Ocupação Vilanova Artigas

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capa/contracapa: Prédio da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo foto: André Seiti


São Paulo, 2015

Patrocínio


foto: autor desconhecido


A trajetória de João Batista Vilanova Artigas (Curitiba, PR, 1915 – São Paulo, SP, 1985) é uma prova de que poesia também se faz com concreto, aço, madeira, tijolo – e de que, além de pilares e vigas, a estrutura de uma edificação não pode prescindir de humanismo. Professor, militante político e articulador de instituições culturais, o arquiteto sempre defendeu o caráter artístico e o papel social do seu campo de atuação – ou da profissão que ele ajudou a consolidar no Brasil. Com o programa Ocupação – que realiza mostras ligadas a nomes fundamentais da arte e da cultura brasileiras –, o Itaú Cultural presta uma homenagem ao autor de obras como o prédio da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU/USP) e o Estádio do Morumbi. Elaborada em conjunto com sua família e com o arquiteto Alvaro Razuk, a exposição é apresentada na sede do instituto, em São Paulo, e integra as comemorações do centenário de nascimento de Artigas. Na internet, o site itaucultural.org.br/ocupacao traz mais informações e conteúdos audiovisuais relacionados a esta e às outras 23 edições do Ocupação.

coordenação editorial Carlos Costa edição Thiago Rosenberg conselho editorial Ana de Fátima Sousa, Claudiney Ferreira, Sofia Fan e Tânia Rodrigues coordenação de design Jader Rosa projeto gráfico e diagramação Yoshiharu Arakaki tratamento de imagens André Seiti e Marcos Ribeiro produção editorial Raphaella Rodrigues revisão Karina Hambra colaboradores Duanne Ribeiro, Joca Reiners Terron, Lucas Girard, Marco Artigas e Maria Hirszman


ADMIRO OS POETAS. O QUE ELES DIZEM COM DUAS PALAVRAS A GENTE TEM QUE EXPRIMIR COM MILHARES DE TIJOLOS.

foto: autor desconhecido



ARQUITETURA DA LIBERDADE A POESIA CONCRETA DE VILANOVA ARTIGAS

Por LUCAS GIRARD


Detalhe da fachada da Casa Taques Bittencourt, de 1959 foto: José Moscardi

Apesar de ser relativamente pouco conhecido pelo público não especializado, o nome de João Batista Vilanova Artigas está entre os dos maiores arquitetos brasileiros – junto de Oscar Niemeyer, João Filgueiras Lima, Affonso Eduardo Reidy, Lucio Costa, Lina Bo Bardi e Paulo Mendes da Rocha. Premiada internacionalmente e objeto de renovado interesse entre profissionais e pesquisadores da área, sua obra continua sendo um norte para o pensamento e a prática de arquitetura e urbanismo no país. Artigas cursou engenharia civil na Universidade Federal do Paraná (UFPR), em Curitiba, mas concluiu seus estudos na Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (Poli/USP), em 1937, com o título de engenheiro-arquiteto. No Brasil,


o ensino de arquitetura só se desvincularia do de engenharia em 1948, e a separação entre os dois campos, bem como a consequente autonomia da profissão, é fruto de um movimento do qual Artigas – um dos fundadores do departamento paulista do Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB) – participou ativamente. Dedicando-se à docência desde a época em que se graduou, ele não apenas ajudou a criar, naquele ano de 1948, a Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da UniverJornal Diário da Noite, 6 de janeiro de 1945

sidade de São Paulo (FAU/USP), instalada inicialmente no bairro de Higienópolis, como também deu forma ao atual prédio da instituição – erguido entre 1966 e 1969. Simultaneamente à construção do edifício – tido hoje como uma das suas obras mais icônicas –, Artigas ainda propôs uma inovadora reforma curricular do curso. Implementada pela FAU/USP, essa reestruturação do ensino da arquitetura acabou sendo adotada por escolas de todo o território nacional.


Atendendo à cordial solicitação do general, Artigas prestou seu depoimento no Inquérito Policial Militar (IPM) da USP – e foi preso logo em seguida

Sua atuação como professor, no entanto, sofreu algumas interrupções. Membro do Partido Comunista Brasileiro (PCB) e dono de um agudo senso crítico no qual assentava o conteúdo de suas lições, Artigas chamou a atenção do aparelho repressivo da ditadura

militar e, já em 1964, recebeu voz de prisão em plena sala de aula, diante de seus alunos. Detido por 12 dias e indiciado novamente meses depois, exilou-se no Uruguai e só voltou a lecionar em 1967, sendo compulsoriamente aposentado – com os também


professores Paulo Mendes da Rocha e Jon Maitrejean – em 1969, pouco após a implementação do Ato Institucional Nº 5 (AI-5), com o qual o regime intensificou seu cerco às liberdades civis e aos direitos políticos. Artigas só retornou à faculdade em 1980, com a Lei da Anistia, ocupando o cargo de auxiliar de ensino. E, para recuperar a função de professor titular da escola – a mesma que ele ajudou a fundar e cujo prédio é um manifesto concreto de seus ideais –, teve de prestar um concurso em junho de 1984, submetendo-se


Artigas, em 1984, durante concurso para recuperar o cargo de professor titular da FAU/USP, perdido em decorrência do AI-5; o tema da arguição foi A Função Social do Arquiteto fotos: Abelardo Alves Neto

a uma banca avaliadora da instituição. Aprovado no teste, Artigas morreu sete meses depois, em janeiro do ano seguinte. A casa e a cidade Por meio de uma bolsa concedida em 1946 pela Fundação Guggenheim, sediada em Nova York, Artigas passou um ano nos Estados Unidos. Lá pôde conhecer mais a fundo o trabalho do norte-americano Frank Lloyd Wright, cujas concepções espaciais, somadas


às do franco-suíço Le Corbusier, compõem um referencial arquitetônico a que Artigas daria nova forma em inúmeras oportunidades. Paralelamente, envolvendo-se com pintores como Alfredo Volpi, Francisco Rebolo e Mário Zanini – com os quais, entre outros, formou o Grupo Santa Helena –, aprimorou seu talento para o desenho e se iniciou no universo das cores – elementos adotados com frequência em sua busca por fundir arte e arquitetura. Nos anos 1950, Artigas deu início a uma reflexão sobre a casa brasileira, identificando temas caros à nossa sensibilidade – a posição

da cozinha, por exemplo, como centro da sociabilidade doméstica. Dessa investigação nasceu uma maneira de organizar os espaços que marcou profundamente a produção arquitetônica residencial em São Paulo e gerou o que alguns historiadores chamaram de Escola de Artigas, ou Escola Paulista de arquitetura. Geralmente organizadas em torno de um pátio interno e com aberturas no teto para receber luz natural, essas construções costumam privilegiar os espaços de convivência e se relacionar com o restante do terreno apenas no nível do chão – fechando-se, nos andares superiores, entre paredes de concreto com poucas ou nenhuma janela.

Casa Olga Baeta, de 1956 foto: Nelson Kon



Artigas desenvolveu uma forma de projetar e construir que parte de uma clara definição dos elementos estruturais dos edifícios e faz largo uso do concreto armado, do vidro, da matéria em sua condição mais natural: reflexos de uma visão educativa, essas premissas tornam possível ver do que a construção é feita e entender como ela se sustenta. Alguns historiadores associaram esse estilo ao brutalismo – corrente originada na obra tardia de Le Corbusier e marcada pela incorporação de materiais industriais crus, sem revestimento. Além de traduzir espacialmente determinados conceitos políticos, esse despojamento é, na prática artiguiana, muitas vezes carregado de sutilezas, de detalhes que denotam a grande afetividade presente no fundamento


dos projetos e indicam um domínio raro das várias escalas de cuja combinação depende o sucesso de uma obra arquitetônica. A imensa poética de seu trabalho não se revela de imediato. Diante dos espaços projetados por Artigas, o que primeiro percebemos é uma força material, uma presença monumental. Entramos em um estado de surpresa, suspensão e enlevo, e aos poucos, percorrendo-os, vamos notando os pormenores arquitetônicos a que Artigas tanto se dedicava. Eles se manifestam por todos os lados: nós os percebemos no encontro entre os diferentes materiais; nos contornos de uma coluna, no perfil de uma viga; na maneira como a luz natural entra por cima do edifí-

Colunas dos vestiários do São Paulo Futebol Clube, de 1960 frame do documentário Vilanova Artigas: o Arquiteto e a Luz (2015), de Laura Artigas



cio, trazendo uma qualidade de exterioridade para o interior; no jeito como a construção se integra ao seu entorno por meio de vidraças e jardins; na fluidez com que rampas e planos inclinados conectam os pavimentos, criando meios níveis, sem jamais interromper a continuidade dos percursos – nunca um corte abrupto, nunca um fim de linha. Todos os trabalhos de Artigas oferecem uma reflexão profunda sobre o sentido de se construir, sobre o sentido da arquitetura e o seu papel nas relações humanas e na paisagem urbana. Em suas mais de 700 obras concluídas, ele mostrou como a arquitetura pode ser um instrumento de transformação social, capaz de

Colégio Doze de Outubro, de 1962 foto: José Moscardi

originar comportamentos e renovar mentalidades, corporificando valores morais e bandeiras políticas como solidariedade e democracia. Num momento em que ganham cada vez mais força e relevância as discussões sobre os rumos das grandes metrópoles brasileiras e o lugar do espaço público na construção de uma sociedade mais justa, o legado de Artigas se torna ainda mais importante. Olhar para a sua generosa contribuição é vislumbrar o radical testemunho de um homem que acreditava na cultura como o único caminho para a liberdade – e na cidade como lugar privilegiado para o seu exercício. Lucas Girard é arquiteto, mestrando pela FAU/USP e sócio do 23 SUL Arquitetura.


As páginas a seguir apresentam obras que ilustram características centrais da produção de Artigas – como o diálogo entre a construção e o seu entorno, a iluminação natural, a profusão de espaços de convivência e a preocupação em evidenciar a estrutura dos edifícios. Os desenhos aqui reproduzidos foram feitos pelo arquiteto para uma mostra retrospectiva de seu trabalho – apresentada em 1979 em diversas instituições – e hoje pertencem ao acervo do Centro Georges Pompidou, em Paris. Por

DUANNE RIBEIRO e THIAGO ROSENBERG

Consultoria

MARCO ARTIGAS

Fotos

NELSON KON


EDIFÍCIO LOUVEIRA (1946/1948) Construída no bairro de Higienópolis, na capital paulista, a obra é um ótimo exemplo de integração entre os espaços público e privado. Os dois blocos de apartamentos que compõem o condomínio ficam nas extremidades de um amplo jardim que, sem ser delimitado por muros, grades ou coisa parecida, se confunde com a Praça Vilaboim, localizada em frente ao conjunto. Os prédios, um com sete e o outro com oito andares, têm a fachada voltada para o mesmo lado – um olha para as costas do outro, digamos –, fazendo com que todas as unidades do edifício tenham as mesmas condições de iluminação e ventilação.


Sem privilĂŠgios: voltados para o mesmo lado, todos os apartamentos do conjunto sĂŁo igualmente iluminados e ventilados


A CASA NÃO TERMINA NA SOLEIRA DA PORTA. [Vilanova Artigas]

Jardim interno aberto para o espaço público, sem muros ou grades Hall de entrada de um dos prédios: o pilar que se confunde com a escada mostra como Artigas fazia questão de não esconder os elementos estruturais de suas obras



PRÉDIO DA FACULDADE DE ARQUITETURA E URBANISMO DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO (1961/1969) O edifício da FAU/USP talvez seja o projeto mais representativo das concepções políticas e estéticas que guiavam o trabalho de Artigas. Por mais que, vista de fora e à distância, a construção pareça ser uma espécie de fortaleza de concreto sustentada por finos pilares, ela é de fato uma “escola aberta”, sem portas físicas ou metafóricas que possam se fechar e restringir o acesso de pessoas e ideias. As salas de aula, os estúdios, a biblioteca e os demais ambientes que compõem a área interna da obra se organizam em torno de um amplo vão central. Apelidado de “salão caramelo” por causa da cor do seu piso, o local pode ser ocupado pelos alunos da faculdade das mais diversas maneiras. Todos os pavimentos são interligados por suaves rampas, que tornam mais fluido o percurso pelos espaços. E toda a cobertura conta com domos por onde a luz natural entra e, democraticamente, se espalha pelo prédio.


Entrada principal do edifício, sem portas, portões ou qualquer outro tipo de barreira “Salão caramelo”: espaço aberto para ações elaboradas pelos alunos da faculdade


foto: André Seiti

A luz é para todos: iluminação zenital em toda a cobertura do edifício

PENSEI QUE ESTE ESPAÇO FOSSE A EXPRESSÃO DA DEMOCRACIA. PENSEI QUE [...] NENHUMA ATIVIDADE AQUI SERIA ILÍCITA, QUE NÃO TERIA DE SER CONTROLADA POR NINGUÉM. [Vilanova Artigas]



CASA ELZA BERQUÓ (1967) Projetada para a demógrafa Elza Berquó – uma das fundadoras do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap) –, a residência pode ser vista como um espaço em que o arcaico e o moderno, ou o que há de mais rústico e o que há de mais sofisticado do ponto de vista técnico, convivem em harmonia. Um dos jardins da casa – localizada no bairro paulistano de Chácara Flora – fica bem no centro da sala, sob uma claraboia móvel que permite a entrada de luz natural. E parte da cobertura se apoia em quatro troncos de árvore dispostos ao redor desse pátio interno. “Com o surgimento de um material chamado neoprene”, comentou Artigas em 1984, “foi possível fazer com que a carga do telhado se distribuísse pela área da coluna de madeira e, dali, [pelas] fundações”.


Troncos de árvore usados como pilares em volta do pátio interno da residência

FIZ ESTA ESTRUTURA DE CONCRETO APOIADA SOBRE TRONCOS PARA DIZER [...] QUE ESSA TÉCNICA TODA DE CONCRETO ARMADO [...] NÃO PASSAVA DE UMA TOLICE IRREMEDIÁVEL EM FACE DAS CONDIÇÕES POLÍTICAS QUE VIVÍAMOS NAQUELE MOMENTO [ANOS 1960]. [Vilanova Artigas]


Fachada da casa


infogrรกfico

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RODOVIÁRIA DE JAÚ (1973) Subverter – de acordo com “a ideia, o pensamento e a sensibilidade” – o uso comum de um elemento. Essa intenção de Artigas fica bastante clara ao observarmos a rodoviária que ele criou para a cidade de Jaú, no interior de São Paulo. “O que me encanta”, disse o arquiteto, “é usar formas pesadas e, dialeticamente, negá-las”. Os pilares do espaço se dividem, no topo, em quatro braços que lembram as pétalas de um lírio. Assim, aquilo que sustenta todo o peso da construção, e que geralmente é maciço, linear, ganha um aspecto de leveza – intensificado pela luz natural que escorre sobre cada uma dessas “flores” de concreto. “Que solução engenhosa!”, teria comentado Oscar Niemeyer, conta Artigas. Essa não é, no entanto, a única criação significativa presente na obra. Outras marcas do arquiteto estão lá: a presença da cor – o azul nos corredores de acesso ao terminal, por exemplo –, as rampas e a abertura ao entorno.


Os acessos à rodoviária estão no mesmo nível da rua e não interrompem o percurso do pedestre

A ARQUITETURA É UMA ARTE. ISSO EU REPITO. NO FUNDO É O DIREITO HUMANO À BELEZA. [Vilanova Artigas]


Abrindo-se em “pétalas” e permitindo a entrada de luz natural, os pilares da obra ganham um contraditório aspecto de leveza


UM HOMEM DE CONVICÇÕES A PARTICIPAÇÃO DE ARTIGAS EM MOVIMENTOS POLÍTICOS E NO DESENVOLVIMENTO DE INSTITUIÇÕES CULTURAIS

Por MARIA HIRSZMAN Artigas (no centro, com casaco claro) e outros membros do PCB em Moscou, 1953 foto: autor desconhecido


Quando deixou sua Curitiba natal e se mudou para São Paulo, em 1934, João Batista Vilanova Artigas encontrou uma cidade com pouco mais de meio milhão de habitantes. Ao mesmo tempo provinciana e efervescente, a capital paulista contava com uma cena cultural restrita, mas estava em franco crescimento e era marcada por um profundo anseio de modernização. Os anos 1930, em São Paulo, foram uma espécie de intervalo entre o barulho causado pelos artistas da Semana de 22 – que defendiam uma ruptura com os cânones acadêmicos – e a criação de uma rede de museus e instituições culturais de grande relevo – com destaque para o Museu de Arte de São Paulo (Masp), em 1947, o Museu de Arte Moderna (MAM), em


1948, e a Fundação Bienal de São Paulo, em 1951. Mas esse intervalo está longe de ser um hiato. É exatamente nele que se engendram estratégias, articulam-se grupos e formulam-se políticas de amplo efeito no longo prazo, num processo de amadurecimento institucional e político do qual Artigas participou ativamente. Pontos de encontro É ampla a lista de movimentos em cuja gênese ou funcionamento o arquiteto atuou como importante interlocutor. Em 1936, quando começou a frequentar o curso livre de desenho com modelo vivo da Escola de Belas Artes, ele conheceu os artistas Francisco Rebolo, Fulvio Pennacchi e Virginia, sua futura esposa, e passou a integrar o chamado Grupo Santa Helena. Liderada por Rebolo Desenhos feitos por Artigas nos anos 1930, época em que frequentava a Escola de Belas Artes


e instalada no já demolido Palacete Santa Helena, na Praça da Sé, a pequena comunidade de pintores – muitos deles imigrantes, de origem proletária – chegou a participar de um grupo maior, a Família Artística Paulista (FAP), que organizou três grandes mostras entre 1937 e 1940. Artigas consta como expositor na segunda delas. A aproximação com artistas como Alfredo Volpi e Clóvis Graciano, que também fizeram parte da FAP, foi fundamental para o desenvolvimento de seu trabalho como arquiteto e para a crescente importância das questões urbanas em sua obra. “Mudanças na sociedade começavam a exigir uma nova postura dos arquitetos e artistas”, comentou Artigas em referência ao projeto de reforma curricular que desenvolveu para a Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU/USP), a


partir de 1962, com a inclusão do ensino de história da arte, comunicação visual e design. “O caminho do Volpi, por exemplo, foi se encontrar com os concretistas. Mais tarde eu também me encontrei com eles, não só nas minhas composições arquitetônicas, como no plano do ensino.”

conselho de administração e da comissão artística e fazendo a reforma do primeiro espaço ocupado pelo museu, na Rua 7 de Abril – coincidentemente no mesmo prédio que abrigou o Masp em seus anos iniciais.

Das cinzas da FAP – segundo o crítico Paulo Mendes de Almeida no livro De Anita ao Museu, de 1961 –, nasce o “clubinho”, como ficou conhecido o Clube dos Artistas e Amigos da Arte. Formada em 1945, a agremiação acabou virando um ponto de encontro – como as livrarias Jaraguá, de Alfredo Mesquita, e Brasiliense, de Caio Prado Júnior – para vários intelectuais engajados do período. Foi de lá que surgiu o projeto de criação do MAM, do qual Artigas participou como membro do

Se o interesse pelas artes fez com que Artigas se aproximasse de parte importante do núcleo artístico em ação na São Paulo de a partir da segunda metade dos anos 1930, sua atuação profissional e militância política também foram fundamentais para a sua crescente ligação com os movimentos que agitaram a cena cultural do período.

Liderança sem protagonismo

Em 1945, o arquiteto se filiou ao Partido Comunista Brasileiro (PCB) – agindo ora como Rascunho de abaixo-assinado pela formação de uma instituição de classe para artistas plásticos



moderador, ora como porta-voz, redigindo manifestos políticos e conclamando colegas e amigos para apoiar diversas causas, tanto no campo da arquitetura quanto fora dele. Em 1948, Artigas participou da elaboração de uma revista cultural ligada aos ideais do PCB – a Fundamentos, que circulou até 1955 – e, mais tarde, colaborou com organizações de classe de outros segmentos – como o dos escritores e o dos designers; em 1952, antes de visitar a União Soviética, rumou à Polônia, onde trabalhou para a criação da União Internacional dos Arquitetos (UIA). Entre as grandes bandeiras que assumiu no início dos anos 1950 está o combate à Bienal de São Paulo – chamada por ele, em entrevista concedida à crítica Aracy Amaral em 1980, de “ponta de lança do imperialismo americano no setor da cultura”. Artigas (no canto inferior esquerdo), em novembro de 1953, durante comemoração dos 36 anos da Revolução Russa, na Praça Vermelha, em Moscou foto: autor desconhecido


Homem de convicções, Artigas manteve-se sempre pronto para o combate, sem grandes vaidades. Nunca se preocupou em ocupar o protagonismo. Como explica sua filha, a historiadora Rosa Artigas, “ele nunca foi presidente do Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB), nem desejou ser. Nunca quis ser diretor da FAU, nunca assumiu postos de comando. Acho que ele tinha uma grande capacidade de liderança e influência que não se manifestava publicamente, mas que dava rumo aos fatos nos contatos e na participação política. Não sei se era um conciliador, mas era capaz de rever suas posições quando se equivocava. Acho que ele tinha um espírito democrático, por assim dizer”. Maria Hirszman, jornalista e crítica de arte, colabora com diversas publicações, como o Caderno 2, do jornal O Estado de S. Paulo, a Enciclopédia Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras e a revista Pesquisa Fapesp. É mestra em história da arte pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP).


PASSARELAS SEM FUTURO, CIDADE SEM PASSADO OBRAS PÚBLICAS DE ARTIGAS CORREM O RISCO DE SE TORNAREM RUÍNAS DO SÉCULO XX

Por JOCA REINERS TERRON Fotos ANDRÉ SEITI


Passarela do Largo Padre Péricles: sem futuro à vista

Somente a glória dos faraós e a proteção dos ETs que os iluminaram, como afirma a lenda, explicam a preservação das pirâmides de Gizé, no Cairo. Com cerca de 4 mil anos, continuam de pé, ao contrário de marcos do século XX que, em meio ao descuido, desabam na metrópole egípcia. Vontade política e consciência pública são fundamentais para a manutenção de importantes obras arquitetônicas. Mas, quando a amnésia cultural se impõe, tais aspectos simplesmente não chegam a existir, pois decorrem da memória, isto é, do conhecimento e da valorização do passado. Tal condição parece impossível para a concepção brasileira de Estado, demasiado personalista e inconsciente para a coisa pública. Exemplos mais próximos de nós em escala e topografia são as passarelas projetadas por João Batista Vilanova Artigas em São Paulo. Passamos por elas sem



saber como nasceram, ou quem foi seu pai. Delas não guardamos lembrança, a não ser quando as ultrapassamos a pé ou de automóvel. Nossas pegadas as reconhecem sem que a cabeça seja informada de sua relevância, pois, mesmo tombadas pelo Patrimônio Histórico, não há placas que cumpram esse papel. Sabemos o ponto exato no tempo e no espaço em que se iniciam, mas não onde acabam. Talvez não tenham futuro. Passarelas do caos Foram seis passarelas projetadas pelo arquiteto na capital paulista. Em diversas ocasiões, atravessei duas delas sem ter qualquer noção de quem era o seu autor. Atrasado, prestes a perder o voo, não percebi a ferrugem que Toneladas de aço acidentado em frente ao aeroporto de Congonhas

corrói as 150 toneladas de aço da que se encontra na Avenida Washington Luís, em frente ao aeroporto de Congonhas. Sem dúvida, é a mais acidentada de todas. Desprezada não apenas pelos pedestres, que em sua pressa mal a veem, já veio abaixo duas vezes entre 1974, quando foi instalada, e 2015, atingida em ambas as situações por caminhões que também não a viram. No período de sua existência, as únicas manutenções pelas quais passou se deram após esses acidentes de trânsito, ao ser reinstalada. Agora, a atual administração planeja substituí-la, sem informar se o projeto original de Artigas será adotado como diretriz. Vivi quase uma década em Perdizes. Premido por urgência diversa, atravessei muitas


vezes a passarela do Largo Padre Péricles: tinha fome, e ia ao Ponto Chic que fica diante da igreja de São Geraldo. Sempre de barriga vazia, sentia vertigem ao percorrer o giro helicoidal que liga a passarela à calçada. Depois de aliviar a larica, entretanto, podia apreciar a elegância de suas curvas, observando o tráfego quase imóvel da Avenida Francisco Matarazzo e a cauda (ou a cabeça, vai saber) do Minhocão exalando fumaça. Comparada a tão horrenda estrutura, a passarela de Artigas, com sua geometria indescritível, apequena-se: é uma joia oculta na paisagem cinzenta, breve instante de lucidez em pleno caos. De modo semelhante, as passarelas da Avenida 9 de Julho se erguem com aparência exausta acima dos automóveis e dos pedes-

Uma joia oculta na paisagem cinzenta do Largo Padre Péricles



tres. Atravesso para cá e para lá a que fica em frente à Fundação Getulio Vargas. Os alvos jalecos dos enfermeiros de folga do Hospital 9 de Julho enfrentam com destemor a fuligem do início da tarde. É horário de almoço, a chuva deu uma trégua e a senhora que habita sob a escada cria coragem para sair do caixote em que dorme e pedir esmola aos motoristas passantes. Com olhares distraídos, entre uma e outra mensagem via WhatsApp, eles não retribuem os pedidos que a mulher faz com voz estridente, acompanhados de um sinal de coraçãozinho feito com polegares e indicadores. Alheia ao reconforto estético sugerido pela beleza arquitetônica do local onde vive, a moradora de rua implora: “Estou morta de fome”. No topo da passarela,

Uma das passarelas exaustas da Avenida 9 de Julho


piso em algumas placas de aço corrugado que empenaram, tornando-se trampolins para suicídios involuntários: se pisadas com ímpeto, bem poderiam lançar um desavisado lá embaixo contra o para-brisa de um ônibus em movimento. Algumas centenas de metros adiante, na mesma avenida em direção ao centro, a Passarela Doutor Nemr Jorge parece unir com pesar os vidros foscos do prédio do INSS a um mercadinho chinês quase vazio. Na caixa registradora, sem fregueses a atender, o moleque oriental joga no celular. Os mantimentos nas prateleiras são basicamente garrafões azuis de água e pacotes de salgadinhos chips. Na paisagem em permanente ruína do



centro da cidade, com seus prédios abandonados, sua gente deixada para trás, um agradável odor de amaciante de roupas chama a atenção. Vem da lavanderia no subsolo do Edifício dos Estados nº 624, onde mãos dobram e desdobram tecidos na penumbra: apesar do degradante panorama urbano, não há cheiro que recorde mais a civilização. Espantado pelo porteiro, retorno à passarela. Ao admirar a economia de meios do concreto ascendente, o que fornece à passarela traços femininos, esguios, percebo que a chuva deixou um lago sobre o caminho. Impedida pela água de atravessá-lo, uma moça carrega no colo seu cão-salsicha pelas margens, arriscando-se a uma queda. Com desconfiança igual à do porteiro, o cão me olha de soslaio. Mural do Ginásio de Guarulhos: de fora da reforma

Infiltração nas cores Do centro, uma visita ao Ginásio de Guarulhos, ou EEPSG Conselheiro Crispiniano, projeto de Artigas & Cascaldi inaugurado em 1962. O prédio passou por reforma entre 2013 e 2014, exceto pelo imenso mural pintado a óleo que encabeça o pátio central, em avançado estado de deterioração devido a infiltrações. Segundo Marcos Venite, agente de organização escolar e funcionário mais antigo do colégio, o orçamento de 160 mil reais para restauro não foi aprovado. Na imagem, crianças negras brincam de pega-pega, ameaçadas pelas manchas cada dia mais escuras que sobem da base, arrancando a tinta e se ramificando entre cores vívidas que, em uma hora ou outra, se dissi-


parão no vazio. A reforma inepta substituiu o piso original de cacos vermelhos – típicos de obras de Artigas, que os recuperou da tradição popular – por cimento. No entanto, o mais grave ocorreu há dez anos, de acordo com Venite, ao construírem um prédio adicional: “Foi quando destruíram a ‘Fazendinha’ – uma ala de classes de aula feitas de madeira nos fundos da escola e ladeadas por seringueiras – para construir um estacionamento. Era a área mais bonita da escola, na minha opinião”. As seringueiras continuam lá, mas agora, em vez de fazerem sombra para crianças, protegem automóveis. Contra intempéries administrativas, da sala dos professores às classes de alunos, do espelho d’água ao vibrante jardim, a Conselheiro

FAU/USP: ainda reluzindo


Crispiniano permanece com vida: para aferir isso, basta consultar a página da escola na internet, repleta das declarações de saudades dos ex-estudantes de várias gerações. Em contraste de outro tom, mais existencialista e adequado a alunos de ensino superior, a Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU/USP), também projetada por Artigas, parece reluzir. Recém-reformada e abrigando uma exposição de formas arquitetônicas construídas em papelão em seu vão principal, na manhã chuvosa em que a visitei encontrei estudantes preguiçosas que se estiravam nas redes em frente ao Centro Acadêmico. Perto da livraria, a sombra de um barbudo se espichou na parede enquanto o dono da sombra jo-



gava solitariamente na mesa de sinuca. Dois garotos apertavam um baseado na lanchonete, enquanto o próprio Artigas, imóvel em um cartaz comemorativo de seu centenário, pareceu bocejar em preto e branco em protesto aos pichos e grafites nas paredes que dizem “Não ao museu”. Rumo à represa de Guarapiranga, muito distante do perfume das lavanderias, as marcas civilizatórias da arquitetura modernista do centro de São Paulo vão sendo substituídas rapidamente pela feiura dos galpões abandonados e das borracharias enegrecidas, dos barcos fantasmas e das fábricas fechadas. Não estou entre aqueles totalmente imunes à beleza espectral da periferia, e a partir de certo ponto

Garagem de barcos – ou barcos fantasmas – do antigo Iate Clube Santa Paula

a cidade vai se conformando no grande hieroglifo sem solução que é, até o táxi me largar na Avenida Robert Kennedy, em frente à garagem de barcos que Artigas projetou para o antigo Iate Clube Santa Paula. Pingos voltam a cair. A água poluída da represa tem a cor da fumaça, e é possível ver favelas que se agigantam na margem oposta. A laje de concreto coberta de pichos (“GRIf/NOIA/EU GOSTO DE B****A!”) é a triste comprovação de que os ETs não zelam por nossas construções assim como o fazem pelas pirâmides faraônicas. Tenho o número do celular do suposto caseiro. Toca, toca, mas não atende. Através da cerca e das correntes, vejo alguém fumando, alguém que logo desaparece em meio à bruma e ao esquecimento. Joca Reiners Terron é escritor, editor e designer gráfico, autor de A Tristeza Extraordinária do Leopardo-das-Neves (Companhia das Letras, 2013). Cumpriu quatro anos de arquitetura e urbanismo na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e se arrepende de ter abandonado o curso.


Concepção e realização Itaú Cultural Curadoria Alvaro Razuk, Itaú Cultural e Rosa Artigas Projeto expográfico Alvaro Razuk e Marcus Vinicius Santos (assistente) Digitalização de fotos e documentos Laerte Fernandes Digitalização de projetos arquitetônicos Jorge Bastos

24 junho a 9 agosto 2015 terça a sexta 9h às 20h [permanência até as 20h30] sábado, domingo e feriado 11h às 20h L

Entrada franca Confira a programação paralela à mostra em itaucultural.org.br

ITAÚ CULTURAL Presidente Milú Villela Diretor superintendente Eduardo Saron Superintendente administrativo Sérgio M. Miyazaki NÚCLEO DE ARTES VISUAIS Gerência Sofia Fan Coordenação Luciana Soares Produção executiva Júlia Sottili, Lilian Sales e Silvia Ruiz (terceirizada) NÚCLEO DE AUDIOVISUAL E LITERATURA Gerência Claudiney Ferreira Coordenação Kety Fernandes Nassar Produção executiva Paula Bertola Edição de vídeo Karina Fogaça NÚCLEO DE PRODUÇÃO DE EVENTOS Gerência Henrique Idoeta Soares Coordenação Edvaldo Inácio Silva e Vinícius Ramos Produção Aline Arroyo (terceirizada), Cristiane Zago, Daniel Suares (terceirizado), Érica Pedrosa Galante, Laís Silveira (terceirizada) e Wanderley Bispo


NÚCLEO DE EDUCAÇÃO E RELACIONAMENTO Gerência Valéria Toloi Coordenação de atendimento educativo Tatiana Prado Equipe Caroline Faro, Luisa Saavedra, Thays Heleno, Victor Soriano e Vinicius Magnun Estagiários Alan Ximendes, Alessandra Boa Ventura, Amanda de Freitas, Ana Paula Sampaio, Ana Tramontano, Breno Gomes, Bruna Linndy, Carolina Candido, Carolina Luditza, Daiana Terra, Elaine Lino, Felipe Leiva, Felipe Nogueira, Felipe Silvani, Gabriela Akel, Giovani Monaco, Jaqueline Chile, João Bueno, João Leopoldo, Kleithon Barros, Leandro Lima, Marina Moço, Paloma Rodrigues, Rafael Freire, Renata Sterchele, Roger Dezuani, Thais Seixas, Thomas Angelo, Victoria Pinheiro, William Miranda e Willian Augusto Coordenação de programas de formação Samara Ferreira Educadores Bianca Selofite, Carla Léllis, Claudia Malaco, Guilherme Ferreira, Josiane Cavalcanti, Lucas Takahaschi, Malu Ramirez, Raphael Giannini e Thiago Borazanian NÚCLEO DE COMUNICAÇÃO E RELACIONAMENTO Gerência Ana de Fátima Sousa Coordenação de conteúdo Carlos Costa Produção e edição de conteúdo Duanne Ribeiro e Thiago Rosenberg Edição do site Duanne Ribeiro Redes sociais Renato Corch Supervisão de revisão Polyana Lima Revisão de texto Karina Hambra (terceirizada) Coordenação de design Jader Rosa Comunicação visual Yoshiharu Arakaki Edição de fotografia André Seiti e Marcos Ribeiro (terceirizado) Relacionamento Jaqueline Santiago e Patricia Recarey (estagiária) Eventos e comunicação estratégica Melissa Contessoto e Simoni Barbiellini

AGRADECIMENTOS Abelardo Alves Neto, Associação dos Docentes da Universidade de São Paulo, Cristiano Mascaro, Eliana Azevedo Marques, Elza Berquó, Escola da Cidade, Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, Fernando Fortes, Flávio Motta, Gal Buitoni, Guilherme Motta, Ilana Tzirulnik, Kika Rufino, Laura Artigas, Marco Artigas, Paulo Caruso, Paulo de Mendonça, Paulo Fecarotta, Paulo Naddeo, Paulo Pignanelli, Rita Favali, Rodrigo Queiroz, Sérgio Isaías Yurgel, Silvio Sawaya, Waldenir Regiani e Yola Kneese O Itaú Cultural realizou todos os esforços para encontrar os detentores dos direitos autorais incidentes sobre as imagens/obras fotográficas aqui publicadas, além das pessoas fotografadas. Caso alguém se reconheça ou identifique algum registro de sua autoria, solicitamos o contato pelo e-mail atendimento@itaucultural.org.br.

Centro de Memória, Documentação e Referência | Itaú Cultural Ocupação Vilanova Artigas / organização Itaú Cultural. – São Paulo : Itaú Cultural, 2015. 52 p. : il. ISBN 978-85-7979-071-3 1. João Batista Vilanova Artigas. 2. Arquitetura moderna. 3. Urbanismo. 4. Exposição de arte – catálogo. I. Instituto Itaú Cultural. IV. Título. CDD 724.981


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