Una Shubu Hiwea - Livro Escola Viva do Povo Huni Kuin do rio Jordão

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desenhadas na capa e em foto aérea nesta página, a aldeia Nova Fortaleza e a samaúma em destaque



desenho dos alunos de Dua BusĂŤ


SABER ANCESTRAL DO POVO HUNI KUÝ É Xinã Bena, o Novo Tempo dos Huni Kuý, momento em que esse povo indígena, natural da região amazônica entre Peru e Acre, se posiciona para transmitir suas tradições ao mundo, dialogando com não indígenas e preservando sua identidade. Esta publicação é um gesto nesse sentido. Assim como a exposição Una Shubu Hiwea - Livro Escola Viva do Povo Huni Kuï do Rio Jordão, apresenta o trabalho dos pajés na floresta, coordenados pelo pajé Dua Busë (1933?), além de reviver 13 mitos Huni Kuï; histórias que descrevem a origem do povo, o aprendizado dos costumes e da ética, trazidas na oralidade através dos tempos. O modo de viver desse povo transparece, portanto, nestas páginas, produzidas em uma parceria entre o Itaú Cultural, o artista Ernesto Neto, a editora Anna Dantes, a Dantes Editora e representantes das aldeias. Assim como a exposição, toda a edição foi discutida de forma colaborativa. Esse cuidado pode ser visto na fonte escolhida para os títulos – criada a partir de escritos desse povo –, na preservação e na transcrição dos materiais orais, da prosódia dos Huni Kuý.

O contato do Itaú Cultural com os Huni Kuý abrange outros projetos. O Rumos Itaú Cultural 2013-2014 também apoiou Huni Kuin: os Caminhos da Jiboia, primeiro jogo eletrônico feito por essa população. Ainda mais, em uma tentativa de se aproximar dos 254 povos indígenas brasileiros, o instituto realizou neste ano e em 2016 o Mekukradjá - Círculo de Saberes, um ciclo de debates sobre os habitantes originários do território. O instituto entende que é preciso evidenciar essas vivências que antecederam o Brasil, formaram sua identidade e, ainda assim, foram invisibilizadas por séculos e continuam sendo. É preciso ter um pouco de jiboia, símbolo da metamorfose para os Huni Kuï. É preciso trocar de pele. É Xinã Bena. É momento de ouvi-los.

Itaú Cultural


HUNI KUÏ Povo da floresta tropical amazônica que se distribui pelo leste peruano até a fronteira com o Brasil e pelo Acre e sul do Amazonas, e constitui a mais numerosa população indígena do Acre. São botânicos por (e da) natureza. Trabalham com espécies vegetais, plantas medicinais, integradas ao ambiente da selva em locais que chamam de parques. Outra botânica, outra forma de ver o mundo. Fazem desenhos geométricos sagrados – ensinados pela jiboia e chamados de kenes – nos corpos, nas cerâmicas, na tecelagem, na cestaria, em bancos e adereços. Kene é desenho, é cura e proteção. Eles pertencem ao grupo linguístico Pano. Falam hatxa kuý, a “língua verdadeira”, de onde vêm palavras como txai (refere-se a amigo, significa outra metade de mim) e haux (palavra sagrada, é o som da jiboia – ser primordial na cosmologia Huni Kuý), que atravessaram o limite linguístico sendo incorporadas a outros idiomas.


OUTRAS PALAVRAS EM HATXA KUÝ Amë – capivara

Kupixawa – maloca grande

Shëki – milho

Anu – paca

Maëkai – eu já vou

Shukë – tucano

Ati – água de beber

Maka – rato

Tingui – planta que envenena os peixes

Awa – anta

Mani – banana

Tshaka maki – muito

Bari – sol

Mari – cotia

Txã – buzina

Bari sitã – raio

Mátsi pawé – segura firme

Txã hina yaix – buzina do rabo do tatu

Bixi – estrela

Méké – mão

Txashü – veado

Dare – erva sagrada

Menã huriwe – seja bem-vindo

Unanumaki – com saúde, tudo em paz

Dayakapa – trabalhador

Mïa tirumaki – sou esperto

Unanumamë – está tudo bem? ou todos

Dume – tabaco

Nai – céu

Ê buniyai – estou com fome

Naï – preguiça

Ushe – lua

Ê manunameai – estou com saudade

Nawa tete – gavião real

Yaix – tatu

Ewa shunu – mãe-rainha

Ni – árvore ou floresta

Yame – noite

Handua – bonito

Nibi – orvalho

Yame unânumamë – boa noite

Haskaramã – olá, como está?

Nixi pae – cipó usado no preparo

Yawa – porco

Hima – formiga preta

com saúde?

da ayahuasca

Yube – jiboia

Inka – povo Yuxibu

Pinãwë – vamos comer

Yume – criança

Inu – onça

Shaba – dia ou tudo claro

Yume kashaikiki – menino chora

Isü – macaco preto

Shaba unanumamë – bom dia

Yuxibu – a identidade Huni Kuĵ – está em tudo

Katuki – separa

Shai – ir dormir

Kene – geometria sagrada Huni Kuĵ feita

Shawã – arara-vermelha

de desenhos ensinados pela jiboia

Shawë – jabuti


LIVRO-ORGANISMO Una Shubu Hiwea - Livro Escola Viva é um organismo que integra diversos seres que habitam o planeta: pessoas, animais, plantas e espíritos. “Os espíritos estão em tudo na terra”, ensinam os Huni Kuý. O projeto convida para o despertar de outras percepções, para descolonizar o pensamento racionalista, que não valoriza a intuição e qualifica povos autóctones como primitivos. É um aprendizado. Esse organismo nasceu em sonho para o pajé Agostinho Manduca Mateus Ïka Muru (1944-2011), há mais de 20 anos. É um projeto organizado pelo pajé Dua Busë, que orienta o trabalho de transmissão do conhecimento entre os velhos e jovens Huni Kuý. Una Shubu Hiwea está nos parques de medicina, nos tratamentos, na cura pela pajelança, mas também em cadernos. Os Huni Kuý começaram a usar papel e caneta para desenhar e escrever quando entraram no programa de formação de professores indígenas, em 1983. Os cadernos circularam por suas mãos e neles brotaram desenhos de plantas, sonhos, diários, relatórios e histórias. Esse organismo foi crescendo e se desenvolvendo. Em 2014, o Jardim Botânico do Rio de Janeiro e a Dantes Editora lançaram Una Isý Kayawa - Livro da Cura, organizado pelo pajé Agostinho Ïka Muru e por Alexandre Quinet. A publicação traz

a pesquisa com plantas dos pajés, e seus textos foram transcritos com base em registros orais. O livro é todo bilíngue. Para o texto em hatxa kuï foi desenvolvida uma tipografia específica, a partir das letras manuscritas dos cadernos que os indígenas nunca pararam de fazer. Muitos desses cadernos, pela umidade ou por outras razões, terminaram se estragando ou se perdendo. Com o apoio do programa Rumos Itaú Cultural, edição 2013-2014, o projeto continuou vivo. Cadernos foram distribuídos para as 35 aldeias dos rios Jordão e Tarauacá. Assim germinou Una Shubu Hiwea - Livro Escola Viva, organizado pelo pajé Manuel Vandique Kaxinawá Dua Busë. O novo livro reunindo os cadernos dos pajés foi produzido e impresso em papel plástico, assim como Una Isý Kayawa - Livro da Cura, e entregue a professores, pajés e aprendizes do povo Huni Kuý. Una Shubu Hiwea - Livro Escola Viva é também um kupixawa escola construído na aldeia Coração da Floresta, do pajé Dua Busë. Esta publicação, assim como a exposição, é fruto dessas sementes, desses organismos, e expressa o pensamento e a cultura Huni Kuý.


VIVA ESCOLA VIVA! por Anna Dantes e Ernesto Neto O pajé Dua Busë vive com sua família na aldeia Coração da Floresta, de onde organiza e orienta Una Shubu Hiwea - Livro Escola Viva, projeto Huni Kuý que fortalece a transmissão do conhecimento ancestral por meio da criação de parques de plantas medicinais, de encontros, de oficinas e do registro das próprias pesquisas em cadernos e livros. Una Shubu Hiwea é como Dua Busë batizou esse trabalho de união que vem da floresta e também como batizou a escola que construiu em sua aldeia com o apoio do Itaú Cultural e a ajuda de parentes e de Sabino Txana Ixã, cacique da aldeia vizinha, Novo Segredo. Dua Busë segue a vida curando doenças, ensinando sobre plantas, cantando, contando histórias dos antigos, trabalhando nos parques de medicina. Esse é o trabalho de Dua Busë, assim como o de todos os pajés. O projeto Una Shubu Hiwea está acontecendo nas 35 aldeias das três terras indígenas do Jordão (Alto Jordão, Baixo Jordão e Seringal Independência), onde vivem quase 3 mil pessoas. Una Shubu Hiwea é de conhecimento das lideranças das outras quatro regiões do povo Huni Kuý, a maior população indígena do Acre, somando mais de 13 mil pessoas. Agora os Huni Kuý estão aqui em São Paulo, por uma breve temporada, para contar sua história. Os Huni Kuý não vieram sozinhos. Chamaram a jiboia, o grilo e o besouro para abrir os caminhos. desenho dos rios Jordão e Tarauacá


Este é realmente um trabalho colaborativo. Somos muitos e de diversas espécies, guiados pelo propósito de aproximar um pouco mais a floresta do povo que mora nas cidades, para que todos reconheçam a enorme, milenar e sábia cosmovisão dos povos originários. Não podemos esquecer que o primeiro brasileiro, ou brasileira, é filho, ou filha, de “índia”. Deste subsolo da Avenida Paulista é possível imaginar a floresta. No piso que chamamos Rios está a reprodução da pintura dos rios Jordão e Tarauacá por José Mateus Itsairu, da aldeia Mae Bena. Cerâmicas, cestaria, tecelagens e outras artes Huni Kuý feitas especialmente para esta exposição estão reunidas no centro da sala. Percorre o espaço uma paisagem sonora criada por Yan Saldanha. Uma foto aérea da aldeia Nova Fortaleza revela uma samaúma, árvore sábia e sagrada. A seus pés estão algumas fotografias, feitas por Camilla Coutinho Silva, das plantas dos parques de medicinas dos pajés. nos aproxima do som que se escuta na floresta em diferentes momentos e situações ao longo de um dia. Divididos por aldeias estão os desenhos e os cadernos originais representando o intenso trabalho de pesquisa Huni Kuý. São relatórios de tratamentos, inventários de plantas nos parques, diários e mensagens. Por meio de pequenos vídeos, pode-se acessar a fala de quatro pajés: José Melo, da aldeia Mae Bena; Txana Kistý, da aldeia Três Fazendas; Dua Busë, da aldeia Coração da Floresta; e o visionário pajé Agostinho Ïka Muru (1944-2011), a quem se deve a abertura deste trabalho, iniciado em 2011, com o encontro de pajés em sua aldeia e a organização do livro Una Isý Kayawa, publicado em 2014. Em memória, nosso profundo agradecimento.

Ao fundo está pintado um grande mural contando a história da transformação de pajés em plantas medicinais. Mais de 80 espécies são parentes Huni Kuý que se tornaram plantas para curar. Uma síntese da história Huni Kuý, dividida em cinco tempos, está desenhada no quadro-negro. Na mesa, talhada com relevos de kenes, geometria sagrada Huni Kuý, estão os três livros publicados no tempo Xinã Bena: Una Hiwea, Livro Vivo (UFMG, 2013), Una Isý Kayawa - Livro da Cura (Dantes e Jardim Botânico do Rio de Janeiro, 2014) e Una Shubu Hiwea (Dantes e Itaú Cultural, 2017). No piso Jiboia, o 2º subsolo deste edifício, ao som dos grilos que vivem sob a terra estão 13 mitos Huni Kuý. Histórias dos tempos em que os Ikã Nai Baï, os pajés de antigamente, falavam com os animais, as plantas, os espíritos e todos os elementos da floresta. A jiboia está reproduzida no chão. Ela foi pintada por Menegildo Isaka, da aldeia Boa Vista. Sobre a jiboia estão 35 bancos, um para cada aldeia dos rios Jordão e Tarauacá. Ao centro da sala, um Tasakanã, banco usado nos batismos, feito com a madeira da raiz da samaúma e rezado pelo pajé. Há duas salas de vídeo. Uma com o filme Una Shubu Hiwea, de Camilla Coutinho Silva, e outra com seis filmes produzidos por cineastas Huni Kuý como parte dos projetos Vídeo nas Aldeias e Rede Povos da Floresta. Esta exposição é um espaço sagrado.


A PULSÃO CULTURAL É MAIS POTENTE QUE A RESISTÊNCIA A editora Anna Dantes, que trabalha com o povo Huni Kuý desde 2011, conta mais sobre essa história: “ ‘A cultura é nossa maior proteção’ é um dos ensinamentos transmitidos pelo pajé Agostinho Ïka Muru. A cultura fortalecida expande fronteiras, forja um novo estado de espírito pulsante, epicêntrico, mais potente que a desgastante resistência sempre contaminada pelo opressor. Com suas terras demarcadas, após lutas pela libertação do modelo extrativista da seringa, que favorecia o enriquecimento de patrões e proibia atividades culturais indígenas, os pajés mergulharam por mais de 20 anos no estudo da ancestralidade. Buscaram cantos, mitos, conhecimentos de plantas, tratamentos e a própria cosmovisão. O livro torna-se assim uma nova ferramenta de atualização da tradição oral. Ele é vivo, pois não deixa o conhecimento morrer; mais do que isso, ele o ramifica, enlaça novos sentidos, cria raízes e dissemina sementes. E é escola, pois reúne velhos e jovens no ensinamento e convida a todos a ampliar nossos conhecimentos”.


PARA CURAR O MUNDO O cacique Tadeu Siã Huni Kuý (1976), liderança que acompanha os processos do livro, fala sobre o projeto: “Este projeto abriu uma porta para o povo Huni Kuý, uma aprendizagem, uma valorização, uma luz para cada pajé. Estamos organizando, plantando, cuidando, curando, fazendo as práticas. Dentro do espiritual. A escola está viva. O sonho é para mostrar isso para o mundo e começar a curar o mundo. É um projeto importante de união. Fortaleceu os parques, os costumes. A natureza agradece. E ainda tem muita coisa para fazer pesquisa”.

MEDICINA, AMOR E FÉ O pajé Dua Busë em trecho de Una Shubu Hiwea - Livro Escola Viva: “Então é por isso que estamos fazendo o nosso trabalho de sistema de saúde indígena porque ali as medicinas são tudo vivo, estão ouvindo, estão escutando e estão amando nós dentro do nosso espírito, dentro do nosso som, que amamos também, e nós temos fé deles. E, quando na hora que nós vamos tirar, nós temos que pedir também, pela força, porque ele está ouvindo. Medicina estão vivos, são espíritos. Tem medicina que foi nossos parentes que viraram espécies de medicina”.


A FORÇA DE YUXIBU O pajé Agostinho Ïka Muru em trecho do livro Una Isý Kayawa - Livro da Cura: “Acho que agora abriu uma porta. Eu procurei tanto para achar um apoio desses. Foi a força de Yuxibu. Agora vamos deixar o documento para o nosso povo. A história dos brancos tem os livros desde o princípio da criação, dos planetas e da vida. A nossa temos só nas histórias que contamos. Não tem essa publicação ainda. Então por isso é que nós temos que ter um pouco de explicação nesses livros vivos, a história da tradição e do conhecimento do povo Huni Kuý. Ouvir, entender, compreender. Eu, sozinho, não posso fazer nada”. O pajé Agostinho Ïka Muru fala sobre Yuxibu: “Ninguém é maior, nem menor, nem mais bonito que o outro. Somos os mesmos viventes do Yuxibu. Então acho que esse daí é o pensamento do Yuxibu. A gente fala, mas não vê. Yuxibu é uma coisa invisível. Sabemos o nome, mas ninguém encontrou. O Yuxibu cria. Ele criou tudo, e até hoje está criando”.


A CIÊNCIA ESPIRITUAL Ernesto Neto (1964), escultor de destaque na produção contemporânea, iniciou o contato com os Huni Kuý pelas mãos de Anna Dantes, durante as pesquisas do livro Una Isý Kayawa - Livro da Cura. A partir daí, Neto realizou diversas experiências artísticas com os Huni Kuý. Expuseram em São Paulo, Aalborg (Dinamarca), Bilbao (Espanha), Helsinque (Finlândia), Veneza (Itália) e Viena (Áustria). Neto destaca da produção dos Huni Kuý três aspectos: a construção coletiva, a espiritualidade e o desenho.

SABEDORIA COLETIVA Ao apresentar cadernos feitos na floresta, com relatórios, mapeamentos, transcrições, pesquisas realizadas e transmitidas há gerações, os Huni Kuý revelam uma sabedoria coletiva, da pesquisa à manutenção. A exposição oferece a possibilidade de o visitante participar dessa pesquisa. A partir das maquetes de cada piso, os Huni Kuý decidiram o que haveria nos espaços e como eles seriam preenchidos. Neto explica: “As decisões são coletivas. A partir das rodas de conversa, de canto, de encontro. As casas não têm paredes. Não têm separação nem porta fechada. É tudo permeável”.


SAGRADA NATUREZA “É uma exposição que abre um canal para que as pessoas da cidade encontrem as pessoas da floresta e aprendam um conhecimento que veio das plantas, da sabedoria da natureza, que eles sabem ler e conhecem e nós não. Quando muito, conhecemos os nomes das plantas dados pela ciência. Mas nada sabemos sobre quem são, sua força, sua potência. As plantas falam através dos Huni Kuý. A floresta se relaciona com eles. Isso é um entendimento diverso do ocidental, que se dá a partir da separação – vê a terra como paisagem. Eles não se separam. As plantas, os pássaros, os bichos, os rios são a família deles (quem sabe descubramos um dia que são a nossa também), estão todos em relação de troca e contato. Os Huni Kuý não possuem palavra para a natureza porque eles não se separam dela. São um só. Nós achamos que somos superiores e que esses seres estão à nossa disposição. Nós separamos a ciência do sagrado. Para eles, a ciência é uma relação espiritual. A partir dessa outra perspectiva podemos, quem sabe, nos elevar espiritualmente.” – Ernesto Neto

TRAÇO LIVRE Na nossa cultura, o desenho está relacionado à infância e, em dado momento, para seguir por esse caminho, você precisa saber desenhar. Para o Huni Kuý isso não existe. Prevalece a necessidade de expressão e eles se valem, no mesmo espaço, da escrita e do desenho sem nenhum impedimento. Anna Dantes comenta: “Algumas pessoas identificam traços infantis nos desenhos, mas vale pensar que a definição ‘infantil’ é feita por quem não se permite mais a experimentação do traço sobre o papel. Os Huni Kuý não têm o impedimento da repressão de não poder fazer. Eles se sentem à vontade para experimentar. Por isso os desenhos têm essa potência. Neles encontramos soluções de cor, de ocupação do espaço incríveis. A presença é total”.



A BIBLIOTECA DA FLORESTA A samaúma é uma majestade. Sagrada para diversas populações autóctones da região amazônica, dos maias aos Huni Kuý, é unanimidade na mata, em povoados ou cidades, sendo usada até como ponto de referência para a localização de endereços. Os Huni Kuý costumam assentar moradia próximo a samaúmas. Em seu idioma, a chamam de shunu. Dizem que ela é a biblioteca da floresta. Seus nomes são muitos: escada do céu, árvore da vida, mãe das árvores. Os morcegos fazem a polinização da planta. A árvore tem copa frondosa e aberta, porte enorme e altura de 50 a 70 metros (o Cristo Redentor tem 30 metros), com registros de espécies que chegam a 90 metros – entre as maiores do planeta. O tronco alcança 3 metros de diâmetro e a estrutura das raízes com contrafortes impressiona. Essa estrutura, chamada de sapopema, quando se encontra com outras da mesma espécie, cria locais onde se pode morar e moram povos das florestas, que também a utilizam para comunicação por meio de batidas que ecoam na mata. As raízes estrondam em certos períodos do ano irrigando o entorno. Para a botânica tradicional, a samaúma se chama Ceiba pentandra e tem raízes tabulares, folhas digitadas, flores campanuladas brancas e cápsulas fusiformes, comestíveis quando verdes, com sementes envoltas por filamentos sedosos – a paina. grupo Nawa Shunu aos pés da samaúma da aldeia Nova Fortaleza

Da árvore usa-se tudo, folhas, caule, frutos, sementes, raízes. A paina dos frutos é uma fibra similar ao algodão que serve para tecelagem e enchimentos. Suas outras partes acumulam diversas propriedades de cura.


desenho de JosĂŠ Domingos Itsairu


raĂ­zes da samaĂşma da aldeia Nova Fortaleza


OS CINCO TEMPOS A história dos Huni Kuý é dividida em cinco tempos: Tempo das Malocas, em que viviam nus, antes do contato com os brancos. Tempo da Correria, quando foram sobrepujados pelas armas de fogo, tiveram o território tomado e foram reduzidos a pouco mais de 300 pessoas. Tempo do Cativeiro, em que se tornaram reféns dos seringalistas que implementaram o sistema escravista dos barracões, sob o qual nasceram todos os Huni Kuý hoje mais velhos. Tempo dos Direitos, que, a partir da década de 1970, contou com as formulações dos antropólogos Terri de Aquino e Marcelo Piedrafita na constituição das cooperativas e na delimitação dos territórios. Novo Tempo, ou Xinã Bena, que alia a transmissão das tradições entre velhos e jovens a intercâmbios com o mundo do século XXI.


Dentro da história tem cantoria, tem medicina. Enquanto eu estou vivo, eu sou escola viva. Sou vivo, falo, indico, explico, ensino. Por isso eu chamei meu kupixawa de escola viva, porque eu estou lá, dentro do meu kupixawa, contando história e escrevendo no quadro. Eu estou dando aula. Por isso eu pensei escola viva. Escola viva não é só um, não. Todo mundo hoje em dia é escola viva porque estamos resgatando nossa cultura que estava escondida. Foi isso que pensei para deixar tudo para sempre para eles.”

Pajé Dua Busë

desenho do rio com a floresta, de José Mateus Itsairu, aldeia Mae Bena - Rio Jordão



HUÃ KARU YUXIBU

HISTÓRIA DO DONO DOS PODERES DA NATUREZA As famílias moravam em malocas. A mulher solteira sempre ia buscar pedaço de madeira para fazer lenha para o fogo. Uma vez ela se apaixonou por um pedaço de madeira, Huã Karu. Ela falou: – Se fosse um homem bonito como esse pedaço de madeira, eu casava. Quando escureceu, noite da lua, a mulher foi fazer xixi e encontrou esse rapaz no terreiro. Ela perguntou: – Quem é você? Ele respondeu: – Foi comigo que você falou. Ela disse: – Eu não falei contigo, eu falei com Huã Karu. Ele disse: – Sou eu mesmo que me transformei. Ela se apaixonou e começou a namorar com ele até que engravidou. Um dia as pessoas da aldeia queimaram toda a lenha. Depois o homem não vinha mais, desapareceu. A mãe reclamou que ela estava grávida sem marido. A criança da barriga começou a falar: pintura de José Mateus Itsairu, aldeia Mae Bena - Rio Tarauacá

– Mãe, vamos se retirar daqui. Vamos para a terra da minha família, a terra de Huã Karu Yuxibu.


A mulher fugiu com o menino na barriga. No caminho o menino começou a explicar: – Mamãe, lá na frente tem dois caminhos. O caminho mais cerrado é o caminho da minha família. O caminho mais limpo, que na beira tem cabelo de arara, é o caminho dos Inka. Você pega o caminho cerrado. O menino pedia para a mãe pegar semente, flor para ele e a mãe pegava. Na frente tinha semente de sororoca, pediu para a mãe pegar, quando ela ia tirar, na folha da sororoca tinha marimbondo que deu picada nela. Ela se zangou e bateu na barriga. A criança, com raiva, parou de falar. A mãe seguiu a viagem e entrou pelo caminho errado. Chegou na terra dos Inka e encontrou a tia do Huã Karu, Yusha Kuru, fiando algodão. Yusha Kuru falou: – Por que você veio aqui? O Inka me trouxe e é muito perigoso. Ele come gente. A mãe de Huã Karu ficou lá e Yusha Kuru preparou carvão para proteger quando o Inka chegasse e pedisse para catar piolho. Ela disse: – Se você não gostar do piolho dele, ele te come. O piolho dele é besouro. Quando terminou de preparar, os Inka chegaram e um velho pediu para catar piolho. A mãe do Huã Karu catou piolho, mascando o carvão e jogando o piolho do Inka fora. Finalmente chegou um último Inka, que pediu para catar piolho, mas o carvão tinha acabado. Quando ela botou o besouro na boca, ela vomitou e o Inka ficou bravo e atacou. Ela morreu e os Inka abriram sua barriga para comer. Huã Karu pulou no colo da tia. A tia falou: – Vocês já estão comendo a mãe. Não precisa comer a criança. Eu não tenho filho, vou criar. Huã Karu Yuxibu cresceu da noite para o dia. Cresceu rápido. Ele pediu para os Inka fazerem flecha para ele pescar. Ele chamava a tia

de mãe. Um dia ele ficou sabendo que a mãe tinha sido comida pelos Inka e resolveu se vingar. Os Inka sempre iam caçar. No caminho de volta da caçada, Huã Karu construiu uma armadilha com uma palmeira que arremessava o Inka para longe quando ele atravessava. Huã Karu voltava com a caça para casa. E o Inka sumia. Cada vez tinha menos Inka. Começaram a desconfiar de Huã Karu e combinaram de matá-lo. O cacique dos Inka avisou a todos Inka se prepararem para matar Huã Karu. A tia pediu para Huã Karu fugir. Ele falou: – Não tenho medo. Pegou uma flauta com uma borduna pequena e ficou sentado no meio da maloca tocando sua flauta. Os Inka entraram armados na maloca por todos os lados. Huã Karu levantou gritando, bateu com a borduna no meio da maloca e deu igual a um relâmpago. Ele saltou para o alto da maloca. Só ele e a tia escaparam. Os Inka acabaram. Huã Karu perguntou à tia onde os Inka jogavam os ossos. A tia mostrou uma sapopema. Huã Karu entrou na mata e buscou uma medicina, esfregou na mão e espremeu a medicina em cada osso que encontrou. A primeira gota foi no osso de uma anta, e ela saiu viva correndo. Fez isso com todos os animais, veado, porco, cotia, jacaré. No final encontrou os ossos da mãe. Só os pedacinhos. Colocou a medicina e a mãe se transformou em pessoa novamente. Huã Karu, sua mãe e sua tia, Yusha Kuru, finalmente pegaram o caminho para a aldeia da família de Huã Karu. Viajaram o dia todo até que anoiteceu. Huã Karu fez acampamento tradicional. Huã Karu ensinou as medicinas para sua tia durante a noite toda. Deu madrugada, a tia estava com muito sono e Huã Karu ia ensinar a última medicina. A tia pediu para ele ensinar no dia seguinte. Era a medicina que fazia viver de novo. Eles dormiram. No dia seguinte Huã Karu não ensinou mais. Por isso que nosso povo não conhece esse remédio.


kene Mae musha - espinho de esperaĂ­, povo Huni KuĂŻ. Fantasia de pintura cultural



YUSHA KURU

HISTÓRIA DE YUSHA KURU

Para pegar a história da Yusha Kuru tem que ir lá quase no fim da história do Huã Karu Yuxibu. Quem conheceu a Yusha Kuru diz que foi assim: De antigamente nosso povo vivia nu, só usando alimentos insossos, não tinha sal, não tinha nada. Embora conhecessem árvores, floresta, não sabiam o nome das ervas e não sabiam o que era remédio. Yusha Kuru é tia do Huã Karu Yuxibu. Yusha Kuru tinha sido roubada pelos Inka há bastante tempo. Ninguém nunca fez menino nela, Inka nunca tinha feito filho nela. Huã Karu chegou na terra dos Inka na barriga grávida da mãe dele. Os Inka comeram a mãe e Huã Karu Yuxibu foi para perto da tia dele para não ser comido pelos Inka. Yusha Kuru não tinha filhos, ela resolveu criar. Huã Karu criou-se sabido, era feliz, matador de caça. Sempre ia perguntando pela mãe dele, como foi que ficou, e Yusha Kuru explicou que os Inka comeram a mãe dele. – Você chegou aqui dentro do bucho da tua mãe. pintura de Adalberto Andrade Henrique, aldeia Nova Aliança, e Raimundo Nonato, aldeia Nova Mina - Rio Jordão

Huã Karu começou a vingar a mãe dele aqui e acolá fazendo remédio de paixubinha e paixubão, pé de coco alto, despejava em quem descobria. Jogava lá longe o bagaço, até que Inka descobriu e resolveu matar Huã Karu Yuxibu.


Yusha Kuru ficou com medo e disse: – Olha, Huã Karu Yuxibu, Inka está querendo te matar, não vai pra longe não, senta aqui perto de mim, fica aqui perto de mim que eu vou te sovinar. Aí ele achava graça e dizia: – Tudo bom, tia, ele não vai me matar não. Ele vai morrer primeiro que eu. No dia que estava chegando o mutirão de Inka, Huã Karu Yuxibu levantou, bateu com a borduna assim na traseira da casa e os Inka caíram todos esbagaçado na testa. Huã Karu pensou: – Eu já matei Inka, agora simbora, vamos encontrar com a comunidade. Eles saíram, assim que entraram debaixo da floresta, ele explicou a medicina para tia: – Olha, tia, essa medicina serve pra isso, cura, pra curar tantas doenças. Yusha Kuru era cabeça boa e já vinha logo pegando tudo. Era igualmente assim a um gravador, pegava tudo, aprendia bastante, durante dias, bastante medicinas do Huã Karu Yuxibu, Yusha Kuru conheceu e aprendeu também. Ela chegou na aldeia e nunca disse pra ninguém. Ela teve uma filha com o marido. A filha cresceu e arranjou um marido. O genro dela estava morando junto da Yusha Kuru. Mais adiante outra turma combinou para virar medicina, era só Yusha Kuru que estava ouvindo e vendo também. Ninguém não estava nem ligando porque eles não sabiam. Yusha Kuru que estava percebendo que eles estavam combinando para virar medicina como: Dua Bake, Inu Bake, Inani Bake e Banu Bake. Bom, viraram medicina. Yusha Kuru ensinou para seu neto Ika Shane

Teashkã. Ika Shane aprendeu bastante com Yusha Kuru. Um pouco a mais ela ensinou os venenos. Os parentes que viraram espécies venenosas. Ela dizia: – Você escolhe gente mais gordo, mais alto, que eu vou envenenar para você e para nós comermos. É bom, carne é bom. Yusha Kuru matava as pessoas pra comer. Ika Shane Teashkã não falava para ninguém dessa medicina, desse veneno. Outro dia, a filha pintou com jenipapo nas costas o genro da Yusha Kuru. Yusha Kuru não mostrava para ninguém onde pegava o barro para fazer cerâmica. Era só ela, ela fugia sozinha para pegar barro para a cerâmica. Chegava e fazia panela de barro, prato de barro, tudo, pote de barro. Ela saiu na frente, o genro dela saiu atrás para ir caçar, pegou flecha e disse: – Olha, mulher, eu vou matar qualquer bicho para nós comermos. Saiu, atravessou o igarapé e lá veio o tucano, pousou assim no galho de pau. Pegou flecha, flechou, mas não acertou, errou. Jogou a flecha perto de onde Yusha Kuru estava tirando barro. Ela estava lá na grotazinha tirando barro, Yusha Kuru. Ela sempre tirava bastante. Onde tirava o barro era oco, ela tinha que entrar o corpo dela até pegar o barro. Aí esse homem, genro dela, foi lá e encontrou a flecha perto da sogra dele. Quando ele olhou, a sogra estava ali tirando barro, bem pertinho. A velha estava nua tirando barro assim, com a cabeça pra baixo, e ele pensa assim: “Eu vou namorar essa velha”. Deixou a flecha, foi devagar e segurou com força. Yusha Kuru perguntava: – Quem é você? Me deixa ver a tua cara. Quem é você mesmo? Você tem que me avisar para fazer assim, do jeito que você está fazendo você está me judiando. Ele foi com mais força para cabeça dela ficar no barro e terminou de namorar. Pegou a flecha e saiu para Yusha Kuru não saber que era ele, mas ela viu a pintura nas costas dele e reconheceu o genro.


– Foi meu genro que me judiou, reclamou Yusha Kuru. Saiu chorando e saiu colhendo logo o veneno. Esse veneno Ika Shane Teashkã sabia tudo. Ela chegou pra pescar e pegou mandim mole, piaba, bodó preto. Pescou bastante e preparou dois peixes envenenados para o genro dela, para ele comer. Chegou lá e falou: – Filha, cozinha esse peixe para gente comer juntos e esses peixes aqui é para o meu genro comer, é só pra ele. Botou numa cesta e escondeu o peixe para esperar o genro. Ela cozinhou bastante banana madura, pisou e temperou o amendoim. Aprontou tudo enquanto estava esperando. Lá vinha o homem, tinha matado tudo: tatu, jacaré, macaco, ele vinha carregado. Chegou 5h30 e a mulher dele se animou. Chegou com muita caça e o povo ficou animado. Yusha Kuru deu uma caiçuma de milho para o genro. Pegou a moqueca de peixinho e macaxeira e deu para ele comer. Ele não sabia e comeu bastante. De repente esse homem morreu, pegou diarreia, vômito, câimbra e morreu. Ika Shane Teashkã adivinhou: – Quem matou meu pai foi Yusha Kuru. Quando amanhecer o dia eu vou ver todo o veneno de onde ela tirou. Se foi ela ou não que matou, pensou Ika Shane Teashkã. Quando amanheceu o dia Ika Shane Teashkã saiu para fazer pesquisa de todas as plantas venenosas. Aí encontrou onde Yusha Kuru tinha tirado a planta que matou seu pai. Ele resolveu que ia vingar seu pai e matar sua avó. – Ela é perigosa, ela já envenenou muita gente até que envenenou meu pai. Decidiu dar borduna na cabeça dela. Enquanto estava pesquisando lá Yusha Kuru já tinha fugido. Bom, Yusha Kuru fugiu. Procuraram ela

em cada aldeia e não achavam. Tinha um rapaz com nome de Tawa Xini Bexka sabia achar onde ela estava escondida. Então vamos atrás. Chamaram Tawa Xini Bexka e falaram para ele que queriam que ele achasse Yusha Kuru porque ela tinha fugido, porque tinha matado o pai de Ika Shane Teashkã. Tawa Xini Bexka era cego mas avistava tudo a distância. Com o olho fechado ele disse: – Yusha Kuru saiu daqui e foi beirando o roçado e está lá. Ela fez uma esteira de parede e está debaixo dela. Ela está escondida lá. Ela estava lá para ninguém ver. Eles foram buscar Yusha Kuru. Chegou o final do dia e resolveram vamos matar no dia seguinte. Enquanto eles dormiam, ela fugiu de novo. Foi a mesma distância de quando eles tinham ido pegá-la. Chamaram de novo Tawa Xini Bexka e ele veio e achou Yusha Kuru de novo. Ele disse onde estava ela, novamente embaixo da esteira, então eles foram buscá-la. Chegaram na casa dela cedo. Cacetaram ela e cozinharam a carne dela pra comer mas ninguém conseguiu comer porque a carne estava ruim, dura. Carne dela não é boa não, queimaram porque disseram que a carne dela era veneno. Agora que Yusha Kuru já foi, restou o neto dela, Ika Shane Teashkã. Ele ensinou para todo mundo da aldeia o que tinha aprendido com a avó. Ele falou: – Ela, minha vó, sabia de muitas medicinas que tinha aprendido com Huã Karu Yuxibu. Ela me ensinou bastante sobre as medicinas e agora eu vou ensinar vocês. Nossas medicinas são essas: medicina pra tontura, medicina pra coluna, medicina para tudo. Agora tem também as medicinas com veneno mas só Inu Bake pode usar, Dua não. Foi Yusha Kuru que envenenou meu pai. Ele mostrou a medicina que ela tinha envenenado seu pai. Então a história de Yusha Kuru é assim: o genro transou com ela enquanto ela tirava barro, ela matou o genro e o neto dela matou ela. E de lá pra cá Ika Shane Teashkã ensinou todas as medicinas para as famílias Huni Kuý.



YUBE INU DUA BUSË HISTÓRIA DO CIPÓ

Dua Busë morava com a família em uma maloca grande. Uma tarde ele saiu pra caçar e encontrou jenipapo na beira do lago. Tinham muitas caças que estavam comendo o jenipapo, tinha veado, porco, anta... Dua Busë fez tocaia e ficou lá dentro esperando a caça. Lá veio a anta para comer a fruta do jenipapo, quando chegou a anta juntou três frutas e jogou no meio do lago chamando alguém. Veio uma mulher de dentro do lago toda bonita mesmo, trazendo pra anta uma cerâmica desenhada cheia de mingau de banana para a anta beber. Mulher e anta namoraram e Dua Busë ficou olhando da tocaia. Depois a mulher jiboia voltou para dentro do lago e a anta foi embora. Dua Busë voltou para casa e não conseguiu dormir lembrando da mulher com a anta. No dia seguinte, às 5 da manhã, ele pegou a flecha e voltou para tocaia sem avisar a família. Ele fez a mesma coisa, pegou três sementes de jenipapo e jogou no lago. Saiu uma espuma do rio e logo depois saiu a mulher com o vaso de cerâmica com mingau de banana igual que fez com a anta! pintura de Tatulino Macário Kaxinawá Ixã, aldeia Flor da Mata - Rio Tarauacá

Dua Busë se escondeu na hora, mas depois agarrou ela sem avisar e até o vaso quebrou. A mulher falava: – Me solta! Quem é você?


Ela começou a se transformar em jiboia, transformar em murmuru (uma palmeira que tem muito espinho), onça. Ele não soltou.

– O que é isso? – É um chá de cura, respondeu o sogro.

Finalmente Dua Busë falou:

Huã Karu preparou o chá à tarde e, à noite, enquanto preparava o ritual pediu para filha avisar ao genro para ele não beber.

– Te vi namorando com anta e quero te namorar também.

A filha foi avisar ao marido que não era para beber o chá.

Ela se transformou em gente e falou:

– Se ele beber pode acontecer algumas coisas e talvez ele não vai aguentar.

– Vou namorar com você se você estiver solteiro.

Mas o Dua Busë quis beber e finalmente ele bebeu...

Dua Busë entrou em um acordo, disse que não tinha mulher e queria casar com ela. A mulher jiboia fez remédio para o Dua Busë, pegou medicina para ele, mergulhou com ele e saiu na aldeia do fundo do lago.

A esposa pediu para não beber, mas ele bebeu mesmo assim uma dose grande.

Encontrou com o peixe arraia que já estava com a lança e o peixe mandim com flecha para matar Dua Busë.

Quando estava chegando a força o Dua Busë começou a agoniar e foi vomitar.

A mulher falava que não era para matar Dua Busë, que ele era marido dela. Mais à frente encontraram puraquê, um peixe que dá choque, que trazia a borduna dele, mas a pedido da mulher o puraquê também se acalmou.

Quando ele estava vomitando ele começou a ver a jiboia engolindo ele.

A aldeia do fundo do lago tinha tudo, maloca, roçado, plantas, legumes. Quando chegaram no limite do roçado, a mulher deixou o Dua Busë lá esperando para avisar a família que estava trazendo um homem para casar com ela. Os pais concordaram e ela foi buscar Dua Busë. Passou tempo e eles fizeram dois filhos, uma filha e um filho. Um dia Huã Karu, sogro de Dua Busë, que estava dentro do lago, começou a preparar ayahuasca. Ele tirou cipó, rainha e foi preparar o chá. Dua Busë perguntou:

Ele estava vendo o futuro. Aí quando o sogro viu falou: – Bem que eu avisei que não era para ele beber. Chama ele que vou cantar para ele. Quando o sogro começou a cantar ele viu a jiboia estava apertando. Dua Busë começou a gritar muito. Até que amanheceu o dia, fizeram medicina para Dua Busë tomar banho. Dua Busë ficou descansando até que um dia ele levantou para caçar. A mulher não queria deixar, mas ele foi mesmo assim. Foi indo até que chegou no largadouro, o lugar onde chega o igarapé que alimenta o lago, e encontrou o Iskï, o bodó encantado.


O Iskï falou: – Seja bem-vindo, meu txai! Queria encontrar contigo mesmo. Iskï estava sem cabelo e sem o rabo. – Olha, txai, você está vivendo bem com a mulher jiboia; a sua mulher está com os seus filhos com fome. Eles me encontraram, tiraram meu nea rani, o cabelo do rabo, então melhor você voltar para sua terra, cuidar da sua família, porque eles estão sofrendo muito. Vem, vou te ajudar! O Iskï foi e pegou a medicina, colocou no olho dele e falou: – Pega meu cabelo e fecha o olho. Saiu com ele descendo o rio até chegar no roçado da família do Dua Busë. Chegando lá o Iskï jogou ele na terra. Quando virou, olhou e reconheceu o roçado da família. Ele foi entrando na terra dele... a família começou a gritar avisando que o Dua Busë estava voltando, veio todo mundo, perguntando e levando ele para txitüte, a pequena rede de pajé, e ele ficou deitado lá, contou a história que aconteceu com ele e a família pediu para ele não sair da casa com medo da jiboia. Ele ficou vivendo com a família um tempo e depois de um tempo foi caçar. A esposa do lago estava procurando ele com saudade e raiva. Ele falou que ia matar algumas coisas para fazer caçada, ele não quis ir pelo lago e foi pelo lado da terra, viu o pássaro kushu, cujubim, e deu flechada. A flecha dele caiu na beira do lago, no sangrador do lago, aí flechou de novo e foi lá de novo. Foi catar as flechas no lago e quando chegou para pegar as flechas encontrou com Bari Siri Ika, filha dele. Depois chegou a filha pequena e mordeu o dedão do pé dele. “Sirï sirï sirï...” Ele não fez nada, ficou espantado, olhando. Com o canto da filha

chegou o filho maior e atacou ele comendo até o joelho. Ele não falou nada. Daqui a pouco vem a mulher, tinha uma árvore no meio do lago. Dua Busë estava com o braço aberto pendurado na árvore e a mulher comeu até o peito. Aí Dua Busë começou a gritar. Chamando os seus parentes da comunidade. – Venham, meus parentes, a jiboia tá me engolindo! Seguraram Dua Busë e conseguiram tirar ele. Ele ficou com o corpo mole, ficou na rede e falou para seu cunhado: – Quando eu morrer, me enterra. Passando seis meses pode me procurar na minha sepultura. Na parte direita vou virar cipó e na parte esquerda vou virar rainha. Tira o cipó, 1 metro mais ou menos, pega um pau e bate até sair a casca e depois cozinha. Cantando eu fico dentro do cipó e explico para você. Foi explicando para o cunhado dele enquanto morria. Enterraram, passou seis meses e o cunhado dele foi visitar a sepultura. Nessa hora tinha nascido o cipó, nascido rainha. Tirou os dois juntos e fez como ele havia explicado. Fez o nixi pae, tomou e veio a miração. Teve muita explicação. Mostrando o futuro, presente e passado e a verdade. Assim nasceu o nixi pae e essa é a nossa história.



ISKÏ YUXIBU

HISTÓRIA DO BODÓ ENCANTADO

O Iskï Yuxibu, o bodó encantado, morava no oco do pau do igarapé. Um dia os filhos do Dua Busë que tinham ficado na aldeia tentaram pegá-lo no oco, mas não conseguiram alcançar o bodó, maltrataram o peixe mas não conseguiram pegá-lo. O Iskï Yuxibu resolveu buscar Dua Busë para voltar para a aldeia, para sustentar seus filhos que estavam passando fome. Enquanto isso o povo jiboia estava planejando comer o Dua Busë, o sapo-cururu estava preparando pimenta, a tartaruga do igapó preparou banana. Todos os bichos aprontaram macaxeira, torraram milho, fizeram pipoca, taioba, batata-doce, cará, inhame. Eles estavam preparando todos os legumes. Estava tudo prontinho para matar Dua Busë, até a mulher dele, a mulher jiboia que tinha levado ele para dentro do lago, tinha liberado para matar o Dua Busë. Por sorte, o Iskï apareceu na hora que o Dua Busë foi fazer xixi. O Iskï estava todo machucado. Se ele não tivesse aguentado os maus-tratos dos filhos de Dua Busë, Dua Busë teria sido comido. Ele estava com a cabeça cheia de sangue. O Iskï disse:

pintura de Cleudo Paulino - Kupi, aldeia Boa Vista - Rio Jordão

– Ô, txai, você veio da sua aldeia e está morando aqui, seus filhos quase que me matavam mas machucaram só minha cabeça. Assim eu vim te buscar para você voltar para sua aldeia e dar de comer a seus filhos que estão com fome e também todos os bichos estão planejando te comer. Se você não for embora eles vão comer você. – Sendo assim eu vou mesmo com você.


O Iskï disse que ia deixar Dua Busë perto do roçado da sua aldeia. Pediu para fechar os olhos, segurar na sua cabeça e só bateu o rabo, “pá”, saiu e chegou na aldeia. Iskï explicou que o povo do lago viria buscá-lo, para ele ficar escondido na aldeia, atar sua rede bem no alto. Aí o Iskï foi embora. Os Yuxibus estavam atrás para matar o Dua Busë. O lago veio, lá veio o lago, como cachoeira mesmo. O Iskï pediu para o Dua Busë ficar em silêncio pois se o lago escutasse ele falando iria cobrir a comunidade toda. O lago ficou ali quietinho uns cinco minutos e vazou. Aí Dua Busë desceu da rede e contou toda a história. Que tinha três filhos lá e que tinha aprendido a fazer o cipó.


kene Yube kate - espinhaço da jiboia. É o desenho de enfeite de animais sagrados na cultura Huni KuĂŻ, usado em pinturas, desenhos e tecelagens



YUBE NAWA AIBU

HISTÓRIA DO POVO JIBOIA

A história do Yube Nawa Aibu surgiu assim. Um tempo atrás, no tempo do dilúvio, os pajés falavam com os animais e aprendiam a cantoria com o nixi pae. Um tempo o pajé preparou um cipó e quando tomaram saiu essa miração. É a visão do cipó que é alegria, é cura, faz tudo. Naiburu é uma montanha, Yube Nawa saiu daqui. É uma jiboia feminina e uma jiboia masculina. Isso foi o que o pajé viu na visão do cipó e pegou uma música.

pintura de Deusimar Sena Isaka, aldeia Sacado - Rio Jordão



KUÏ DUME TENENI

HISTÓRIA DO DONO DO RAPÉ

Tekã Ketxu fez dieta do tabaco durante muito tempo. Ele plantava e fumava o tabaco, fazia e tomava rapé. Ele meditava em sua rede concentrado. Sua mulher tinha que caçar, pescar e fazer tudo sozinha. Ela começou a ficar com outro homem. Um dia ele ouviu esse homem tocando flauta da floresta chamando sua mulher para namorar. A mulher disse para Tekã Ketxu que ia buscar água no igarapé. Ele ficou cismado e saiu atrás dela levando lança, flecha e borduna. Encontrou a mulher agarrada com o homem e atravessou a lança nos dois e depois meteu a borduna neles. Quando a sogra descobriu o que ele tinha feito, contou para toda a aldeia e ele fugiu para a casa de uma irmã, onde matou um espírito de coruja que pegava as crianças. Depois ele foi para casa de outra irmã, que contou que sua aldeia não tinha mais marido pois um gavião estava comendo os homens. Ele fez uma pessoa de barro no lugar onde o gavião vinha pegar os homens e quando o gavião veio ele flechou. A família da aldeia ficou feliz e ele disse que ia embora para aldeia de outra irmã. Foi avisado que no caminho encontraria Nibu Baka Pianã.

pintura de Acelino Sales Tuï, aldeia Bom Jesus - Rio Jordão

Nibu Baka Pianã era um escorpião encantado que trazia escuridão. Tekã Ketxu preparou uma brasa e tapou com uma panela de cerâmica. Demorou um tempo e começou a escurecer. Era o escorpião encantado descendo da samaúma. Tekã Ketxu levantou a panela e tudo alumiou. Pôde flechar e acertar o escorpião encantado, que caiu e morreu.


Tekã Ketxu continuou a viagem e encontrou Yuxin Sherubu Pianã, uma pessoa encantada com braços compridos. Yuxin Sherubu Pianã ficava na sapopema de uma árvore grande e quando ouvia barulho de gente chegando abria os olhos e falava: – Txi shuae, Txi shuae (estou com diarreia, estou com diarreia). Ele pegava as pessoas que passavam e brincava até matar. Tekã Ketxu bateu com a borduna nele todo e não acontecia nada. Até que bateu no mocotó, calcanhar, e ele caiu e morreu. O coração de Yuxin Sherubu Pianã ficava no mocotó. Quando chegou na aldeia de outra irmã, ninguém acreditava que ele tinha matado tantos maus espíritos. Contaram que lá também tinha um Ewa Ika Içu, um macaco gigante encantado que gritava às 5 horas da tarde num galho perto do roçado: – Ewa, Ewa, Ewa. Quem ia atrás para matar o macaco gigante encantado não voltava. Ele pediu para irmã preparar comida para ele seguir o macaco pela floresta. O macaco passou pelo lago encantado, passou pelo grupo Bëkü Nawa, um povo muito bravo que matava as pessoas que seguiam Ewa Ika Içu. Como ele preparado pelo tabaco, ele era uma pessoa inteligente e fez outro caminho. Quando chegou de volta às 5 horas da tarde ele flechou o macaco na frente de toda a aldeia. A aldeia queimou o macaco. Tekã Ketxu agradeceu, se despediu e foi para aldeia de outra irmã. No caminho tinha Pinu Taka Pinuchü, que vivia com sua família comedora de gente. Logo que chegou nessa aldeia Tekã Ketxu foi levado para se banhar no igarapé. Tinha um buraco no barranco onde pediram para ele pegar uma rã. Nesse buraco não tinha nada de rã. Era uma armadilha. Quando Tekã Ketxu meteu a mão no buraco ele viu uma sombra do sol que vinha bater com uma borduna na sua cabeça. Era Pinu Taka Pinuchü. Ele se defendeu e matou Pinu Taka Pinuchü. Tekã Ketxu voltou para a aldeia. A mulher de Pinu Taka Pinuchü esperava seu marido dançando pois ia comer o fígado de Tekã Ketxu. Mas foi Tekã Ketxu que voltou vivo e matou toda a família.

Na aldeia da última irmã, o cunhado sabia que Tekã Ketxu estava vindo matando todos os espíritos ruins. Ele resolveu matar Tekã Ketxu dando carne de urubu para comer. Tekã Ketxu não aceitou pois não se come carne de urubu. O cunhado disse que era mutum. Tekã Ketxu comeu e morreu.


Mae musha - espinho de esperaĂ­. Geometria, desenho e escrita, conhecimento Huni KuĂŻ



BASNE PURU YUXIBU

HISTÓRIA DA ARANHA ENCANTADA

Uma mulher Huni Kuý morava em uma maloca sem roupa, sem saber tecer, sem saber fazer nada. Uma vez a mulher viu a aranha tecendo a casa dela rápido e falou: – Puxa, essa mulher aranha está construindo a casa dela muito rápido. Se nós Huni Kuï aprendermos poderemos construir casa também, roupas... No dia seguinte apareceu a velhinha Basne Puru com a linha preparada guardada no sovaco dela, levando a linha. A mulher perguntou: – Quem é você? Basne Puru respondeu: – Eu sou a aranha encantada. Eu escutei ontem você pedindo para aprender a tecer e eu estou trazendo material para te ensinar. A aranha ensinou a mulher como fazer rede, Mmabã. A aranha pegou a linha e levou para trazer no dia seguinte. No dia seguinte Basne Puru entregou a rede feita, nada de desenhado, só a rede mesmo.

pintura de Jasoni Sales Ixã, aldeia Mae Bena - Rio Tarauacá

A mulher teve vontade de ter semente desse algodão. Ela pediu para Basne Puru para ela plantar. Basne Puru levou muitas sementes. Sementes boas e sementes que davam problemas. A mulher plantou o algodão no roçado com o marido.


O algodão nasceu com linha no galho de cores diferentes, preto, vermelho, branco... todas as cores. Ela dava semente para família para plantar no roçado. Cada cor tinha sua semente. Quando tinha linha para fazer colete entregava para Basne Puru para fazer para ela. Basne Puru fazia cinco redes a cada noite e entregava no dia seguinte para ela. Um dia a mulher falou: – Basne Puru faz rede, coletes, roupas... é bom nós aprendermos a fazer as nossas próprias coisas. No dia seguinte Basne Puru chegou com semente de algodão. E as sementes coloridas a Basne Puru levou com ela para sempre. Hoje em dia só nasce bola de algodão, não nasce mais linha colorida. Começaram a trabalhar, plantar, colher, bater o algodão, fiar até fazer as próprias roupas. Aí que surgiu o ensinamento da tecelagem para o povo Huni Kuý. Quem trouxe foi a aranha encantada.


kene Kape hina - rabo de jacarĂŠ (acima e abaixo) - e Yube kate (nas laterais) / kene Huni KuĂŻ - geometria de conhecimento, aprendida com Yuxibu



SIRIANI

HISTÓRIA DO SURGIMENTO DOS DESENHOS

Um dia Siriani e seu marido Püke Dua foram caçar na floresta e encontraram uma árvore do tamanho da samaúma de onde nasciam, em cada galho, bolas de algodão fiado de cores diferentes: branco, vermelho e preto. Eles levaram algumas bolas até o cacique Kaka Taebu para ele descobrir o que era. E ele descobriu que era algodão. Entregaram as bolas para a esposa do cacique. Ela tirou as sementes e plantou. As árvores cresceram e todos da aldeia coletavam. Siriani separava o algodão bom do ruim. Enquanto todos dormiam, Siriani guardava o algodão no vaso de cerâmica que fazia barulho durante a noite. Na manhã seguinte quando abria o vaso, o algodão tinha se transformado em redes e tecelagem desenhadas com kenes.

pintura de Iran Pinheiro Sales Bane; aldeia Altamira - Rio Tarauacá

Era a jiboia Bari Siri Ka que ensinava Siriani os desenhos do kene e o trabalho de pintura e tecelagem. Um dia sua mãe foi pegar água no igarapé e viu Siriani enrolada na jiboia. Assustada, chamou seus outros filhos para flechar a jiboia. Quando a jiboia morreu levou junto o espírito de Siriani.


Quando cozinharam Siriani seu corpo não amoleceu. As mulheres reclamaram porque a jiboia não entregava esse conhecimento para elas mesmas trabalharem. A jiboia ouviu e entregou o algodão mas do jeito que é agora, em semente, só branquinho, nascendo em árvores menores e ainda não fiado para as mulheres trabalharem. Até hoje a gente trabalha assim: plantando, colhendo, fiando e tecendo.


kene yube kate - desenho sagrado espiritual da tradição Huni Kuï



KAPA YUXIBU

HISTÓRIA DO KATIPURU (ESQUILO) ENCANTADO

Antes do contato, o povo Huni Kuý vivia em malocas fazendo seu roçado. Um dia passou Inka Yawa Bae, um bando de queixada, e destruiu todo o roçado. Todos os legumes acabaram. A mãe começou a fazer caiçuma de barro para seu povo se alimentar. Um dia a filha foi buscar água no igarapé. Tinha que fazer várias viagens para carregar a água. Na primeira viagem ela viu um katipuru roendo coco e cantando cans cans cans tiki tiki tiki. Ela falou: – Você katipuru que está comendo bem, eu estou com fome, comendo barro, você não pode cantar mais. Na segunda viagem, ela encontrou um moço no mesmo lugar que estava o katipuru e perguntou: – Quem é você? Ele disse: – Eu sou o katipuru que você falou comigo. Ela disse: – Você não é katipuru. pintura de Francilino Macário Kaxinawa Maya Huni Kuï, aldeia Mae Bena - Rio Tarauacá

Ele respondeu: – Sou sim. Eu me transformei em gente.


A menina levou o Kapa Yuxibu, o katipuru encantado, para casa e ofereceu caiçuma de barro para ele e ele não quis tomar. Ouviu a história dos Inka Yawa Bae, o bando de queixada. Ele pediu para a menina catar todos os pedaços de legumes, cascas, sementes... Quando ela trouxe, ele assoprou e transformou tudo em legumes novamente. A menina ficou feliz e foi avisar para o povo, que estava longe catando barro. Ela foi gritando que os legumes tinham voltado e estavam na fartura. Eles jogaram o barro fora e virou uma pequena terra que existe até hoje. Quando o povo encontrou as mulheres com os legumes, eles comeram de qualquer jeito com muita vontade, pelo nariz, pela boca... A família separou a menina do marido para casar com Kapa Yuxibu. Kapa Yuxibu levou o cunhado para fazer roçado. Kapa Yuxibu levou um toco de taboca que guardava fogo. Kapa Yuxibu falou: – Quando a gente acabar de fazer o roçado vai fazer um barulho dentro da taboca e você não abre. O cunhado ficou curioso e quando abriu o fogo queimou o roçado e o cunhado virou cinza. Kapa Yuxibu pegou a cinza do cunhado e fez uma medicina que jogou num lago. Ele disse: – Sai do lago senão o jacaré te engole. E o cunhado saiu de novo vivo. Kapa Yuxibu falou para a esposa avisar para sua mãe não admirar o roçado e no dia seguinte foram todos fazer colheita. Quando a mãe chegou no roçado ela admirou e se transformou em gavião. Kapa Yuxibu pegou um pedaço de cobra queimado e balançou para o gavião vir comer. O gavião viu a cobra, voltou para a terra e se transformou novamente em pessoa. Kapa Yuxibu foi fazer caçada na floresta e caçou um jacaré. À noite ele se transformou em morcego para visitar sua mulher na aldeia. Quando chegou viu sua mulher com o ex-marido. O homem deitado e ela por cima. O morcego arrancou os testículos do ex-marido e levou para a

floresta onde estava acampado. O ex-marido morreu. O morcego se transformou de volta em Kapa Yuxibu e assou os testículos junto com a carne do jacaré embrulhado na folha de sororoca e levou para a esposa comer. A esposa comeu e começou a ficar magra e amarela. Um dia Kapa Yuxibu falou sozinho: – Você agora ficou assim porque comeu o negocinho do seu ex-marido. A família da mulher ouviu e resolveu preparar flecha para matar Kapa Yuxibu. Kapa Yuxibu estava sentado num banco e já sabia o que ia acontecer. Estava preparado. A família flechou e só acertou seu traseiro. Kapa Yuxibu se transformou novamente em katipuru e saiu pulando nos legumes, no milho, no amendoim... Cada legume onde ele saltava desaparecia. Quiseram flechar os filhos do Kapa Yuxibu e eles se transformaram também em katipuru roxo, um esquilo pequenininho.


Kape hina (acima e nas laterais) e Txera beru (abaixo) - olho de curica, sĂ­mbolo de geometria, letra, escrita e desenho



MEXU BINI

HISTÓRIA DA CHEGADA DA NOITE

Primeiro não escurecia. Ficava todo tempo dia. Noite não tinha. Quem tinha a noite era Dua Mae Yube lá dentro da terra, do chão. Para namorar ninguém mostrava, ninguém dizia, ninguém sabia. Tinha três amigos que andavam juntos, trabalhavam juntos: Yube Kakukawã, Nãke Jara Bishe, Nãke Jara Bitã. Um dia Yuke Kakukawã estendeu uma cabana de esteira no kupixawa para namorar com a mulher. Seus companheiros foram visitar e derrubaram a esteira e avistaram o casal. Os companheiros ficaram com pena, com vergonha e decidiram buscar a noite com Dua Mae Yube. – Nunca escureceu, nosso amigo viu nós assim estranhos. Vamos pegar o escuro. Combinaram e foram. Mae Yube recebeu direitinho, ofereceu bastante alimento. Mae Yube perguntou por que eles tinham vindo atrás dele. pintura de Menegildo Isaka, aldeia Boa Vista - Rio Jordão

Eles responderam: – Nós viemos pegar a noite. Lá não escurece. É o tempo todo claro. Ninguém amostra o namoro. Nosso amigo amostrou e ficamos com vergonha. Viemos atrás do escuro.


Tinham vários tamanhos de escuro. Cada um dentro de uma taboca. Tinha taboca pequena e ia aumentando. Dentro de cada taboca tinha escuro que só escurece quando destampa. Dua Mae Yube chamou: – Vem ver escuro dentro da sapopema, tá cheio de escuro. Esse aqui é o escuro das almas, dos yuxin. Esse não abre não, se abrir nunca mais amanhece. – Esse aqui nós não vamos levar. – Tem outro mais. Esse é o escuro do awa, a anta. Se você abrir só vai amanhecer quando a sua casa estiver para cair, coberta de árvores.

senão se alguém estiver caçando, trabalhando no roçado ou pescando, se você abrir sem avisar nada, eles ficam presos. Dormem lá. Só chegam de manhã. Nãke Jara Bishe e Nãke Jara Bitã voltaram para casa e chamaram Yube Kakukawã para experimentar mas não avisaram para mais ninguém que Dua Mae Yube tinha explicado. Combinaram de experimentar, cada qual com sua mulher, cada qual na sua rede. Toda a comunidade tinha ido trabalhar, tinha ido caçar, tinha ido pescar, tinha ido passear. Só eles três se aprontaram dentro da rede e abriram a taboca. A hora que eles abriram, escureceu de repente. Nunca tinham visto escuro. Primeira vez que viram o escuro.

– Como é que faz quando se abre o escuro da paca?

A turma que tinha ido caçar dormiu na floresta sem nada, picados de katuki e chorando. As mulheres que foram pescar dormiram na praia com as crianças. Os homens que tinham ido trabalhar no roçado dormiram dentro do roçado.

– O escuro da paca é bem curtinho. Enquanto você está jantando está escuro mas na hora que você vai se deitar, amanhece o dia.

Passou a noite, amanheceu o dia e, quando o povo chegou, os três homens contaram:

– Esse a gente não quer. – Esse aqui é do anu, a paca.

– Anu é comedor, fica com bucho seco e faz amanhecer logo para comer. – Esse não vamos levar não. Senão nós não dorme. Tinha outro pequeno. – Esse aqui é do rato. Você abre quando sua mulher faz caiçuma numa panela de barro. Quando estiver pronto, você abre a taboca e a noite desce. Amanhecendo o dia, a caiçuma ainda está morna. – Então vamos levar esse aqui. Dua Mae Yube entregou o escuro do rato e disse ainda: – Quando você chegar lá, você avisa a sua comunidade, seus parentes,

– Nós fomos pegar o escuro do Mae Yube. Agora nós temos escuridão. Ninguém mais vai ver a gente namorar. A gente vai namorar no escuro.


Kape hina (acima e nas laterais) e Yube kate (abaixo). Um kene pode ser ligado a outro no desenho



KANAPÃ NAPAIX ANI

HISTÓRIA DO RELÂMPAGO E DO TROVÃO

A família de Shaemetü morava junta numa maloca. Um dia a irmã de Shaemetü que estava grávida saiu com a cunhada para pescar no rio. O relâmpago Kana Yuxibu abriu a barriga da grávida. O siri levou a criança que saiu da barriga da grávida. Passou um tempo, Shaemetü foi caçar e viu a criança chorando em cima de uma pedra no rio. A família combinou de ir ao rio ver a criança, que era sobrinho de Shaemetü. Resolveram pegar a criança. Shaemetü caiu no rio, foi descendo com a cara coberta com a espuma da chuva e pegou a criança, que tentou fugir. Mas Shaemetü pegou. Levaram a criança para a maloca e ela chorava e dizia: – Barã, Berurã... pedindo para comer o peixe piabinha e a semente do paxubão, que é comida de siri. O povo não entendia, mas Shaemetü descobriu e deram o que a criança pedia para comer.

pintura do pajé José Melo, aldeia Mae Bena - Rio Tarauacá

O menino chorou e perguntou para tia quem era sua mãe. A tia disse que o relâmpago tinha levado o espírito da sua mãe para o céu. O menino queria encontrar sua mãe e pediu fios de algodão de todas as cores, esticou até o céu e subiu por ali.


No céu encontrou com a mãe, que estava casada com Kana Yuxibu, o relâmpago. A mãe contou que a luz do relâmpago vinha da faísca quando ele batia com a borduna, e o som do trovão era o arroto quando bebia caiçuma. O menino resolveu vingar a morte da mãe. Preparou uma arma que parece uma navalha chamada shatxi e se transformou em morcego. Quando chegou Kana Yuxibu a mãe deu caiçuma e o morcego, que estava pendurado no teto, jogou o shatxi dentro do vaso de caiçuma. Kana se perguntou o que era, olhou para cima e não viu nada. Bebeu a caiçuma, no final engoliu o shatxi e morreu. O morcego se transformou em menino, desceu da casa e começou a matar os irmãos com borduna. A mãe pediu para ele, que era o mais novo, não matar. O filho disse para mãe: – Eu vim te buscar. A mãe respondeu: – Eu já estou em outro mundo, não posso mais descer, mas liberou um irmão para descer com ele. O irmão desceu nas costas do menino. Quando chegou na aldeia o irmão não gostou e começou a chorar muito. Então começou a chuva, enchendo o rio, a água veio cobrindo a maloca. Na aldeia descobriram que era o choro da criança que fazia chover. Decidiram jogar a criança no rio. Jogaram a criança no rio e ela boiou três vezes, voou para o céu. Quando voou parou de chover e ficou muito tempo sem fazer chuva. Quando o menino cresceu lá no céu, começou a movimentar relâmpago e trovão novamente.


Kape hina (acima e abaixo) - rabo de jacarÊ - e Yube kate (nas laterais)- espinhaço da jiboia



NETE BEKÜ MIYUI

A HISTÓRIA DE NETE BEKÜ

Nete Bekü, uma mulher cega, morava com a família na maloca grande. Um dia a família foi caçar. O irmão se chamava Tawabu, ele fez tapiri. No dia seguinte trouxeram muita caça, pegaram o jabuti e tiraram o fígado dele. Nesse tempo, menor de 60 anos não podia comer jabuti, ficava com mancha no rosto. Uma pessoa ficou responsável pela comida. Tawabu viu o fígado do jabuti enquanto estavam cozinhando para os velhos e comeu. Os jovens viram que Tawabu tinha comido e começaram a gritar: – Tawabu comeu o fígado de Jabutiiiii! O povo respondeu: – Ibataka Shuki, tá lascado, lá vêm os pajés. Os pajés disseram: – Na nossa tradição pessoas menores de 60 anos não podem comer esse fígado de jabuti. Agora você vai ficar na dieta para não ficar com mancha no rosto. Pegaram ele, levaram ele de volta para a floresta, fizeram uma tocaia de esteira e cercaram. pintura de Abel Paulino Kaxinawa Bane, aldeia Boa Vista - Rio Jordão

Pegaram dare, colocaram no olho dele e ele ficou uns dois anos sem comer nada, tinha que ficar quieto, sozinho, sem dividir prato, isolado.


Só com os pajés cuidando dele. Quando completou a dieta, às 5 horas da tarde daquele dia, ele saiu e sentou no terreiro junto com os pajés. Aí o papagaio estava voando e o pajé pediu para Tawabu soprar para que o papagaio caísse no chão. Ele passou a mão no sovaco, levou as mãos em forma de concha para perto da boca e soprou derrubando o papagaio. Aí o pajé falou: – Mi habiki, agora você está preparado para seguir. Seu nome agora é: Txapaketawe. Quando a mulher do Txapaketawe morreu, ele ficou pesquisando com quem podia se casar. Ele viu uma mulher igual à mulher que tinha morrido. Era a irmã dela. Ele se apaixonou pela mulher e quis casar. Começaram a pensar onde iam morar. Txapaketawe falou: – Vão na frente que vou fechar aqui – Shãwã Hina Mexu. Todo mundo saiu na frente e ficou só ele e a mulher. Txapaketawe pediu para ela fazer uma bola de tingui para pescar. – Vamos seguir em outro caminho, vamos morar em outro lugar. Quando saíram, eles tampavam o rastro com areia. Seguiram pelo igarapé até chegar no rio. Encontraram o rio azul, passaram pelo rio vermelho, decidiram pescar, pegaram o tingui e pescaram os peixes. Seguiram viagem até chegar no barranco. Fizeram uma escada comprida, na nossa língua pabutapu. Abriram o local perto do igarapé e começaram a criar os animais. Um dia ele foi visitar Inka. Era proibido namorar com Inka e ele namorou com ela. O saco dele ficou grande, arrastando até o chão. Txapaketawe voltou e foi cuidar dos animais, fez batismo neles, nixpu pima e pintou os dentes dos animais.

Nete Bekü estava em outra aldeia procurando o irmão. Quando começou o dilúvio, formou-se o tempo para chover. Durou uma semana de chuva que não parava dia e noite, repiquete da água enchendo até cobrir tudo, até árvores. Muitos índios morreram afogados, morreram não, viraram outras espécies. Velho idoso que subia na árvore para escapar da água virou cupim. Uma velhinha subindo no pau virou peixe tapiba. O pilão que nós chamamos shashu deneti virou jundiá e o pilão que a gente pisa virou pirapitinga. Paleta, que mexe quando está fazendo caiçuma, virou peixe alcachova. Borduna virou o peixe elétrico puraquê. Arpão como lança virou arraia. Tudo se transformou. Nete Bekü subiu por cima da sapopema da samaúma e o resto a água lavou. Quando subiu na árvore o macaco que estava acompanhando viu que Txapaketawe tinha passado por ali, a água quando passa deixa marca e eles iam adivinhando. O macaco paruacu gritou: Hutxi!. Hutxi significa “nosso irmão.” Esse grito fez a água parar de subir, a samaúma encalhou e a água foi esvaziando. Quando Nete Bekü parou, começou a chorar pensando nos primos e irmãos que ela nunca mais ia ver. Nessa hora chegaram abelhas e marimbondos. Enquanto ela chorava, as abelhas secavam as lágrimas dela, mesmo assim ela não parava de chorar. Pegava as abelhas e colocava numa cabaça. Enquanto estava chorando chegou muito mosquito, abelha, marimbondo. Ela era cega, mas sabia de tudo. Pegou a cabaça que a água tinha deixado, limpou a lágrima e o catarro que estava chorando e mesmo sem parar de chorar, com os olhos inchados, pegou as abelhas e marimbondos e colocou dentro da cabaça. Aí quando encheu a cabaça partiu.


Quase como o som de um tiro, espocou e pularam duas pessoas.

Arrancaram.

Um Inu Bake, que nasceu dos marimbondos, e outro Dua Bake, que nasceu do povo abelha. Ela pensou:

– Vamos plantar!

– Nasceram meus filhos. Agora vou atrás dos meus parentes, devagar. Nete Bekü convidou os dois filhos para trazerem ela de volta e explicou para os filhos antes de sair: – Olha o Ïkã hene, o rio, cobriu toda a árvore, toda a terra, carregou todo mundo e também carregou todos os legumes. Vamos juntando tudo e trazendo para cá, como maniva de roça, banana, milho, amendoim, macaxeira. – Como é macaxeira? – Tem pau cheio de nó quando a gente arranca, colhe, descasca e come. A macaxeira é boa de comer. Chegaram mais adiante e avistaram um pé de roça e tinha muita batata. Pegaram muita batata, descascaram e almoçaram. Mexeram na maniva, comeram batata e quando foi em outro dia eles saíram e avistaram um pé de banana. – Parece que é essa aqui mesmo. E levaram um pé de banana. Mais adiante acharam um pé de milho que já estava bom de comer. – Agora vocês vão pegar duas espigas e não vão comer não. Quando chegar lá vão plantar. Mais adiante acharam um pé de amendoim na praia. – Será que é esse mesmo? — É esse mesmo.

De lá mesmo vieram ajuntando os legumes. De lá mesmo ela foi explicando para os filhos que o tio não estava querendo encontrar com eles não. Txapaketawe estava ficando muito valente, quando ele ia tirar lenha fazia igual a pica-pau tun turun tun tun... para ninguém descobrir onde ele estava. Nete Bekü adivinhou: – Ora, que bom seu tio vem pescar aqui. Onde ele pesca é nesse poço agora. Vamos chegar hoje. Foram lá tomaram banho. Subiram, subiram. Quando estavam saindo, veio esse homem valente querendo matar a irmã Nete Bekü, que chegava com os filhos. Queria matar todo mundo. Sua mulher pediu muito e ele se acalmou. Nete Bekü se juntou a eles e continuaram vivendo aumentando o mutirão e morando juntos.



KAPE TAWÃ PUKENI HISTÓRIA DO JACARÉ

Para alcançar essa história do jacaré a gente vai começar do começo até o fim. De primeiro meu povo, de antigamente, do tempo do dilúvio, sempre vivia como pajé, como Ïka Nai Bai. Ïka Nai Bai era o pajé que não comia carne, falava com os bichos, com os animais, com almas, com tudo. Nesse tempo a gente chamava Ïka Nai Bai. Ïka Nai Bai era o chefe de todos, ele que cuidava da comunidade. Ele sempre enganava os bichos como veado, porquinho, anta. Ele enganava os bichos para o pessoal matar e comer. Aí a mulher dele mandou: – Olha, você é Ïka Nai Bai, eu tô com fome, para o jantar hoje eu quero que você vá caçar jabuti para eu jantar hoje. Para eu comer fígado ou jabota ovada. Ïka Nai Bai pegou o rapé dele, passou o rapé e entrou para dentro da floresta para caçar jabuti. E lá, quando foi olhando os balseiros (os galhos e árvores que ficam juntos no rio), viu no pé da terra uma jabota ovada comendo o jantar que já tinha feito. Ïka Nai Bai chegou e a jabota disse nervosa: pintura de Sebastião Mana, aldeia Boa Vista - Rio Jordão

– Olha, txai, você não vai me matar não. Senão o Inka vai caçar você. Ela ofereceu folha do tacacá para ele comer. Ele comeu. Ela disse:


– Eu tô grávida com vontade de comer coisa doce. Ïka Nai Bai disse: – Eu venho te buscar para você comer banana madura, mamão maduro que está se estragando. E cadê seu marido? Quem engravidou você? – Sobe essa terra, debaixo do pé da terra tem um balseiro, ele está lá. Ïka Nai Bai disse assim: – Você fica aí me esperando que eu vou pegar seu marido e vou levar vocês dois para vocês comerem. Ïka Nai Bai saiu procurando e o jabuti chamou: – Ô, txai, vem cá para perto. Ïka Nai Bai foi. O jabuti adivinhou: – Você não vai me matar não. – Mato não, disse o Ïka Nai Bai. – Vim buscar você para comer banana madura, mamão que está se estragando, eu já encontrei sua mulher. Ela está esperando nós. Ïka Nai Bai disse: – Você anda devagar, vamos chegar tarde, vou te levar nas costas. E trouxe nas costas, depois pegou a jabota também. Quando chegaram no roçado tinha um pé de mamão maduro e o jabuti pediu para comer, mas Ïka Nai Bai disse para seguirem logo para casa pois tinha muito mamão estragando. Os jabutis foram fazendo tremedeira, gemendo, chorando com medo de Ïka Nai Bai enganar. Mais adiante tinha um pé de milho e banana madura. O jabuti falou: – Ô, txai, me deixa aqui que eu vou comer. Ïka Nai Bai, vamos lá para casa que tem comida estragando.

Quando foram chegando na comunidade, o povo disse que Ïka Nai Bai estava trazendo dois jabutis, ficaram animados. O jabuti dava murro em Ïka Nai Bai, que jogou os jabutis no chão e eles se esconderam. Depois eles mataram e comeram. Outro dia a mulher mandou: – Ïka Nai Bai, vai caçar veado e faz um pana, uma tocaia de folha de palha para que a caça não veja o caçador. Ïka Nai Bai foi porque a mulher mandou. Lá estava um veado deitado comendo paca e tatu que a veada tinha feito. O veado disse: – Você vai me matar, txai? Ïka Nai Bai disse: – Vou matar não. Não levanta que os Inka estão caçando. Você se esconde aqui no pana não olha para frente. Ïka Nai Bai tirou palha urucuri, de jarina, folha seca e cobriu. Veado ficou deitado e ele saiu dizendo para ele não levantar. Quando chegou em casa, avisou: – Eu tampei um veado para você, vamos lá. Eles pegaram flecha, foram lá, mataram e comeram. Outro dia, a mulher mandou de novo: – Você vai caçar mais um veado ou um porquinho por aí e nossos filhos matam e nós jantamos bem. Você é pajé mesmo é Ïka Nai Bai. E ele foi. Assim que entrou no roçado tinha um bando de porco no oco do pau fazendo barulho. Ïka Nai Bai entrou e eles receberam bem, ofereceram bastante alimento, pipoca, peixe cará cozido, batata-doce cozida, peixinho, tinha tacacá. Eles perguntaram: – O que você veio fazer conosco?


Ïka Nai Bai disse: – Eu vim só avisar que os Inka estão caçando vocês. Podem ficar tranquilos que eu já vou sair. Para os Inka não acharem vocês eu vou tapar um pouquinho, vou pegar um bocado de pau seco e tapar. Ïka Nai Bai saiu, chegou em casa e contou que tinha tapado um bocado de porquinho no oco do pau. Chamou a comunidade e pegaram folha seca para jogar fumaça no oco. Ïka Nai Bai ficou escutando os porquinhos esculhambando com ele: – Bem que a gente disse que deveria ter cortado o pescoço. A gente tinha adivinhado e deixou esse Ïka Nai Bai mentir. Os porquinhos morreram com a fumaça e Ïka Nai Bai foi para casa. Foi deitar na rede e ficou escutando os porquinhos esculhambando com ele. Eles comeram todos os porquinhos. No dia seguinte eles pensaram que não tinha mais queixada. As queixadas tinham ido embora há mais de cinco anos. Mandaram o Ïka Nai Bai ir atrás da queixada. Filho, genro mandaram e ele foi. Subiu o rio acima até a cabeceira. Varou para outro rio até que topou com as queixadas. Lá onde elas estavam, tinham uns cariocas, povo branco, com espingarda de ferro, que chama Mane Pia, terçado de ferro, que chama Mane Sepati, machado de ferro, que chama Mane Rue, panela de ferro, que chama Mane Këti. A queixada tinha passado do aceiro, o limite do roçado, e os cariocas tinham baleado uma porção de queixada. Ïka Nai Bai avistou todos esses Mane isso e foi embora até que encontrou com queixada dormindo, queixada em casa cozinhando. A queixada contou história que nawa tinha matado um bocado deles. Ïka Nai Bai disse: – Eu vim buscar vocês, pois na minha aldeia está se estragando muito legume, batata-doce, mamão, cana, amendoim. Vim buscar vocês. As queixadas se animaram e acompanharam Ïka Nai Bai. Com uma semana ou mais, eles já estavam chegando perto da aldeia e Ïka Nai Bai disse para as queixadas tomarem banho para chegar em casa, correu

e foi na frente para ajeitar comida para vocês. Quando chegou na aldeia, avisou que tinha um bando de queixada perto, todo mundo pegou flecha, foi lá e matou uma porção de queixada. O resto foi embora. Comeram bastante queixada. Quando foi outro dia Ïka Nai Bai chamou toda a comunidade e planejou de ir atrás do Mane, ferramentas, miçangas, coisas industrializadas. Já tem bastante tempo que nós vivemos usando presas de animais, agora vamos atrás do Mane que eu vi dos nawa. Vamos entrar em contato com os nawa. A comunidade achou bom. Antes os parentes viviam usando sheta teuti, que é colar de presa, sheta maeti, cocar de presa, sheta mebi, pulseira de presa, sheta hushe, pulseira na perna de presa, sheta pushti, bracelete de presa, sheta txinesheti, cinto de presa. A comunidade toda foi com Ïka Nai Bai. A comunidade que morava toda junta: Neabu, povo de jacami, Shã Kï Wãti, povo do oco, Yube Kate Ruabu, povo do espinhaço da jiboia. Saiu todo mundo com o pajé Ïka Nai Bai e deixaram a terra vazia lá. Mais adiante avistaram um lago enorme. – Rapaz, tem um lago enorme aqui, ninguém pode atravessar. Já está tarde, vocês brocam (limpam o lugar), montam o tapiri (acampamento), que amanhã a gente vê se pode arrodear. Todo mundo brocou, fez tapiri, pegou flecha, caçou veado, jabuti, mutum e jantou, tomou caiçuma. Foi um acampamento enorme. Na hora que se deitaram, Ïka Nai Bai não dormiu, começou a rezar e ouviu a cantoria de pacari do jacaré, dizendo todos os nomes de animais que poderiam ser caçados, mas não poderiam pegar o nusekë, filhote de jacaré. Amanheceu o dia, Ïka Nai Bai disse que ia ver quem estava fazendo pacari a noite toda. Avistou o jacaré atravessado como uma ponte, o rabo do outro lado e a cabeça do lado de cá. Ficou com medo. O jacaré disse: – Ô, txai, vem aqui para perto.


Ïka Nai Bai foi. – Txai, o que você está fazendo? Ïka Nai Bai respondeu: – Eu queria atravessar esse lago, passamos a noite aqui. O jacaré disse: – Você ouviu a cantoria que eu fiz essa noite toda? Ïka Nai Bai disse que sim. – Combina com sua comunidade para ela caçar para mim, para eu encher meu bucho, aí vocês podem atravessar nas minhas costas. Combinaram e o pajé voltou. Ajuntou toda a comunidade e contou para todos o combinado. Aquele que ia matar o jacaré não escutou direito, pois estava bastante longe. Eles caçaram, um botou anta na boca do jacaré e ele engoliu, outro botou veado macho e ele engoliu. Porquinho, cotia, macaco guariba, macaco preto, mutum, jacu, jabuti. Todo mundo matando para ele e ele satisfeito. O outro não avistou nada e descendo um igarapé matou um jacaré e trouxe. Botou na boca e o jacaré olhou, abriu a boca devagarzinho e na hora que engoliu mandou atravessarem. Nessa hora tinha uma mulher de Neabu que era muito sabida de tecelagem, de cantoria, esperta para cozinha, para fazer cerâmica de barro, para fiar algodão, para fazer rede, tudo. Aí quando Ïka Nai Bai saiu na frente ela acompanhou e chegou do outro lado. Foi um bocado, mas ficaram Shã Kï Wãti e o marido da mulher Neabu com seus filhos e netos. Quando eles iam atravessando o jacaré afundou, piranha tirou o couro deles e arraia atacou. Neabu procurou a mulher e disseram que ela tinha atravessado. Ele gritou: – Ê, mulher! Vamos voltar! Vamos continuar com presas de animais. A mulher respondeu do outro lado:

– Não, eu vou atrás do Mane. O marido subiu no pé de embaúba e gritou mais. A mulher já ia longe e não respondeu mais. Foi embora com Ïka Nai Bai. Ninguém mais se encontrou. O marido chorou. Ïka Nai Bai achou todo Mane do nawa e pegou tudo. Quem atravessou o jacaré encontrou o Mane. Ïka Nai Bai fez uma música. A história do Kapa, do jacaré é tudo isso. Muito haux, muita esperança e proteção. Haux, haux!




EQUIPE UNA SHUBU HIWEA Organização pajé Manuel Vandique Kaxinawá Dua Busë Montagem da exposição Edilene Pinheiro Sales Kaxinawá, José Mateus Itsairu, Jociclei Pinheiro Sales, Menegildo Paulino Kaxinawá e Rita Pinheiro Sales Kaxinawá

Representantes Ademar Domingos Rodrigues Shane Huni (aldeia Altamira), Edinaldo Macário Maná (aldeia Novo Natal), Eliberto Sena Tenë (aldeia Coração da Floresta), Fernando Barbosa Siã (aldeia Três Fazendas), Francisco Arnaldo Macário Keã (aldeia Nova Aliança), Francisco Célio Keã (aldeia Bom Jesus), Francisco Chagas Maia Nixiwaka (aldeia Nova Cachoeira), Francisco Chagas Yube (aldeia Pão Sagrado), Francisco de Assis Buretami Dua Busê (aldeia Verde Floresta), Francisco Sabino Buretama Macari (aldeia Sacado), Francisco Sena Kaxinawá Isamema (aldeia Flor da Floresta), Gilberto Marcelino Keã (aldeia Nova Mina), Gilmar Sereno Sales Txana Kupï (aldeia Canafista), Irã Pinheiro Sales Yawa Bane (aldeia Altamira), José Domingos Itsairu (aldeia Belomonte), José Mateus Itsairu (aldeia São Joaquim, atual aldeia Mae Bena), José Melo Macário Bane (aldeia Mae Bena), José Paulino Sales Txana Ika Kuru (aldeia Boa Vista), Josenildo Sales Siã (aldeia Bom Futuro), Lauro Sales Yasã (aldeia Bari), Lusivaldo Alfredo Melo Maná (aldeia Paz do Senhor), Manuel Dua Busê (aldeia Novo Segredo), Manuel Vandique Kaxinawá Dua Busë (aldeia Coração da Floresta), com Aldo Sena da Silva Shaemetü, Antonio Maia Kaxinawá Shaemetü, José Maia Kaxinawá Yube, Maná Dua Bake e Mardilson Sales (aldeia Nova Fortaleza), Miguel Sales Siã (aldeia Xico Curumin), Norberto Sales

Tenë (aldeia Flor da Mata) com Antonio Kaxinawá Txana Makari, Bari Bai, Célio B. da Silva Kaxinawá, Ibã Huni Kuin Dua Bake, Isailson, José Antônio Domingos, Lex Forker Uri, Mana, Paetani Huni Kuï, Txana Masheini Maria Aparecida Sales, Txana Runy, Yawarika Huni Kuï e Zerzulino Makario, Osmar Keã (aldeia

Altamira), Raimundo Abdias Kupï (aldeia Canafista), Ronaldo Damião Keã (aldeia Morada Nova), Sávio Barbosa Txana Kistï (aldeia Três Fazendas), Tiago Sales Ibã (aldeia Novo Natal) e Toni Sales Txanu (aldeia Bela Vista) Direção criativa Anna Dantes e Ernesto Neto Assistentes de design Gabriel Takashi e João Manuel Tuin Produção Ana Carolina Trebisch Produção audiovisual Camilla Coutinho Silva (fotografia e vídeo) e Agostinho Ýka Muru Nara Luz (vídeo) Fotos aéreas Taua Klonowski Desenho da capa Mardilson Sales Kaxinawá Os desenhos não identificados anteriormente são de autoria de Francisco Arnaldo Macário Keã, Isamema Francisco Sena Kaxinawá, José Domingos Itsairu, José Mateus Itsairu, José Melo Macário Bane, Josenildo Sales Siã, Lusivaldo Alfredo Melo Maná, Tadeu Mateus Siã e Tiago Ibã Paisagem sonora e áudios Yan Saldanha Tradução e revisão em hatxa kuý Tadeu Mateus Huni Kuý Sia Txana Hui Bai


EQUIPE ITAÚ CULTURAL Presidente Milú Villela Diretor-superintendente Eduardo Saron Superintendente administrativo Sérgio M. Miyazaki NÚCLEO DE ARTES VISUAIS Gerência Sofia Fan Coordenação Juliano Ferreira Produção-executiva Bianca Selofite e Nicole Plascak NÚCLEO DE AUDIOVISUAL E LITERATURA Gerência Claudiney Ferreira Coordenação Kety Fernandes Nassar Produção audiovisual Ana Paula Fiorotto Edição de vídeo Richner Allan NÚCLEO DE EDUCAÇÃO E RELACIONAMENTO Gerência Valéria Toloi Coordenação de projetos especiais Tayná Menezes Produção-executiva Ana Estaregui Coordenação de atendimento e formação Samara Ferreira Equipe Amanda Freitas, Caroline Faro, Edinho dos Santos, Edson Bismark (estagiário), Elissa Sanitá (estagiária), Gabriela Lima (estagiária), Juliana Cristina Nascimento (estagiária), Kaliane Miranda (estagiária), Livia Moraes (estagiária), Luísa Saavedra, Maria Luisa Ramirez, Mariane Souza (estagiária), Pamela Mezadi

(estagiária), Raphael Giannini, Renan Jordan (estagiário), Sidnei Junior, Thays Heleno, Thiago Borazanian, Victor Soriano e Vinícius Magnun NÚCLEO DE PRODUÇÃO DE EVENTOS Gerência Henrique Idoeta Soares Coordenação Vinícius Ramos Produção Agenor Neto (terceirizado), Carmen Fajardo, Érica Pedrosa, Fábio Marota, Isabela Bevilacqua (terceirizada), Wanderley Bispo e Wellington Rodrigues (estagiário) NÚCLEO DE COMUNICAÇÃO E RELACIONAMENTO Gerência Ana de Fátima Sousa
 Coordenação de conteúdo Carlos Costa
 Produção e edição de conteúdo Duanne Ribeiro Redes sociais Renato Corch Supervisão de revisão Polyana Lima Revisão de texto Ciça Corrêa e Rachel Reis (terceirizadas) Direção de arte Jader Rosa Projeto gráfico Guilherme Ferreira Produção editorial Luciana Araripe Comunicação visual Helga Vaz


UNA SHUBU HIWEA Livro Escola Viva do Povo Huni Kuï do Rio Jordão Uma das culturas indígenas da região amazônica entre Peru e Acre: saberes de cura e arte ABERTURA quarta 6 de dezembro de 2017 | 20h VISITAÇÃO até terça 13 de fevereiro de 2018 terça a sexta 9h às 20h [permanência até as 20h30] sábado, domingo e feriado 11h às 20h pisos Rio (-1) e Jiboia (-2) ENCONTROS EM RODA Vivências com os Huni Kuï no espaço expositivo quinta 7 e sexta 8 às 18h30 sábado 9 e domingo 10 às 14h e às 16h espaço expositivo (pisos -1 e -2) [duração aproximada: 60 minutos] [sem distribuição de ingressos]

ENTRADA GRATUITA

Centro de Memória, Documentação e Referência - Itaú Cultural­­ Una Shubu Hiwea: livro escola viva do povo Huni Kuin do Rio Jordão / organização Itaú Cultural. - 1. ed. – São Paulo : Itaú Cultural, 2017. 76 p. : il. ; 17 x 24 cm. ISBN 978-85-7979-099-7 1. Huni Kuin. 2. Cultura indígena. 3. Mitologia. 4. Arte indígena. 5. Folclore. 6. Exposição de arte – catálogo. I. Instituto Itaú Cultural. II. Título.

/itaucultural CDD 980.41



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