sete notas. Você é autor de uma música sobre Paulo Freire, não? Essa música foi criada para ser tocada em um encontro internacional sobre Paulo Freire que houve em São Paulo. Para esse evento, falei que iria compor uma música em homenagem ao educador. [A data] foi chegando perto e eu não tinha inspiração nenhuma para compor a música. Um mês antes, ainda não tinha escrito nada. Daí, eu me lembrei de que Paulo Freire aprendeu a escrever à sombra dos galhos de uma mangueira, rabiscando com gravetos no chão. Fui para debaixo de uma das árvores do condomínio onde moro e falei: “Paulo Freire, por favor, me dê uma

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inspiração aqui, tenho de assumir o compromisso de tocar a música no encontro internacional”. Por incrível que pareça, a melodia da música veio por inteiro e eu a coloquei logo no papel. Assim surgiu “Alegria de Paulo Freire”, que foi tocada no evento. Foi em sua abertura, com auditório cheio, lotado. Eu com a flauta. Entreguei a partitura original que escrevi a Lutgardes Freire. Está arquivada no Instituto Paulo Freire. Foi um momento muito emocionante para todos que estavam presentes ali.

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TEATRO

Abel Xavier

Doutorando pela Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (Feusp) e profissional da área de artes e educação, Abel Xavier pesquisa o pensamento de Paulo Freire na prática da pedagogia do teatro desde 2015. Anteriormente, concluiu mestrado em artes da cena pela Escola Superior de Artes Célia Helena (ESCH) e especialização em gestão de projetos culturais pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP), produzindo um artigo no qual estuda o currículo do curso de artes cênicas do Departamento de Artes Cênicas (CAC) da USP.

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Como surgiu o seu interesse por Paulo Freire como objeto de pesquisa e qual era sua relação anterior com a obra dele? A primeira vez que ouvi falar em Paulo Freire foi em 2005, época em que fiz a minha primeira graduação, em artes cênicas, pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Mas ele era apenas um nome que eu ouvia de colegas que eram mais próximos à pedagogia. Quase dez anos depois, quando já era professor de teatro e havia lido alguns de seus livros, percebi que um processo artístico-pedagógico poderia muito facilmente se relacionar com as práticas e as proposições de Paulo Freire. Havia, nas suas reflexões, um modo de pensar a formação das pessoas que muito se assemelhava às metodologias do ensino do teatro às quais eu tinha acesso até aquele momento. Na sua pesquisa, o pensamento de Paulo Freire entra para valorizar a realidade e o contexto social da pessoa em estágio de aprendizagem. Você chegou a ver isso aplicado na prática, no aprendizado de um educando no curso de artes cênicas? Como o campo da minha pesquisa na época da especialização foi estritamente documental, eu não cheguei a acompanhar como, na prática, os estudantes e os professores do CAC/USP lidavam com as formas freirianas de ensino e aprendizagem. Mas na mesma época, em outro contexto, eu conduzia uma turma no extinto Centro Livre de Artes Cênicas (Clac) de São Bernardo do Campo, em São Paulo. Ali, sim, pudemos experimentar o pensamento de Paulo Freire na prática da pedagogia do teatro. Por meio da linguagem teatral, os estudantes iam se dando conta da sua posição social e buscávamos, juntos, possibilidades de atuação artística e política.

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Quando define o aluno que ingressa no curso de artes cênicas, você relata que, em geral, ele já possui “uma capacidade crítica bastante apurada”. Fica mais fácil, por esse motivo, aplicar a filosofia de Paulo Freire nessa prática de aprendizagem? Quem busca o teatro como atividade profissional, ou seja, como prática de participação social no mundo, de alguma maneira já reconhece que a arte tem uma vocação transformadora. Geralmente, porque a própria pessoa é testemunha dessa transformação. Ela própria, ao experimentar o teatro, seja na infância ou na adolescência, viveu alguma transformação no âmbito da sua própria identidade. Portanto, o fazer teatral começa a ser uma condição de existência, um traço da identidade. Aos poucos, o aprendiz de teatro vai se dando conta de que a sua arte, ao transformar pessoas, pode transformar estruturas sociais também. É aí que, para mim, Paulo Freire entra, para nos fazer entender que um conhecimento historicamente construído (no nosso caso, a linguagem teatral) é algo vivo, mutável, manipulável, determinado pelo tempo histórico e determinante dele também. O aprendiz vai percebendo que sua ação na cena tem poder. Poder de leitura e escrita de novos mundos. Alfabetizar-se teatralmente é uma maneira de compreender que a sua presença e a sua ação têm força e fazem a diferença no tempo e no espaço social.

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Uma contradição apontada na sua pesquisa é que, apesar de a formação do licenciando em artes cênicas pelo CAC/USP estar apta a propiciar “o desenvolvimento de metodologias capazes de gerar espírito crítico e consciência histórica”, Paulo Freire não faz parte da bibliografia. Você saberia explicar essa ausência? Sabe dizer se, de lá para cá, isso mudou? Não acompanhei a transformação bibliográfica do curso de 2015 para cá. É provável que tenha havido mudanças. O que posso dizer hoje é que, em muitos casos, a prática do professor de teatro é freiriana, mas ou ele não se dá conta disso ou não nomeia sua prática dessa forma. Tem algo entre o fazer e o pensar a prática pedagógica que exclui a referência de Paulo Freire. Mas isso tem uma explicação razoavelmente simples: não o consideramos como um pensador da arte. Ele é compreendido como um pensador da educação. Arte e educação, apesar de se tangenciarem, guardam suas especificidades, evidentemente. Mas o que acontece é que Paulo Freire é tão universal e fundante que suas ideias vazam do campo da educação. O que ele propõe é da ordem da cultura, das relações sociais, da política, é maior que a escola e a educação escolar. O que eu propunha na pesquisa da época (e que continuo pensando hoje) é que podemos ler Paulo Freire à luz do campo teatral. Tudo o que é dito em Pedagogia da autonomia (1996), por exemplo, deveria ser lido por todos que trabalham com teatro (atores, diretores, professores, críticos etc.). Quando lemos essa obra, nós nos tornamos pessoas melhores, artistas melhores.

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Em um curso de teatro, como se dá a conciliação do pensamento crítico e individual de cada aluno com o ensino das técnicas? Um complementa o outro, sem possibilidade de ruído? Como diz Paulo Freire, o conhecimento é histórico, ligado a determinado contexto e elaborado por determinados atores sociais. Nesse sentido, a técnica, como conhecimento, também é. Ela representa um ponto de vista, uma necessidade do tempo, uma saída para problemas criados no e pelo tempo histórico. É dessa forma que podemos ler as técnicas da linguagem teatral. Em um curso de formação de atores ou de professores de teatro, ensinar técnicas é também ensinar a se relacionar com elas de maneira crítica e viva. A técnica é uma trilha. É como se eu mostrasse uma trilha (uma técnica) para chegar a um objetivo, mas que ficasse bem claro que há outros caminhos inexplorados e que o terreno atual pede novos exploradores e criadores de trilhas. Assim, a relação com a técnica deixa de ser submissa e passa a ser crítica, porque entende-se que ela é uma construção histórica, passível de questionamento, releitura, subversão, superação ou assimilação. Se for assim, não tem ruído. Como foi a evolução da sua pesquisa da especialização para o doutorado e como Paulo Freire continua nessa investigação? Depois da especialização, fui fazer o mestrado na ESCH. De maneira transversa, Paulo Freire me ajudou a pensar a prática pedagógica da Casa do Teatro, escola de arte para crianças e jovens que foi o campo dessa pesquisa. Ali pude me aprofundar um pouco mais na aplicabilidade da educação freiriana no ensino do teatro.

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Para o doutorado, na Feusp, fiz um recorte em torno da presença cênica, que é uma condição da prática teatral, um estado corpóreo do aqui e agora, típico da cena. O trabalho é pensar quais relações podemos estabelecer entre o estado de presença cênica e o estado de presença histórica. Por presença histórica, entendo essa tomada de posição no mundo, a compreensão de ser agente e resultado de certo contexto. Como estar presente na própria história se relaciona com o estar presente em cena, e vice-versa? Paulo Freire, é claro, faz parte do escopo teórico, justamente por apontar para essa educação que coloca os dois pés do aprendiz no seu tempo, no aqui e agora social. E o que se vê quando os dois pés estão no presente? O que fazer com essa presença, com sua capacidade de ação? Paulo Freire usava as palavras geradoras para disparar seus processos educacionais. Quais são as palavras fundamentais para o seu trabalho de pesquisa e que sentidos você extrai delas? A palavra presença é a que mais tem me movido atualmente. Não só porque é uma palavra (e uma competência) importante para o teatro, mas também porque me parece necessário discutir o que é estar presente na vida atualmente. Na vida comum mesmo, no cotidiano, na prática do dia a dia. Tenho a impressão de que nosso tempo histórico tem nos tirado a sensação de presença. E me preocupam as consequências disso.

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FOTOGRAFIA

ImageMagica

Atuante desde 1995, a ImageMagica é uma organização da sociedade civil de interesse público (Oscip) que pensa e pratica a fotografia como expressão e educação, atingindo cerca de 400 mil pessoas com suas ações. Desde os primeiros anos, desenvolve uma atividade com viés freiriano, ainda que sem conhecê-lo – após entrar em contato com a obra do educador, puderam aprofundar suas ideias. Conversa conosco nesta entrevista André François, fotógrafo e fundador da ImageMagica.

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Como é a estrutura e a rotina de trabalho da ImageMagica? Com que força de trabalho vocês contam e quais públicos impactam? Hoje, contamos com 12 pessoas que trabalham fixamente na organização. Para a execução dos projetos em campo, chamamos e capacitamos outros educadores. O principal público que impactamos são alunos de escolas públicas, que multiplicam o aprendizado para os seus professores e até mesmo para os seus familiares. Fundada em 1995, a organização foi desenvolvendo a sua metodologia educacional e, em 1999, quando entrou em contato com o pensamento de Paulo Freire, descobriu uma filiação. Gostaria de saber mais sobre como foi esse desenvolvimento e, nesse segundo momento, quais foram os pontos de contato com Paulo Freire. Sim, quando iniciei o trabalho da ImageMagica, ainda não tinha me relacionado com a filosofia de Paulo Freire. Quando me disseram que a nossa metodologia tinha muito a ver, pesquisei e vi que realmente se conectavam. O processo que aplicamos sempre foi no sentido de que o aprendizado se constrói no fazer, de que não há somente um caminho de mão única (professor repassando conteúdo ao aluno), mas sim algo mais horizontal. No mesmo sentido, a pedagogia de Paulo Freire ajudou a aperfeiçoar o que vocês já faziam? Sim. Começamos a lapidar um pouco mais as nossas atividades e nos apropriar da pedagogia freiriana. Dessa maneira, pudemos mergulhar nessa filosofia e absorver ainda mais conhecimento, trazendo a metodologia de uma forma mais consciente para nossos projetos.

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Paulo Freire fala que é preciso sempre reinventá-lo. Como vocês pensam tê-lo reinventado, que mudanças foram necessárias? O que a prática, o contato com os alunos e as diferentes realidades encontradas trouxeram de adaptações? Muito do que usamos da pedagogia de Paulo Freire está relacionado com o fazer. O educar pelo fazer, pela ação. Pensando nisso, e atuando com os projetos de fotografia, o que mais acontece em nossos campos é esse dinamismo na hora de aprender. Às vezes, os alunos trazem temas específicos que querem trabalhar ou propõem lidar com um tema de uma maneira diferente. Então, é um processo muito dinâmico e muito diferente a cada momento. Por exemplo, quando trazemos o tema do meio ambiente, todos podem fotografar uma árvore, mas a maneira como vão fazer isso traz perspectivas e ângulos diferentes, e a vida é assim. Às vezes, a vida é interpretação – e essa interpretação é aberta nesse processo de aprendizado. Vocês estão no campo da imagem, da arte e da tecnologia. Como é fazer a transposição da pedagogia de Paulo Freire – que atuou com alfabetização, leitura e linguagem – para esses outros âmbitos? Considero que a nossa intersecção com Paulo Freire é o aprender pelo fazer. Isso pode ser em qualquer coisa, tecnologia, fotografia... E levamos a fotografia para a escola de uma maneira na qual todos, alunos e professores de diferentes idades, vão buscar juntos o aprendizado em imagens. Acho interessante porque, com isso, nivelamos o aprendizado das pessoas, o que é um diferencial.

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Paulo Freire usava as palavras geradoras para disparar seus processos educacionais. Imitando um pouco essa prática, gostaria de saber quais são as palavras fundamentais para o seu trabalho e que sentidos extrai delas. Geralmente, fazemos três perguntas básicas para todos os participantes de nossos projetos: “Como você vê o seu mundo?”; “Como você gostaria que esse mundo fosse?”; “O que você pode fazer para alcançar esse mundo ideal que criou?”. E sempre provocamos os participantes para que essas respostas tragam empoderamento. Às vezes, algumas respostas são: “Eu gostaria de um mundo melhor, mas a política, o meu bairro...”, enxergando que o problema está fora. E perguntamos de volta: “Mas o que você, como indivíduo, pode fazer para mudar o seu mundo?”. Acredito que, usando o método baseado na experiência de vida e na realidade da pessoa, somos capazes de extrair reflexões e aprendizados únicos.

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ARQUITETURA

Usina – Centro de Trabalhos para o Ambiente Habitado (CTAH) A Usina – Centro de Trabalhos para o Ambiente Habitado (CTAH) assessora movimentos sociais na luta pela terra e pela moradia. Na sua atividade, entremeiam-se conceitos de Paulo Freire: “Buscamos trabalhar a partir de problemas geradores, de forma a abordar o projeto de arquitetura com base nas necessidades mais diretas e concretas das famílias”. Nesta entrevista, conversamos com o arquiteto e urbanista Flávio Higuchi Hirao. Ele também falou sobre a Usina em uma edição do Brechas urbanas, ciclo de debates do Itaú Cultural sobre a vida nas cidades. Para assistir ao vídeo, acesse: bit.ly/ brechas_construirjuntos.

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Como é a estrutura e a rotina de trabalho da Usina? Com que força de trabalho conta e quais públicos impacta? A Usina é uma entidade sem fins lucrativos cujo objetivo é prestar assessoria técnica a grupos organizados que lutam por moradia. Conta com uma estrutura definida em estatuto, com coordenadores eleitos em assembleia (coordenadores geral, financeiro e operacional). No cotidiano, nós nos organizamos de forma autogestionária, com divisão por equipes de trabalho e reuniões gerais semanais – ocasião em que reunimos todo o coletivo para as principais decisões. O tamanho da equipe tem se alterado ao longo dos 30 anos de existência da Usina; é composta de profissionais, em sua maioria, da área de arquitetura, mas também da sociologia, da história, das artes e do cinema, por exemplo. Na atuação da Usina, onde vocês apontam a influência de Paulo Freire? Na sua origem, na relação com os moradores e os alunos? Há uso e/ou desdobramento do método ou das ideias éticas e pedagógicas do autor? As concepções de Paulo Freire são importantes em diversos momentos, mas principalmente no próprio canteiro de obras (na relação com os trabalhadores) e no momento do projeto participativo. Buscamos trabalhar a partir de problemas geradores, de forma a abordar o projeto de arquitetura com base nas necessidades mais diretas e concretas das famílias, e não em formas e representações que são comuns ao campo disciplinar, mas que pouco contribuem na participação direta dessas famílias.

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O trabalho da Usina se baseia na “capacidade de planejar, projetar e construir pelos próprios trabalhadores”, diz o descritivo no site. Como é esse contato com os trabalhadores, que aprendizados vocês tiveram nessa relação? O trabalho de arquitetura, para nós, se coloca num campo maior, que é o da construção. Portanto, insere-se numa esfera produtiva, na qual os trabalhadores da construção civil são os principais protagonistas. Assim, há o permanente desafio de praticar a arquitetura em relação direta com os saberes dos construtores, entendendo-a desde o momento da concepção (projeto e planejamento) até a própria produção. Ao mesmo tempo, nosso lugar como assessoria técnica se articula com a auto-organização das famílias envolvidas, que realizam diretamente a gestão da produção do espaço. Além disso, como trabalhadores, entendemos não apenas os próprios operários da construção, mas também as famílias que lutam por terra e casa. Essas famílias, ao se organizarem coletivamente, ocupando terras e reivindicando fundos públicos para construção, colocam-se como agentes ativos, impondo uma atitude de protagonista, de baixo para cima, e rompendo com os padrões dominantes na política habitacional estatal, segundo os quais essas pessoas são apenas números de déficit habitacional. Ademais, enfoca-se o valor de uso da casa, em contraposição ao valor de troca (objetivo principal das casas construídas pelo mercado – ainda que contratadas pelo Estado). Esse destaque do valor de uso se manifesta no campo produtivo, ao reduzir o protagonismo do modo empresarial e a sua respectiva extração de mais-valia e aumentar a presença das próprias famílias na gestão direta da produção.

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Em Paulo Freire, lemos como os educandos se empoderam gradativamente, como vão ganhando consciência de suas poten cialidades de fazer o mundo. Isso se assemelha às experiências que vocês tiveram com a Usina? De que modo? Sim. A percepção de que as próprias famílias podem decidir como serão suas casas, como será a construção, assim como a consciência de que a organização e a mobilização coletivas levam a essa realização, tem grande potencial de ampliação da luta para outras esferas. No site, também é dito que a sua atividade acontece “no contexto de luta pelas reformas urbana e agrária”. Paulo Freire já ressaltou que a educação não se separa da política. Arquitetura e urbanismo também não? Não há separação, uma vez que a arquitetura é parte da produção do mundo. A arquitetura que se diz separada da política é, na verdade, uma que a dissimula. Mario Sergio Cortella comenta que “mutirão” descende de potiron, que em tupi quer dizer “mãos juntas”. E diz: “Paulo Freire é o grande inspirador desse mutirão. Homens e mulheres que se juntam no dia a dia e na história para construir uma outra realidade. Para fazer o inédito possível”. Como vocês veem essas ideias e o papel do mutirão como recurso na construção popular? O mutirão é uma prática popular baseada na ajuda mútua, tão comum nas tradições camponesas, mas que permanece na autoconstrução das moradias urbanas. Sendo assim, a ajuda mútua sempre foi uma das formas elementares para a viabilização das casas nas periferias das grandes cidades

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brasileiras. O que os movimentos de moradia, em conjunto com assessorias técnicas como a Usina, realizam é a ampliação e a qualificação dessa lógica, reunindo uma maior quantidade de famílias, aumentando a mobilização e a organização coletivas e incidindo diretamente na luta por terra e por recursos públicos.

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INCLUSÃO

Lana de Lima Teixeira D’Ávila

Professora da rede municipal de ensino de Fortaleza (CE), Lana D’Ávila leciona para os alunos do 1º ano. Já atuou também no Instituto Hélio Góes e na escola da Sociedade de Assistência aos Cegos (SAC) de Fortaleza, onde aplicou ideias de Paulo Freire na educação de jovens e adultos (EJA): “Foi um momento muito importante que me trouxe mais aprendizado do que ensino”.

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Primeiramente, queria que você falasse sobre a sua relação com Paulo Freire. De que forma o trabalho do autor contribui na sua atuação? Paulo Freire é o mestre para quem trabalha na alfabetização de jovens e adultos. Então, é quase natural o uso de sua metodologia nessa modalidade, até porque, na minha formação no 2º grau [equivalente ao atual Ensino Médio], quando também fazia o curso técnico em pedagogia, boa parte da orientação para a alfabetização já era alicerçada nos fundamentos desse autor. Do mesmo modo, a minha graduação em pedagogia também foi fundamentada e consolidada em Paulo Freire. Assim, quando tive oportunidade de trabalhar com alunos no processo de alfabetização do Instituto Hélio Góes, o método dele embasou boa parte da minha prática pedagógica. Gostaria que comentasse o seu trabalho com a EJA da SAC. Paulo Freire é citado no seu artigo sobre essa experiência. De que forma as ideias dele fizeram parte desse trabalho? Você utilizou algo do método de alfabetização do autor? O contexto foi favorável para que o método de Paulo Freire fosse aplicado naquela experiência. As turmas eram pequenas, tinham entre 6 e 12 alunos, alguns com cegueira total desde o nascimento, outros acometidos pela perda visual quando crianças, jovens ou adultos. Todos, porém, tinham em comum o problema de não terem sido alfabetizados, por motivos diversos. Desse modo, a partir da visão de mundo que esses alunos possuíam, usando o seu conhecimento de mundo e os exemplos que tinham e traziam, iniciei o letramento. Desenvolvi gradualmente o processo

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de aprendizagem na escrita e na leitura do sistema braile, tendo como principal recurso os ciclos de conversas, nos quais discutíamos sobre relacionamento familiar e amoroso, sexualidade, dificuldades de orientação e locomoção, as comédias da vida deles... E isso faz parte da metodologia de Paulo Freire. Quais são as dificuldades específicas da alfabetização de cegos ou de pessoas com deficiência de modo geral? Como Paulo Freire pode ajudar nesse tipo de atividade pedagógica? A principal dificuldade em trabalhar com alunos com deficiência visual ou qualquer outra está na limitação do conhecimento de mundo letrado, pois, se já existem dificuldades de aprendizagem com os alunos que não têm deficiências, essas são bastante ampliadas com crianças, jovens e adultos que nunca tiveram visão ou que a perderam muito cedo. Isso vai exigir uma maior utilização de recursos de áudio (usava-se o sistema Dosvox na época) e táteis. Outra condição particular desses alunos é estarem na EJA, já fora do ensino regular, e poderem ser muito mais velhos. Quais são os desafios no ensino de estudantes com esse perfil? Esse foi mais ou menos o campo em que se desenvolveu o método Paulo Freire, com adultos. O que afirmo neste momento tem como principal referência a minha prática como pedagoga e professora; sendo assim, o que verdadeiramente penso é que dar aulas na EJA não é um desafio, mas um privilégio. Isso porque acredito que um pedagogo que se dispõe a dar aulas na EJA já tem uma percepção diferenciada do trato com alunos que precisam

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dessa modalidade de ensino. Mas, para não dizer que tudo são flores, o que posso afirmar é que o aluno com deficiência que não aprendeu o sistema braile no momento adequado terá uma dificuldade muito maior. Além de conhecer as células braile, terá que desenvolver a percepção tátil, o uso correto da reglete [instrumento para escrever em braile] e a coordenação para a escrita no papel 40 quilos. O maior desafio é desenvolver o sentido tátil, pois a leitura tátil é três vezes mais fatigante que a leitura visual, e é o principal recurso de que o aluno irá precisar para sua alfabetização, o que exige maior diversificação de recursos táteis. Paulo Freire destaca que educador e educando aprendem um com o outro. No seu artigo, você fala sobre o professor conhecer o aluno, o seu contexto social e as suas necessidades. Como você vê essa relação de aprendizado mútuo e o que aprendeu no contato com os alunos cegos? O trabalho desenvolvido na alfabetização de jovens e adultos no Instituto Hélio Góes, a bem da verdade, foi um momento profissional muito importante, porque me trouxe mais aprendizado do que ensino. Pode parecer clichê, mas as individualidades desses alunos me fizeram refletir ainda mais sobre o respeito que devemos ter às diferenças e ao contexto social de cada um. As dificuldades e as trajetórias desses alunos me fizeram enxergar aspectos simples da vida que não aprendemos na universidade.

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Para além do contado no artigo, que outras experiências da sua atividade como professora têm um diálogo com Paulo Freire? Que histórias você poderia contar nesse sentido? As outras experiências que tive com a EJA foram nas turmas noturnas da rede municipal de Fortaleza, o meu primeiro contato com essa modalidade de ensino, no início dos anos 2000. Foi uma experiência em outro contexto, pois essas turmas eram de alunos que trabalhavam na construção civil, recicladores, mães solteiras, mulheres que trabalhavam em serviços gerais e com relatos de violência familiar, desempregados e até jovens usuários de drogas. São tantas histórias vividas que não há uma específica, mas o que realmente ficou foi o sentimento de trabalho realizado, pois, mesmo nas condições em que as aulas aconteciam, foi possível conduzir uma relação entre professora e alunos em que mantivemos a amizade e o respeito ao longo dos anos. Como você vê a situação atual da alfabetização para pessoas cegas e/ou com deficiências em geral no seu estado? Quais déficits existem e o que é preciso fazer, tendo em vista alunos, professores, estrutura educacional etc.? Na alfabetização do sistema braile em si, não houve mudanças significativas, mas, quanto ao uso de recursos tecnológicos, houve uma melhoria, pois surgiram plataformas e aplicativos que passaram a ajudar os alunos com deficiência visual. No que se refere ao sistema de ensino estadual, mesmo com o Centro de Referência em Educação e Atendimento Especializado do Ceará (Creaece), órgão da Secretaria de Educação que oferece apoio à educação inclu-

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siva, os serviços deixam muito a desejar, e até hoje não há um planejamento adequado para o atendimento de qualidade das pessoas com deficiência visual. Os déficits são vários, e um deles é que não existe o desenvolvimento de profissionais da educação qualificados para atendê-los. O mais agravante é que também não existe uma política ampla e efetiva para tratar desses déficits, inclusive dos estruturais. Paulo Freire usava as palavras geradoras para disparar seus processos educacionais. Imitando um pouco essa prática, gostaria que você dissesse quais são as palavras-chave do seu trabalho. Por exemplo, quais palavras mais fizeram sentido no ensino de alunos cegos e que significados elas trazem? Entre tantas palavras que foram trabalhadas e que me vêm à memória: preconceito, aceitação, discriminação, amor, mundo para todos, amizade, namoro, família, casa, escola (como segunda casa, lugar onde eles eram acolhidos), música (gostavam muito de cantar e tocar forró) e cartas de amor. Essas palavras tinham muito significado, porque era um momento de trabalhar o emocional, as discussões trabalhavam os sentimentos vividos ali e auxiliavam no dia a dia de cada um de nós.

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“Assim como não acredito numa pedagogia feita para o estudante e muito menos sobre ele, não acredito em nenhuma transformação revolucionária feita para as massas populares, mas com elas. O que vale dizer: de uma ação que parta da compreensão crítica do seu dia-a-dia, da sua cotidianidade [...]”

Essa escola chamada vida: depoimentos ao repórter Ricardo Kotscho



ENCONTRO COM CRIANÇAS E MULHERES REFUGIADAS EM BERLIM Ilse Schimpf-Herken

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Em 4 de setembro de 2015, quando Angela Merkel, chanceler da República Federal da Alemanha, anunciou que abriria as fronteiras aos refugiados de zonas de guerra como o Afeganistão, o Iraque e a Síria, o país enfrentou um grande desafio. Durante meses, membros da Sociedade Paulo Freire1 de Berlim manifestaram-se nas ruas – ao lado de centenas de milhares de cidadãos comprometidos na Alemanha e em muitos países da Europa – contra a política desumana de não dar refúgio a pessoas vítimas de atos de guerra, opressão ditatorial e deslocamento em seus países. Na imprensa, no geral, os refugiados e seus sofrimentos foram tornados invisíveis, como se não existissem, como se os eventos nos seus países não fossem a consequência no longo prazo de uma política colonial europeia e norte-americana, das suas geopolíticas em torno do petróleo. Sendo um instituto relativamente pequeno, de início, fizemos a nossa contribuição ativa para uma escola primária no bairro de Moabit, em Berlim, onde realizamos uma aula de boas-vindas2 para refugiados com 12 crianças e 1 profes1. A Sociedade Paulo Freire de Berlim (pfg-berlin.org/) trabalha em conjunto com o Instituto Paulo Freire de Berlim (paulofreireberlin.org), dirigido por Ilse. 2. A instauração de aulas de boas-vindas foi a primeira tentativa do Senado de Berlim de escolarização de crianças refugiadas, em pequenos grupos e perto de suas casas recém-estabelecidas. Infelizmente, a integração das crianças refugiadas à vida escolar regular ficou no nível do desejo, pois poucas delas foram convidadas a passar tempo com alunos da mesma idade, e poucas também foram as oportunidades de encontros organizadas pela escola. Em vez disso, a autoridade educacional forneceu material didático intercultural e recursos para o trabalho com os pais. Não havia conceito para a convivência cotidiana.

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sor egípcio uma vez por semana. Por um lado, tratava-se de conhecer e obter prática no multilinguismo do grupo – as crianças eram vindas de lugares como Afeganistão, Síria, Iraque, Bósnia, Sérvia e Albânia. Por outro, queríamos dar a elas uma introdução feliz à escola alemã, por meio de canto, jogos e teatro, com leituras em voz alta na biblioteca do distrito e realização de excursões. Acompanhando o professor, a nossa tarefa era motivar as crianças a trocar ideias umas com as outras por meio de conversas sobre a sua vida cotidiana. Fizemos experiências, percebemos que o canto rítmico, por exemplo, as deliciava, e, dessa maneira, elas aprendiam facilmente as primeiras palavras na língua alemã. Jogos em círculos e improvisações teatrais sobre cenas do dia a dia também eram muito populares, pois permitiam às crianças mover-se livremente, representar e se expressar. Essas foram maneiras de superar o esforço das condições extremas vividas pelos refugiados, que tiveram de atravessar florestas densas na escuridão total ou que foram expostos por horas à violência maciça da polícia de fronteira ou dos soldados. Outro tipo de abordagem foi o trabalho com os pais. Nisso tivemos boas experiências com reuniões mensais: as mães mostraram um grande interesse em comer e beber, trocar receitas e, ao mesmo tempo, aprender sobre o sistema educacional alemão. No entanto, observamos que apenas algumas delas compareceram às reuniões e não recebemos respostas claras dos pais sobre os motivos pelos quais as mães não estavam presentes. As explicações dadas eram, em geral, “Elas têm consulta médica” ou “Criança doente em casa”, mas não pudemos confirmá-las durante

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discussões de avaliação aprofundadas. Com essa base, uma equipe do instituto desenvolveu a nossa segunda ideia de projeto: trabalhar exclusivamente com mulheres refugiadas. Foi um projeto realizado com mulheres na proximidade de dois lares de refugiados em Moabit. Eu e uma colega, Pia Langeheine, organizamos reuniões para explorar o interesse por um possível curso de alemão e tentamos averiguar a possibilidade de as mulheres frequentarem as aulas regularmente. Descobrimos que havia muito interesse, especialmente entre as mulheres jovens. No entanto, grande parte delas estava ocupada com tarefas domésticas e tinha muitos compromissos com as autoridades. Tendo isso em vista, desenvolvemos um currículo flexível, com horários fixos, mas com conteúdos que deveriam ser determinados pelas próprias mulheres. Antes de iniciarmos as “lições”, contudo, parecia essencial desenvolver uma relação com essas mulheres por meio de um processo biográfico, ou seja, encontrá-las em pequenos grupos num ambiente protegido e acolhedor, tomando café e comendo bolo, pedindo que falassem sobre suas vidas. Primeiramente, conversamos com todo o grupo, para que elas pudessem se conhecer melhor e ganhar confiança umas nas outras; depois, pedimos sempre a uma ou duas mulheres que relatassem aspectos da vida na família, na escola e em um contexto social mais amplo. Logo ficou claro que havia grandes diferenças entre elas. Embora a maioria das mulheres da Síria e do Iraque tenha frequentado a escola por vários anos, quase todas as mulheres do Afeganistão não tinham conhecimento de leitura e escrita e viveram experiências como refugiadas por muitos anos.

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Elas moravam no Irã com as suas famílias, eram discriminadas e não podiam frequentar uma escola na sua língua materna, apenas as escolas do Alcorão, que eram ministradas em árabe e em cujo currículo não havia disciplinas científicas. Isso limitou de forma significativa sua educação em geral. Depois da saída dos soviéticos, as mulheres retornaram ao Afeganistão e foram novamente ameaçadas pelos talibãs. Assim, na Alemanha, em 2015, elas tentavam recomeçar suas vidas. Em nossos grupos, havia também muitas mulheres palestinas que tinham vivido em campos de refugiados do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur), no Iraque e na Síria, e que possuíam uma educação superior. Entretanto, por causa de um desenraizamento sociocultural, juntavam-se a grupos religiosos que determinavam as suas vidas em grande parte. Para a nossa equipe, essa grande heterogeneidade nas experiências de vida das mulheres era um desafio permanente. Além disso, elas pareciam estar intimamente dependentes de seus maridos, ainda que dentro da família fossem as mais responsáveis pelas questões importantes da vida cotidiana. Esses aspectos tiveram um impacto em sua liberdade para participar de nossos cursos e encontros. Após a transcrição de 32 entrevistas com as biografias dessas mulheres, iniciamos o curso de alemão com duração de cerca de seis meses, a fim de dar a elas a oportunidade de aprender a língua e saber como lidar com a sociedade alemã. O nosso conhecimento da experiência anterior das mulheres, da sua fuga pelo Mediterrâneo, ajudou muito. Ficou óbvio que elas estavam menos preocupadas com

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grandes problemas do que com as trocas sobre vida familiar, gravidez e problemas de saúde. Assim, desenvolvemos um vocabulário sobre o corpo feminino, sobre o trabalho doméstico e sobre a autoimagem da mulher em guerra, responsável pela família e, sobretudo, pela educação dos filhos. Aprendemos muito com elas sobre a compreensão dos papéis na família e também compartilhamos o nosso conhecimento. Tivemos diálogos muito íntimos, que geraram uma profunda reflexão sobre outras culturas. Foram encontros que só eram possíveis em um ambiente privado e em pequenos grupos, um quadro não sustentável para organizações maiores envolvidas no trabalho com refugiados. Nós, da equipe do Instituto Paulo Freire, ficamos muito gratos por esses encontros especiais. Numa terceira fase do projeto, além dos grupos de diálogos, testamos uma nova abordagem, desenvolvida por Pia Langeheine e pela brasileira Cibele Kojima de Paula, intitulada “Pedagogia e o espaço”. O objetivo era tornar as mulheres emocionalmente relacionadas ao seu ambiente imediato e pensar com elas a importância dos lugares, documentando-os em mapas. Passeamos com elas por seu bairro e pedimos que expressassem os seus sentimentos sobre as lojas, as ruas e as árvores, e que também manifestassem essas observações em imagens, para que fosse criado, nessa etapa, um mapa dos arredores de seus lares de refugiadas. Numa segunda tarefa, elas deveriam nomear o seu lugar favorito, levando o grupo até o local para explicar o seu significado a todos. Depois, esses espaços foram novamente desenhados em um mapa: cada mulher podia descrever, pintar ou tirar fotos do “seu” lugar. Essa realida-

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de tridimensional a ser integrada à superfície de um mapa bidimensional foi uma sobrecarga para muitas delas. Durante a apresentação do projeto, em uma festa com as famílias, com os celulares nas mãos, as crianças conseguiram realizar essas tarefas com muito mais facilidade, o que resultou em um maravilhoso diálogo entre gerações. As muitas outras festas – para as quais sempre havia novas ocasiões – foram fornecendo também uma estrutura fértil para a expressão das formas culturais e da força de improvisação dessas mulheres. Por exemplo, uma mãe de quatro filhos pequenos que estava constantemente sobrecarregada com todo o trabalho revelou-se uma cantora e tocadora de tambor muito expressiva; outras mulheres orgulhosamente tocavam as suas danças tradicionais, riam juntas ou dançavam com suas próprias canções. Eram momentos de felicidade especialmente apreciados, tendo em vista as suas experiências terríveis nos percursos de fuga até chegarem à Alemanha. O trabalho de alfabetização freiriana sempre envolve encontro, abertura, ajustar-se aos outros, e é sempre uma grande felicidade. Como equipe, preparamos os quartos, cuidamos da beleza do ambiente com flores, toalhas e velas, mas o que importava era sempre a curiosidade, a alegria de experimentar e aprender em conjunto. As experiências com as mulheres refugiadas fazem parte das nossas muitas vivências em projetos interculturais em Berlim.

Ilse Schimpf-Herken é fundadora e diretora do Instituto Paulo Freire em Berlim, na Alemanha.

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O “ANDARILHO DA UTOPIA” EM SUAS ANDANÇAS PELO MUNDO “Cultura é o tambor que soa pela noite adentro. Cultura é o ritmo do tambor. Cultura é o gingar dos corpos do Povo ao ritmo dos tambores.” A importância do ato de ler: em três artigos que se completam

André Bernardo

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No centenário de Paulo Freire, especialistas de diferentes países falam da importância do educador brasileiro para a educação mundial Se um dia o gênio da lâmpada aparecesse e perguntasse a Paulo Freire quais eram seus três desejos, o educador pernambucano não teria dúvidas em responder: ganhar uma bola, andar de bicicleta e dirigir um carro. Bem, o primeiro deles, sua viúva, Ana Maria Araújo Freire, a Nita, tratou de realizar no Natal de 1995. “Paulo havia recebido 36 doutorados honoris causa, mas nunca na vida alguém o havia presenteado com uma bola de futebol”, afirmou o jornalista e escritor uruguaio Eduardo Galeano (1940-2015). Quanto aos outros dois, torná-los realidade, admite Nita, seria um pouco mais complicado. “Paulo tinha uma grande dificuldade de equilibrar-se sobre as duas rodas e de nortear-se nas cidades. Dizia: ‘Nasci sem bússola’”, explica a doutora em educação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP) na biografia Paulo Freire – uma história de vida (2017). Paulo Reglus Neves Freire (1921-1997) não precisou de carro ou de bicicleta para desbravar o planeta. Em sua “andarilhagem pelo mundo”, como ele gostava de dizer, conheceu, sozinho ou acompanhado da mulher, 56 países: de Botsuana ao Japão, do Haiti à Alemanha, das ilhas Fiji ao Canadá. Não por acaso, ganhou, entre outros, o apelido de “o andarilho da utopia”. “Nessa peregrinação andarilha, por mais de meio século, semeou a esperança e a utopia”, orgulha-se Nita. Incansável, Paulo “andarilhava” muito e descansava pouco, quatro ou cinco horas por noite. “A

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partir do exílio, Paulo não vive para viajar, mas viaja para viver: não busca viagens na vida, mas encontra vida nas viagens”, afirma Walter Kohan, professor de filosofia da educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e autor de Paulo Freire mais do que nunca: uma biografia filosófica (2019). Em Pedagogia da solidariedade (2009), Nita relata que, certa vez, alguém perguntou a Paulo: “O que podemos fazer para seguir suas ideias?”. Surpreso, o educador teria respondido: “Se me seguir, você me destrói. O melhor caminho para você me seguir é me reinventar”. “Paulo Freire não queria adeptos ou seguidores. Queria reinventores”, explica o educador alemão Heinz-Peter Gerhardt, doutor em educação pela Universidade de Frankfurt, na Alemanha, e professor da Universidade de São José, em Macau, na China. “Queria que os educadores adaptassem sua pedagogia à realidade de cada país. Na Alemanha, por exemplo, há iniciativas voltadas para a alfabetização de refugiados.” Um dos 56 países visitados pelo andarilho da utopia foi Guiné-Bissau. O país africano inspirou, inclusive, um de seus primeiros livros: Cartas à Guiné-Bissau – registros de uma experiência em processo (1977). Nele, Paulo descreve seu primeiro ano de trabalho na construção de um modelo de alfabetização de adultos naquele país, que teve sua independência de Portugal declarada em 1973 e reconhecida um ano depois. “Paulo não se limitou a reconstruir o sistema educacional de países como a Guiné-Bissau. Desenvolveu campanhas de alfabetização, aconselhou movimentos sindicais, inspirou comunidades católicas... Se eu tivesse que enumerar todas as suas realizações, precisaria escre-

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ver um livro...”, brinca o acadêmico estadunidense Peter McLaren, da Universidade da Califórnia, em Los Angeles. E completa: “Não seria exagero afirmar que Paulo foi um homem de grande coragem que nos ensinou a transpor obstáculos intransponíveis. Qualquer outro, em seu lugar, teria desistido”. Uma estrela de brilho duradouro Foi inspirada na pedagogia de Paulo Freire que, em 2018, a professora Ramatulai Djalo retirou nove crianças que tinham aulas na rua e as levou para a varanda de uma casa. Um ano depois, quando o número de alunos começou a aumentar, ela se viu obrigada a sair à procura de uma casa maior. Com pouco dinheiro, o jeito foi reformar uma casa de quatro quartos e transformá-la em jardim de infância. Na hora de dar um nome à escola, não pensou duas vezes: Jardim Infantil Paulo Freire. “Ele não é apenas o patrono da educação brasileira. É o patrono da educação mundial”, derrete-se a professora, por WhatsApp, de Bissau, a capital da Guiné-Bissau. Encontrar uma casa para alugar foi apenas uma das dificuldades enfrentadas pela educadora de 40 anos. Outros desafios foram conseguir mesas, carteiras, quadro-negro e até giz para dar início às aulas e convencer os pais a deixar seus filhos frequentarem a escola. Hoje, o Jardim Infantil Paulo Freire conta com três professoras e atende 63 crianças, de 3 a 6 anos. “Infelizmente, não sobra dinheiro para comprar a merenda dos alunos. O pouco que consigo com dois amigos paga o salário das professoras e o aluguel da casa”, explica a docente.

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O título de patrono da educação brasileira, concedido pela então presidente Dilma Rousseff em 2012, é apenas um dos muitos de Paulo Freire. O maior educador brasileiro é também o que detém o maior número de títulos de doutor honoris causa outorgados por instituições no Brasil e no exterior. São, ao todo, 41 títulos de doutor honoris causa e mais 5 honoríficos, à frente de Dom Hélder Câmara (32), Fernando Henrique Cardoso (29) e Luiz Inácio Lula da Silva (28). “Paulo Freire não buscava reconhecimento. Pelo contrário. Ele se incomodava com olhares de adoração. Mesmo assim, muitos desejaram sua coragem, enquanto outros tantos foram inspirados por suas ideias”, afirma Ronald David Glass, professor de filosofia da educação da Universidade da Califórnia, em Santa Cruz, nos Estados Unidos. “Paulo é como uma estrela no céu. Embora já tenha se apagado há muitos anos, continua a iluminar nossa vida. Seu brilho é duradouro, tanto quanto a luz do Sol, que nasce toda manhã.” Protagonistas do próprio aprendizado O jardim de infância fundado por Ramatulai Djalo no bairro de Antula, na capital da Guiné-Bissau, não é o único a ter sido batizado com o nome de Paulo Freire. Há, espalhada pelo mundo, uma quantidade incalculável de escolas, bibliotecas e centros de pesquisa com seu nome em países como Peru, México, Argentina, Espanha e Cabo Verde. Lourenço Garcia nasceu em Cabo Verde, mas, desde 2010, dirige a Revere High School, nos arredores de Boston, em Massachusetts, nos Estados Unidos. Em 2014, a instituição foi eleita, pelo National Center for Urban School Transfor-

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mation (Centro Nacional pela Transformação do Ensino Urbano, em tradução livre), entidade ligada à Universidade de San Diego, no Texas, a melhor escola de Ensino Médio da rede pública dos Estados Unidos. Em 2016, outra premiação: a medalha de ouro na categoria Schools of Opportunity (Escolas de Oportunidade), concedida pelo National Education Policy Center (Centro Nacional de Educação Política), que tem sede na Universidade do Colorado em Boulder, também estadunidense. Entre os seus 2 mil alunos, 34% vêm de famílias de baixa renda e 12% são imigrantes que têm pouca ou nenhuma familiaridade com a língua inglesa. Mas o que Paulo tem a ver com isso? Tudo. Garcia é um autêntico freiriano. Muito do que deu certo na Revere, admite o gestor cabo-verdiano, foi inspirado em sua pedagogia de ensino. “No formato tradicional, o protagonista é o professor. Não à toa, todas as mesas e carteiras estão voltadas em sua direção”, explica Garcia, de Boston, por Zoom. “Na concepção freiriana, o aluno deixou de ser mero espectador ou coadjuvante para assumir o protagonismo de seu aprendizado. Hoje, as salas são formadas por grupos de estudos, em que uns aprendem com os outros.” Na Universidade de Massachusetts, onde concluiu seu doutorado, Garcia leu muitos livros de Paulo Freire. Seu favorito é Pedagogia do oprimido. Escrito durante o exílio no Chile, foi publicado nos Estados Unidos em 1970 e no Brasil em 1974. Estima-se que já tenha sido traduzido para mais de 30 idiomas e vendido algo em torno de 1 milhão de exemplares. No livro, Paulo critica o que chama de “educação bancária”. Ou seja, o educador é sempre o que educa e

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o educando sempre aquele que é educado. E propõe uma educação mais humanista, revolucionária e libertadora. Uma educação na qual o educador ensina e aprende, e o educando se educa ensinando. “O aluno não é uma conta bancária na qual o educando deposita conhecimento durante as aulas e, posteriormente, saca por meio de provas e exames. O aluno detém seu próprio conhecimento”, explica o historiador Erick Morris, doutorando em pós-colonialismo e cidadania global pela Universidade de Coimbra, em Portugal. “O que Paulo Freire faz – desde a experiência em Angicos, no Rio Grande do Norte, quando, em 1963, alfabetizou uma turma de pedreiros – é partir do contexto em que o aluno vive. Assim, ele criou uma metodologia muito mais consistente e duradoura.” Conjugando o verbo “esperançar” Pedagogia do oprimido é considerado, por muitos teóricos da educação, a obra-prima de Paulo Freire. E não é por acaso. Segundo levantamento do Syllabus Explorer, que monitora os livros mais solicitados por professores de quatro países de língua inglesa – Estados Unidos, Inglaterra, Austrália e Nova Zelândia –, sua versão em inglês é o 99º livro mais citado em trabalhos acadêmicos. Se levarmos em consideração apenas os livros sobre educação, Pedagogy of the oppressed salta para o segundo lugar, atrás somente de Teaching for quality learning in university: what the student does (1992), do psicólogo australiano John Biggs. Segundo a mesma pesquisa, o livro registrou 1.021 citações. “Não é pouca coisa”, ressalta Nita. “Ficou à frente de clássicos como Rei Lear, de William Shakespeare, Moby

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Dick, de Herman Melville, e O banquete, de Platão.” Uma curiosidade: dos cem autores mais solicitados para leitura em universidades de língua inglesa, Freire é o único brasileiro. O Syllabus Explorer é um projeto da Fundação Sloan, organização sem fins lucrativos que reúne pesquisadores de universidades dos Estados Unidos, como Harvard e Columbia. “São muitas as contribuições dadas por Paulo Freire para a educação. A principal delas é a que estabelece uma estreita relação entre educação e liberdade. A educação só faz sentido se for libertadora”, salienta o educador colombiano Ramon Moncada. “Outra lição: ‘O mundo não é. Está sendo’. Por isso é tão importante aprender a lê-lo. A leitura do mundo, dizia Paulo, precede a leitura da palavra. Ler o mundo significa compreendê-lo, interpretá-lo e, sobretudo, transformá-lo.” Do outro lado do Atlântico, o professor Elliott Green, da London School of Economics, analisou as obras mais citadas em trabalhos de língua inglesa no Google Scholar, ferramenta de pesquisa dedicada à literatura acadêmica criada em 2004. A pesquisa revelou que Pedagogia do oprimido é o terceiro livro mais citado na área de ciências sociais. Segundo o autor do estudo, Pedagogy of the oppressed é mencionado 72,3 mil vezes, atrás apenas do filósofo Thomas Kuhn (1922-1996) e do sociólogo Everett Rogers (1931-2004), ambos estadunidenses. Kuhn foi mencionado 81,3 mil vezes e Rogers 72,7 mil. Mais uma vez, Paulo Freire ficou à frente de pesos-pesados da literatura universal, como o francês Michel Foucault (1926-1984) e o alemão Karl Marx (1818-1883). “Seu maior legado foi ter nos ensinado a conjugar o verbo ‘esperançar’. Em vez de esperar passiva e resignadamente

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que as coisas mudem, temos que agir de forma ativa para que a mudança desejada se torne realidade. O futuro não se constrói sozinho. Somos nós que o construímos”, filosofa o educador e sociólogo peruano Oscar Jara Holliday, presidente do Conselho de Educação Popular da América Latina e do Caribe (Ceaal). “Paulo Freire não morreu. Ele vive no coração e na mente de educadores e educadoras que buscam alcançar suas utopias no seu cotidiano.” Na Europa, a obra de Paulo Freire é tão respeitada quanto na África ou nas Américas. Prova disso é a Escola da Ponte, criada em 1976 pelo educador português José Pacheco, na cidade do Porto, em Portugal. Diferentemente das demais instituições, a Escola da Ponte não tem turmas, disciplinas, salas ou provas. Lá, alunos de diferentes idades se reúnem a partir de interesses comuns, como línguas, artes ou ciências, para desenvolver projetos de pesquisa individuais ou em grupos. Cada estudante escolhe para si um tutor, que pode ser qualquer indivíduo da comunidade escolar: pais, funcionários ou professores. Juntos, aluno e tutor vão avaliar como foi o processo de aprendizagem, se as dúvidas foram esclarecidas e os conteúdos assimilados. “Paulo Freire ensinou que escolas são pessoas, e não edifícios. Mais do que nunca, precisamos humanizar a educação”, afirma José Pacheco por Zoom. “Não podemos continuar a dar aulas do século XIX com professores do século XX para alunos do século XXI.” O poder por meio da educação Além de títulos de doutor honoris causa, Paulo Freire colecionou convites para lecionar em universidades como

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Harvard, nos Estados Unidos, Hamburgo, na Alemanha, e British Columbia, no Canadá. O curioso é que Paulo até que lia bem em inglês, mas falava e entendia pouco. Por insistência de Elza Maia Costa de Oliveira (1916-1986), sua primeira mulher, procurou aprender o idioma. “[Paulo] costumava brincar que era um inglês tão nordestino que até Elza, que não dominava o idioma, conseguia entender”, explica Sérgio Haddad, doutor em história e filosofia da educação pela Universidade de São Paulo (USP), em O educador: um perfil de Paulo Freire (2019). Um dos muitos convites para lecionar no exterior partiu de Martin Carnoy, professor de educação e economia da Universidade Stanford, nos Estados Unidos. Até hoje, o economista não se esquece do dia em que assistiu a uma de suas famosas aulas de alfabetização de adultos na Nicarágua, em 1983. Um velho camponês, descreve Carnoy, estava de pé, diante do quadro-negro, escrevendo uma palavra com um pedaço de giz. Ao mesmo tempo que rabiscava as letras, tentava, com enorme dificuldade, soletrá-las. Ao fim de alguns minutos, que mais pareceram horas, conseguiu realizar sua façanha. “Para nós, o que aquele homem fez era algo simples, corriqueiro. Mas, para ele, aprender a ler e a escrever mudou sua vida”, explica um dos organizadores do livro Reinventando Freire (2018). “É por essas e outras que as ideias de Paulo são vistas, por alguns, como uma ameaça. Nos Estados Unidos, é um intelectual. Mas, no Brasil, é um revolucionário que quer empoderar os mais pobres por meio da educação.” Quem também teve a oportunidade de conhecer Paulo Freire foi o sociólogo argentino Carlos Alberto Torres.

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Professor da Faculdade de Educação da Universidade da Califórnia, em Los Angeles, ele é, nas palavras do próprio Freire, “a pessoa que mais o entrevistou na vida”. Foram tantas vezes que nem Torres se lembra mais quantas. De uma, porém, ele não se esquece. Ela se passou no dia em que seu pai morreu, em 1984. Na época, Torres morava no México e, por coincidência, Paulo estava lá a trabalho. Quando soube da morte do pai do amigo, o educador pediu para visitá-lo. Torres hesitou. Diante da insistência, convidou-o para jantar. Quando abriu a porta, Paulo o abraçou e disse: “Se você precisa de um pai, pode contar comigo!”. “Mais do que um simples pedagogo, Paulo Freire foi um grande filósofo. Mais do que alfabetizar estudantes, ele queria formar cidadãos.”

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“Não é possível, porém, conciliar a substantividade democrática com as atitudes e as práticas elitistamente autoritárias de quem, julgando-se dono da verdade revolucionária, transforma as classes populares em mera incidência de suas palavras de ordem. A substantividade democrática, pelo contrário, exige de nós a comunhão com as massas populares, com quem aprendemos e a quem ensinamos na prática comum de libertação.”

Essa escola chamada vida: depoimentos ao repórter Ricardo Kotscho



FICHA TÉCNICA, LEGENDAS E SERVIÇO

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ITAÚ CULTURAL Presidente Alfredo Setubal Diretor Eduardo Saron OCUPAÇÃO PAULO FREIRE Pesquisa, concepção, curadoria e realização Itaú Cultural Projeto expográfico Thereza Faria Pesquisa audiovisual Ilka Hempfing (terceirizada) Projeto de acessibilidade Itaú Cultural NÚCLEO DE AUDIOVISUAL E LITERATURA Gerência Claudiney Ferreira Coordenação Kety Fernandes Nassar Produção audiovisual Amanda Lopes, Camila Fink e Letícia Santos Edição Karina Fogaça NÚCLEO DE EDUCAÇÃO E RELACIONAMENTO Gerência Valéria Toloi Coordenação de atendimento ao público e projetos especiais Tayná Menezes Equipe de atendimento Amanda Freitas, Caroline Faro, Matheus Paz, Natasha Bernardo Marcondes, Victor Soriano e Vinícius Magnun Equipe de projetos especiais Thays Heleno Coordenação de formação Samara Ferreira Equipe Alessandra Silva Constantini (estagiária), Edinho dos Santos, Edson Bismark, Elissa Sanitá, Joelson Oliveira,

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Lucas Batista, Mayra Reis Rocha, Mônica Abreu Silva, Silas Barbosa (estagiário), Tonne de Andrade, Victória de Oliveira, Vítor Luz e Vitor Narumi NÚCLEO DE COMUNICAÇÃO E RELACIONAMENTO Gerência Ana de Fátima Sousa Coordenação Carlos Costa Edição e produção de conteúdo Duanne Ribeiro, Fernanda Castello Branco e Milena Buarque Supervisão de revisão Polyana Lima Revisão de texto Karina Hambra e Rachel Reis (terceirizadas) Projeto gráfico Guilherme Ferreira Comunicação visual Girafa Não Fala (terceirizada), Guilherme Ferreira e Liane Tiemi (terceirizada) Produção editorial Victória Pimentel Produção gráfica Lilia Góes (terceirizada) Edição de fotografia André Seiti e Matheus Castro (estagiário) Redes sociais Helen Souza Couto (estagiária), Jullyanna Salles e Renato Corch NÚCLEO DE INFRAESTRUTURA E PRODUÇÃO Gerência Gilberto Labor Coordenação de exposições Vinícius Ramos Produção Carmen Fajardo, Erica Pedrosa, Fabio Marotta, Priscila Tavares e Wanderley Bispo Coordenação de eventos Januário Santis Produção Eduardo Maffeis, Isadora Disero,

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Marcelo Rocha, Rafael Desimone e Wanderley Bispo Coordenação de infraestrutura Roseane Arbex Castro Produção Agenor Silva Neto, Cintia Surianie, Fernanda Jesus, Matheus Feitosa (menor aprendiz) e Wellington Rodrigues CONSULTORIA JURÍDICA Gerência Anna Paula Montini Coordenação Daniel Lourenço Equipe Rafael Del Piero Fernandes AGRADECIMENTOS Adriana Palú, Ana Mae Barbosa, Ana Maria Araújo Freire, Angela Antunes, Beá Meira, Célia Gambini, Cristina Freire, Escola Municipal de Saúde de São Paulo, Fátima Freire, Frei Betto, Gleyce Kelly Heitor, Helena Leal David, Instituto Francisco Brennand, Joaquim Freire, Lícia Morais, Lilian Contreiras, Lutgardes Freire, Madalena Freire, Marcos Guerra, Mario Sergio Cortella, Moacir Gadotti, Museu da Pessoa, Paulo Santiago de Augustinis, Secretaria Municipal de Educação de São Paulo, Sérgio Haddad, Sônia Madi, Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), Universidade Presbiteriana Mackenzie e Walter Kohan O Itaú Cultural (IC) realizou todos os esforços para encontrar os detentores dos direitos autorais incidentes sobre as imagens/obras aqui expostas e publicadas, além das pessoas fotografadas. Caso alguém se reconheça ou identifique algum registro de sua autoria, solicitamos o contato pelo e-mail atendimento@itaucultural.org.br.

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O Itaú Cultural, em 2019, passou a integrar a Fundação Itaú para Educação e Cultura, com o objetivo de garantir ainda mais perenidade às suas ações e o seu legado no mundo da cultura, ampliando e fortalecendo o seu propósito de inspirar o poder criativo para a transformação das pessoas.

LEGENDAS E CRÉDITOS As imagens da publicação que você tem em mãos são de autoria da ilustradora Catarina Bessell. As colagens foram feitas a partir de fotografias de Paulo Freire e de seus familiares. Capa Imagem 1: Homem usando chapéu | autor desconhecido Imagem 2: Paulo Freire | foto: Amancio Chiodi Página 6 Imagem 3: Paulo Freire | foto: Amancio Chiodi Página 10 Imagem 4: Paulo Freire | foto: Amancio Chiodi Página 15 Imagem 5: Paulo Freire | Serviço Social da Indústria de Pernambuco (Sesi/PE) Página 16 Imagem 6: Casa onde nasceu Paulo Freire, em 19 de setembro de 1921. Estrada do Encanamento, 724, Casa Amarela, Recife (PE) | autor desconhecido Imagem 7: Criança em bicicleta.

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Imagem do “livro do bebê” escrito pela mãe de Paulo Freire para o filho em sua infância | acervo Ana Maria Araújo Freire Página 30 Imagem 8: Reunião de coordenação, Angicos (RN) | Secretaria de Educação e Cultura RN/Secern/acervo Marcos Guerra e Moema Barreto Imagem 9: Paulo Freire | Serviço Social da Indústria de Pernambuco (Sesi/PE) Página 104 Imagem 10: Elza Freire e Paulo Freire | autor desconhecido Imagem 11: Paulo Freire acompanhado de um cachorro | autor desconhecido Página 106

Imagem 12: Paulo Freire sentado em poltrona, com o queixo apoiado em uma das mãos | foto: Amancio Chiodi Página 114

Imagem 13: Paulo Freire e o filho Lutgardes Freire | autor desconhecido Imagem 14: Paulo Freire em 1947 | autor desconhecido Página 127

Imagem 15: Edeltrudes Neves Freire, mãe do educador | acervo Lutgardes Freire Página 136

Imagem 16: Paulo Freire | foto: Amancio Chiodi

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OCUPAÇÃO PAULO FREIRE Abertura sábado 18 de setembro de 2021 às 11h Visitação até domingo 5 de dezembro de 2021 terça a domingo 11h às 19h piso Multiúso Entrada gratuita Itaú Cultural Avenida Paulista, 149, São Paulo, SP [próximo à estação Brigadeiro do metrô]


Memória e Pesquisa | Itaú Cultural Ocupação Paulo Freire / organização Itaú Cultural. - São Paulo : Itaú Cultural, 2021. 8,5 Mb ; PDF Exposição realizada de 18 de setembro a 5 de dezembro de 2021, no Itaú Cultural. ISBN 978-65-88878-21-7 DOI: https://doi.org/10.53343/9786588878217 1. FREIRE, Paulo, 1921-1997. 2. Educação. 3. Pedagogia. 4. Alfabetização. 5. Filosofia. I. Instituto Itaú Cultural. II. Título. CDD 370.1 Bibliotecário Jonathan de Brito Faria - CRB-8/8697

Famílias tipográficas Giorgio Sans e Lyon Text Publicação digital em formato PDF São Paulo, em setembro de 2021



“[...] para mim, é impossível existir sem sonho. A questão que se coloca é, em primeiro lugar, saber se o sonho é historicamente viável. Segundo, se a viabilidade do sonho demanda um pedaço de tempo e de espaço a caminhar. Terceiro, se demanda um espaço ainda longo para caminhar e viabilizar, é o caso de se aprender como caminhar e, em caminhando, reaprender inclusive a realizar o sonho, quer dizer, buscar os caminhos do sonho.”

Essa escola chamada vida: depoimentos ao repórter Ricardo Kotscho





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