Criações e Contextos - Rumos Dança - 2009/2010

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CARTOGRAFIA rumos itaú cultural DANÇA 2009-2010

Organizadoras

C h ri s ti n e G r e i n e r C ri s ti n a E s pír i t o S a n t o So n i a S o b r a l

São Paulo 2010


SUMÁRIO 9

Christine Greiner Criações e conexões

CAPÍTULO 1

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André Lepecki Planos de composição

23 25 29 33 35 37 39 41

Trechos retirados dos blogs de pesquisa Rumos Itaú Cultural Dança 2009-2010

Gustavo Ciríaco (RJ) Eles vão ver Cia. Suspensa (MG) Alpendre Cia. Vitrola Quântica (SP) Darkland Dani Lima (RJ) Pra minha filha Gabriela Duvivier e Michel Groisman (RJ) Órgão Denise Stutz (RJ) Justo uma imagem Carini Pereira, Mickael Ramos, Stéfanie Telles e William Freitas (RS) Consequência do som, dança contemporânea a partir do hip hop

CAPÍTULO 2 Peter Pál Pelbart Elementos para uma cartografia da grupalidade

Trechos retirados dos blogs de pesquisa Rumos Itaú Cultural Dança 2009-2010

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Projeto DR (SP) Fictícios Adriana Banana (MG) Espaço como fluxos de possibilidades Marta Soares (SP) Projeto Coleta de Vestígios Thelma Bonavita (SP) Transformers Eduardo Fukushima (SP) Como superar o grande cansaço Wagner Schwartz (MG) Piranha: dramaturgia da migração

47 57 58 62 63 68 73


CAPÍTULO 3

79 87 97 101 103 105 107 109 110 112

Christine Greiner Indagações sobre o que pode (ser) um processo Cecilia Almeida Salles Blogs como registros de processos de criação

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Trechos retirados dos blogs de pesquisa Rumos Itaú Cultural Dança 2009-2010

Bernardo Stumpf (RJ) Jimmy the jungle beast Marcos Klann (SC) O que antecede a morte Andréa Bardawil e Maria das Graças Martins (CE) Graça João Costa Lima (PE) O outro do outro Renata Ferreira (MG) Volátil Francisco Rider (AM) Blocorpo Rosa Almeida (AM) Parte de mim Andréa Sales (CE) Casa

Ficha técnica

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A ideia de agrupar os documentos dos processos de criação apresentados na Mostra de Processos Rumos Itaú Cultural Dança em três partes surgiu de alguns critérios que apareceram durante a observação dos trabalhos apresentados. Não se trata de blocos ou categorias estanques. Alguns processos poderiam facilmente estar em qualquer uma das três partes. É apenas uma entre tantas outras possibilidades de leitura. A primeira parte toma emprestada da conferência de André Lepecki a noção de “planos de composição”. Essa terminologia vem sendo usada por muitos historiadores da arte e leitores críticos das obras dos filósofos Gilles Deleuze e Félix Guattari, tendo em vista pensar a arte em sua materialidade, assim como suas molduras epistemológicas e os modos como o compartilhamento de conhecimentos com outros campos do saber (ciência e filosofia, por exemplo) podem alimentar novos modos de ver, perceber e analisar os processos de criação. Todos os processos artísticos, em certa medida, fazem isso. No entanto, alguns deles pareceram especialmente preocupados com a construção de um plano próprio de composição e por isso foram incluídos nessa primeira parte, acompanhados por um artigo do próprio Lepecki. A segunda parte reúne experiências de caráter mais explicitamente político. A princípio, também aí poderiam estar reunidos muitos dos processos de criação, uma vez que parece ser da natureza da dança contemporânea e da pesquisa em geral o perfil crítico (e político) que questiona o já estabelecido. No entanto, alguns processos pareceram explicitar de maneira mais evidente o que vem sendo chamado de biopolítica ou biopotência. Essa segunda parte vem acompanhada pelo ensaio de Peter Pál Pelbart, que também participou do evento como conferencista convidado e tem se destacado como um dos principais autores que discutem os modos como as formas de vida mudaram, não mais identificando a biopolítica como poder sobre a vida, mas, sim, como potência de vida. A terceira parte inclui os artistas interessados na própria dinâmica e nos modos de organização dos processos de criação. Essa era a proposta geral da Mostra de Processos Rumos Itaú Cultural Dança, por isso também poderia incluir a maioria das experiências. No entanto, alguns optaram por focar especialmente nessa indagação e aqui são apresentados ao lado dos textos de Cecilia Almeida Salles, que é a pioneira no Brasil da chamada crítica de processo, e de Christine Greiner, que, após acompanhar toda a mostra, reflete sobre a natureza da apresentação de processos de criação em dança. Christine Greiner

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CapĂ­tulo 1

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Professor-associado no Departamento de Estudos da Performance da Universidade de Nova York (NYU) desde 2000. Doutorado pela NYU. Curador, crĂ­tico e dramaturgista. Autor de Exhausting Dance (2006), organizador das antologias Of the Presence of the Body (2004), The Senses in Performance (com Sally Banes, 2007) e Planes of Composition (com Jenn Joy, 2010). Curador do festival Nomadic New York (2007) e diretor/curador do Festival In Transit (2008 e 2009), de Berlim.


André Lepecki

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Planos de composição

U

m plano de composição é uma zona de distribuição de elementos diferenciais heterogêneos intensos e ativos, ressoando em consistência singular, mas sem se reduzir a uma “unidade”. Todo objeto estético envolve em sua construção a ativação de mais de um plano de composição. Alguns dos planos de composição que distinguem a dança teatral como modo de fazer arte são: chão, papel, traço, corpo, movimento, espectro, repetição, diferença, energia, gravidade, gozo e conceito. Cada um desses planos não deixa de ser também um elemento de outros planos. Planos entrecruzam-se, sobrepõemse, misturam-se, entram em composição uns com os outros, atravessam-se. Por vezes, mesmo, se repelem e se autonomizam. Isso não os impede, contudo, de permanecerem inter-relacionados no metacampo de expressão que os agencia – por exemplo, um metacampo chamado “dança”, construído, definido e desmanchado a cada novo e singular obrar, a cada nova peça que se dança. Em minha fala de abertura, resumindo a argumentação bem mais longa que fiz em Exhausting Dance: Performance and Politics of Movement (London/New York: Routledge, 2006), tracei um esboço de como esses planos, entrecruzando-se, atraindo-se e repelindo-se, determinavam linhas e campos de forças para eventuais políticas do movimento na dança experimental contemporânea. Este texto é um resumo dessa fala.


Primeiro plano, ou plano introdutório, ou plano do quadrado branco de Feuillet Em 1700, Raoul-Auger Feuillet publica Chorégraphie ou l’Art de Décrire la Danse, par Caractères et Signes Démonstratifs. Nessa obra magnífica, em que a palavra coreografia aparece impressa pela primeira vez, vemos que a condição de possibilidade para a dança passa pela criação de um isomorfismo estrito entre o chão onde a dança se atualiza e a página em branco do livro onde ela se traça antecipada e virtualmente. Ou seja, para Feuillet, a sala de dança é entendida não como um volume, mas como uma superfície. Daí poder ser representada por um quadrado branco traçado sobre uma página branca. É dentro desse quadrado branco que aquilo que Feuillet chamou de “a presença do corpo” toma lugar. Um corpo-hieroglifo, que Feuillet amalgama com várias letras sobrepostas.

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Assim, quando a palavra coreografia surge, ela vem para agenciar não apenas escrita e movimento, não apenas corpo e signo, mas papel e chão. Com Feuillet, o chão da dança emerge graças a um duplo movimento de formatação e depois de articulação entre planos. Primeiro movimento: formata-se uma projeção inusitada do bidimensional (folha de papel) sobre o tridimensional (sala de dança) e vice-versa, pois um plano é sempre précondição do outro. Segundo movimento: articula-se um transitar fluido entre a concretude da vivência encorpada do dançarino e a virtualidade do corpo-hieroglifo, cujo contato com o mundo é reduzido a um ponto geométrico e cuja trajetória desenha uma linha de deslocamento no plano da folha/chão. Interessa aqui a precedência do desenho diagramático sobre a execução da dança: a presença do corpo dançante toma lugar graças ao plano prévio desenhado na página em branco – precedência do virtual sobre o atual, soberania do virtual sobre o atual, que determina e autoriza a qualidade de presença e os regimes de visibilidade do corpo dançante. Mais: no método de Feuillet, o dançarino move-se mantendo os lados do livro sempre paralelos às paredes da sala, e as folhas sempre paralelas ao chão. Segurando o livro na horizontal, o dançarino move-se como se o chão se tratasse de uma página. Ainda mais: dado que Feuillet significa, em francês, “folha de papel”, as múltiplas dobraduras desse plano de composição muito particular colocam como chão da dança o nome daquele que funda a dança como transitar codificado de um corpo-hieroglifo movendo-se no espaço branco da folha/chão. Dupla operação de composição do plano que embasa as condições de possibilidade de algo denominado “coreografia”: primeiro, criar uma fantasia de que o chão da dança é um espaço em branco, neutro, liso; segundo, apagar a brutalidade e a violência do ato de neutralizar um espaço (lembremo-nos das observações de Henri Lefebvre sobre espaço neutro e violência). Aqui é fundamental a leitura que Paul Carter faz da relação entre bailarino e topógrafo, estabelecida por Paul Valéry em “Poesia e Pensamento Abstrato”1. Carter lembra-nos que, para Valéry, a condição primeira de possibilidade da dança não é o corpo, não é o movimento de braços e pernas, não é a música, nem um elã vital. A condição primeira para a dança acontecer é a terraplanagem. Para que a dança possa se dar, e, ao se dar, dar-se soberanamente, sem tropeços, interrupções ou escorregões, seu chão tem de ser antes de mais nada um chão liso, terraplanado, calcado e recalcado. O som que anima e precede a dança não é o som da natureza nem dos pássaros, de liras, batuques ou cantos: é a barulheira da maquinaria pesada, o palavrar ou as canções de trabalho dos operários, o chincalhar das ferramentas, o vociferar 1

CARTER, Paul. The lie of the land. Boston/London: Faber & Faber, 1996.


dos topógrafos e capatazes. Apenas depois de um chão se tornar tão liso, vazio e chato como uma folha de papel em branco (agora podemos dizer: apenas depois de um chão se tornar Feuillet), o dançarino pode entrar em cena, de modo que sua execução de passos e saltos não tenha de negociar “acidentes de terreno.” Ora, esses acidentes não são mais do que as inevitáveis marcas das convulsões da história na superfície da terra – cicatrizes de historicidade. É como se uma topografia da dança já indiciasse a predileção dessa arte pelo esquecimento, o problemático a-historicismo constitutivo da dança. Se Deleuze nos falou da folha em branco como repleta de clichês que devem ser desfigurados de modo que algo novo possa se expressar em seu plano, o caso aqui é de um espaço branco repleto da violência que o fez e que o constitui como ilusoriamente “neutro.” Plano de composição sendo repensado pela dança contemporânea: desenvolver uma relação nova com o chão supostamente neutro da dança, propor uma arqueologia da violência repisada que faz mesmo assim tropeçar o dançarino, apesar de todos os alisamentos. Ou seja: pensar a dança contemporânea como proposta de planos de composição de uma política do chão.

Segundo plano, ou plano do fantasma A socióloga norte-americana Avery Gordon faz uma proposta radical para recompor o plano epistemológico da sociologia contemporânea. Avançando o conceito de “matérias fantasmas” (ghostly matters), Gordon propõe não uma sociologia que investigue aqueles que acreditam em fantasmas, mas que acredite ela mesma profundamente em fantasmas. O que é uma matéria fantasma para Gordon? “Todos aqueles fins que ainda não terminaram” 2. Esses fins ainda sem término (o fim da escravidão que não terminou com o escravagismo; o fim da colônia que não terminou com o colonialismo; a morte de um ente querido que não apaga sua presença; o fim de uma guerra que não deixou de ser ainda perpetrada) prolongam a matéria da história para uma concretude espectral (a virtualidade concreta do fantasma) que faz o passado reverberar e atuar como contemporâneo do presente. Para Gordon, “matéria fantasmas” são também todos aqueles “corpos impropriamente enterrados da história”. No terreno mais liso, no espaço mais neutro, no plano mais aplainado, tocos de corpos que foram negligentemente enterrados, descartados, esquecidos pela história e seus algozes brotam do chão emperrando nossos passos, provocando desequilíbrios, quedas, paragens ou movimentos cautelosos, ou, então, gerando uma necessidade de nos movermos a uma velocidade alucinante, ou em permanente zigue-zague, porém atenta e cuidadosamente. Difícil dançar nesses terrenos que, apesar de lisos e lustrosos, volta e meia expulsam uma matéria fantasma (o fato de por vezes não a vermos não quer dizer que não exista e aja), fazendo-nos escorregar para além da intencionalidade coreográfica. Uma dança aberta para uma política do chão é uma dança aberta para aceitar e experimentar com os efeitos cinéticos das matérias fantasmas que interrompem a ilusão de uma dupla neutralidade, a do espaço e a do nosso movimento nele”. Pergunta ético-política para o plano de composição da dança contemporânea: que chão é este em que danço? Em que chão quero dançar? 2

GORDON, Avery. Ghostly matters. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1997. p. 22.

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Terceiro plano, ou plano do movimento

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A noção de que o movimento é elemento distintivo da dança é relativamente recente. Segundo Mark Franko, “o corpo dançante, enquanto tal, é raramente um tópico nos tratados de dança renascentista. Como diz o historiador de dança Rodonacchi, ‘... quant aux mouvements, c’est la danse elle-même dont la connaissance semble avoir été la moindre des occupations du danseur”3. O protagonismo do movimento como traço distintivo da dança acontece apenas com a distribuição do sensível modernista, que na dança se dá por volta dos anos 1920-1930, e articulado claramente por John Martin quando, em suas palestras na New School em 1933, proclama que apenas a dança moderna descobre a verdadeira essência da sua arte, que é o movimento. Mas se o movimento, como categoria estética, chega para marcar na dança seu modernismo, pode-se dizer que o movimento, como vetor de subjetivação da própria modernidade, recoloca a dança no seio das problemáticas políticas que historicamente definem o próprio cerne da modernidade: “a autoignição de um automovimento sem o qual a modernidade não poderia existir”4. O primeiro manual de dança em cujo título encontramos estampada a primeira versão da palavra coreografia, Orchesographie (1589), tem como protagonistas um padre-juiz que é também mestre de dança e um advogado-matemático que quer aprender a dançar. Nesse livro, os primeiros exercícios são marchas militares. Conjunção teológico-jurídico-científico-masculinista-guerreira que nos lembra como a coreografia surge como verdadeiro aparato de captura burocrático-estatal do dançar. A coreografia, por meio de padres-juízes, advogados-matemáticos e exercícios de guerra, rapta a dança e seu movimento de um plano de expressão participativo-coletivo e os remete para um plano representativo-burocrático (e até estatal). Acima de tudo, cria-se um aparato que é disciplinado, disciplinante e organizador não apenas de movimentos, mas de corpos e subjetividades. Ora, é preciso ter em mente que a modernidade (tal como sua nova arte chamada coreografia) também toma para si o projeto de se fundar ontopoliticamente numa subjetividade que se vê como essencialmente automotora. Não se trata de coincidência, mas de composição mútua de dois planos cuja intersecção determina um vetor de subjetivação: o “ser-para-o-movimento” de que nos fala Peter Sloterdijk em Eurotaoismus5. Emblema da modernidade, o movimento é sua força aglutinante e centrípeta, força que define e identifica, produz e reproduz o sujeito plenamente integrado na modernidade: aquele que clama para si mesmo a capacidade de se automover. Na modernidade, não mais nos movemos graças a vontades obscuras do transcendente, do divino, dos astros ou das energias ocultas. Na modernidade, criamos as condições corporais, afetivas e de subjetividade para vivermos a ilusão de que nos movemos porque queremos – e para onde quisermos. Daí que Sloterdijk veja no automóvel um fenomeno bem maior do que mais uma impressionante conquista tecnológica. Para ele, o automóvel é o evento ontoteológico da modernidade, o aparato de captura que arranca do divino ou do transcendente a soberania sobre o destino de cada um e a coloca sobre o sujeito automovente. O sujeito moderno é aquele que se define como soberano de seu próprio movimento. Simultaneamente dançarino e coreógrafo de seus passos, vai (ou pensa que vai) aonde bem quiser. Nesse ir, ajuda bastante se o chão onde se desloca já foi alisado, de modo que a violência de seu movimento se transforme numa experiência de deslizar relaxante. Ajuda também que a ilusão de autonomia (ser legislador de si mesmo) vá de mãos dadas com a ilusão de automotricidade (ser locomotor de si mesmo), pois a junção de ambas define o sujeito moderno como o exemplo acabado do idiota: aquele sujeito privado, preocupado com suas próprias preocupações, que, na solidão envidraçada de seu carro, ou no isolamento de seu 3

FRANKO, Mark. The dancing body in renaissance choreography. Birmingham: Summa, 1986. p. 9.

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SLOTERDIJK, Peter. La mobilisation infinie. Paris: Christian Bourgeois, 2000. p. 27.

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SLOTERDIJK, Peter, op. cit., p. 36.


estúdio, ou na privacidade de sua neurose, pensa que vai para onde quer, em terrenos previamente (re)calcados para o exercício pleno de seu delírio cinético. As estradas esburacadas, os pneus furados, os intermináveis engarrafamentos, os radiadores fumegantes, os gases nauseabundos, todas as guerras petrolíferas da contemporaneidade – tudo isso o idiota automovente vê como epifenômenos negligenciáveis da vida. O que interessa é mover-se. Desafio cinético-político para planos de composição na dança contemporânea: o que fazer com o destino do meu movimento? O que fazer com a subjetividade idiota do automovente? Como agenciar movimento e subjetividade de modo que se saia do delírio ontoteológico automobilístico? É óbvio que esse plano do movimento soberano é a “ilusão fundadora” da modernidade, a sua idiotia constitutiva: mesmo fora da estrada, mesmo na suposta segurança do lar, o sujeito se vê como automovente apenas para se descobrir num eterno engarrafamento de seu desejo, numa cumplicidade obscena perante a pilhagem escrota da natureza, num testemunhar passivo de uma violência neocolonial desmedida e sádica – tudo para garantir o combustível que o moverá para o próximo engarrafamento, desde que os topógrafos e suas máquinas aplainantes da história continuem a trabalhar para que a borracha deslize sem um solavanco sequer. Paroxismo grotesco dessa lógica totalitária do movimento fundador desse ser-para-o-movimento, imagem que expressa como a má consciência aflora do inconsciente político-cinético-colonial de tal modo que tem de se manifestar, sob pena de implosão do sujeito: nas mais engarrafadas metrópoles, os carros SUV tornam-se objeto de desejo VIP e são projetados e propagandeados como veículos de que toda família decente necessita para vencer os mais selvagens terrenos: florestas virgens, desertos inóspitos, tundras eternas, glaciares traiçoeiros. Em caso de qualquer risco de contato com nativos ou outros seres locais, um GPS embutido garante destino certo, coreografado via satélite, enquanto telas de vídeo incrustadas no interior do veículo garantem aos passageiros total impermeabilidade à experiência do movimento como plano positivo para explorações não exploradoras de outros corpos e outras naturezas. O idiota automovente acredita ainda que se move na folha de Feuillet, num espaço em branco ou virgem (delírio do colonizador), acredita que se move por autossuficiência energética (delírio de uma subjetividade solipsista). Pergunta cinético-política para uma dança contemporânea: quais os movimentos para resgatar o movimento? Como inventar outra via de subjetividade em que não nos encontremos sempre oscilando entre a agitação frenética e a passividade depressiva? Quais os outros modos de explorar criativa e atentamente os espaços cheios do mundo onde uma verdadeira aventura de movimento nos aguarda?

Quarto plano, ou plano da gravidade, ou do tropeço Frantz Fanon é o fenomenologista de uma política cinética do tropeço. Sua escrita revela as forças hegemônicas e contra-hegemônicas que atravessam os planos de movimento e de chão. Fanon descreve minuciosa e corporeamente como forças e contraforças se articulam na formação de subjetividades e de experiências da imagem do corpo na colônia, na póscolônia e na neocolônia. Caminhando por Lyon, Fanon descobre por meio do tropeço que um chão não é só terreno, mas é sempre composto também de atos de fala. E descobre que todo ato de fala é um corpo a corpo com a linguagem, um embate em que o terreno social se organiza produzindo e reproduzindo corpos (ecos de Deleuze e Guattari levando J. L. Austin para um passeio sem retorno: “a linguagem não serve para comunicar, mas para ser obedecida”). Passeando pela cidade como um bom burguês, jovem médico que era, Fanon escuta uma voz vinda do outro lado da rua: “Mamãe, olha o preto!”. E de novo: “Mamãe, olha o

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preto, estou com medo!”. As palavras da criança crivam-no como balas, ativam um tremor de terra privado sob os pés de Fanon, de qualquer jeito revelando uma balística da linguagem: “Tropecei. Estilhacei-me. Desde então me movo na horizontal”6. Plano de composição para um sujeito movente na colônia globalizada: como resistir e contraatuar de modo que o movimento seja resgatado de subjetivações burras, colonialistas, racistas, violentas, anti-históricas? Como trazer de novo para a dança o movimento como linha de fuga, experimentação alegre, condição de produção de conceitos e ideias? Por vezes, mais nos vale um ato parado do que uma agitação animada; resistir ao movimento como algo que já vem pré-acelerado pela demanda imperiosa de estarmos em permanente deslocamento voraz no qual o que se afirma é a presença de uma intolerável pessoa. Lembrar sempre que há movimento intensivo, que existem micromovimentos a ser dançados, ou operações de agenciamento com outros corpos e movimentos. Devires apessoais, ritmos para outra humanidade. Abraçar o horizontal só por um momento, ou por longos dias, ou para o resto da vida, para ver o que se ganha quando se perde verticalidade e o que se ganha quando se ganha horizontalidade. Em vez de caminhar no chão aplainado pelas violências idiotas, fazer para si mesmo – com seu corpo se movendo no plano que agencia o desejo – seu chão.

Quinto plano, ou plano da coisa 18

É falácia pensar que, só porque a dança mobiliza corpos, então toda dança sabe necessariamente o que pode e o que move um corpo. Daí a expressão “dança experimental”: aquela que se atreve a experimentar o que pode, o que move, o que faz mover um corpo. Os planos de experimentação na dança, quando investidos no problema da composição coreográfica, redescobrem que a corporeidade é sempre imanente ao plano de consistência da obra-por-vir: cada obra pede um modo adequado de corporeidade, de viver, animar, agenciar um corpo; por outro lado, cada corpo e suas singularidades pedem para si uma obra adequada ao modo desse corpo ser. Despega-se, assim, da dança a ideia de que existe um tipo de corpo privilegiado para dançar. (Todo corpo pode dançar, toda dança pode ter qualquer corpo.) Trata-se de uma política de composição atenta a modos de adequação imanentes e não imposições de regras do “jeito certo” de fazer dança. Despega-se, assim, da dança um modo espetacular de estar presente, de demonstrar presença. Mark Franko nos fala do modo epideitico da dança renascentista, cujo propósito era mostrar a pessoalidade do executante como sujeito plenamente soberano de sua capacidade virtuosa de se mover: “o propósito final da dança era a exibição da pessoa de cada um”7. Falta de modéstia da dança, quando se vê capturada pelo aparato cortesão-estatal que em breve vai organizá-la como coreografia. Investimento da dança aparelhada ao espetáculo do estado na noção de pessoa como modelo privilegiado de subjetividade. Despegar a dança da pessoalização e seus espetáculos é agenciá-la com outros modos de ser, inclusive modos de devir não orgânicos, nos quais se “transgride a tradição que representava [o humano] enquanto sujeito, pessoa, espectador, ou ator”8. 6

FANON, Frantz. Black skin, white masks. New York: Grove Press, 1967. p. 109.

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FRANKO, Mark, op. cit., p. 33.

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PERNIOLA, Mario. The sex appeal of the inorganic. New York/London: Continuum, 2000. p. 13.


Plano de composição recente (e crescente) na dança contemporânea é o agenciamento do dançarino com a coisa (Ibrahim Quraishi, Thomas Lehmen, Martin Nachbar, La Ribot, Aitana Cordero, João Fiadeiro, Vera Mantero). Experienciar a coisa, ou experimentar um plano de composição coreográfica em que o corpo se liberta de “cadeias de deveres e necessidades” que não são mais do que modos tristes de afetação, e deixar-se “ser coisa em si”, porém “sem degradação nem humilhação da humanidade de cada um”9, é uma possibilidade de devir recentemente explorada pela dança. A dança vai buscar no corpo a coisa que o corpo sempre foi – amálgama de orgânico e inorgânico, mineral e bicho, cuspe e matéria, opacidade e luminescência, mineral e planta. Ou seja: coisa. Busca da coisa, da parceria da coisa, sem pulsão de morte, sem morbidez, mas ensaiando apenas “o movimento horizontal em direção à coisa”, que, segundo Perniola, nos levaria para um regime de sexualidade, mas também de entendimento de composição estética, sem verticalizações permanentes entre cumes orgásticos e vales depressivos. A horizontalidade rasteira de Fanon, ou do artista e performer afro-americano William Pope.L em seus “rastejos”, esclarecem-se não apenas como resultantes de uma violência incontornável, mas positivamente como vontades de experimentar cineticamente com devires animais e com devir-coisa.

Sexto plano, ou plano de composição do retorno, da repetição, da diferença ou do “re-enactment ” Este plano do retorno define igualmente a dança experimental contemporânea. Mal ou febre de arquivo, dirão uns. Quem sabe? Mas que tal ver esse plano não como maleita mas como potência afirmadora de uma vontade? Mas vontade de quê? De retornar para um não lugar de onde se pode de novo partir. E vontade de quem? Da coisa. Da coisa chamada “obra”. A quantidade crescente de re-enactments na dança contemporânea nos fala da vontade de obras querendo se “reobrar” numa possibilidade outra daquilo que já foram uma vez. No conceito de re-enactment estão contidas as ideias de tradução, recriação, repetição com/como diferença. Um modo de “transcriação”, como queriam os irmãos Campos. Mas no re-enactment está contido também um modo de perturbar e de potencializar duas noções fundamentais para a coreografia: de arquivo e de corpo. O re-enactment não recria uma obra passada, não resgata uma dança parada no tempo que já foi. O re-enactment atualiza virtuais presentes e concretos da obra que já foi mas que, no entanto, ainda age e por isso ainda é (uma obra é uma “matéria fantasma,” seu fim não tem término). Funciona assim: uma obra se agencia a um coreógrafo; nesse agenciamento, atualiza-se uma vontade: a vontade de ser não aquilo que já foi, mas tudo aquilo que não foi e que ainda pode vir a ser (porém, continuando a ser a mesma obra). Em sua atualização renovada, isto é, no seu re-enactment, a obra passa a ser algo que nem o original imaginava ser possível – muito embora o possibilitasse. O re-enactment sobrepõe o plano de desejo da obra ao plano da vontade autoral do coreógrafo. Nesse movimento, se redesenham as bordas de ser da obra e se revela todo um sistema de formação e de transformação de seus enunciados. Ora, tal sistema dinâmico de transformação, baseado numa dispersão original e originária, em que a obra já foge de si mesma desde sua origem, Foucault chamou de “arquivo.” O arquivo, em Foucault, não é uma gaveta, um prédio, uma instituição – é um sistema dinâmico de “formações e transformações de enunciados” que delimita o nosso estar no mundo10. É por isso que o re-enactment sempre transforma: porque arquiva. Na dança, o 9  10

PERNIOLA, Mario, op. cit., p. 38. FOUCAULT, Michel. The archeology of knowledge. New York: Pantheon Books, 1972. p. 130.

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re-enactment descobre, além do mais, que é o corpo o modelo privilegiado desse arquivo transformador. Porque o corpo é sempre errante, agenciador, precário, inventivo, desejante, fugitivo de si mesmo e mortal, a dança descobre-o como sendo justamente a dispersão dispersante na origem. Corpo é sempre corpo-arquivo, porque formador e transformador de si mesmo e dos enunciados que o fazem e o delimitam.

Último plano de composição (por motivos de espaço apenas, pois os planos são infindáveis), ou plano do mal-entendido, ou do inventário Com a exposição desses planos, de modo algum se pretende advogar um modo privilegiado ou único ou hegemônico de fazer dança, nem um modo único ou privilegiado ou hegemônico de pensar dança. Dança é aquilo que ela quiser fazer. E o pensamento sobre dança deve com ela se fazer. Que ambos se façam sempre num plano de consistência mútuo – para evitar as idiotias. Eu quis apenas apresentar esses planos para esclarecer eventuais mal-entendidos que ameaçavam, e ainda ameaçam, a recepção e por vezes mesmo a circulação, o apoio e a produção de algumas propostas de dança contemporânea que escapam a ontologizações estetizantes, expectativas teórico-críticas academicistas e hábitos de composição e de dançar que impedem que os fazeres se façam. Cada um que pense e que faça a dança que queira ser feita. Ou desfeita.

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Trechos retirados dos blogs de pesquisa Rumos Itaú Cultural Dança 2009-2010

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interferência gráfica em frame de Gustva Ciríco


Gustavo Ciríaco (RJ) ELES VÃO VER 28/9/2009, 17:32

Uma semana de ensaio Francini de água doce característico dos rios da América do Sul. Uma semana de ensaio. Investigamos, praticamente, categorias e elementos envolvidos na cena para a criação da espetacularidade e seus códigos – tema central da pesquisa. A partir de uma lista referencial dos elementos tradicionalmente envolvidos na cena em geral, e na cena da dança em particular, realizamos improvisos de movimento com elementos aleatoriamente escolhidos. Prólogo, estruturas de início, meio e fim de espetáculo, luz, cenário, figurino, clímax, coro, protagonista, enfim, elementos cênicos investigados e explorados em múltiplas combinações. É estranho perceber a dificuldade em abordar tais temas, sem comentá-los – de forma pejorativa, especialmente. Parece-nos estranho, ainda, a menção a estruturas do espetáculo já contestadas historicamente, como a hierarquia em relação ao espaço cênico ou a subordinação dos elementos da cena em relação uns aos outros; a subordinação do movimento, em particular. Tal preocupação se estende à discussão sobre a criação das categorias de nosso blog. Listamos várias possibilidades, mas elas nos parecem todas a priori. Outras questões, no entanto, começam a surgir como desenvolvimento das discussões: questões acerca da presença do intérprete em cena ou das abordagens possíveis da materialidade do movimento através de distintas técnicas de criação e apresentação – repetições, cânones etc. A participação do espectador é questionada, não relativamente à possibilidade de sua abordagem direta em cena, mas à inclusão de suas reações, como em um programa espetacular de TV, por exemplo, em que sua imagem frente ao espetáculo da vida cotidiana é parte importante na criação do efeito de espetacularidade da própria cena, encaminhada, então, ao grande público telespectador. Ou como nos programas de calouros, de entrevistas ou shows de esportes, nos quais, mesmo sem sair de sua relativa passividade, ele faz parte da construção da cena pela simples exploração de sua imagem como espectador. Ele assume a posição paradoxal de não estar dentro da cena, mas, pelos mecanismos de construção, fazer parte dela. Enfim, concluímos, por ora, que muitas categorias surgirão por necessidade, pelo desenvolvimento dos acordos tácitos que levam os elementos da cena a cumprir sua função.

14/12/2009, 13:40

Um ponto vírgula O que é isto? O que é fazer isto? O que isto produz ao ser feito? Um pequena crise. Ou talvez uma grande, muito grande. Tenho pensado sobre o projeto. Na realidade, re-pensado. Com hífen. Aproveito dessa separação. Voltar ao que se já havia pensado. Mapeado. Desde o início, pensei nos códigos e elementos teatrais que dão visibilidade ao que é posto em cena, aqueles procedimentos e coisas, dizendo de novo, fazendo uso dessa

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redundância, que conduzem o olhar do espectador através de uma peça. Os construtores de realidade. De uma determinada realidade. Mas atravessando papos e trabalhos, conflitos internos e apresentações de uma outra peça, o Nada. Vamos ver, ganho uma nova perspectiva sobre este trabalho. Percebo que não tenho interesse em fazer uma catalogação do que é possível em uma cena e fazer essas possibilidades desfilarem, uma após outra. Percebo – e uso o verbo no presente, por tratar-se de algo que ainda está em elaboração – que estou mais a fim de usar esses elementos e protocolos para criar um outro lugar, uma outra coisa. Eles não são o fim em si. Eles estão a serviço de. Vendo uma exposição em Paris do cineasta tailandês, Apichatpong Weerasethakul (http://www.animateprojects.org/films/by_date/2009/phantoms), tive a experiência de ver pequenos filmes feitos em um mesmo lugar, um lugarejo ao norte da Tailândia, nos quais situações acontecem ao mesmo tempo ou sequenciadas, mas sem nenhum apoio convencional de estrutura narrativa, ou seja, não havia elementos que organizassem para aquele que vê a exposição uma linha a seguir, uma maneira de ler aquelas imagens. No entanto, à medida que eu ia vendo os vídeos, uma realidade poético-ficcional-documental ia ganhando traços em minha cabeça. Algo ia se construindo para mim. Embora esse algo mudasse a cada vez que eu via um novo filme ou mesmo no interior do mesmo filme. Como se eu fosse juntando pedaços que iam provocando mudanças no que eu havia apreendido antes. Sem nunca fechar. Uma espécie de leitura livre de fatos aparentemente corriqueiros, mas com algo que dava um tom um tanto surreal, como o filme em que um grupo de adolescentes joga uma pelada de noite com uma bola em chamas enquanto em uma tela ao lado deles é projetado um filme com pequenos raios originados no chão praticamente, uma situação que de fato acontece a alguns metros de distância dali. Aos poucos vamos vendo uma coisa e outra e, mesmo quando vemos tudo o que há para ser visto, o que se vê ultrapassa um sentido fechado, uma narrativa única que nos auxilie através dela mesma. Um efeito poético sob um registro realista, eu diria. Sou jogado assim para lugares inusitados, mas ao mesmo tempo com uma sensação familiar. Em um outro vídeo, um grupo de homens constrói uma espécie de disco voador, como se construísse um barco, algo trivial. Uma trivialidade que produz uma poesia tão forte... Bem, essa experiência me fez perceber que, em vez de buscar revelar o esqueleto de uma dramaturgia, surge como muito mais atraente – ainda mais se penso em todos os desnudamentos do teatro e de suas condições já feitos nos últimos 15 anos – buscar produzir uma nova dramaturgia, menos programática e mais ao sabor do ocaso, através do que se apetece juntar, mesclar, para além de um princípio organizador que estabeleça como os elementos devem ser organizados ou que preveja uma única narrativa a seguir descoberta por detrás de todas as diversas partes. Ganhou-me o desejo de não saber o que arregimenta as cenas, pelo contrário, mergulhar no misterioso caminho dos sentidos individuais, no inenarrável que uma imagem, uma história, uma música ou a associação desses elementos é capaz de gerar. Enfim, isso realmente faz-me re-pensar e querer aprofundar toda a história dos inícios, meios e fins que estávamos investigando. Os tais referenciadores de realidade. Construtores de mundos, de afetos, de situações.

Blog: http://elesvaover.wordpress.com Concepção e direção: Gustavo Ciríaco Performance e cocriação: Dyonne Boy, Francini Barros, Gustavo Ciríaco, Ignacio Aldunate e Milena Codeço Artista visitante e colaboradora: Lucía Russo Trilha sonora: Rodrigo Marçal – Aprx Figurinos: Paula Stroher Duração: 30 min


Gustavo Ciríaco é coreógrafo e performer. Desde 2003, faz projetos com outros artistas, como Jorge (2003) e Uma Conferência Imaginária (2004). Em 2006, estreou Aqui Enquanto Caminhamos, com Andrea Sonnberger, apresentado em Lisboa, Munique, Berlim, Marselha, Paris, Londres, Rio e Madri. Em 2007, ganhou o prêmio APCA com Still – Sob o Estado das Coisas. Em 2009, estreou Nada. Vamos Ver (Prêmio Klauss Vianna), com residência nos Les Récollets, em Paris. Em 2009, estreou Vizinhos, com Andrea Sonnberger, em La Casa Encendida, Madri. Para 2010, prepara a estreia do solo Now, com a bailarina francesa Annabelle Pulcini, e inicia o projeto Drifting, com o português António Pedro Lopes. Dyonne Boy é atriz, bailarina, artista plástica e jornalista. Em 1989, criou o grupo de teatro Troglô. Fez faculdade de comunicação social na PUC-Rio. Em 2000, fundou a ONG Grupo Cultural Jongo da Serrinha, onde exerce o cargo de coordenadora-executiva. Em 2006, concluiu o mestrado em projetos sociais e bens culturais na Fundação Getulio Vargas (FGV-RJ) e realizou a exposição Jongo 1759-2006, em parceria com o Sesc. Em 2009, concluiu a Escola Técnica de Dança Angel Vianna, no Rio, e começou a trabalhar com Gustavo Ciríaco nas criações Nada. Vamos Ver e Eles Vão Ver. Francini Barros é bailarina formada pela Escola Angel Vianna e mestre em história e crítica da arte no Instituto de Artes da Uerj. Atualmente, cursa doutorado em teatro na Unirio. Trabalha com Gustavo Ciríaco desde 2004. Atuou como bailarina e assistente de direção na Trupe do Passo, dirigida por Duda Maia, de 1999 a 2003, e na Lia Rodrigues Companhia de Danças, de 2003 a 2005. Em 2003, participou da performance Henrique III, de Laura Lima, na 4ª Bienal do Mercosul, em Porto Alegre, e apresentou o vídeo Múltiplo 4872946652094, no evento Alfândega, no Armazém do Cais do Porto. Ignacio Aldunate é ator e performer. Formado em artes cênicas pela PUC de Santiago, circula entre cinema, dança e teatro. Trabalhou em teatro com Ramón Griffero, Eduardo Wotzic, Camila Vidal e Eduardo Vaccari e em dança com Esther Weitzman e Gustavo Ciríaco. Dirige o esquete Dance Contest, de Camilo Pellegrini. Esteve em festivais na Colômbia, Espanha, Alemanha, Cuba, Chile e Brasil. Lucía Russo Russo é assistente de direção e colaboração artística. Faz parte da Casa Dorrego (atualmente c.a.s.a.), coletivo artístico baseado em Buenos Aires. O c.a.s.a. desenvolve um trabalho de intercâmbio e colaboração entre artistas de diversas disciplinas. Como diretora, apresentou obras em diversos lugares na Argentina, Chile e México. É autora intelectual de Diálogos (2006) – Encuentro sobre Procesos de Creación en Danza Contemporánea. Colaborou com os coreógrafos Hiroaki Umeda (Japão), Ayara Hernandez (Uruguay), Diego Gil (Holanda) e a Companhia Mundo Moebio (Chile). Milena Codeço é bailarina. Dançou na Esther Weitzman Cia. de Dança até 2006 e fez assistência da peça Territórios. Desde 2006, colabora com Gustavo Ciríaco em Still – Sob o Estado das Coisas (assistente e intérprete) e em Nada. Vamos Ver (intérprete-criadora). Atualmente, participa dos processos criativos de Eles Vão Ver, de Gustavo Ciríaco, e Sem Nome, Todos os Usos, de Flávia Meireles. Rodrigo Marçal é músico e atua junto com Lucas Marcier na Arpx. No currículo, trilhas de dança, cinema e teatro contemporâneos: Still – Sob o Estado das Coisas, Nada. Vamos Ver, Ensaio.Hamlet, Drežnica, Gaivota – um Conto Curto, Ressaca, Autopeças.

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interferĂŞncia grĂĄfica em frame de Alpendre


Cia. Suspensa (MG) ALPENDRE 13/9/2009, 21:03

Outras pessoas – cada um Há algumas semanas nosso chão foi suspenso sobre o tablado. E ali tem ficado montado. Não iniciamos ainda nenhuma prática direta e organizada, mas um encontro se passou ali e resolvi registrá-lo. Uma turma de alunos de arquitetura da PUC Minas, por meio do prof. Maurício Leonard (arquiteto e também performer), nos procurou para contribuir com suas experiências a respeito de projetar através do corpo. Com eles desenvolvemos uma prática com o uso de objetos no espaço. Entre esses objetos estava nosso platô. Observei algumas estratégias corporais enquanto as pessoas tentavam decifrar o objeto: o braço direito jogado na diagonal empurra o AR. As mãos estão cerradas, pés puxam o chão com os dedos, pés arrastam sobre o chão, joelhos esticados, pernas rígidas, passos rápidos e curtos, uma dança estranha, nada no quadril, olhar para o chão, pés não desgrudam do chão, quadris ainda fixos. Enfim um alívio... quatro apoios. Mais liberdade, mãos agora puxam o chão, queda... no chão outro plano, giro, caminhada de quatro apoios, queda, de novo em pé, pausa... tudo ainda se move mas o corpo tenta controlar... ondas, olhar para fora, primeira vez, ainda existe um fora. Um banco sobre um chão que se mexe. Movimento a favor, ampliação do pêndulo, tempo longo, balaaaaaaaanço, contramovimento, a frenagem. De novo queda, e outra estratégia: abandonar o barco. Conversas sobre um diálogo, escutar, sensibilidade, a estrutura do corpo, arquitetura, espaço corpo espaço, coisas-objetos, harmonia, desarmonia, e outros disparos que agora não me lembro mais.

19/10/2009, 0:35

Discussão sobre possibilidades – procedimentos, métodos... Maneiras de... Iniciar os procedimentos desta pesquisa com planejamentos alternados. Cada semana, um dos quatro conduz as práticas. No primeiro mês as conduções podem não ter relação ou serem disconexas umas com as outras. Assim temos maior liberdade de propor coisas, fazer vontades, ter ideias, gastar, exercitar a ação. No segundo mês podemos definir já alguns caminhos que forem para nós, naquele momento, mais importantes, como direções primordiais. Dentro dessas direções, os planejamentos alternados então seguem em relação ao anterior, em continuidade ou questionando, afirmando ou duvidando das práticas anteriores. Algumas ferramentas possíveis: Assistir a outros corpos, pela primeira vez neste espaço (é tão interessante observar outras pessoas quando sobem no plano), as estratégias de cada um, as torções no corpo, como mãos se comportam, rostos, deixando claro o conflito “equilíbrio”. Registrar essas pessoas? Filmar? Visitas/outros: Adriana, Tuca e Karina; Maurício Leonard; Carlos Teixeira. Colaborações – procura de atravessamentos com outros pensamentos – leituras, práticas, referências. Experiências paralelas ao plano: outras experiências sob o plano, recorte, moldura, mobilidade.

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Posicionamento do plano, transportá-lo para outros lugares, fora do estúdio. Obra do C.A.S.A. (Centro de Arte), espaços externos, internos? Onde seria possível? O que muda? Posicionamento alinhado, desbalanceado; muito alto, no chão quase encostando no chão, a um, dois, três metros? O que muda? Experiências no plano: com duas pessoas, três, quatro? Uma pessoa. quem está fora? O que pensa? Como se relaciona com que está dentro? Dentro-fora. O alpendre: lugar de observar – ligação, passagem para o externo.

dez. 2009

Plano de trabalho

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Alpendre Plano de trabalho – questões/proposições desenvolvidas até agora e apontamentos a serem seguidos (situação). 1) Questões físicas (corpo) e mecânicas (objeto): – Observação de apoios; eixos; contrapeso; equilíbrio, desequilíbrio e uso das articulações : presentes em tudo o que desenvolvemos e são abordadas todo o tempo, mesmo que não como questão-foco do exercício, proposta, cena e/ou improvisação. – Construção e desconstrução de padrões do movimento e da relação com o aparelho-objeto. Quando filmamos cada prática podemos observar nossas reações corporais incidentes, conscientes ou não. Descobertas de novas qualidades físicas. 2) Questões do objeto no espaço: – Ampliação do espaço de atuação para além do espaço interno e arredores do objeto. Objeto no “campo ampliado” Ocupações, composições e observações. Exemplo: ao inserir o objeto-tablado flutuante em um espaço qualquer, propomos uma interferência; em outras palavras, algo se transforma de alguma maneira. Como? E se colocarmos mais planos? Criando espaços, recortes com planos fixos, recortes, inclinações e alturas diferentes, a 6 metros de altura, dentro de um quarto, em um espaço aberto, uma mesa, com dois andares etc.? 3) Questões do movimento e suas dramaturgias: – Investigação das potências do movimento, nas situações propostas (em relação ao platô) enquanto gerador de dramaturgias. Estar atento às sugestões e transformações do objeto como em uma mesa, um barco, um balanço, um quarto, uma conversa, uma dança, portas onde entro e saio, janelas por onde vejo etc. – Investigar assuntos que surgem da própria fisicalidade, como: um desequilíbrio sóbrio; uma tentativa incessante; uma dança embriagada; uma relação em que um intefere bruscamente no movimento do outro; ou se um e outro, em harmonia, tentam se manter em pé. – Criar interferências com textos/imagens ou paisagens sonoras/musicais: elementos externos que dialoguem com o trabalho. Buscar a presença de escritores e visita de músicos. 4) Estratégias de compartilhamento: envolver outros no processo, dividir, entender em diálogo. – Visita de outros artistas, bailarinos, artistas plásticos, arquitetos e poetas cujo trabalho ou questões cruzem os/as nossos/as e que possam se interessar em compartilhá-los. Exemplo: Projeto Bifurca – Adriana, Tuca e Karina (Rumos), Maurício Leonard (bailarino-arquiteto e parceiro em outros trabalhos), Ana Martins Marques (poeta e escritora), Gabriela Cristófaro (bailarina e parceira em outros trabalhos – professora de dança), professor Bernardo Zama (professor de física do ensino médio, envolvido na pesquisa em arte-educação Objeto de Voo anterior a esta pesquisa). – Coleta de material filmado de outras pessoas, com histórias e presenças corporais as mais diversas, sobre o tablado. A observação desses outros tem para nós um elemento imprevisto.


Olhamos para as pessoas pela primeira vez neste espaço, procurando decodificar, se proteger e ao mesmo tempo arriscar com um corpo que não temos mais a oportunidade de experimentar; um corpo que não prevê as respostas mecânicas do chão, um corpo sem chão. – Convite a um grupo de pessoas para tomar um café em nossa mesa-tablado. Um café móvel, instável. Um acontecimento (happening) a ser registrado em vídeo e relatos (textos). – Divulgação do blog para um grupo amplo de pessoas e convite para que acompanhem a pesquisa, contribuindo com suas leituras. Proposta de montagem/formato de apresentação-exposição do trabalho: Como plano de apresentação ou demonstração de trabalho, chegamos a um formato que leva em conta as questões e apontamentos que vemos agora (provisórias). No entender desse processo, o melhor formato é o de uma apresentação-exposição que possa ser vista e visitada (a depender da disponibilidade de espaço). A princípio, o espaço ideal é uma sala onde possa ser ao mesmo tempo instalado o platô , uma pequena exposição de desenhos, imagens e textos e alguns vídeos. No desenho abaixo a proposta de montagem: 1) Local de instalação do platô móvel e algum possível outro plano (fixo ou móvel) que venha auxiliar. Neste local faremos a apresentação-demonstração do trabalho. Para tal poderemos realizar uma ou duas sessões de 20 a 40 min. Nessas sessões realizaremos coreografias, exercícios, improvisações e conversas que explicitem as questões abordadas. Pensamos em três momentos: A – Apresentação de coreografias-danças como apontamentos de cena, B – Demonstração de processos (como em camadas da pintura, ou exercícios que se desdobram e se sobrepõem), C – Experimentação dos outros (espectadores): convite para que alguns deles estejam sobre o plano se movendo e experimentando junto com um de nós, D – Espaço para perguntas e alguns comentários. 2) Montagem de mesa com registros de fotos, desenhos sobre papel ou sobre as fotos, textos produzidos por nós ou por parceiros; registros como apontamentos sobre a questão da composição e poética deste trabalho-pesquisa. 3) Montagem/projeção de vídeos, quer durante e como parte da apresentação do trabalho, pontuando e criando contrapontos para ele; quer como extras em instalações à parte, de acontecimentos registrados que possam ser um anexo da apresentação.

Blog: http://alpendre4.wordpress.com Bailarinos-pesquisadores: Lourenço Marques, Patricia Manata, Roberta Manata e Tana Guimarães Preparação corporal: Gabriela Cristófaro Produção: Sheila Katz Gerência financeira: Cristiane Papini Duração: 20 min A Cia. Suspensa (MG) trabalha principalmente sob dois aspectos das artes cênicas: a dança e o circo contemporâneo. Desenvolve projetos de pesquisa nas interseções de linguagens do movimento, tanto na criação de performances e espetáculos quanto em projetos educativos. Fazem parte de seu histórico os espetáculos Pouco Acima e De Peixes e Pássaros, a pesquisa Sem os Pés no Chão e o projeto educativo Objeto de Voo.

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interferĂŞncia grĂĄfica em frame de Darkland


Cia. Vitrola Quântica (SP) DARKLAND 9/4/2009

O início... O projeto Darkland A presente proposta tem o intuito de continuar a investigação das práticas de pesquisa em linguagem cênica coreográfica por duas integrantes da Cia. Vitrola Quântica, Aline Bonamin e Júlia Abs. A pesquisa tem como eixo catalisador a articulação entre duas linguagens distintas, mas que faremos dialogar em nossas investigações: a dança e a moda. O nome escolhido para este projeto é Darkland. A matriz poética tem o tema do erótico visto sob a perspectiva das obras do artista plástico Ray Caeser. Trata-se de um artista identificado com o surrealismo pop, um movimento de arte visual que tem origem nos comics underground, no punk rock e na cultura das ruas. As obras de Ray Caeser ilustram corpos de inocentes menininhas. No entanto, com um olhar mais atento, nos deparamos com uma grande perversidade. Os olhos das menininhas têm um caráter malicioso e cruel, suas mãos às vezes são substituídas por grandes garras, sua inocência é só aparente. Há uma alusão ao erótico, ao fantasioso e ao jogo ambíguo entre o que é considerado normal e o que é visto como perverso. Em Darkland uma de nossas propostas investigativas é motivada pela relação do corpo e do movimento com o pensamento da moda contemporânea e seus procedimentos de criação. A estilista Karlla Girotto fará parte da criação de conceitos para as roupas e as relações com o corpo, inspiradas nos personagens de Ray Ceaser. A partir de um universo poético definido pela indumentária e pelos conceitos já citados, as bailarinas desenvolverão a pesquisa coreográfica. Outra proposta investigativa é a relação da composição coreográfica com a composição dos vídeos de animação, a serem realizados pelo artista Pablo Romart. O intuito é criar uma ilusão de que as figuras pareçam fazer parte da mídia virtual, criando um conflito entre o que é real e o que é ficção.

11/6/2009

Plataforma Júlia Abs Sobre a coisa em si. Nossa primeira experiência em ensaio da relação entre a dança e a moda se deu através do uso de plataformas. Num primeiro momento, podemos pensar nelas como sapatilhas. Mas provavelmente é mais que isso. Veremos nos desdobramentos da pesquisa. De cara vê-se que esse adereço modifica a forma do corpo, o volume dos pés não é o natural. A plataforma sugere um pedestal, dá a impressão de o corpo flutuar em cima de algo fixo. Como se costumava representar o corpo nas esculturas clássicas.

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As questões iniciais são: como a percepção do corpo e do movimento se dá pelo uso do adereço? Quais os vocabulários possíveis de movimento nessa condição? A presença cênica é influenciada pelo sapato? E a partir daí sugere-se uma poética. Pois justamente não é na coisa em si que a poética se desenvolve? Nossa poética é um sapato. Blog: http://vitroladarkland.wordpress.com Direção: Júlia Abs e Daniel Augusto Intérpretes-criadoras: Aline Bonamin e Júlia Abs Estilista: Karlla Girotto Arte gráfica: Pablo Romart Assistente da estilista: Alexandre dos Anjos Apoio: Universidade Anhembi Morumbi Agradecimentos: Alejandro Ahmed, Angel e Yanet Duração: 35 min Aline Bonamin, Júlia Abs e Daniel Augusto (SP) são os artistas que atualmente formam a Cia. Vitrola Quântica. Sediada em São Paulo, a companhia desenvolve linguagem autoral em dança contemporânea. As pesquisas são focadas nas relações entre a dança, a moda e o universo underground urbano. A estilista e pesquisadora Karlla Girotto e o artista gráfico Pablo Romart são os artistas convidados para a pesquisa de Darkland.

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interferência gráfica em frame de Pra minha filha


Dani Lima (RJ) PRA MINHA FILHA 30/8/2009

A proposta que foi Este projeto pretende especular sobre uma ideia do feminino articulada a partir de duas referências icônicas: fotos de pin ups e o arquétipo das princesas no imaginário infantil. De um lado, as curvas/torções/distorções/obliquidades envolvendo a bacia, os ombros, a coluna, a cabeça e o olhar, imprimindo certas qualidades ao corpo e ao movimento que identificamos, no senso comum, como “sensual” e “feminino”. De outro lado, o romantismo das princesas e sua eterna espera do príncipe encantado que as salvará de suas desgraças. A construção de uma ideia de feminino calcada na beleza, graça, doçura, fragilidade e passividade. Que subversões podem surgir quando artificializamos alguma coisa que é dada por nós como natural? Como a exploração, o desdobramento e o deslocamento desses conceitos impressos no corpo podem desvendar um sistema de valores socioculturais que embasa nossas percepções e escolhas, estabelecendo regras, papéis e relações de poder? Como novas formas de pensar o feminino podem brotar em brechas abertas nessas construções? A proposta deste projeto é de partilhar esta pesquisa com outros dois criadores que tenham em suas trajetórias artísticas referências fortes sobre o feminino, construindo, assim, uma espécie de mosaico de leituras e interpretações do mesmo assunto, a partir da minha abordagem e do meu corpo. O trabalho se estruturará em quatro etapas: num primeiro momento, vou desenvolver um solo de aproximadamente 15 minutos, partindo destas duas referências de imagens culturalmente construídas do feminino. Num segundo e terceiro momentos eu vou trabalhar com os criadores convidados – João Saldanha e Marcela Levi – para desenvolver dois solos curtos e independentes, ambos nascidos das interpretações e escolhas de cada um desses artistas sobre aspectos de seus interesses no meu solo. O quarto momento será a costura dramatúrgica desses três solos, e suas diretrizes serão pensadas em função do desenvolvimento de cada um dos trabalhos.

30/8/2009

Mia inspiração Hoje é dia 17 de setembro e sinto necessidade de falar mais sobre porquês. Mia, minha filha, tem 3 anos e meio. É minha primeira e muito provavelmente única filha. Tive-a tarde, com 41 anos e com uma consciência aguda e chata do que significa ser mãe, ser mãe de uma menina, ser filha. São muitas as inquietações sobre as heranças que devo/posso/ quero passar adiante, que heranças quero/posso/devo (?) encerrar em mim mesma. Ela é um espelho. Cada vez que a vejo me vejo, me vejo vendo-a e, me vendo, aprendo e compreendo muito sobre mim. É um pouco cafona e lugar-comum falar isso, mas é assim mesmo que sinto. Quando Mia tinha uns 2 anos, começou a ouvir e assistir contos de

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fada. Ficou especialmente ligada nas princesas, fadas e sereias, e começou a imitar seus trejeitos, expressões e falas, e a só querer se vestir como as heroínas das histórias – Branca de Neve, Bela Adormecida, Cinderela, Wendy, Pequena Sereia, Sininho... Nessa época deu pra enxergar muito de pertinho como essas fábulas e filmes (alguns dos anos 40!) incutem já nos pequeninos algumas noções românticas sobre os papéis sexuais e sobre o amor, que carregamos para o resto de nossas vidas. A construção de uma certa ideia de feminino (que me atravessa e que vejo refletida no corpo da minha filha) foi se desvelando. Estão no mesmo saco as princesas, as fadas e as bailarinas, essas figuras cheias de graça e leveza, sempre alçadas ao ar, aos castelos ou cavalos, aos casamentos, esperando seus salvadores, os fortes e corajosos príncipes, que lhes livrarão de suas desgraças. Por uma associação que ainda carece de uma elaboração maior para ser traduzida em palavras, achei que também pertenciam a esse conjunto as pin ups, divas e garotas de calendário. Faltam peças perdidas nesse jogo. E inundam minhas dúvidas sobre a pertinência de mexer com isso hoje, agora, nesse momento do mundo e da minha vida. Será que eu tô fazendo muito barulho por nada? Será que eu posso mudar alguma coisa? Será que eu devo? Será que vale a pena? O que que eu quero com isso? Tentar mudar a história da Mia? Ou a minha? Blog: http://praminhafilha.wordpress.com Idealização do projeto: Dani Lima Coreógrafos convidados: João Saldanha e Marcela Levi Intérprete: Dani Lima Apresentação do processo: Dani Lima, Marcela Levi e João Saldanha Duração: 60 min

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Dani Lima (RJ) é bailarina e coreógrafa. Desde 1997, trabalha com sua companhia, Cia. Dani Lima. Atua no Brasil e participa de residências e festivais internacionais. Mestre em artes cênicas pela UniRio, é professora no curso de dança da UniverCidade. João Saldanha (RJ) atua no cenário da dança brasileira há 33 anos. Desde 1987, tem sua companhia, Atelier de Coreografia. Recebeu diversas premiações e bolsas, entre elas os prêmios APCA, Icatu/Holding e Bolsa Vitae de Artes. Marcela Levi (RJ) é performer e coreógrafa. Desde 2002, desenvolve projetos que se situam na fronteira entre a dança contemporânea e as artes visuais. Colabora, entre outros, com Lia Rodrigues e Vera Mantero e com a artista visual Laura Erber.


Gabriela Duvivier e Michel Groisman (RJ) ÓRGÃO 23/9/2009

O começo Gabriela Duvivier Começou com uma coisa simples: dois infláveis conectados por uma mangueira. Então, introduzimos apenas a quantidade de ar suficiente para encher um dos infláveis, e assim passamos a ter um inflável cheio e outro vazio. Cada um de nós ficou com um dos infláveis, e fomos experimentando nos comunicar passando o ar de um para o outro. Como em uma respiração a dois.

3/10/2009

Equipamentos corpo Michel Groisman Os equipamentos também são corpo. Um corpo com o qual dialogamos, que incorporamos ao nosso. Desenvolvendo os equipamentos, pesquisando os diversos materiais e suas funções, me deparo com as mesmas questões que encontro quando estou me preparando fisicamente: resistência, elasticidade, leveza, beleza, prazer, funcionalidade, síntese etc.

8/10/2009

As válvulas Michel Groisman As válvulas servem para conectar e desconectar as mangueiras nos infláveis. Temos aqui algumas fotos de bonitas válvulas de metal. Utilizamos algumas dessas nos protótipos iniciais (videopiloto). Mas a grande descoberta, visitando um dia a Hidrotec, foram as válvulas elétricas! Válvulas que podemos abrir e fechar por controle remoto. Desse modo é possível controlarmos a passagem de ar. Muito legal, né?

22/10/2009

Sobre as válvulas elétricas Michel Groisman As válvulas elétricas são incríveis! Com elas podemos abrir a passagem de ar somente nos

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momentos em que os infláveis forem pressionados. Mas pra que isso? Uma das questões com as quais temos nos deparado é que os pares de infláveis que estão conectados tendem a ficar ambos meio cheio meio vazios, pois o ar naturalmente se distribui entre eles. Mas com a válvula elétrica... talvez seja possível que um inflável possa estar cheio enquanto o seu par está vazio. Blog: http://enchesvazia.wordpress.com Pesquisa e criação: Gabriela Duvivier e Michel Groisman Intérprete: Gabriela Duvivier Invenção e desenvolvimento dos equipamentos: Michel Groisman Duração: 50 min Gabriela Duvivier e Michel Groisman (RJ) são parceiros de trabalho há anos. Desenvolveram juntos projetos como Sirva-se e Máquina de Desenhar. Para o encontro de ambos, Michel traz sua experiência com equipamentos corporais na produção de uma arte híbrida, enquanto Gabriela traz sua experiência como atriz/dançarina, treinadora de improvisação teatral e professora da Técnica de Alexander.

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interferência gráfica em frame de Órgão


Denise Stutz (RJ) JUSTO UMA IMAGEM 9/9/2009

O texto não ”comenta” a imagem. As imagens não ”ilustram”. Texto e imagem, em seus entrelaçamentos, querem garantir a circulação, a troca destes significantes: o corpo, o rosto, a escrita, e neles o recuo dos signos (Roland Barthes). Fico pensando em dança, em movimento. Imagem e movimento. Dança- imagem. Barthes fala sobre os haicais: No trabalho do haicai, a isenção do sentido se cumpre através de um discurso perfeitamente legível, de modo que o haicai não é, a nossos olhos, nem excêntrico nem familiar: ele parece com tudo e com nada: legível, acreditamos que ele é simples, próximo, conhecido, saboroso, delicado, “poético”, em suma oferecido a todo um jogo de predicados reconfortantes: insignificantes, porém. Ele a nós resiste, perde finalmente os adjetivos que um momento antes lhe discerníamos e entra naquela suspensão do sentido que para nós é a coisa mais estranha, pois torna impossível o exercício mais corrente da nossa fala, que é o comentário.

11/9/2009 As imagens servirão para produzir linguagem. Não se trata de contar e nem mesmo representar, mas de apagar para (re)escrever, de decompor para ver se podemos (re)construir, de rasurar para (re)fazer.

19/9/2009 Ontem foi a primeira vez que abri o meu ensaio e hoje é a primeira vez que abro as minhas anotações pessoais. Escutei de quem assistiu “que diferente do solo antigo”, onde trabalho com a imaginação dentro, neste o imaginário está fora. Adorei!!! Tornar visível o invisível e a questão de onde está o movimento, dentro, fora, antes, depois, agora. Escutar a música pelo movimento, enxergar a imagem pelo movimento, perceber o movimento pela sugestão... O movimento sendo prolongado pelo outro. A dança sendo construída sem estar ali...

24/9/2009 Como movimentar e fazer ouvir o tempo, criar o espaço e ver alguma coisa que não está ali?

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interferência gráfica em frame de Justo uma imagem

Blog: http://denisestutz.wordpress.com Criação, direção e interpretação: Denise Stutz Codireção, concepção de vídeos e VJing: Felipe Ribeiro Colaboração: Alice Ripol Agradecimento: Keller Veiga Músicas: “Sarabande” (J. S. Bach), “Love Me Tender” (Elvis Presley), “Ando Meio Desligado” (Mutantes), “My Bonnie Lies Over The Ocean” (música tradicional celta) Duração: 45 min Denise Stutz (RJ) iniciou seus estudos de dança em Belo Horizonte. Em 1975, com outros dez bailarinos, fundou o Grupo Corpo. Trabalhou com Lia Rodrigues como bailarina, professora e assistente de direção. Em 2003, começou a desenvolver seu trabalho-solo. Estreou Absolutamente Só, no Itaú Cultural, e Estudo para Impressões, em Madri. Fez uma releitura de seus trabalhos em 3 Solos em 1 Tempo.


Carini Pereira, Mickael Ramos, Stéfanie Telles e William Freitas (RS) CONSEQUÊNCIA DO SOM, DANCA CONTEMPORÂNEA A PARTIR DO HIP HOP 28/10/2009

Mudança de [FOCO] Stéfanie Telles Nossa inquietação desde o início permeou a relação corpo/movimentação/música, e para tentar compreender esse processo definimos abordagens que englobassem essa questão e que, possivelmente, poderiam nos guiar em possíveis entendimentos/respostas. Essas abordagens voltaram-se à música hip hop, a percepção do som, a percepção sensorial, as emoções e a relação corpo/cultura. Porém, algumas leituras e discussões posteriores nos fizeram perceber que essa abordagem estava, de certa maneira, equivocada. “De certa maneira” porque, mesmo não alcançando nosso objetivo, nos ajudou a tomar conhecimento e compreender diversos processos os quais também utilizamos. Nosso foco a partir deste momento será o corpo e sua formação. Questão que será primeiramente trabalhada nos quatro corpos que desenvolvem esta pesquisa e, posteriormente, em corpos que se dispuserem a participar de nossos experimentos. A música estará intensamente presente em um segundo plano. Corpo/formação Nossa formação na dança foi pautada pela street dance – os quatro que desenvolvem esta pesquisa. Fomos educados/acostumados a trabalhar a movimentação com o intuito de tornar a música visível, pois é a maior característica dessa dança. Portanto, foram anos e anos desenvolvendo/criando no mesmo formato/entendimento: movimentação versus música. Corpos e sentidos trabalhados e, por consequência, acostumados nesse único intuito. Com o tempo, os lugares por que passamos e as pessoas que conhecemos nos permitiram ter contato com outras técnicas e linguagens, principalmente a dança contemporânea. Esta nos abriu horizontes de inúmeras formas e, aos poucos, nosso trabalho passou a ser influenciado, quase que naturalmente, pela dança contemporânea. Nossos recursos de movimentação e expressão se expandiram e a concepção da dança na

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busca de propósitos diversos e relevantes se tornou presente. Nossa dança se tornou um mix de passado (street dance) e presente (dança contemporânea), configurando-se numa dança distinta e, talvez, não nominável. O que nos faz pensar que é dessa relação que provêm tantos rótulos de “dança estranha”, por ela justamente não se enquadrar em nenhuma das formas já conhecidas. Nossa dança não abdicou ou ignorou o passado que nos formou (quando falamos em passado é exatamente a relação movimentação/música vivenciada por anos na street dance), mas não porque essa relação tenha sido pensada/programada, ela foi carregada naturalmente. A música Quando ela não se faz presente em um ambiente, não impossibilita nossa dança. Pois conseguimos da mesma forma transpor movimentação/expressão/sentimentos/propósitos, talvez porque, de certa forma, o ritmo se instaura na mente. Mas, quando ela se faz presente, somos por completo atravessados por ela, buscamos quase que inconscientemente dançar com ela, através dela, por ela... é indissociável. E é também neste momento que entra esta pesquisa: por que nossos ouvidos são estuprados pela música? Por que não conseguimos ignorá-la para dançar, seja qual dança for? E por que preferimos realizar e configurar a dança contemporânea através dela? O que reconhecemos, encontramos, percebemos neste processo? Quais limites se instauram e o que delimitam esses limites? Enfim... inúmeras questões que se apresentam e que queremos tentar responder. A mudança se encontra no COMO alcançar tais respostas. E para isso faremos um retrocesso a nossa formação, para compreender esse processo desde o seu início. Ao trabalho...

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Blog: http://consequenciadosom.wordpress.com Elenco: Carini Pereira, Mickael Ramos, Stéfanie Telles e William Freitas Colaboração e direção técnica: Diego Mac Participação especial: Eduardo Menezes Cenário e figurino: criação coletiva Duração: 35 min Carini Pereira, Mickael Ramos, Stéfanie Telles e William Freitas (RS) são jovens acadêmicos e bailarinos, com formação fortemente enraizada em street dance. Uniram-se com o propósito de questionar as formas de criação/composição em dança contemporânea, experimentando inúmeras maneiras da relação entre corpo e som.


interferência gráfica em frame de Consequência do som, dança contemporânea a partir do hip hop


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CapĂ­tulo 2

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Filósofo, ensaísta e autor de, entre outros, O Tempo Não Reconciliado e Vida Capital: Ensaios de Biopolítica. Professor do Departamento de Filosofia e da Pós-graduação em Psicologia Clínica da PUC-SP e coordenador da Cia. Teatral Ueinzz.


Peter Pál Pelbart

Indivíduo, potência C

ada indivíduo poderia ser definido por um grau de potência singular e, por conseguinte, por certo poder de afetar e de ser afetado. Deleuze gosta de dar o exemplo do carrapato, que busca o lugar mais alto da árvore, depois se deixa cair quando passa algum mamífero e se enfia debaixo da pele do animal, chupando seu sangue. A luz, o cheiro, o sangue – eis os três elementos que afetam o carrapato. Ele pode ficar um tempo longuíssimo na espera jejuante em meio à floresta imensa e silenciosa, depois ploft, o festim de sangue e, quiçá, a morte. Então, o que é um carrapato? Ora, ele deve ser definido por seus afetos. Como fazer a cartografia de seus afetos? Como mapear “etologicamente” os afetos de uma pessoa? É óbvio que os afetos de que é capaz um burocrata e um dançarino não são os mesmos. O poder de ser afetado de um burocrata, basta ler Kafka para ter uma ideia claríssima. E a capacidade de ser afetado e de afetar de um artista, qual é? Será que a de um dançarino é a mesma que a de um ator? Será que a de um acrobata é a mesma que a do jejuador? De novo Kafka, vejam-se aqueles pequenos contos sobre artistas, “Um Artista da Fome”, por exemplo. Então, somos um grau de potência definido por nosso poder de afetar e de ser afetado, e não sabemos quanto cada um de nós é capaz de afetar e ser afetado, é sempre uma questão de experimentação. Não sabemos ainda o que pode o corpo, diz Espinosa; só o descobriremos ao longo da existência. Ao sabor dos encontros, vamos aprendendo a selecionar o que convém com nosso corpo, o que não convém, o que com ele se compõe, o que tende a decompô-lo, o que aumenta sua força de existir, o que a diminui, o que amplia sua potência de agir, o que a reduz. Vamos aprendendo a selecionar nossos encontros e a compor; é uma

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grande arte essa da composição. Com que elementos, matérias, indivíduos, grupos, ideias, minha potência se compõe, para formar uma potência maior e que resulta numa alegria maior? E, ao contrário, o que tende a diminuir minha potência, meu poder de afetar e de ser afetado, que resulta em tristeza? A tristeza é toda paixão que implica uma diminuição de nossa potência de agir; a alegria, toda paixão que aumenta nossa potência de agir. Isso abre para um problema ético e político importante: por que é que aqueles que detêm o poder fazem questão de nos afetar de tristeza? As paixões tão tristes como necessárias ao exercício do poder. Inspirar paixões tristes – é a relação necessária que impõe o sacerdote, o déspota: inspirar tristeza em seus sujeitos. A tristeza não é algo vago, é a diminuição da potência de agir. Existir é, portanto, variar em nossa potência de agir, entre esses dois polos, essas subidas e descidas, elevações e quedas. Então, como preencher o poder de afetar e ser afetado que nos corresponde? Por exemplo, podemos apenas ser afetados pelas coisas que nos rodeiam, nos encontros que temos ao sabor do acaso, podemos ficar à mercê deles, passivamente, e, portanto, ter apenas paixões. E esses encontros podem apenas ser maus encontros, que nos deem paixões tristes, ódio, inveja, ressentimento, humilhação, e isso diminui nossa força de existir e nos separa de nossa potência de agir. Ora, poucos filósofos combateram tão ardentemente o culto das paixões tristes, mas não por razões morais, e sim por razões, digamos, éticas. O que Espinosa quer dizer é que as paixões não são um problema, elas existem e são inevitáveis, não são boas nem ruins, são necessárias no encontro dos corpos e no encontro das ideias. O que, sim, em certa medida, é evitável são as paixões tristes, que nos escravizam na impotência.

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Deleuze insiste no seguinte: ninguém sabe de antemão de que afetos é capaz, não sabemos ainda o que pode um corpo ou uma alma, é uma questão de experimentação, mas também de prudência. É essa a interpretação etológica de Deleuze: a ética seria um estudo das composições, da composição entre relações, da composição entre poderes. A questão é saber se as relações podem compor-se para formar uma nova relação mais “estendida”, ou se os poderes de afetar e ser afetado podem se compor para constituir um poder mais intenso, uma potência mais intensa. Trata-se então, diz Deleuze, das “sociabilidades e comunidades. Como indivíduos se compõem para formar um indivíduo superior, ao infinito? Como um ser pode tomar um outro no seu mundo, mas conservando ou respeitando as relações e o mundo próprios?”. É uma pergunta crucial, não só para quem trabalha em grupo, mas na vida em geral. Quantas vezes somos capturados do mundo de um outro, figurantes do sonho alheio. Deleuze insiste nas singularidades que se afirmam e nos mundos que essas singularidades criam, nas perspectivas múltiplas que coexistem, como trabalhou Eduardo Viveiros de Castro em âmbito antropológico. Como se pudessem coexistir vários mundos e não fosse preciso reduzir todos a um mesmo mundo nem supor um mesmo mundo. A partir daí, pode-se pensar a constituição de um “corpo” múltiplo, com suas relações específicas de velocidade e de lentidão. Pensar um corpo grupal como essa variação contínua entre seus elementos heterogêneos, como afetação recíproca entre potências singulares, numa certa composição de velocidade e lentidão, talvez seja o mais difícil. E, além disso, como pensar a consistência do “conjunto variegado”? Deleuze e Guattari invocam com frequência um “plano de consistência”, um “plano de composição”, um “plano de imanência”. Num plano de composição, trata-se de acompanhar as conexões variáveis, as relações de velocidade e lentidão, a matéria anônima e impalpável dissolvendo formas e pessoas, estratos e sujeitos, liberando movimentos, extraindo partículas e afetos. É um plano de proliferação, de povoamento e de contágio. Num plano de composição, o que está em jogo é a consistência com a qual ele reúne elementos heterogêneos, disparatados. O que se inscreve num plano de composição são os acontecimentos, as transformações incorporais, as essências nômades, as variações intensivas, os devires, os espaços lisos – é sempre um corpo sem órgãos. Em todo caso, há aqui uma condição que serve para pensar o


plano micropolítico ou macropolítico, a saber: o n-1. Dada uma multiplicidade qualquer, um conjunto de indivíduos, ou singularidades, ou afetos, como produzir esse plano de consistência sem subsumir essa heterogeneidade e uma unidade imperativa? Como se o desafio fosse sempre, numa multiplicidade qualquer que faz um plano de composição esconjurar aquele Um que pretende unificar o conjunto, seja ele um papa, um governante, um diretor, uma ideia, um curador, um afeto predominante, recusar o império do Um. É uma filosofia da diferença, da multiplicidade, da singularidade, o que não significa o caos e, sim a afetação, a composição, uma espécie de construtivismo, em que a regra é excomungar aquele ou aquilo que pretende falar em nome de todos, ou que se crê representante de uma totalidade ou totalização que justamente se trata de impedir, mas que a assedia. Talvez outro modo de tratar o mesmo tema seja por meio da questão do comum, tão importante quando se considera um grupo, uma sociedade, um conjunto humano. Uma constatação trivial é evocada com insistência por vários autores contemporâneos, entre eles Toni Negri, Giorgio Agamben, Paolo Virno, Jean-Luc Nancy ou mesmo Maurice Blanchot, a saber, a de que vivemos hoje uma crise do “comum”. As formas que antes pareciam garantir aos homens um contorno comum e asseguravam alguma consistência ao laço social perderam sua pregnância e entraram definitivamente em colapso, desde a esfera dita pública até os modos de associação consagrados, comunitários, nacionais, ideológicos, partidários, sindicais. Perambulamos em meio a espectros do comum: a mídia, a encenação política, os consensos econômicos consagrados, mas igualmente as recaídas étnicas ou religiosas, a invocação civilizatória calcada no pânico, a militarização da existência para defender a “vida” supostamente “comum”, ou, mais precisamente, para defender uma forma de vida dita “comum”. No entanto, sabemos bem que essa “vida” ou “forma de vida” não é realmente “comum”; que, quando compartilhamos esses consensos, essas guerras, esses pânicos, esses circos políticos, esses modos caducos de agremiação ou mesmo essa linguagem que fala em nosso nome, somos vítimas ou cúmplices de um sequestro. Se de fato há hoje um sequestro do comum, uma expropriação do comum, ou uma manipulação do comum, sob formas consensuais, unitárias, espetacularizadas, totalizadas, transcendentalizadas, é preciso reconhecer que, ao mesmo tempo e paradoxalmente, tais figurações do “comum” começam a aparecer finalmente naquilo que são: puro espectro. Em outro contexto, Deleuze lembra que, a partir sobretudo da Segunda Guerra Mundial, os clichês começaram a aparecer naquilo que são: meros clichês, os clichês da relação, os clichês do amor, os clichês do povo, os clichês da política ou da revolução, os clichês daquilo que nos liga ao mundo – e é quando eles assim, esvaziados de sua pregnância, se revelaram como clichês, isto é, imagens prontas, pré-fabricadas, esquemas reconhecíveis, meros decalques do empírico. Somente então pôde o pensamento liberar-se deles para encontrar aquilo que é “real”, na sua força de afetação, com consequências estéticas e políticas a determinar. É um momento paradoxal esse em que os clichês que filtravam o mundo e que nos determinam o que deve ser pensado, feito, sentido caem em descrédito. Pois eles nos conduziram a um ponto perigoso, em que já não acreditamos mais neles e, portanto, já não acreditamos no mundo, em sua capacidade de nos oferecer possibilidades novas. É um ponto de descrença, já não acreditamos nos possíveis, o possível parece ter se esgotado. Talvez a megamáquina subjetiva contemporânea nos tenha atingido em cheio precisamente nesse domínio, do mundo possível, da possibilidade.. Como se, por mais que nos fossem prometidos outros mundos, todos eles já tivessem sido dados de antemão, como numa prateleira de supermercado, com estoques renováveis, ou variações que têm a função de encobrir precisamente a

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mesmice do que prometem. A possibilidade ela mesma foi como que atingida em seu cerne. No mais das vezes, estamos às voltas precisamente com impossibilidades, com a impossibilidade até mesmo de romper aquilo que se mostra inoperante ou caduco. O mundo vai se fechando, sensações cada vez mais claustrofóbicas, tudo se estreita e é como se rodássemos em jaulas, como animais ferozes se lançando contra as grades para ainda experimentar a própria liberdade, ou se lançando um contra o outro, num corpo a corpo entre feras machucadas, esperneando tanto mais quanto mais se encontram imobilizadas, como animais que não sabem onde é a saída, se ela fica longe do outro a quem se ama e combate, ou justamente no outro, trespassando-o. Deleuze reconhece esse estado de descrença, de niilismo, mas jamais embarcou no discurso pós-moderno, seja de diabolização do mundo, seja de volúpia cínica com a perda do sentido, com o fim das ideologias, das utopias, do social, da metafísica, da própria filosofia ou do cinema. Quando ele fala das artes, numa posição considerada por alguns excessivamente moderna ou caduca, diz a coisa mais simples do mundo, que Nietzsche não cansava de repetir. As artes inventam novas possibilidades de vida, e talvez caiba às artes essa incumbência rara de nos devolver a crença no mundo, neste mundo, neste presente, não crença na sua existência, da qual não duvidamos, mas crença nas possibilidades deste mundo de engendrar novas formas de vida, novos modos de existência.

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Mas é preciso reconectar essa ideia com o contexto contemporâneo e com o problema do comum que evocávamos. Ora, hoje, tanto a percepção do sequestro do comum como a revelação do caráter espectral desse comum transcendentalizado se dão em condições muito específicas, a saber: precisamente num momento em que o comum, e não sua imagem, está apto a aparecer em sua máxima força de afetação, e de maneira imanente, dado o contexto produtivo e biopolítico atual. Trocando em miúdos: diferentemente de algumas décadas atrás, em que o comum era definido mas também vivido como aquele espaço abstrato que conjugava as individualidades e se sobrepunha a elas, seja como espaço público, seja como política, hoje o comum é o espaço produtivo por excelência. O contexto contemporâneo trouxe à tona, de maneira inédita na história, pois em seu núcleo propriamente econômico e biopolítico, a prevalência do “comum”. O trabalho dito imaterial, a produção pós-fordista, o capitalismo cognitivo, todos eles são fruto da emergência do comum: eles todos requisitam faculdades vinculadas ao que nos é mais comum, a saber, a linguagem e seu feixe correlato, a inteligência, os saberes, a cognição, a memória, a imaginação e, por conseguinte, a inventividade comum. Mas também requisitos subjetivos vinculados à linguagem, tais como a capacidade de comunicar, de relacionar-se, de associar, de cooperar, de compartilhar a memória, de forjar novas conexões e fazer proliferar as redes. Nesse contexto de um capitalismo em rede ou conexionista, que alguns até chamam de rizomático, pelo menos idealmente aquilo que é comum é posto para trabalhar em comum. Nem poderia ser diferente, afinal, o que seria uma linguagem privada? O que viria a ser uma conexão solipsista? Que sentido teria um saber exclusivamente autorreferido? Pôr em comum o que é comum, colocar para circular o que já é patrimônio de todos, fazer proliferar o que está em todos e por toda parte, seja isso a linguagem, a vida, a inventividade, mesmo que isso se faça acompanhar pela apropriação do comum, pela expropriação do comum, pela privatização do comum, pela vampirização do comum empreendida pelas diversas empresas, máfias, estados, instituições, com finalidades que o capitalismo não pode dissimular, mesmo em suas versões mais rizomáticas. Se a linguagem, que desde Heráclito era considerada o mais comum, tornou-se hoje o cerne da própria produção, como intelecto geral, como conjunto dos cérebros em cooperação, como intelectualidade de massa, é preciso dizer que o comum contemporâneo é mais amplo


do que a mera linguagem, dado o contexto da sensorialidade alargada, da circulação ininterrupta de fluxos, da sinergia coletiva, da pluralidade afetiva e da subjetividade coletiva daí resultante. Esse comum passa hoje pelo bios social propriamente dito, pelo agenciamento vital, material e imaterial, biofísico e semiótico, que constitui hoje o núcleo da produção econômica mas também da produção de vida comum. Ou seja, é a potência de vida da multidão, no seu misto de inteligência coletiva, de afetação recíproca, de produção de laço, de capacidade de invenção de novos desejos e novas crenças, de novas associações e novas formas de cooperação, como diz Maurizio Lazzarato na esteira de Gabriel Tarde, que é cada vez mais a fonte primordial de riqueza do próprio capitalismo. Por isso mesmo esse comum é o visado pelas capturas e sequestros capitalistas, mas é esse comum igualmente que os extrapola, fugindo por todos os lados e todos os poros. Sendo assim, seríamos tentados a redefinir o comum baseados nesse contexto preciso. Parafraseando Paolo Virno, seria o caso de postular o comum mais como premissa do que como promessa; mais como um reservatório compartilhado, feito de multiplicidade e singularidade, do que como uma unidade atual compartida; mais como uma virtualidade já real do que como uma unidade ideal perdida ou futura. Diríamos que o comum é um reservatório de singularidades em variação contínua, uma matéria anorgânica, um corpo sem órgãos, um ilimitado (apeiron) apto às individuações as mais diversas. Apesar de seu uso um tanto substancializado, em alguns casos o termo “multidão” tenta remeter a tal conceito, na dinâmica que propõe entre o comum e o singular, a multiplicidade e a variação, a potência desmedida e o poder soberano que tenta contê-la, regulá-la ou modulá-la – e talvez um grupo pudesse ser considerado sob a mesma lógica. Lembro apenas que multidão é o oposto da massa. A massa é um conjunto homogêneo, indiferenciado, que vai numa direção única, dirigida por um líder ao qual delega o poder etc. A multidão, conforme o conceito de Negri e Hardt, é heterogênea, pode ir em múltiplas direções, não tem um líder a quem delegaria sua potência, não se deixa representar, nem totalizar, nem subsumir. Como se vê, quando se concebe o comum como um fundo virtual, como vitalidade social pré-individual, como pura heterogeneidade não totalizável, ele nada tem a ver com unidade, medida, soberania, muito menos com as figuras midiáticas, políticas, imperiais que pretendem hipostasiá-lo, representá-lo ou expropriá-lo. Daí porque a resistência hoje passa por um êxodo em relação a essas instâncias que transcendentalizam o comum, e sobretudo pela experimentação imanente desse comum, pelas composições e recomposições que o perfazem, pelas redistribuições de afeto que essas composições e recomposições propiciam, nos mais diversos domínios, e pelos novos possíveis que a partir daí se abrem e se inventam. Como então pensar a comunidade não segundo o modelo inteiriço da fusão, da homogeneidade, da identidade consigo mesma? A comunidade tem por condição precisamente a heterogeneidade, a pluralidade, a distância, o jogo. Contra o desejo fusional que nossa tradição cristã nos legou, contrapõe-se outra visão de comunidade, na contramão de toda nostalgia, de toda metafísica comunial. Tal comunidade seria feita também de interrupção, fragmentação, suspense, feita de seres singulares e seus encontros. Em curso ministrado no Collège de France em 1976-1977, por exemplo, Roland Barthes gira em torno da questão “como viver junto”, e que foi o tema da Bienal de alguns anos atrás. Ele parte daquilo que considera ser seu “fantasma”, mas que, visivelmente, não é apenas um fantasma individual, e sim o de uma geração. Por fantasma Barthes entende a persistência de desejos, o assédio de imagens que insistem num autor, por vezes ao longo de toda uma vida, e que se cristalizam numa palavra. O fantasma que Barthes confessa ser o seu, fantasma de vida,

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de regime, de gênero de vida, é o “viver junto”. Não o viver a dois conjugal, nem o viver em muitos, segundo uma coerção coletivista. Algo como uma “solidão interrompida de maneira regrada”, um “pôr em comum distâncias”, “a utopia de um socialismo das distâncias”, na esteira do “páthos da distância” evocado por Nietzsche. Talvez seja uma comunidade dos sem-comunidade. Inclusive de solitários que desejam outro tipo de comunidade, não comunitarista. Vocês conhecem o conto de Melville “Bartleby, o escriturário”, em que o personagem a tudo responde que “preferiria não”? Deleuze comenta: há nessa atitude o apelo por uma nova comunidade. Não aquela comunidade baseada na hierarquia, no paternalismo, na compaixão, como seu patrão gostaria de lhe oferecer, mas uma sociedade de irmãos, a “comunidade dos celibatários”. A comunidade dos celibatários é a do homem qualquer e de suas singularidades que se cruzam, conforme suas simpatias: nem individualismo, nem comunialismo.

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Talvez uma última palavra, para juntar alguns fios dispersos ao longo desta fala ziguezagueante: é possível que estejamos agora num momento de esgotamento. Não é só que estejamos cansados: estamos esgotados. Em parte talvez também porque várias reações ou categorias que antes funcionavam já não têm mais pregnância, embora persistam. Algo se esvaziou. Nada há de melancólico nessa constatação. É provável que, com isso, tenhamos tocado, sem as mediações e os filtros que antes nos eram propostos, aquilo que Deleuze chamou de uma vida. Não é a vida nua, tal como Agamben a entende, isto é, a redução da vida à sua dimensão biológica por um estado de exceção planetário, mas outra coisa. É o fundo vital, anônimo, essa matéria em variação que já não suporta as determinações e codificações que antes a continham ou representavam. É uma vida, ou uma potência de vida, ou uma biopotência, que não pertence a ninguém porque pertence a todos e a qualquer um. Talvez o pensamento biopolítico tenha a ver com o momento em que essa dimensão se afirma, à revelia de todas as capturas, e nos obriga a repensar tudo. Como fazer valer a potência de vida contra os poderes que se encarregam precisamente de vampirizar a vida? Como fazer valer suas variações, composições, desconexões, velocidades e lentidões, ao arrepio dos múltiplos aparelhos de captura, seja o capital, a mídia, o Estados, as ciências, os mecanismos diversos e anônimos, cada vez mais ondulantes e capilares que tratam de monitorar a vitalidade comum? Como sustentar agenciamentos coletivos não mortíferos, que reinventem a relação entre o comum e o singular, a comunidade e a solidão, o liame e a desconexão, a potência e o esgotamento? E como, a partir daí, deixar que se redesenhe a fronteira entre o que se deseja e o que não se tolera mais? Não é tal mutação da sensibilidade, tal redistribuição dos afetos que pedem os corpos contemporâneos, coletivos ou individuais, virtuais ou atuais? Uma micropolítica da afetibilidade, da sensorialidade, da percepção, um novo desejo de comunidade, a invenção de novos espaços-tempos, outra economia do possível e da alteridade, da força e da fraqueza, do movimento e da interrupção.


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Trechos retirados dos blogs de pesquisa Rumos Itaú Cultural Dança 2009-2010

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interferência gráfica em frame de Fictícios


Projeto DR (SP) FICTÍCIOS 18/9/2009

A proposta Laura Bruno A presente pesquisa é uma proposta de continuidade à problemática central do Projeto DR, que é discutir as relações entre processo e produto artístico. Essa discussão já foi abordada de diversas formas ao longo dos três anos de existência do Projeto. Na primeira fase, a proposta era realizar em espaços públicos ensaios que já eram performances (Discutindo as Relações, contemplado pelo 1º Fomento à Dança 2006, Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo). Em um segundo momento, esse material foi organizado em uma pesquisa e publicado em um site e blog (Cartografia DR, contemplado com o Prêmio Funarte Klauss Vianna 2007). Do resultado dessa pesquisa originaram-se mapas coreográficos que foram executados simultaneamente com mapas sonoros e visuais em espaços de circulação públicos (DR Dança – Música – Artes Visuais, contemplado com o edital de ocupação da Caixa Cultural 2007-2008). Esses mapas coreográficos sofreram a interferência de artistas convidados na mostra Emergência (Itaú Cultural, 2008) e transformaram-se em episódios independentes, porém interligados, em Episódico (I Festival Contemporâneo de Dança de São Paulo 2008, Sesc-SP 2009). Em Ensaio (contemplado pelo 5º Fomento à Dança 2008, Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo), espetáculo em fase de finalização com estreia prevista para novembro de 2009, pretende-se problematizar o formato “espetáculo” enquanto produto, trazendo para a cena situações de ensaio. O processo de criação é o assunto do próprio espetáculo, em uma operação metalinguística que propõe abordá-los – processo e produto – criticamente. Essa abordagem trouxe consigo uma questão: até que ponto é possível mostrar o real em situações de exposição? Percebemos um diálogo entre essa questão e a crescente espetacularização da vida proporcionada pelo universo dos reality shows. Dessa percepção derivou a necessidade de questionar os limites entre realidade e encenação na própria encenação. O andamento dessa etapa já aponta para uma próxima questão: como construímos ficções das nossas realidades? Como as produzimos através dos estados corporais? Como se dá o processo de construção dramatúrgico na dança? Esses questionamentos nos motivam a partir para uma próxima etapa na qual a pesquisa de dramaturgia na dança passa a ser a questão central. Para a realização dessa pesquisa, pretende-se utilizar o universo ficcional de autores como Heiner Müller, Pirandello, Tchekov, Schnitzler para, a partir dele, criar experimentos que o traduzam no corpo. Propõe-se investigar procedimentos que destaquem essa operação, ou seja, a tradução de ficções preexistentes na linguagem da dança. Em Fictícios (contemplado pelo Rumos Itaú Cultural Dança 2009-2010) pretende-se partir da ficção para exercitar outro processo de construção dramatúrgica no corpo, em uma operação aparentemente inversa à que vem sendo feita com o uso da metalinguagem. Busca-se, dessa forma, abordar de outro ponto de vista a relação entre processo e produto artístico, dando continuidade à discussão central do Projeto DR.

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25/1/2010

Justificativas 2 Mara Guerrero Estamos enganchadas na elaboração de situações ficcionais, em possíveis fragmentos de construções dramatúrgicas em dança, estudando e propondo pré-roteiros individuais, ou seja, cada uma de nós está debruçada na tentativa de organizar questões e assuntos em forma de um esboço de roteiro. As referências de universos ficcionais se ampliaram para cinema, teatro, dança, literatura, fotografia, e todas as fontes que nos interessem para a construção dessas pontuais dramaturgias. Dessa forma estamos trabalhando com traduções, versões ou inspirações das referências selecionadas. Continuamos interessadas no processo de pesquisa – processo como produto, entretanto, estamos tentando exercitar um caminho inverso em nossas propostas e olhares sobre a ação. Partimos para os testes de experimentações de estados corporais a partir desses pré-roteiros.

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Blog: http://projetodr.wordpress.com Pesquisa, criação e performance: Laura Bruno, Mara Guerrero, Sheila Arêas e Tarina Quelho Iluminação: André Boll Fotografia: Renato Paschoaleto Consultoria de cinema e roteiro: Karina Ades e Karine Binaux Agradecimentos: Flávia Scheye, Zélia Monteiro, Gabriel Pinheiro, Jiddu Pinheiro, Cristian Duarte, Petterson Costa e Diogo Granato Apoio: B_arco, Sala Crisantempo e Espaço Duração: 60 min O Projeto DR (SP) foi idealizado por Laura Bruno, Mara Guerrero, Sheila Arêas e Tarina Quelho. Existe como tentativa de projeto continuado para discutir as relações, no âmbito da dança, entre processo artístico e produto, formalização, criação colaborativa, formas de produção e difusão. Desenvolve há quatro anos essas questões em diferentes projetos: DR – Discutindo as Relações, Cartografia DR, Projeto DR Interdisciplinar, DR e Convidados, Episódico, Ensaio e Fictícios.

Adriana Banana (MG) ESPACO COMO FLUXOS DE POSSIBILIDADES Projeto Nossa proposta é pensar em forma de dança espaço e espacialidade que seja indicial, POSSÍVEL. Ou seja, espaço que nunca será, que pode ser que seja. A ideia de que o espaço não é fixo, pronto, acabado, uma caixa a ser ocupada, uma “forma” a priori considera que o espaço é construído. Nossa proposta é fazer uma dança que configure e descreva um espaço que não chegue sequer a ser construído, mas possível de ser. Um espaço que apenas indique, que se realize no possível e não no necessário (em lógica necessário é aquilo que é, tem uma deter-


minação; e possível tem o sentido de poder ser, não tem que ter uma determinação). Espaço enquanto ação, dinâmico, irreversível, inacabado, indeterminado, bifurcativo, multivetorial, vago e ambíguo.

Princípios-questões a) Bifurcação: dado um movimento com uma direção (indo para frente do seu corpo, por exemplo), de repente, em algum momento inesperado, esse movimento muda de direção (o movimento que estava à frente vira para a direita). b) Multivetorialidade: fluxos de vetores sendo disparados ao mesmo tempo e com diferentes direções. Essas direções podem ser divergentes e opostas como, por exemplo, uma perna é lançada para a frente e um braço é lançado para trás ao mesmo tempo. c) Vaguidão: algo pode ser mais ou menos (tá sobrando), por exemplo, mais ou menos alto, mais ou menos baixo. A ideia é a de uma indeterminação. d) Ambiguidade: algo é e não é ao mesmo tempo.

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Modelos bifurcantes Bifurca

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interferência gráfica em frame de Espaço como fluxos de possibilidades


27/1/2010

Corpo-cidade e bifurcar Bifurca Helena falou sobre a relação corpo-cidade: o quanto o projeto de espaço e as escalas formatam o olhar, o corpo... Olhar não mais de flaneur (Benjamin e Baudelaire), mas de passagem (Augé)... Corpos não habitantes, praças, aeroportos, quartos de hotel: espaços público-privados globalmente padronizados... experiência movidas pelo hábito do “sem risco”, ”seguro e familiar...” um pensar anestesiado... treinado, automatizado, controlado... Verso-reverso: Aqui o foco é bifurcar, desprogramar, despadronizar continuamente, gerar processos cognitivos, explorar potenciais corpos espaciais dinâmicos. Bifurcação me faz lembrar 6 Passeios pelos Bosques da Ficção (Eco). Há vários tipos de bosques. Mas também há vários tipos de expedicionários: desde os ávidos por cruzar o bosque e encontrar seu fim, quanto os que “se perdem” por atrativos, “abduzidos” por estímulos. Eixos: pesquisa como projeto e processo de construção intencionada e “leitura”: de ideais a empíricas. Blog: http://bifurca.wordpress.com Concepção e direção: Adriana Banana Intérpretes-colaboradores: Tuca Pinheiro, Karina Collaço, Raul Corrêa, Lívia Rangel Colaboração: Daniela Kutschat Hanns Documentação: Tatiana Carvalho Costa Duração: 70 min Adriana Banana (MG) fundou o Clube Ur=H0r em 1997, com a concepção da coreografia Creme. Realizou oito coreografias, entre elas Necessário a Posteriori (feita para a dançarina Jaqueline Gimenes). É cofundadora da Cia. de Dança Burra, na qual participou de sete montagens. Criou o único papel feminino em Bonjour Madame...., de Alain Platel/Les Ballets C. de la B. Recebeu as bolsas Vitae e Apartes (estudou na Trisha Brown Dance Co.) e Rumos Itaú Cultural Dança 2003-2004 e 2009-2010. Daniela Kutschat Hanns (www.danielakutschat.com), nascida em São Paulo, em 1964, é artista plástica e doutora em artes pela ECA/USP (2002). Investiga relações cognitivas corpoespaço e sua integração por meio de sistemas de interfaces humano-computador. Entre outros, desenvolve instalações interativas, ambientes e sistemas adaptativos. Participa de eventos e exposições de arte-tecnologia e também é professora universitária. Participa do Clube ur=HOR desde 2009. Tuca Pinheiro, coreógrafo e dançarino, integrou e trabalhou com Balé Guaíra, Cia. de Dança de Minas Gerais, Grupo 1º Ato, Meia Ponta Cia. de Dança e Grupo Camaleão. He, She or It é o solo que apresentou em 2008 no Sesc Paulista em coprodução com o FID em 2006. Karina Collaço integrou o grupo Cena 11 e Kaiowas. Desde 2008 é colaboradora de Adriana Banana (kronosmaterial). Professora de dança no projeto Arena (prefeitura de Belo Horizonte) e no Espaço Ambiente (BH). Raul Corrêa é graduando em física (UFMG) e tem graduação incompleta em arquitetura e urbanismo na UFMG (2007 a 2009). Foi bolsista de pesquisa do Programa Território Minas, do FID 2009. É dançarino do Grupo Tao. Estudou piano (1993 a 2004) e estuda música informalmente desde então. Seus estudos de dança incluem: dança folclórica, entre 2005

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e 2007, no projeto de extensão do Grupo Sarandeiros, e dança contemporânea, no Coltec/ UFMG (2006 a 2008). Tatiana Carvalho Costa é roteirista e diretora de vídeos. Jornalista com mestrado em comunicação social, estuda linguagem audiovisual com ênfase em jornalismo audiovisual e documentário. É professora em cursos de graduação e pós-graduação lato sensu nas áreas de comunicação e artes, com ênfase em teorias e práticas ligadas ao audiovisual. Algumas premiações e participações em mostras/festivais de vídeo: O Ciclone Lento e Sutil (documentário, 2001), codireção. Produção: UFMG/Guerrilla News Network. Melhor vídeo – Troféu Barroco – na 6ª Mostra de Cinema de Tiradentes (Brasil); melhor vídeo – Troféu Pinhão no Festival dos Festivais – no VII Festival de Cinema, Vídeo e Dcine de Curitiba (Brasil); melhor videodocumentário no 9º Vitória Cine e Vídeo (Brasil); melhor documentário no 2º Projeção – Festival Universitário de Cinema e Vídeo (Brasil); terceiro colocado no Curta-SE – Festival Iberoamericano de Cinema de Sergipe (Brasil). Participação em outras mostras e festivais: Nations, Pollinations and Dislocations: Changing Imaginary Borders in the Américas. Cine Nova – Bruxelas (Bélgica); ArgosFestival – Bruxelas (Bélgica); Spotlight in Brazil – Short Film Festival Worldwide 2003 – Canadian Film Centre (Canadá); Paracine – 1º Festival de Cinema de Parati (Brasil); Fluxus – Festival de Cinema na Internet 2003 (Brasil). Lívia Rangel é dançarina e participou dos seguintes grupos: Meia Ponta Cia. de Dança (MG, 2002 a 2004), Zikzira Physical Theatre (MG/Reino Unido, 2004 a 2007), Cia. de Dança de Minas Gerais (1995 a 1998), Grupo de Dança 1º Ato (1994). Participa do Clube Ur=H0r desde 2007.

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Marta Soares (SP) PROJETO COLETA DE VESTÍGIOS 24/11/2009

O projeto tem como ponto de partida os aspectos monumental e sagrado de um sambaqui, sítio arqueológico pré-histórico localizado na região de Laguna, Santa Catarina, o qual é sobretudo um cemitério e portanto resultado da repetição de cerimônias fúnebres durante mais de mil anos, cerimônias que geraram a acumulação de grandes quantidades de restos faunísticos e de vestígios culturais compondo intrincada camada estratigráfica, e estima-se que 43.480 pessoas estejam sepultadas. Pesquisas recentes demonstram que a exata mensagem emitida por esse sambaqui às pessoas que habitavam o seu entorno, no período da sua construção, foi perdida pela passagem do tempo. Nesse contexto o projeto explorará os aspectos monumental e sagrado desse sambaqui através dos vestígios dos sepultamentos que o compõem e, a partir do conceito de rastro, segundo o filósofo francês Emmanuel Lévinas, entre outros, para quem o rastro é a ausência de uma presença, “aquilo do qual propriamente falando nunca esteve lá, do qual é sempre passado”. O projeto, ao resgatar a nossa memória ancestral pré-colonial, proporá ao público uma reflexão sobre a necessidade atual de trazer à tona no campo das artes e da vida as forças de criação e resistência que operam através do “corpo vibrátil” em um exercício intenso do sensível, em uma relação com o mundo como um campo de forças e não como forma e representação. Forças que foram soterradas no passado pelos regimes colonial e ditatorial, que vivemos e que são [soterradas] hoje pelo sistema capitalista neoliberal mundial. Ele será, portanto, uma


tentativa poética de tornar o invisível sensível, de tornar sensíveis as mensagens emitidas pelo sambaqui perdidas no tempo reconectando-o aos seus aspectos sagrados e simbólicos. O projeto explorará em todos os seus aspectos o conceito de rastro a partir das imersões físicas que venho realizando no sambaqui e que tem como objetivos a investigação da relação do corpo com o ambiente, a captação de imagens em vídeo, a coleta de sons e de vestígios materiais que comporão o espetáculo que terá como característica a intersecção da dança com as artes visuais (vídeo, instalação e performance). Para isso venho pesquisando obras de artistas de “land art” como Ana Mendieta e Robert Smithson e sua teoria de “non site”. Blog: http://coletadevestígios.wordpress.com Concepção, direção e interpretação: Marta Soares Desenho de som: Livio Tragtenberg Desenho de luz: Andre Boll Vídeo: Leandro Lima Câmera: Fernando Mastrocolla de Almeida Assistência: Julia Rocha Duração: 50 min Marta Soares (SP) é dançarina e coreógrafa. Realizou o One Year Course, no Laban Centre, Londres. É bacharel em artes pela State University of New York e possui Certificado em Análise de Movimento pelo Laban/Bartenieff Institute of Movement Studies. Estudou no Movement Research e no Estúdio Susan Klein, entre outros. Mestre em comunicação e semiótica e doutoranda pelo Programa de Psicologia Clínica da PUC-SP. Entre bolsas e prêmios recebidos, estão APCA, 1997, 2000 e 2004; Bolsa para Pesquisa e Criação Artística da John Simon Guggenheim Foundation; e Bolsa para Artistas da Fundação Japão.

Thelma Bonavita (SP) TRANSFORMERS Sobre Este é um blog-caderno ou um caderno-blog, uma via de acesso de mão dupla e pistas, tanto para mim como para outros artistas interessados no universo o qual venho pesquisando e produzindo dentro do projeto Transformers (um dos selecionados pelo Rumos Itaú Cultural Dança 2009-2010), que está em desenvolvimento e será apresentado seu processo de criação em março de 2010. Transformers Essa proposta é decorrente do processo de criação do projeto Desaba e pretende produzir um solo, assim como vias de acesso ao modo de produção em dança deste projeto. O projeto A metáfora Transformers, a princípio, pode ser associada ao desenho japonês, em que carros se transformam em robôs. Pensando nesse mecanismo de “algo que não pertence a uma única forma ou que tem a capacidade de transformação de sua forma”, Transformers, aqui, se define como um conceito genérico sobre o corpo e sua plasticidade adaptativa.

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interferĂŞncia grĂĄfica em frame de Transformers


Princípios 1. Arranhe primeiro, coce depois. 2. Uma peça não é sobre algo, é algo em si. 3. Um estado particular de pensamento é coreografia e produz dança. 4. Não representar ideias, provocar ideias. 5. Cada processo requer uma metodologia, uma dramaturgia, que se definem ao longo do mesmo. 6. O modo como se tomam decisões, durante seu processo, será parte da singularidade do trabalho. 7. Se você não tem uma ferramenta, use a de alguém que ela se tornará sua. Estratégias camuflagem montação descrição e execução (em desevolvimento) aprender algo novo decupagem e reorganizAção das sintaxes (em desenvolvimento) Coleção de citações “Love is giving something one doesn’t want to someone who doesn’t want it” (Jacques Lacan) “Love is Evil” (Slavoj Zizek) “Love isn’t true is something we do” (Madonna) “O fracasso ainda não me subiu à cabeça” (Paulo César Pereio) “Não vim para explicar, vim para confundir” (Chacrinha) Ferramentas de pesquisa Arqueologia do futuro: O que é: Um exercício imaginativo de projeção da peça Como: Descrição de como se imagina essa peça – um roteiro ficcional Entrevista e/ou questionário: O que é: Perguntas feitas a especialistas de interesse da pesquisa, perguntas feitas ao próprio trabalho, troca de perguntas entre colaboradores Como: Exercício de formular perguntas usando diferentes mídias, texto, vídeo, gravação de áudio etc. Glossário: O que é: Cartografia conceitual Como: Organizar um glossário com todas as palavras recorrentes durante o processo e, de tempo em tempo, fazer uma seleção de até três palavras de A a Z Obs.: O mesmo pode ser utilizado com relação às referências e às ações. Fazer uma lista das referências e, de tempo em tempo, selecionar as que permanecem com maior potência durante o processo. Colaboradores: Cristian Duarte, Mutantes na Sala de Jantar (núcleo de estudos de corpo em relação à moda, e vice-versa), Natália Mallo e outros, conforme o desenvolvimento e a necessidade do projeto. Y1: O que a levou a desenvolver este projeto? X1: Logo após o processo de criação da peça Tombo, percebi que não queria parar com algo que ainda estava em total ebulição em mim e que eu relaciono também com as minhas recentes experiências em residência artística, em que fiz muitas “coisas para nada”.

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Y2: Do que se tratava exatamente essa ebulição? E como assim”muitas coisas para nada”? X2: Percebi que estava com muitos pedaços de coisas – experiências e materiais, que de certa maneira fui colecionando durante os períodos de residência e de montagem, como Eletroquímicos, Baby e Tombo, mas que não fizeram parte de nenhum deles e eu precisava colocar isso em estudo para ver quais outras relações e questões deles iriam emergir. Acho que o campo ainda é o mesmo, o estudo da percepção, de como percebemos e como processos artísticos incitam outros modos de perceber ou não. Selecionei então algo que, na verdade, funcionou como uma “boia salva-vidas”, apenas para que pudesse me apoiar e flutuar sobre aquele “mar” de coisas. Y3: E essa “boia salva-vidas” se constituiu exatamente do quê? X3: Ela começou com uma brincadeira, um material físico e divertido do Tombo, o qual chamávamos de transformers e que para mim continha uma ignição e uma inquietação ao fazê-lo. Agora que o projeto andou um tanto, consigo ver melhor do se que tratava essa ignição e o que também ela se tornou. Ao mesmo tempo em que estava questionando a interdependência entre o modo de produzir, isto é, o “como”, com sua materialidade resultante, estava interessada em como “manipulamos” nosso contexto e imaginário e com eles performamos. Como algo de uma natureza se “transformava” em outra. E Transformers foi a brincadeira que encontrei para jogar com esse campo de relações: Nada se cria, tudo se transformers... Na verdade, queria testar nossa natureza adaptativa e plástica, como informação vira corpo. E como corpo vira dança e como todos, público e performers, estão implicados nesse problema.

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Y4:Mas então você desenvolveu o material físico chamado Transformers do espetáculo Tombo? X4: Não, esse nome para mim apenas traduzia esse “comer, manipular, jogar, interagir e transformar constante” do corpo com o ambiente e a interdependência entre o modo de produzir e seu resultado. O material físico, a brincadeira Transformers, ficou mesmo como ignição. E, conforme ia “farejando” as pistas que desse campo surgiam, eu entrava em contato com outros problemas. Y5: E por que esse projeto seria interessante ou apropriado ao Rumos Itaú Cultural Dança? X5: Pensei que isso seria o modo mais interessante de navegar sobre esse mar de coisas, sobre essa ebulição, pois o edital me dava carta branca para mergulhar num processo investigativo sem a pressão de organizá-lo a priori enquanto um produto, tendo espaço necessário para investigar de fato a questão inicial dele. Assim percebi as relações íntimas entre processo e produto, e que muitas das coisas que considerei apenas como processo eram também produto, mas o fato de ter uma bolsa não atrelada à produção de espetáculo promoveu tempo e espaço para um outro tipo de reflexão e que era exatamente o que vinha desejando fazer: focar no “como” produzir e não “no que” produzir. Y6: Quais estratégias você adotou então para testar isso tudo? X6: Isso é muito difícil de descrever, mas vou tentar. No geral o que faço é deixar-me afetar e refletir sobre o que e como algo me afetou. Fico muito atenta ao que pode se relacionar com a problemática da pesquisa. Procuro saber em que área podem existir ecos dessa questão e estudar sua produção. Sou muito obsessiva. Acordo e durmo com o projeto, ele faz parte de cada segundo da minha vida e muito provavelmente as ideias ocorrem quando estou pegando o elevador, lavando louça, ou no meio da noite... Daí vê o trampo de organizá-la enquanto um dispositivo, um experimento ou tarefa para o corpo e assim poder continuar a


conversa de alguma maneira. Também tenho conversas com o meu colaborador e parceiro da plataforma Desaba, o Cristian Duarte, que geram mais outras tantas questões ou tarefas. Y7: E como surgiu a ideia dos agregados? X7: Os agregados foram uma estratégia que adotei para produzir lastro ao mesmo tempo que testar a pertinência e o interesse desse campo. Y8: E eles continuam? X8: De certa maneira sim, mas não presentes no palco. Desenvolvi algumas estratégias para “comer” os agregados. São tarefas as quais eles estão realizando e me devolvendo. Também eles vão me ensinar algo. Mas nem sei se tudo isso vai ser concluído, tenho mais a sensação de que abri um outro campo de experimentações, extremamente fértil e portanto precisaremos de mais tempo. Também estamos desenvolvendo juntos um projeto pelo Fomento que foi decorrente desse nosso encontro no final de 2009: o Arqueologias do Futuro. É um estudo e desenvolvimento de estratégias, tarefas, instruções e roteiros para serem compartilhados com outros artistas ou estudantes de dança e performance. Vamos produzir um catálogo com esse material. Y9: E qual será o produto desse campo de pesquisa? X9: Agora, nesse momento, são vários. Serão roteiros de tempo médio 30 minutos cada, com nomes diferentes: Eu sou uma fruta gogoia, Solaris, agaG ydaL e Là Bas. Mas todos, de certa maneira, têm algum ponto de contato uns com os outros, mas, ao mesmo tempo, autonomia. Bom, isso é até esse momento mesmo, não sei se isso vai se sustentar até dezembro.

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Blog: http://projetotransformers.wordpress.com Proposição da pesquisa: Thelma Bonavita Colaboração: Cristian Duarte Artistas participantes do encontro: transfomers Ana Dupas, Bruno Freire, Clarice Lima, Daniel Fagundes, Julia Rocha e Renato Paschoaleto Fotografia: Renato Paschoaleto Agradecimentos: Regina Johas, Renato Cohen e Rosa Hércoles Duração: 120 min Thelma Bonavita (SP) é bailarina e coreógrafa. Premiada pela APCA em 1995, 1997 e 2009, e pelo Mambembe, em 1989 e 1996. Foi estudante convidada da School for New Dance Development (SNDO), Amsterdã, e uma das fundadoras do estúdio Nova Dança. Atualmente, desenvolve suas atividades por meio da Associação Desaba, criada em parceria com Cristian Duarte.


Eduardo Fukushima (SP) COMO SUPERAR O GRANDE CANSACO Um pouco do projeto

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Pré-título: Como superar o grande cansaço? Este projeto apresenta uma nova etapa da pesquisa de linguagem em dança que venho desenvolvendo há dois anos. Em Canto! (2007) e Entre Contenções (2008), minhas duas criações anteriores, percebo um caminho para minha pesquisa de criação. Meu interesse está na pesquisa de linguagem corporal, busca de vocabulários próprios de movimento, onde questões surgem através do corpo, do movimento, de depoimentos pessoais e a constante pergunta: o que me move a dançar no momento? Em minhas duas criações anteriores, concilio improvisação e coreografia em uma construção artesanal de intenções e gestos, traduzidas em partituras de movimentos. Não se trata de apenas improvisação, mas sim de desenvolvimento de partituras claras de movimentos em tempo real, sendo a coreografia um sistema aberto em relação aos gestos e movimentos que se desenvolvem diferentes a cada momento. Percebo o cansaço como uma questão no meu trabalho. Parto do cansaço que percebo em cada um de nós face aos que vivemos e proponho as considerações de Nietzsche sobre o grande cansaço como ignição para esta pesquisa. Na minha leitura de Nietzsche, o grande cansaço pode aparecer em três níveis: como niilismo total, niilismo passivo ou niilismo ativo. Uma não vontade de ação, uma negação e descrença total perante a vida, a não mais razão de acordar todo dia. No niilismo ativo se busca um sentido, se faz do cansaço vontade de potência. O grande cansaço como vontade de potência será o condutor do processo e a possível transformação dela mesma. A pesquisa tem caráter teórico-prático e será desenvolvida basicamente dentro do ateliê, diariamente. Pretendo contar com uma orientação de um ou dois artistas mais experientes, um músico para possíveis diálogos, gravações de todo o processo para compartilhar o percurso de criação e, por fim, a mostra desse material ao vivo. Interessa-me explorar o que tende a permanecer no ato de dançar diariamente, em termos de intenções, gestos e movimentos, deixando a composição se estabelecer ao longo do processo. Há quatro anos pratico técnicas corporais orientais como chi kung, seitai-ho, buscando um fortalecimento do centro do meu corpo, para fazer dessa região o ponto de partida do movimento; uso essas técnicas aliadas à minha formação de bailarino para a pesquisa. Não busco na minha atual pesquisa interfaces de vídeos, cenografia, objetos. O que quero investigar é o corpo como meio de comunicação na sua crueza. Esta pesquisa está em andamento interno desde novembro de 2008.


O blog – intenção Eduardo Fukushima Nunca tive a intenção de ter um blog e fazer um blog não faz parte de minha pesquisa em dança de fato. Este faz parte do programa Rumos Itaú Cultural Dança 2009-2010: os contemplados têm que ter seus blogs para compartilhar suas pesquisas. Resolvi abrir o coração! Ao começar a escrever (postar), percebo que pode ser um exercício importante de entender um pouco mais o que ando fazendo. Meus escritos aqui são tentativas de compartilhar esse processo de criação. O compartilhamento de fato acontece através do movimento no momento presente. O movimento é, por si, um poço de subjetividades; a pesquisa em si, minha busca. Não pretendo tornar a pesquisa objetiva e sim escrever sobre ela o mais livremente possível. Mais um desafio. Compartilhar gravações do trabalho em estúdio. Compartilhar o processo coreográfico. Dentro desse compartilhamento, primeiramente postarei em forma de diário escritos póstrabalho em estúdio, para futuramente fazer uma organização. Postarei também as principais referências que permearão a pesquisa.

20/12/2009

Pequeno balanço da pesquisa até hoje Eduardo Fukushima Este trabalho começou no final do ano de 2008, teve três pontos de partida importantes: as aulas de Laboratório de Criação, as aulas de filosofia, em que estudávamos Platão e Nietzsche (ambas aulas dentro do curso de comunicação das artes do corpo, PUC) e minha rotina de trabalho na época era: trabalhava pelo menos uma vez, duas por semana, Nessa rotina foram aparecendo movimentos no chão em diálogo com uma música composta pelo músico Henrique Iwao. No primeiro semestre de 2009 continuei com essa pesquisa, conseguindo chegar a um pré-sentido e um pré-título. Resolvi mandar para o Rumos Itaú Cultural Dança 2009-2010 essa nova etapa. Agora, nesse segundo semestre dentro do Rumos, vejo como está sendo importante poder me dedicar mais ao trabalho e descobrir um pouco mais como que se dá o meu processo de pesquisa. Convidei Key Sawao para uma orientação, um acompanhamento do trabalho em estúdio, e o músico Felipe Ribeiro para o diálogo músical. Ando percebendo que meus trabalhos demandam processos longos no tempo; o trabalho é com calma. Até o corpo pegar, achar sentidos e executar com clareza, demora (o tempo do corpo é lento, exige calma, persistência e escuta). Meu caminho não é da representação e sim do exercício de a cada dia dançar o momento presente, seja o que for, e assim construindo sentidos, através da concentração na execução de movimentos que partem da sensação. Com o tempo, vou percebendo o que tende a permanecer naturalmente de gestos e intenções, esses que me interessam. Chamo minha primeira etapa dessa pesquisa de coleta de gestos, em que danço livremente com a intenção do dia, e vou selecionando os gestos que permanecem e que me geram sentido ao executar e observar (através de gravações dos improvisos). Ao me inscrever no Rumos, já tinha achado um pequeno sentido no corpo, um ponto de partida, mas nada muito desenvolvido, necessitava de desenvolvimento e aprofundamento.

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O Rumos está servindo para o desenvolvimento e aprofundamento desse pequeno sentido. Recomecei com a ideia de começar com essa intenção-sentido que construí no corpo, mas me livrar das formas já feitas, para abrir o leque de possibilidades; na prática vi que não tinha como me livrar dessas formas e sim aprofundá-las. Vejo que foi uma boa estratégia, pois seis meses é muito pouco tempo para recomeçar tudo de novo. Hoje me encontro na segunda fase da pesquisa, em que coletei muitos gestos, tenho uma coleção de gestos no meu corpo que me fazem sentido e a cada dia organizo-os diferentemente, respeitando meu estado do dia presente, e assim a dramaturgia vai se constituindo. Sobre a orientação: convidei Key Sawao (diretora junto com o Ricardo Iazzetta da KeyZetta e Cia.) para essa orientação. Além de admirar o modo como ela trabalha, é uma pessoa que vem me acompanhando artisticamente desde o começo; observo um olhar refinado e aberto que não está para me dirigir e sim dialogar abertamente com o que estou fazendo. Nossas conversas me dão força para continuar e tarefas para os próximos ensaios. Sobre a música, convidei o compositor e músico Felipe Ribeiro, chegamos a um primeiro teste musical. A partir desse primeiro teste, pretendo aprofundar esta composição. Sobre a dramaturgia, o que observo até aqui: Diferentemente do meu trabalho anterior (Entre Contenções) que possui uma dramaturgia com começo, desenvolvimento e fim (conclusão), uma dramaturgia linear, neste, a intenção dramatúrgica até aqui é de não chegar a um final (conclusão) e sim apenas a um estado corporal que começa, se desenvolve e permanece no desenvolvimento e não se resolve. Sobre o blog: o blog vejo hoje em dia como um trabalho paralelo à pesquisa, importante para dar uma organizada nas ideias, mas não fundamental para o desenvolvimento da pesquisa e sim mais uma ferramenta. Comecei achando que ia usá-lo como diário, iria postar o dia a dia do trabalho e no fim organizar tudo, e percebi que é inviável: ou me dedico à pesquisa ou me dedico à manutenção ferrada do blog. Sobre algumas referências que postei no blog, são mais escritos e imagens que dialogam e me inspiram em relação à pesquisa. Após esse final de ano, retomo com maior atenção a dramaturgia e como apresentar esse material para o público em março. Não vou me focar em organizar um espetáculo e sim me concentrar em como mostrar esse material, respeitando a ferro e fogo o sentido que construí ao longo do percurso de pesquisa. Até agora a pergunta “como superar o grande cansaço?” é o que me faz continuar a dançar e minha dança não é a resposta dessa pergunta.

15/10/2009

Eduardo Fukushima No improviso meus braços se acabam. Quero chegar a esse cansaço como um oposto de um corpo cansado, uma luta no corpo no chão, como se essa luta fosse a causa do cansaço, a não entrega, o expurgo do cansaço. Ao contrário do cansaço, o corpo potente, indo nos seus instintos, desesperos e alívios. Bem árdua essa parada. Percebo algumas células de movimentos que aparecem e continuam, umas por escolhas, outras não, essas me fazem sentido após o fazer e assistir... célula 1: movimento da perna que desde o começo aparece. célula 2: balanço com o tronco, um corpo que não aguenta, mas continua porque está vivo. célula 3: espasmos com o cotovelo, queda ombro, queda cabeça e desistência. célula 4: o empurrar o chão, o corpo que quer sair do chão e desiste, sede.


célula 5: batidas com o braço no tronco, como se fosse uma automutilação, a dor. Não quero cair no dramático, mas não tenho como fugir no momento. Não quero dancar à toa, mas no momento não tenho como fugir, preciso dançar muito à toa, para conseguir chegar a uma razão. Dançar por uma razão, ou sem nenhuma razão. Escolhas...

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interferência gráfica em frame de Como superar o grande cansaço


Blog: http://fukushima.wordpress.com Direção, pesquisa de linguagem e apresentação: Eduardo Fukushima Orientação da pesquisa: Key Sawao Criação sonora: Felipe Ribeiro e Eduardo Fukushima, inspirada em improviso de Henrique Iwao, Mário Del Nunzio e Jean-Pierre Carón Colaboração na iluminação: Juliana Augusta Vieira Fotografia: Inês Correa Espaço: Comunicação das Artes do Corpo da PUC-SP Agradecimentos: Beth Fukushima, Key Sawao, Ricardo Iazzetta, F?, Inês Correa e Juju, Helena Katz, Ana Catarina Vieira e Ângelo Madureira, Julia Rocha, Daniel Fagundes, Nina Wiziack, Ligia Passos, Rubia Braga, Luana Minari, Hideki Matsuka e Ana Elisa Carramaschi e Comunicação das Artes do Corpo da PUC-SP Duração: 25 min Eduardo Fukushima (SP) iniciou-se nas áreas de criação, dança e performance com os diretores e bailarinos Key Sawao e Ricardo Iazzetta, em 2005. Desenvolve pesquisas individuais. Criou os trabalhos Canto! e Entre Contenções. Trabalhou com Célia Gouvêa, Luis Fernando Bongiovanni e Miyako Kato. Atualmente é bailarino da Cia. Ângelo Madureira e Ana Catarina Vieira e está cursando o quarto ano do curso de comunicação das artes do corpo.

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interferência gráfica em frame de Piranha: dramaturgia da migração


Wagner Schwartz (MG) PIRANHA: DRAMATURGIA DA MIGRACÃO Projeto Peixe carnívoro de água doce característico dos rios da América do Sul. Na época das chuvas, na bacia amazônica ou em rios do Pantanal, as águas chegam a invadir quilômetros de terra formando centenas de lagoas e pequenos lagos sazonais em que ficam aprisionadas muitas espécies de peixes, inclusive a piranha. Com o decorrer do tempo, as águas desses lagos ficam escassas e a disputa de espaço e alimento se torna questão de sobrevivência. Nessas condições, as piranhas ficam demasiadamente agressivas, fazendo jus à fama que lhes tem sido atribuída. Sua genealogia é do tupi-guarani e é discutível: Pirá = peixe + anhá = diabo (peixe diabo) Pirá + anhá = dente (peixe dente) Pirá + ãi = tesoura (peixe tesoura) As tribos do Xingu utilizam os dentes de piranha no preparo de flecha, no corte de cabelo e dos fios de buriti. Para isso os índios preparam a mandíbula da piranha de meia-idade, pois essa tem os dentes mais afiados. Sua carne, apesar de possuir muitos espinhos, não é de má qualidade. Existe, ainda, a crença de que a sopa feita com piranhas é um alimento afrodisíaco. Prólogo Exercícios da palavra Falar do que eu vejo ou do que o outro me fala. Exercícios superiores: Falar do que não é visível, do que unicamente pode ser falado: – E se não há espaço o suficiente para a atração, meu amor, É porque ela se foi. Ela também flutua. O que só pode ser falado e não é visível? Fulano disse: há a morte. Beltrano disse: há o amor. Sicrano disse: há a preguiça. O que pode ser falado é o limite da palavra: o silêncio. Tomar por objeto os próprios limites.

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Exercícios da visão Ver o que poderia ser visto, ou de algo que alguém viu. Exercícios superiores: Ver o que unicamente pode ser visto. – As cores concordam no escuro. O que não pode ser visto do ponto de vista empírico da visão: A luz. A luz é indizível. Só a vejo quando ela se encontra com algo. A luz pura não é vista. A palavra só encontra o sujeito superior quando ela se reencontra com algo. A palavra pura não é entendida. A visão encontra seu objeto superior no que não pode ser visto: – Não me pergunte o que eu vim fazer aqui. Essa pergunta é muito difícil. E se há ainda alguma novidade nesse espetáculo, É a minha vontade de ficar. As perguntas ainda são minhas, meu amor, e se forem tuas também, O mundo vai me parecer ainda mais assustador.

Blog: http://www.wagnerschwartz.com Concepção: Wagner Schwartz Objetos dramatúrgicos: Maurício Leonard Produção e difusão: Núcleo Corpo Rastreado e Gabriela Gonçalves Agradecimentos: Bruno Freire, Danislau Também, Eduardo Bernardt, Fabrícia Martins, Fernanda Bevilaqua, Iara Magalhães, Lourdinha Barbosa, Maíra Spanghero, Nicole Aun, Porcas Borboletas, Sheila Ribeiro (Dona Orpheline) e Transobjeto Coletivo Duração: 60 min Wagner Schwartz (MG) é coreógrafo nascido em Volta Redonda (RJ). Trabalha com dança contemporânea problematizando as relações artísticas e seu percurso. É criador do Transobjeto Coletivo, forma de atuar performaticamente ligada à ideia de biografia e espaço subjetivo. Atua na direção artística do festival Olhares sobre o Corpo, com Fernanda Bevilaqua, e colabora com o coreógrafo Rachid Ouramdane.


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CapĂ­tulo 3


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Professora do Departamento de Linguagens do Corpo da PUC-SP, onde coordena o Centro de Estudos Orientais. Dirige a coleção Leituras do Corpo, da Annablume Editora. É autora dos livros O Corpo em Crise (2010) e O Corpo (2005), entre outros livros e artigos publicados no Brasil e no exterior.


Christine Greiner

Indagações sobre o que pode (ser) um processo A

pós as apresentações da Mostra de Processos Rumos Itaú Cultural Dança 2009-2010, em março de 2010, grande parte do público sentiu-se inquieta com uma dúvida que pairou durante todo o evento: afinal, como se faz a apresentação de um processo de pesquisa em dança? Diante da diversidade de experiências apresentadas na mostra, ficou claro que não existe um formato único e que, pela própria falta de prática de todos, há muito a ser esclarecido. A maioria absoluta dos eventos que programam dança em nosso país ainda está pautada pelo modelo “mostra de espetáculos”. Assim, há dificuldades para lidar com o novo formato, tanto da parte institucional como da parte dos artistas e do público. Como não houve nenhuma “fórmula” sugerida a priori, cada artista decidiu, por si mesmo, como fazer sua apresentação, e muitos optaram por mostrar seus supostos processos de criação já configurados como espetáculos. Em alguns casos, o argumento que justificou essa escolha foi o de que, para testar as hipóteses que gostariam de desenvolver, o projeto pedia uma formatação assemelhada à de um espetáculo propriamente dito (com palco, iluminação etc.). Esses artistas compreenderam que o termo “processo” poderia ser traduzido como uma etapa anterior à finalização do espetáculo e isso gerou uma primeira inquietação. Sendo a dança contemporânea, ela mesma, de natureza processual, seria afinal o próprio espetáculo sempre um processo, assim como todas as suas “versões” preliminares?

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Em outros casos, a noção de processo confundiu-se com a de projeto e os trabalhos foram apresentados como uma proposição inicial a ser desenvolvida. Esses artistas optaram por mostrar imagens ou fragmentos iniciais de movimentos e conversaram sobre o material que pretendiam elaborar nos próximos passos da pesquisa. Além dessas duas alternativas de apresentação, alguns selecionados acabaram demonstrando grande inexperiência em relação ao que significa fazer uma pesquisa, apresentando espetáculos como sempre fizeram antes, sem se preocupar com o projeto inicial, o processo de investigação e a formulação corporal das questões propostas. O que me parece mais interessante neste momento pós-evento não é atribuir um juízo de valor sobre eventuais acertos ou erros, mas aproveitar a oportunidade para refletir sobre a natureza do que seja uma pesquisa e aquilo que se vem chamando de “processo”. Para começar, pode ser um bom exercício deixar de lado a noção de “etapas”, ou seja, daquilo que acontece sequencialmente, seguindo a lógica do progresso ou da história tradicionalmente definida como uma coisa depois da outra. Processos de pesquisa não são, afinal, radicalmente distintos dos modos de ser de outros fenômenos vivos. São complexos e imprevisíveis.

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Como explica o etólogo e geneticista Richard Dawkins (2009), o pesquisador, sobretudo aquele interessado em contar uma história, é sempre tentado a vasculhar o passado à procura de padrões que se repetem e explicam o que acontece agora. Mas esse “apetite por padrões” afronta outro entendimento: o de que a história não vai a lugar nenhum e não segue necessariamente regras ou padrões já dados. Há também aqueles pesquisadores que se afeiçoam à “soberba do presente”. Acham que o passado tem sempre por objetivo o tempo atual, como se quem já tivesse vivido a história não encontrasse nada mais a fazer senão prenunciar-nos. Mas seria adequado, ao pensar em processo, admitir que o passado atua sempre em função da produção de um presente específico? Quando retrocedemos na história da evolução, não importa de onde partimos, terminamos celebrando a vida. Mas quando avançamos, explica Dawkins, exaltamos sempre a diversidade. Isso funciona em pequenas e grandes escalas temporais. Assim, se na história da espécie humana o DNA é nossa principal relíquia renovada (um registro escrito e recopiado), na história da cultura é provável que a possibilidade de renovação e de diversidade esteja na gênese do pensamento: o movimento1. Nesse caso, a dança tem muito a contribuir com a construção do conhecimento humano. Antes de retomar a questão específica da apresentação de processos de pesquisa em dança, gostaria de pontuar algumas definições formuladas em outros campos que podem auxiliar no desdobramento da discussão. 1

É importante notar que, ao relacionar pensamento e movimento, não estou me referindo necessa-

riamente a deslocamentos, mas ao movimento interno como acionamento do sistema sensório-motor que, por sua vez, aciona o pensamento. Autores com obras traduzidas para o português, como António Damásio, George Lakoff e Mark Johnson (ver GREINER, 2005), assim como os brasileiros Miguel Nicolelis e Sidarta Ribeiro, do Instituto Internacional de Neurociência de Natal, têm trabalhado com essa hipótese.


Processo como ação De modo geral, processo tem sido definido no campo científico como acontecimentos unidos por redes de relações. Uma teoria centrada em processos está, portanto, em contínua mutação, embora mantenha sempre alguma estabilidade que a torne reconhecível como parte de um mesmo projeto. Quando as ciências naturais se tornaram ciências de processos e, mais especificamente, de processos sem retorno (irreversíveis e irremediáveis), a capacidade humana responsável por isso não foi nenhuma capacidade teórica de contemplação ou de razão absoluta, mas a faculdade humana de agir e de iniciar processos sem precedentes, com resultado incerto e imprevisível. Portanto, o conceito central das ciências da era moderna, tanto da ciência natural quanto da histórica, foi o próprio conceito de processo e por isso esse termo passou a ser cada vez mais citado. A experiência humana real em que esse conceito se baseia é a ação. Sempre foi. Em outras palavras, se podemos conceber a história e a natureza como sistemas de processos, é porque somos capazes de agir e de iniciar nossos próprios processos. No caso específico da dança (e da dança no Brasil), parece cada vez mais importante refletir sobre processo como ação. Tanto na dança moderna como no teatro, entre o fim do século XIX e o começo do XX, foi amplamente aceita a definição de ação como um movimento intencional e com significado. Pesquisadores como Jaques-Dalcroze, François Delsarte, Constantin Stanislavski e Rudolf Laban, entre outros, foram responsáveis em grande parte por algumas das mais importantes definições do que seria uma ação física, a expressão de um gesto, o significado de um movimento, a consciência corporal, e assim por diante. No entanto, estudos recentes sobre a percepção (NOË, 2004) mostraram que boa parte dos movimentos não intencionais, não conscientes e aparentemente insignificantes é, no fim das contas, fundamental para organizar nossas ações no mundo. O que diferencia essa constatação daquelas formuladas pelos artistas citados é que esses movimentos e habilidades deixaram de ser considerados importantes não porque antecedem ou preparam as ações, mas porque já são, eles mesmos, ações cognitivas. Todos os fenômenos culturais, assim como todas as organizações do vivo, são fluidos e móveis. Em grande parte, isso decorre do fato de ser o corpo a primeira mídia da cultura e da vida. Em uma obra-prima escrita originalmente em 1972 e traduzida para o português em 1992, o médico e biólogo Henri Atlan redigiu um dos ensaios mais desconcertantes sobre a organização do vivo, nomeando-o Entre o Cristal e a Fumaça. Nesse texto, explicou que todo processo transita entre dois extremos: uma ordem repetitiva, perfeitamente simétrica, cujos modelos físicos mais clássicos são os cristais, e uma variedade infinitamente complexa e imprevisível, como as formas evanescentes da fumaça. Essas discussões apontavam para a importância do reconhecimento de diferentes níveis de descrição. Em um nível muito básico (do micro), tudo é processo: no corpo, na vida e na arte. A natureza processual pode ser reconhecida, nesse sentido, mesmo quando o sistema está temporariamente estabilizado (como espetáculo, por exemplo). Isso porque, mesmo nessas circunstâncias do supostamente“pronto”, há sempre uma taxa de inacabamento e descontinuidade.

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No entanto, o processo entendido como ação e, sobretudo, como ação política pede por outros níveis de descrição que complexificam o fenômeno da vida em seus modos macroscópicos de organização. O próprio livro de Atlan é um bom exemplo. Muitos leitores que pertenceram à geração que esteve nos campos de concentração sentiram-se perturbados com o título da sua obra. Isso porque, entre eles, a referência mais imediata da noite de cristal e da noite de fumaça remetia às noites sem dormir nos campos de extermínio, que representavam situações (e emoções) absolutamente antagônicas aos modos de organização do vivo discutidos por Atlan. Apesar dessas ressalvas, Atlan manteve o título da obra, apostando na efervescência criativa que marca o cruzamento de diferentes níveis de descrição de um fenômeno, quando nos dispomos a estudá-lo e apresentá-lo em sua complexidade.

O que ainda precisa ser discutido As fórmulas acadêmicas tradicionais que ensinam como fazer um projeto e as definições do que seja um processo pedem uma revisão urgente quando colocadas lado a lado com as definições propostas por outras áreas de conhecimento e por experiências que resistem em se encaixar nos modelos conhecidos. Não se trata apenas de criar novas regras e vocabulários, mas de uma mudança mais profunda para desestabilizar algumas dualidades assentadas no tempo: teoria e prática, sujeito e corpo, arte e ciência, natureza e cultura.

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Pode ser o momento propício para mudar algumas formulações que aos poucos foram se esvaziando. Por exemplo, é bem provável que não existam na maioria das pesquisas corporais “objetos de estudo” e sim “princípios organizativos”. As “hipóteses” tendem a ser muito mais inquietações do que afirmações. Mas isso não significa que tudo seja vago e indefinido. As inquietações são a ignição para a formulação de uma questão. Há chaves conectivas que precisam ser reconhecidas quando um criador decide propor um projeto. Este não está apartado do processo nem tampouco de seu “resultado”. Não são etapas, mas modos de organização que se complexificam na medida em que são criadas novas conexões. Não há uma ordem sequencial. A inquietação ganha visibilidade no corpo quando se configura como ação e se torna, inevitavelmente, política. Se isso não acontece, o movimento corre o risco de enclausurar-se, tornando-se intraduzível e padecendo daquilo que, em outro momento, nomeei como anorexia da ação comunicativa (GREINER, 2005), que seria a perda de apetite para o conhecimento. Durante séculos discutiu-se o fazer artístico como uma atividade concebida em um universo próprio, essencial, fechado em si mesmo. Mas como sustentar essa visão de arte ainda hoje? Michel Foucault (1976) foi um dos pensadores que observaram como, nos limiares da Idade Moderna, a vida natural começou a ser incluída nos mecanismos do poder estatal e a política se transformou em uma biopolítica, sem deixar nada ou ninguém para fora desse sistema. Segundo Foucault, durante milênios o homem foi considerado um animal vivente capaz de uma existência política, mas, na Idade Moderna, se transformou em um animal em cuja política estava em questão sua vida de ser vivente. Isso trouxe uma ambiguidade perversa: a possibilidade de proteger a vida por meio das estratégias políticas e, ao mesmo tempo, a autorização para seu extermínio. Assim, por um lado, o biopoder qualificava a vida dos seres viventes, mas, por outro, construía os corpos dóceis dos quais necessitava. O poder moderno passou a ser compreendido como o poder sobre a vida, exercendo um controle sobre todos os passos da vida e regulando, sobretudo, o comportamento corporal.


A dança não escapou a esse modo de organização que passou a impregnar todo e qualquer processo de criação. Resta compreender como esse controle pode ser identificado nas experiências contemporâneas e de que modo a escolha (deliberada e política) pela natureza processual da criação pode fazer alguma diferença. Existe uma relacionalidade primária com o entorno que está presente diante de toda possibilidade de ação corporal2. Ao contrário do que se imaginou durante muitos anos, não se “aplica” o conhecimento sensório-motor à experiência (a teoria na prática). Ele é testado, o tempo todo, como experiência. A experiência perceptual é um modo de exploração do mundo. Suas habilidades necessárias são, ao mesmo tempo, sensório-motoras e conceituais. Na filosofia, a ideia de conceito (chave mestra das teorias) sempre envolveu articulação, corte e superposição. É apenas sob essa condição que se pode sair do caos mental. Em O que É Filosofia (DELEUZE; GUATTARI, 1992, p. 33), “o conceito diz o acontecimento, não a essência ou a coisa”. É, portanto, o acontecimento de outrem ou o acontecimento do rosto quando este é tomado como conceito. O pássaro, explicam os autores, também pode ser um acontecimento. O conceito define-se pela “inseparabilidade de um número finito de componentes heterogêneos percorridos por um ponto em sobrevoo absoluto, à velocidade infinita”. Por isso, o conceito filosófico não se refere ao vivido por compensação, “mas consiste em erigir um acontecimento que sobrevoe todo o vivido, bem como qualquer estado de coisas. Cada conceito corta o acontecimento e o recorta à sua maneira” (op. cit., p. 47). Nesse viés, haveria três planos reconhecíveis e tão irredutíveis quanto seus elementos: o plano de imanência da filosofia, o plano de composição da arte e o plano de referência da ciência, identificados, respectivamente, como forma de conceito, força de sensação e função de conhecimento. Os problemas de interferência entre esses planos, segundo os autores, juntarse-iam no cérebro (op. cit., p. 277), compondo uma rede dinâmica. Assim, o conhecimento não seria uma forma ou uma força, mas uma função. Estudando percepção como cognição com base em Alva Noë, tornou-se possível afirmar que todos os planos estão juntos também, desde o início no corpo todo. A relação com o mundo via pensamento/experiência não difere em tipo, mas em grau. O grau mais primitivo (que dá início ao processo) não é definido como qualidades sensórias ou intensidades, mas já como um entendimento sensório-motor. A habilidade para pensar sobre o mundo seria também (e de modo indiscernível) nossa habilidade para experienciá-lo. Nesse viés, a experiência é uma aptidão implementada em ação que traduz as diferentes conexões entre um organismo e seu entorno, que, por sua vez, não se configuram como instâncias separadas (dentro e fora), mas, sim, como sistemas que coevoluem. Pensar nos processos de pesquisa em dança com base nessas conexões pode ser um bom começo para evitar a pressão que nos direciona o tempo todo para as armadilhas da despolitização e da subserviência dos processos de criação. Não existem salva-vidas e os manuais de instrução continuam ineficientes. Mas as pistas estão o tempo todo por aí...

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Há mais de dez anos eu e Helena Katz temos desenvolvido juntas na PUC-SP o que chamamos de

Teoria Corpomídia, que estuda exatamente essas conexões coevolutivas entre corpo e ambiente.

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Referências bibliográficas ATLAN, Henri. Entre o cristal e a fumaça. Ensaio sobre a organização do ser vivo. Tradução Vera Ribeiro, revisão técnica Henrique Lins de Barros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1992. DAWKINS, Richard. A grande história da evolução. Tradução Laura Teixeira Motta. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O que é filosofia? Tradução Bento Prado Jr. e Alberto Alonso Muñoz. São Paulo: Editora 34, 1992. _____. Milles plateaux. Paris: Les Éditions de Minuit, 1980. FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. História da violência nas prisões. Tradução Ligia Ponde Vassallo. Petrópolis: Vozes, 1976. GREINER, Christine. O corpo: pistas para estudos indisciplinares. São Paulo: Annablume, 2005. NOË, Alva. Action in perception. Cambridge: MIT Press, 2004.


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Professora titular do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Semiótica da PUC-SP. Coordena o grupo de pesquisa Processos de Criação. Escreveu, entre outros, Redes de Criação – Construção da Obra de Arte.


Cecilia Almeida Salles

Blogs como registros de processos de criação As reflexões sobre a quarta edição do programa Rumos Itaú Cultural Dança (2009-2010) que serão aqui apresentadas têm como ponto de ancoragem as discussões sobre a criação artística, que venho chamando de crítica de processo. Uma abordagem para a obra de arte que partiu do estudo de uma grande diversidade de documentos de percursos criativos (anotações, diários, filmagens, blogs, bibliotecas etc.), de diferentes manifestações artísticas. Trata-se de uma documentação que se configura como registros pessoais, feitos por necessidades diversas. O propósito que direciona essas pesquisas é a compreensão do modo como se desenvolvem as construções de obras de arte. Na relação entre os registros e a obra mostrada publicamente, encontramos um pensamento em processo. Pretende-se assim, com as reflexões que esses documentos proporcionam, oferecer outra maneira de se aproximar da arte, ao incorporar seu movimento construtivo. A crítica de processo propõe uma discussão das obras como objetos móveis e inacabados, o que difere significativamente dos estudos sobre os fenômenos artísticos, que discutem produtos considerados finalizados ou acabados. Uma abordagem cultural em diálogo com interrogações contemporâneas (BIASI, 1993), que encontra eco nas ciências que discutem verdades inseridas em seus processos de busca e, portanto, não absolutas e finais. É nesse contexto que se pode estabelecer diálogo com Christophe Wavelet, quando ele afirmou, em uma das mesas de debate da Mostra Rumos Dança, que a noção de processo pertence ao mesmo tempo às artes, às ciências e à economia.

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O fato de esse conceito não ser restrito ao âmbito da arte, a meu ver, é uma das razões para levar essas discussões adiante, pois, ao adotar a perspectiva processual, as obras artísticas são tiradas do ambiente restrito da crítica de cada manifestação artística, passando a dialogar com processos científicos, naturais e sociais, sem, no entanto, deixar de lado as especificidades desses processos. Essa questão ficou bastante clara em uma das mesas do evento, Redes da Criação (Itaú Cultural, 2008), com o artista visual Dimitre Lima, que lida com a arte gerativa, e o biólogo, estudioso de Charles Darwin, Nélio Bizzo. Houve, assim, a possibilidade de observarmos muitas semelhanças entre a gênese das formas da natureza e as do objeto artístico. No estabelecimento de relação entre pesquisas que enfocam as especificidades do processo de criação de determinado artista ou grupo de artistas, chegou-se a alguns procedimentos de natureza geral: instrumentos teóricos que possibilitam discutir o processo de criação como rede em construção e assim encontrar, de modo mais preciso, as especificidades dos processos estudados. De modo bastante resumido, a criação como rede em construção pode ser descrita como um processo contínuo de interconexões instáveis, gerando nós de interação cuja variabilidade obedece a alguns princípios direcionadores. Essas interconexões envolvem a relação do artista com seu espaço e seu tempo, questões relativas à memória, à percepção, aos recursos criativos, assim como os diferentes modos como se organizam as tramas do pensamento em criação (ver blog Redes de Criação, disponível em: http://www.redesdecriacao.org.br).

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As reflexões teóricas que trazem a perspectiva processual para a arte ultrapassam, no entanto, os ditos bastidores da criação. Muitas das características da arte em geral e daquela produzida nas últimas décadas, de modo especial, necessitam de um olhar que seja capaz de abarcar o movimento, dado que leituras de objetos estáticos não se mostram satisfatórias ou eficientes. Acredito que essas discussões se tornaram fundamentais para pensarmos certas questões contemporâneas, como, por exemplo, as complexas relações entre obra e processo. Vejo a proposta do Rumos Itaú Cultural Dança inserida nesse contexto. Falarei dessas relações a seguir, mas é importante ressaltar que, ao mesmo tempo em que as reflexões teóricas sobre processo de criação avançam, esse debate é banalizado por muitos. Daí a necessidade de pensar criticamente sobre o que cada artista, grupo de artistas ou até editais querem dizer quando usam o termo processo, como uma adjetivação ou uma espécie de gênero, que se materializa em afirmações como “o que eu faço é processo”. Há o uso desse termo, também trivializado, que justifica aquilo que ainda não está pronto: “não há problema porque tudo é processo mesmo, não é?”. Claro que essa postura está longe de uma teorização mais elaborada sobre o inacabamento, que é intrínseco ao conceito de processo contínuo. A perspectiva processual olha para todos os objetos artísticos, nosso foco de interesse aqui, como inacabados, ou seja, como uma possível versão daquilo que pode vir a ser ainda modificado. É nesse contexto que são relativizadas as noções de conclusão e de origem. Os ditos “pontos iniciais e finais” das obras são em rede, ou seja, referem-se a diferentes momentos a eles interconectados. Deixando de lado esses dois usos superficiais do conceito de processo, que envolvem algumas discussões sobre a arte, devemos ressaltar que todos os objetos artísticos são resultado de um percurso de construção. Há sempre um processo de criação. Em termos conceituais, criação é sempre processo, em contraposição à visão da criação como um revelador e inexpli-


cável insight sem história. Nesse contexto, não dá para quantificar: não há projetos artísticos ou obras que sejam “mais processo” do que outros. Mais adiante, veremos, sob outro ângulo, a complexidade que envolve essa questão. Ainda nessas reflexões iniciais, no caso da dança (como das outras artes do tempo), modificações de um espetáculo para outro são inevitáveis, pelos simples fato de ser outro dia. Isso acontece mesmo quando se trata de espetáculos inseridos em projetos que envolvem ensaios para evitar erros futuros, nos quais se pratica para que as apresentações sejam o mais próximo possível daquilo que foi planejado. Discutir as relações entre processo e obra com base no conceito de criação como rede em construção coloca-nos diante da impossibilidade teórica de segmentar processo e obra. Ao observarmos a criação sob a perspectiva da continuidade, ou seja, “em construção”, estamos diante do inacabamento, intrínseco ao conceito de processo. O objeto dito acabado pertence a um processo inacabado; em outras palavras, a obra entregue ao público, como um momento do processo, é simultaneamente gerada e geradora. É impossível falar em processos separados de obras, na medida em que elas são parte do processo. Isso nos leva a pensar na complexa relação, agora no campo da ação artística, entre obras e processos. Há algumas obras que tomam alguns aspectos do percurso criador como seu tema. O cinema oferece alguns exemplos, como A Noite Americana, de Truffaut, e 8 ½, de Fellini, entre tantos outros. Picasso, por sua vez, fez duas gravuras de um poema em processo de construção, incluindo correções expressas plasticamente pela rasura. Algumas obras ou momentos artísticos dão destaque a certos aspectos que envolvem todos os processos de criação. Um exemplo bastante claro é o acaso: a presença do imprevisto, ao longo do percurso, é inevitável. No entanto, alguns artistas o tomam como uma espécie de método, como no trabalho, fartamente estudado, de John Cage e Merce Cunnigham. Não me deterei nessas relações entre obra e processo, para discutir outras duas que serão importantes para compreendermos a proposta do Rumos Itaú Cultural Dança. Há os casos nos quais o processo de criação se torna o objeto mostrado publicamente (a obra), como a instalação, comentada por Jean-Claude Bernardet (2003, p. 11). O cineasta português Pedro Costa expôs parte do processo de produção do filme No Quarto de Wanda, ou seja, tornou os copiões públicos. Outra obra estimulante para esse debate é a palestra-espetáculo de Jérôme Bel (Itaú Cultural, 2005). Segundo o artista, sua obra Le Dernier Spetacle, que reflete sobre questões polêmicas como autoria, copyright e falsas identidades, teve sucesso de crítica, rendeu teses, mas nunca teve boa aceitação de plateia. Quando ele foi convidado para reapresentá-la, optou por reproduzi-la sob esse novo formato, para ser mais bem compreendido pelo público. Essas intenções, no caso de Bel, não podem ser entendidas sem a ironia e o humor de seu espetáculo. Sem a possibilidade de definir com precisão o que estamos vendo, o que vemos é o coreógrafo, sentado a uma mesa, fazendo uma palestra após permanentes consultas a um laptop. Tomamos conhecimento, assim, de seus diálogos, buscas, hesitações e certezas. Havia ainda a tradutora fazendo intervenções a cada pausa do palestrante. Assistimos também a trechos do vídeo do espetáculo projetados, quando solicitado por Bel. Há ainda suas performances

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à guisa de uma espécie de detalhamento de algumas explicações. Como essa “palestra” fazia parte do espetáculo Mix, era algumas vezes interrompida, em momentos aparentemente predefinidos, pela performance Shirtology. Ao final, saímos com a impressão de que assistimos, entre muitas outras coisas, ao relato do processo de criação de seu “mal-compreendido” Le Dernier Spetacle. Ainda nesse campo, há as obras efêmeras, em suas mais diversas manifestações, que tendem a valorizar seus documentos dos processos de elaboração e de execução (desenhos, anotações etc.), assim como a fazer registros audiovisuais (fotos, vídeos, sites etc.) das apresentações. O que resta é a memória da obra preservada nesses documentos. Todas essas obras mencionadas têm em comum a característica de tornar o processo obra; diferenciam-se, no entanto, pelos modos de transformação dos percursos de construção em obras.

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Há ainda objetos artísticos que são, por natureza, processuais: obras que são formas que se transformam. Nesses casos, a obra é processo. É claro que as obras em mídias digitais têm esse potencial processual em sua intensa agilidade, ou seja, sua propensão para a rápida e constante metamorfose, “no tempo que levamos para beber um gole de café” (JOHNSON, 2005). São obras que tendem a acontecer na constante mobilidade das formas. Os limites entre obra e processo desaparecem a partir de determinado momento, embora haja um percurso anterior de construção do site, por exemplo, que deixa seus documentos privados específicos. Se tomarmos obra como aquilo que é exposto publicamente, ela acontece exatamente nas conexões, que se renovam a cada atualização. A obra não está só em cada uma das versões, mas também na relação que é estabelecida entre essas diferentes versões. Esse fenômeno acontece também em outros suportes. Tivemos um exemplo interessante no evento Redes da Criação (Itaú Cultural, 2008): o trabalho desenvolvido, ao longo de todo o evento, por Paulo Almeida, cujo projeto artístico se sustenta pela lógica do palimpsesto. Essa proposta de uma “pintura dinâmica”, como ele próprio define, foi assim apresentada no catálogo: “Durante o período do evento o público tem a oportunidade de acompanhar um trabalho artístico em que o próprio processo é a obra em constante transformação, que ocorre num projeto conceitual onde as mídias se confundem – pintura, instalação e performance [...] o processo de produção da obra não se esgota em uma tela”. Projetos como esse dialogam com os trabalhos dos DJs e dos VJs. Quanto ao Rumos Itaú Cultural Dança 2009-2010, que tem foco no “desenvolvimento de pesquisa coreográfica em dança contemporânea”, privilegiava ”o que move a pesquisa e como esta se desenvolve”. O que parecia estar em jogo, quando se dizia que ao final seria feita uma “mostra de processos”, era que os grupos desenvolvessem uma pesquisa ao longo de quase sete meses e o que seria tornado público seria esse percurso, de algo que poderia ou não vir a ser mais desenvolvido no futuro. O pedido parecia poder ser resumido da seguinte forma: mostre-nos onde vocês estão no momento. Não havia, assim, a expectativa da apresentação de um espetáculo, mas de uma pesquisa. Não sendo a preparação de um espetáculo, a proposta afastava-se do ambiente de ensaios para apresentações públicas, assim como de ensaios abertos. Sob a perspectiva das relações entre obra e processo, essa seria outra possibilidade de tornar o processo público. Essa proposta de pesquisa se evidenciou ao incentivar o registro dos percursos em blogs, que se concretizariam como o espaço no qual a pesquisa se desenvolveria.


A meu ver, havia uma especificidade nessa proposta: em meio à complexidade que envolve as redes de criação, o que estava sendo valorizado era a pesquisa. Sabe-se que há pesquisas em todos os processos, que aparecem sob diferentes formas, como veremos mais adiante. O que estava sendo estimulado, nesse caso específico, eram pesquisas relativas ao corpo. Minha participação no projeto concentrou-se no acompanhamento dos blogs e na apresentação dos resultados das observações, que passo a relatar. Parto de algumas observações gerais sobre o uso feito desse espaço virtual pelos grupos. É interessante observar que alguns se apropriaram dos blogs explorando suas possibilidades visuais ou plásticas. A frequência de postagem foi variada, indo desde o não uso até o acesso contínuo, com muitos registros de reflexões e experimentações. Algumas dessas anotações, que dizem respeito à própria manutenção do blog, trazem à tona questões relativas à pesquisa, que passo a discutir. Para alguns, passar a fazer registros significava uma mudança de posicionamento discursivo, ou seja, a ocupação de um novo lugar no processo. Alimentar o blog era visto como um meio de organizar as ideias, mas também como algo paralelo à pesquisa. Isso fica claro quando um deles afirma que o blog era mais uma ferramenta para a pesquisa, mas não fundamental, daí colocar como uma escolha: se dedicaria à pesquisa ou à manutenção do blog. Isso leva levanta dois aspectos relevantes para nossa discussão: o significado de pesquisa e a necessidade de registro. Pode-se perceber que, para muitos, a ação de pesquisar estava diretamente relacionada à materialidade do corpo. Ao mesmo tempo, foi dado destaque às dificuldades sentidas de produzir documentos de processos de criação que, provavelmente, até ali muitos não tinham hábito de fazer, e ainda torná-los públicos. Vale lembrar que há uma grande diversidade de pesquisas que podem acontecer ao longo dos percursos, e não se pode também afirmar que, porque não foi registrado, não houve a pesquisa. Tendo o objetivo do Rumos Itaú Cultural Dança em mente, foi observado que surgiram muitas palavras nesse contexto, como experimentação, processo, investigação, além, claro, de pesquisa. Embora os artistas tenham usado esses termos sem preocupação teórica, considero interessante discuti-los para, assim, podermos nos aprofundar na conceituação de processo de criação que está sendo aqui proposta. Esses termos dizem respeito a importantes questões que envolvem a criação artística e estão inter-relacionadas. A criação envolve um processo, como já foi discutido anteriormente, que se dá ao longo do tempo. Esse percurso pode ser visto como um processo de conhecimento em diversos níveis: percebendo o mundo, explorando a matéria-prima, apreendendo técnicas, compreendendo a obra em construção, conhecendo a si mesmo etc. O artista, quando sente necessidade, sai em busca de informações. Nesse caso, poderia se falar em um modo consciente de obtenção de conhecimento, que está relacionado à pesquisa de toda ordem. A experimentação, por sua vez, diz respeito à testagem de hipóteses artísticas, em que diferentes possibilidades de obra convivem ao mesmo tempo. É o ambiente das salas de ensaio. Já quando se fala na criação como investigação, está sendo dada ênfase ao fato de que esse percurso é a busca de algo. Uma aventura em direção àquilo que está por ser encontrado.

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Todas essas propriedades da criação precisam ser pensadas no contexto de que é um processo com tendências, ou seja, rumos vagos que orientam o processo de construção das obras, no ambiente de incerteza e imprecisão, que geram trabalho. As tendências do percurso podem ser observadas como atratores da ação. Nesse espaço de tendências vagas, está o projeto poético do artista, que são princípios direcionadores, de natureza ética e estética, presentes nas práticas criadoras, relacionados à produção de uma obra específica e que atam a obra daquele criador como um todo. Conhecemos alguns desses princípios de Marcos Klann, por exemplo, quando ele escreve em seu blog: “Tenho horror à ideia de que possam entender meu trabalho enquanto uma mensagem sobre a morte, coisas do tipo aceitem a morte, não busquem a eternidade. Isso reduz a potencialidade de qualquer trabalho. Sinta o que você sente e não tente decifrar” (blog O que Antecede a Morte). Observei que alguns blogs registravam algumas dificuldades, ao longo do processo, no que diz respeito à relação da pesquisa com aquilo que buscavam. Em alguns casos, a pesquisa parecia divorciada da busca, tanto que, por mais que a pesquisa avançasse, não levava à diminuição da vagueza das tendências. Há somente alguns casos de registro de encontro de foco, no caso de projetos com muito pouca definição no início. Pode ser que alguns tenham enfrentado obstáculos ao ser incentivados a colocar a própria pesquisa como propósito.

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Foram observadas algumas outras ações recorrentes nos posts dos blogs, que nos levam a outros aspectos da criação artística, mas também à pesquisa. Há uma grande quantidade de registros de leituras, ou seja, pesquisa bibliográfica em linguagens diversas: fotos, vídeos, trechos de livros etc. Assistimos, assim, à utilização do blog, por esses artistas, para colocar seus projetos em interação com outros, inserindo-se, muitas vezes, na tradição não só da dança como da arte em geral. Com o passar do tempo, surge, em muitos casos, uma questão interessante: a dificuldade de as leituras gerarem ação no corpo. O desafio parecia ser como o corpo absorveria a abstração dos conceitos. Trago aqui só um exemplo, entre muitos: “Ando bem ocupada em ‘como’ processamos as informações e formulamos outras ‘sintaxes’”, anota Thelma Bonavita (blog Transformers). Muitos estabelecem uma relação do projeto que estava sendo desenvolvido com trabalhos anteriores. Isso deixa clara a relevância para o artista de olhar para trás, como forma de reencontrar significados perdidos, ressignificar aquilo que passou, assim como colocar o projeto novo na continuidade do processo do indivíduo ou do grupo. Houve também muitos relatos de experimentações no corpo, que passam por traduções ao ser verbalizadas ou registradas em suportes audiovisuais, que, a meu ver, são registros de pesquisa. Vemos fotos e vídeos de “salas de experimento”. Parece ser importante filmar ou fotografar para ver o que o corpo está fazendo, e as anotações verbais, por sua vez, levam a reflexões sobre a relação do coreógrafo e/ou bailarino com sua matéria-prima, ou seja, com o corpo. Há alguns registros que colocam em discussão a relação entre processo e obra, que estava em jogo na proposta do Rumos Itaú Cultural Dança 2009-2010, sob diferentes pontos de vista: necessidade de manutenção do interesse tanto no processo de pesquisa como no processo como produto; a constatação de que a apresentação é um passo importante para a pesquisa; e a dificuldade de compartilhar e de falar sobre um processo de pesquisa.


“Como é que se pode mostrar um processo se a pessoa não tava aqui vivendo esse processo todo? Então a gente faz o que, a gente faz um histórico? A gente faz uma invenção? A gente pode mentir, ninguém tava aqui”, escreve Dani Lima (blog Pra Minha Filha). Um grupo menciona a leitura dos outros blogs, ao falar da identificação com a dificuldade de tornar o processo de criação público. Sob esse prisma, é interessante ainda observar que os blogs tiveram raros comentários de leitores, embora essa seja uma característica comum a blogs culturais, que não lidam com assuntos polêmicos. Indagam também como viabilizar o acesso ou compartilhar seu processo de criação. É nesse ambiente que Bernardo Stumpf anota: “Até lá, muita discussão sobre o fechamento das ideias, bem como sobre o que representa entrar em performance para demonstrar um processo investigativo, privando-se da espetacularização que pode vir anexada em qualquer abordagem cênica, na comunicação artística” (blog Dinâmicas do Corpo Urbano, que passou a ser chamado de Jimmy, the Jungle Beast). Diante dessas reflexões, pode-se dizer que os blogs permitiram flagrar duas questões importantes que envolvem a pesquisa no processo de criação. Destaco primeiro a necessidade de pensar que há diferentes possibilidades de pesquisa e, por isso, maneiras diversas de ser compreendida. Isso torna muito difícil uma previsão daquilo que vai ser entendido como tal e, mais ainda, como vai ser registrado e mostrado publicamente. Falar que a ênfase é a pesquisa é, assim, oferecer um vasto campo de possibilidade para os artistas. Ao mesmo tempo, é necessário pensar que a pesquisa é parte de uma rede complexa de conexões, responsável pelo desenvolvimento do processo criativo. Discutir a criação como rede em construção é, basicamente, se ver diante de um paradigma, ligado a um pensamento das relações (PARENTE, 2004). A densidade da rede está estreitamente ligada à multiplicidade das relações que a mantêm. No caso do processo de construção de uma obra, podemos falar que, ao longo desse percurso, a rede ganha complexidade à medida que novas relações vão sendo estabelecidas. Como consequência, não se pode pensar em pesquisas de modo isolado, mas abrir espaço para discutir as relações por elas deflagradas.

Referências bibliográficas BERNARDET, Jean-Claude. O processo como obra. São Paulo. Folha de S.Paulo, Caderno Mais!, 13 jul. 2003. BIASI, Pierre-Marc. L’horizon génétique. In: HAY, L. (Org.). Les manuscrits des écrivains. Paris: Hachette/CNRS, 1993. JOHNSON, Steven. Cabeças de silício. Folha de S.Paulo, Caderno Mais!, 13 dez. 2005. p. 10. PARENTE, André. Enredando o pensamento: redes de transformação e subjetividade. In: PARENTE, A. (Org.) Tramas da rede. Porto Alegre: Sulina, 2004.

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Trechos retirados dos blogs de pesquisa Rumos Itaú Cultural Dança 2009-2010

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interferĂŞncia grĂĄfica em frame de Jimmy the jungle beast


Bernardo Stumpf (RJ) JIMMY THE JUNGLE BEAST 2/2/2010

Retomando o movimento No dia 1º de fevereiro, dei início à etapa – possivelmente – mais fisicalista da pesquisa. O período de colaboração com a artista Cândida Monte, que acontecerá até o dia 17 do referente mês, acredito eu, será marcado por uma profunda discussão da posição em que me encontro nesse processo, como pensador e como movimentador. Em uma conversa informal com Cândida, discutimos um pouco sobre algumas coisas que ainda não foram expressas no blog ou nos experimentos já realizados. Duas perguntas de grande pertinência podem guiar os comentários que se seguem. Quando foi que eu abandonei o movimento? Por quê? É interessante, para mim, pensar nessa pesquisa como minha primeira abordagem sobre o que representa essa colisão existente nas minhas investigações de movimento e conceitos. Acredito que eu goste de entender que não abandonei o movimento, mas me desviei do caminho da experimentação por improvisação, estimulação tátil etc. para me reencontrar com o movimento, em um momento avançado da pesquisa, sem a superficialidade da pura representação, através de uma gama de técnicas e possibilidades de construção mecânica. As “Dinâmicas do Corpo Urbano”, mesmo como título, tornaram-se, nos primeiros meses de investigação, uma questão tão importante quanto as decisões tomadas acerca das leituras, práticas e discussões adotadas no processo. No mesmo instante em que esse rótulo passou a ter sua validade e efetividade discutidos, durante o desenvolvimento dos experimentos, a utilização do movimento, em si, também entrou em xeque. Senti que não poderia propor uma discussão apropriada sobre a já citada relação entre o conceito de corpo e mentalidade urbana pós-moderna – até o presente momento, o principal foco do projeto – sem questionar todas as suas ramificações, inclusive o simples fato de utilizar-me do movimento da dança (tradicionalmente conhecido) como ferramenta de comunicação, bem como o próprio nome da pesquisa, que já não tem valor, senão como parte da ironia presente no processo (o nome do projeto é péssimo, seu release não vai muito longe disso, mas, talvez por isso, ambos devam ser mantidos nessa contraposição proposta para o movimento; em um futuro próximo, numa suposta fase criativa do projeto, essas questões deverão ser repensadas). Essa relação do movimento com a questão do “corpo urbano” deveria ser questionada em proporções semelhantes às teorias socioculturais, políticas, antropológicas etc. utilizadas como base de estudos.

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Após o “período de hibernação”, quando as informações puderam ser avaliadas de forma mais calculada, eu retorno às atividades práticas com uma abordagem diferente sobre o uso do movimento de dança, no questionamento do “corpo urbano” e suas aparências. No primeiro contato entre mim e Cândida, demonstrei os experimentos já realizados, expus as ideias contidas nos novos experimentos e conversamos bastante sobre os caminhos aos quais essas proposições levariam o contexto da pesquisa. Traçamos diretrizes para realizarmos algumas adaptações, modificações, junções, elaborações e alguns verbos a mais que couberam nessa conversa. Basicamente, vamos focar no seguimento da questão das “aparências corporais” e abriremos algumas novas portas que foram “selecionadas” no início da pesquisa, tais como as monstruosidades do corpo social, o tempo e o espaço no corpo urbano e, visando à Mostra de Processos Rumos Dança que será realizada na primeira quinzena de março, definiremos parâmetros de demonstração. No dia 6 de fevereiro, realizaremos uma segunda Conferência, com a participação de artistas e público convidados. Nesse encontro, buscaremos expor o ambiente de nova transição em que o projeto se encontra – apesar do pouco tempo restante até a Mostra de Processos em São Paulo – nesse “retorno ao movimento”, analisando as correspondências dessa retomada fisicalista com os conceitos investigados durante os cinco primeiros meses de pesquisa.

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Este é o momento no qual daremos “segundos passos” em experimentos passados, como Street Fighter 2, que apenas fora citado no blog, após uma breve experiência como Interferência Pública, em dezembro de 2009, bem como “primeiros passos” em ideias formuladas no início do processo que não haviam sido experimentadas ainda. Novas leituras guiam o encontro colaborativo. Uma delas é o website do projeto Opus Corpus, de Stéphane Malysse.

9/2/2010

Dinâmicas do corpo urbano... O quê?!?! (parte 2) O primeiro post inserido no blog da pesquisa foi intitulado dessa forma: “Dinâmicas do Corpo Urbano... O quê?!?!”. Uma primeira questão acerca do que pretendíamos com essa investigação do que chamamos de “relação entre corpo e mentalidade do homem urbano”. Apesar de a pesquisa ter caminhado por lugares interessantíssimos, uma pergunta ainda se mantinha presente o tempo todo, intensificando-se a cada pequena etapa do processo: “O quê?!?!”. Mas não “o que estamos investigando” ou “o que eu procuro”, “o que sei lá o que”. Depois de algumas semanas de trabalho, a pergunta que realmente iniciou as mudanças de caminho da pesquisa foi: “O que esse ‘Dinâmicas do Corpo Urbano’ está fazendo aí?!?!”. A partir desse momento, a gente começa a falar de coisas que ocorreram já há algum tempo, no processo. Em outubro de 2009, o post “Qual é o seu discurso?” propunha uma ideia de como os discursos (tudo é um discurso, qualquer ação, tudo são performances) criam imaginários hiper-


reais. Essa pergunta, logicamente, foi feita também para mim e eu tive que investigá-la. Qual seria o meu discurso? Qual a minha ação que vai propor a minha hiper-realidade (ou não)? Que tipo de relação imagética eu quero estabelecer? É isso que eu quero? Esse foi o primeiro momento em que questionei o título da pesquisa, porém, ainda sem dar muita atenção à questão. As “Dinâmicas do Corpo Urbano” começaram a ser tratadas como uma espécie de metáfora para o foco que se instalava na pesquisa. Estaríamos falando de uma espécie de “A caoticidade urbana e a imagem”. E foi seguindo essa posição que propusemos o experimento da camisa (tela branca). Esse experimento foi importante, no sentido de abrir discussões sobre as projeções imagéticas que lançamos a partir da ideia de um corpo propaganda (de uma forma geral). Mas, de fato e, de certa forma, tratávamos de [um] corpo específico. Talvez, naquele momento, buscássemos discutir metáforas acerca de ideias gerais desse “corpo urbano”. Mas não estivávamos representando um ideal de corpo. Talvez tivéssemos um corpo específico, representando uma série de ideais relacionados à sua própria aparência e posição sociocultural (ainda tenho problemas com essas afirmações). Mais uma vez perguntei-me: o que isso tem a ver com esse tal de “Dinâmicas do Corpo Urbano”? Esse título passou a funcionar como ferramenta de incômodo. O nome já me incomodava. Não era esse título que completava as questões da pesquisa. Não era mais DCU. O discurso era outro. Mas eu não sabia o que era. Então levei DCU à frente como uma ironia de mim mesmo. Na segunda quinzena do mês de novembro, percebi que talvez estivesse “levando a sério demais” – no sentido de estar abraçando muitas causas conceituais e me privando de certas questões possivelmente mais apropriadas e efetivas, em uma esfera mais centrada e simplificada dessas investigações – essa questão de “corpo urbano” quando, em casa, bebendo cerveja e jogando videogame com os amigos, me deparei com o que seria um caminho bem interessante a seguir, de acordo com as questões que eu queria propor. Conferência #1, Street Fighter 2, viagem aos EUA. Pouca coisa foi falada sobre esses momentos da pesquisa; o período de hibernação talvez se explique no sentido de que eu precisava dar tempo para essas informações se localizarem no processo. Quando retornei ao Brasil, a caminho de Curitiba, tive dificuldades em me posicionar no retorno às atividades da pesquisa. As questões abertas no início do mês de dezembro (Michael Jackson, Ken x Blanka) me faziam pensar sobre o que seria essa pesquisa. Não poderia mais manter essa ideia de estudo do comportamento, a questão do “corpo urbano”: isso é tudo amplo demais; precisava me focar, focar mesmo. O foco foi alcançado. Isso não é indicação de acerto, êxito. Foco. Apenas foco. Realizei alguns encontros de colaboração com a Cândida, discutimos muito, ela propôs muito, pensamos, testamos e promovemos um encontro com alguns artistas em Curitiba (Conferência #2 – Mostra de Processo). Nesse momento, eu já vinha buscando uma confirmação para os caminhos os quais intencionava trilhar, a partir do experimento “Ken x Blanka”. Curiosamente, algumas escolhas – não habituais durante o processo – tomadas no momento da conferência serviram como ótimos pontos de partida para problematizações que me fizeram optar por realmente assumir as mudanças sofridas no ambiente

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da pesquisa. Agradeço a todos os que estiveram presentes nesse importante momento para as minhas investigações. Incluo: Airton Rodrigues, Angelo Luz, Cândida Monte, Gustavo Bittencourt, Jorge Alencar, Juliana Brungera, Neto Machado, Ricardo Marinelli, Wellington Guitti. Dentre outras discussões que desenvolvemos no encontro, a questão “Dinâmicas do Corpo Urbano” foi novamente problematizada. Na minha cabeça existia um nome: JIMMY. Esse era um título em potencial para mim, de acordo com os experimentos partidos do Street Fighter 2. Todos os participantes do encontro se envolveram bastante com as questões abordadas a partir desse experimento (o último, antes do período de hibernação) e chegamos a propor algumas ideias, em grupo. Em resumo, após esse encontro, percebi que era realmente o momento de definir novas diretrizes e rumos para a pesquisa. Muita informação foi acumulada, combinada, aplicada, eliminada. Balanços foram feitos, experimentos discutidos, questões colocadas. Dinâmicas do Corpo Urbano realmente, há um tempo, já não tinha mais espaço como tema-título-foco desse projeto. A pesquisa caminha para a Mostra de Processos do programa Rumos com um novo título. Não apenas um novo título, mas, realmente, um foco foi encontrado e, a partir desse momento, invisto minhas investigações em um campo de informações mais preciso, mas, nem por isso, de menor alcance. Falaremos mais sobre isso em breve.

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Blog: http://corpourbano.wordpress.com Concepção e pesquisa: Bernardo Stumpf Colaboração: Cândida Monte e Daniel Figueiredo Agradecimentos: Alan Bravo, Álvaro Riveros, Angela Ferreira, Ângela Stumpf, Centro de Movimento Deborah Colker, Darly Rodrigues, Maria Elvira Machado, Micheline Torres, Roberto Pereira, Sabrina Stumpf, Silvia Soter, Thiago Gomes e UniverCidade Duração: 45 min Bernardo Stumpf (RJ) cursa licenciatura em dança na UniverCidade. O foco de sua pesquisa é o estudo relacional do movimento, com base em experiências corporais e intelectuais como dançarino de hip hop e cocriador do Grupo de Rua (Bruno Beltrão). Com os estudos acadêmicos, desenvolve uma postura crítica sobre pesquisa, criação e ensino de dança.


Marcos Klann (SC) O QUE ANTECEDE A MORTE 30/8/2009

O que antecede a morte A concepção deste projeto é, através de um exercício-solo, pesquisar possíveis metáforas que se aproximem dos estados corporais (sensório-motores) no momento que antecede a morte, ou na iminência de morte. A proposta é estudar, através de teorias, exercícios e ações que serão criados para este trabalho, o corpo do enfermo, o corpo do suicida e ações de arco reflexo, ou seja, neste caso, as ações que o corpo toma para evitar a morte. A questão não gira em torno da representação desses corpos, mas de elementos e condições presentes neles, aspectos que podem ser postos à prova através de ações concretas, como, por exemplo, a agonia. Criar condições para que o corpo entre nesses estados, possibilitando reações que não sejam condicionadas ou predeterminadas. Como esses estados podem ser experimentados em um trabalho artístico onde o corpo é o suporte e o objetivo da ação? Como resolver questões que envolvem risco e comportamento, o que leva o corpo a optar por esta ou aquela ação? Quando pensamos na morte, essa experiência é sempre sobre o outro ser que morre, isso enquanto referência. Sendo assim, uma experiência consciente, mas fantasiosa, já que não se vivencia a morte e ninguém se morre. Há uma questão de fatalismo e de imprevisibilidade na morte que tentamos ludibriar através de metáforas. O fato, segundo Bert Keizer é que, “normalmente, as pessoas morrem sem saber. Pensando bem, será que dá para morrer consciente? Para colocar a coisa de maneira constrangedora: somos mortos da mesma maneira que somos nascidos. Ninguém se nasce em cima deste planeta, assim como ninguém se morre para fora dele. Então morrer é difícil de definir. A ideia mais satisfatória é que ocorre uma luta perto do fim, e depois dela você recebe permissão para passar.” A consciência de que vamos morrer nos aproxima da morte e de suas metáforas, a ideia de estar de fora do mundo nos confunde e causa reações em nosso corpo, nosso vínculo direto com o ambiente. Portanto, a morte em nossa mente é sempre uma metáfora gerada pela relação entre o meio, o corpo, o cérebro e a mente. Blog: http://oqueantecedeamorte.wordpress.com Pesquisa: Marcos Klann Colaboração na pesquisa: Adilso Machado e Ivo Godois Agradecimentos: Carlos José Klann, Ceart/Udesc, Débora Pazetto, Elisa Schmidt, Grupo Cena 11, Marcela Reichelt, Sandra Meyer, Simone Maria Klann e Tiago Romagnani Duração: 50 min Marcos Klann (SC) é bailarino, ator e iluminador. Atualmente, compõe o elenco do Grupo Cena 11 e começa, com este projeto, a desenvolver uma pesquisa particular. É formado em artes cênicas pela Udesc, com o trabalho de conclusão de curso “O Corpo na Obra de Artaud: Metáforas de Dor e Morte”.

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interferĂŞncia grĂĄfica em frame de O que antecede a morte


Andréa Bardawil e Maria das Graças Martins (CE) GRACA Projeto Graça – 2009/2010 Este trabalho é antes de tudo um encontro entre duas pessoas que se conhecem e se respeitam mutuamente há alguns anos, apesar de nunca terem trabalhado juntas, e que possuem trajetórias muito diversas, na vida e na dança. Eu, Andréa Bardawil, 38, coreógrafa que gosta de criar coisas, estudar, inventar condições de possibilidade e, de vez em quando, traçar linhas de fuga. Ela, Graça Martins, 52, dançarina folclórica, cresceu brincante na cultura popular, correndo e pulando em terra batida, riso frouxo e dança solta. Encontrou o flamenco e, de castanholas em punho, salto nos pés, criou o Grupo Tablado. No corpo, musculatura tonificada e altivez, sorriso e cores, muitas cores. Dança contemporânea, de pouquinho tempo pra cá é que lhe ganhou a atenção. Queria respirar novos ares e entender um pouco essa língua tão estranha, tão cheia de seriedade e gravidade, às vezes. (Terreno arenoso não assusta o povo do sertão.) Enquanto Graça brincava e cantava, eu cresci como legítima representante do competitivo “planeta das academias” – jazz, sapateado, balé clássico e o que mais viesse. Referências e universos simbólicos distintos, percursos quase opostos, resultam agora num desafio lançado no meio da fervura. A questão ecoada por Gilles Deleuze nos mobiliza a cada encontro: “de que afetos você é capaz?”. O que pode nos atravessar nessa experiência? Processo de desterritorialização em curso: após anos trabalhando com a mesma companhia, interessa-me novamente experimentar a pesquisa corporal e a composição noutro território, menos familiar e passível de reconhecimento. Hoje, o tempo, as relações e as formas de habitar o mundo são questões que atravessam meu trabalho. Cansada, um pouco, do espírito de gravidade sobre o qual Nietzsche nos advertiu, e que parece pesar em nossos ombros em tempos de esgotamento, quero encontrar a dança que faz Graça sorrir frouxo, e quero encontrar nisso um acontecimento. Quero continuar investigando como construir dramaturgicamente uma cena potente, principalmente a partir da instauração de novos regimes de temporalidade, que experimentamos como processo e que podem vazar para a “obra”, conferindo a ela – “obra” – muito mais a dimensão de uma experiência compartilhada do que o status de “apresentação” ou “espetáculo”. Itinerário sensorial possível para uma pesquisa: variação de tônus muscular, exploração das articulações em movimentos lentos e contidos, fluxo livre e peso leve, características que se contrapõem ao corpo flamenco.

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22/9/2009

interferência gráfica em frame de Graça

Graça

Andréa Bardawil

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O vocábulo Graça provém do latim gratia, que deriva de gratus (grato, agradecido) e que em sua primeira acepção designa a qualidade ou conjunto de qualidades que fazem agradável a pessoa que as tem. No começo do século XX, costumava-se dizer: “qual é a sua graça?” para perguntar “como você se chama?“. Esse costume, que ainda hoje se mantém em alguns lugares, vinha da cerimônia de batismo dos católicos, na qual o indivíduo se torna cristão e, segundo a doutrina católica, recebe a graça de Deus e, junto com a graça, o nome. A palavra graça provém também de grátis, derivado do latim gratiis (pelas graças, gratuitamente) e gratificar, que desde o século XV equivalia a agradecer. Blog: http://parasorrir.wordpress.com Direção e pesquisa: Andréa Bardawil Intérprete-criadora e pesquisa: Graça Martins Assistência de direção: Sâmia Bittencourt Registro de imagens: Andréa Bardawil, Sâmia Bittencourt e Alexandre Veras Edição de imagens: Alexandre Veras e Marco Rudolf Duração: 50 min Andréa Bardawil (CE) iniciou-se no vídeo e nas artes visuais no Alpendre – Casa de Arte, Pesquisa e Produção, em Fortaleza. Compartilha suas pesquisas com a Cia. da Arte Andanças há 18 anos. Ganhou os editais Klauss Vianna, Incentivo às Artes, EnCena Brasil e a Bolsa Vitae de Artes. Entre seus trabalhos, estão O Tempo da Delicadeza, Vagarezas e Súbitos Chegares, O Tempo da Paixão ou O Desejo É um Lago Azul e Os Tempos. Maria das Graças Martins (CE), nascida em Barbalha, na região do Cariri, cresceu brincante na cultura popular. Trabalhou com o Grupo de Tradições Cearenses. Pelo contato com o flamenco, criou o Grupo Tablado.


João Costa Lima (PE) O OUTRO DO OUTRO 10/9/2009, 3:36 O projeto O Outro do Outro procura refletir sobre os processos de construção/representação da identidade através da linguagem coreográfica. Aqui interessa-nos propor mecanismos de leitura e de composição em torno da realidade/ficção. Com o objetivo de desenvolver estratégias para a criação dramatúrgica, pensamos a escrita coreográfica a partir da ideia de desdobramento. Criar um antes e um depois, um contexto em que o material em questão possa habitar. Identificar os enunciados linguísticos como pontos de partida e a partir daí compor cenas, dispositivos e estruturas performativas que reconheçam e interroguem sua própria representação. Ao entender a composição como a criação de discursos artísticos, assumimos que nenhum discurso pode ser visto como instância separada do momento de sua produção e dos contextos sociológicos que afetam essa realidade. Entendemos que as relações ocorrem em movimentos simultâneos de causa e consequência, onde um sem-fim de correspondências acontece (as conexões entre local/global, indivíduo/coletivo, interior/exterior, entre outras), onde a busca de sentido surge com mecanismos de leitura que nos permitem compreender as suas singularidades. Se a dança é um observatório das decisões humanas, então estamos diante de um palco de relações subjetivas, com o mundo e com o outro. Naturalmente, a articulação entre o imaginário e a sensação atravessa a produção de sentido, seja no corpo do performer ou do espectador, e é justamente aqui onde a questão da alteridade se faz presente.

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4/10/2009, 21:27

A Garrafa de Klein Senhoras e senhores, é com prazer que apresento a vocês a garrafa de Klein, um conceito da matemática que me interessa bastante. Trata-se de uma superfície fechada sem margens e não orientável, isto é, uma superfície onde não é possível definir um “interior” e um “exterior”. Concebida pelo matemático alemão Felix Klein em 1882, a garrafa de Klein está estreitamente relacionada à fita de Möbius. Curiosamente, o nome dessa superfície provém de um erro de tradução da expressão alemã Kleinsche Fläche (“superfície de Klein”). Em algum lugar do passado houve uma confusão entre Fläche (superfície) e Flasche (garrafa). A partir daí, o termo equivocado se impôs, inclusive em alemão, onde hoje se utiliza o termo Kleinsche Flasche (garrafa de Klein). É evidente que essa superfície lembra bastante uma garrafa. A partir disso tudo, algumas questões surgem com urgência:

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Por que razões teimamos em entender as relações através de limites tão específicos? Esses limites seriam necessidades reais ou imposições artificiais? A que e a quem interessa demarcar ou anular fronteiras? Seria possível pensarmos um mundo ausente da dicotomia exterior/interior? E que mundo seria esse, o caos, o vácuo, a natureza e seus ecossistemas em harmonia? Então, como pensar o outro?

interferência gráfica em frame de O outro do outro


Reconhecer o outro implica necessariamente marcar limites e vê-lo como algo exterior? Ou seríamos todos nós parte de um continuum? Pensar que somos todos parte de um continuum significa negar o outro? Sem respostas no momento, essa garrafa me abre possibilidades, evidenciando que o dentro e o fora não são conceitos universais. Sinto alegria e uma certa liberdade. Blog: http://outrodoutro.wordpress.com Direção e interpretação: João Costa Lima Assistência dramatúrgica: Rita Natálio Assistência ao movimento: Cecilia Colacrai Design de som: Christian Dergarabedian Apoios: Centre Cívic Barceloneta, Tragant Dansa e O Rumo do Fumo Agradecimentos: Núria Bernaus, Pedro Nuñez, Elena Castilla e Vera Mantero Duração: 40 min João Costa Lima (PE) atua regularmente no teatro e na dança. Recebeu o prêmio de interpretação da Associação de Produtores de Artes Cênicas de Pernambuco. Integrou o curso de pesquisa e criação coreográfica do Fórum Dança, em Lisboa. Concluiu Formação Essais, no Centre National de Danse Contemporaine d´Angers, França. Ensinou no projeto Articulações – Corps en Temps, no qual produziu um fórum internacional de intercâmbio e formação realizado no Recife. Entre suas criações e cocriações estão Noturno, Eles Não Sabiam de Nada, Sandcastle, Involuntariamente, It´s a Jungle in Here!, Come Closer e Azul como uma Laranja.

Renata Ferreira (MG) VOLÁTIL 30/8/2009

Primeiro texto Renata Ferreira Esta pesquisa coreográfica tem como foco de investigação o binômio poder e submissão, que está presente nas relações que estabelecemos com outros corpos, objetos, o ambiente etc. Poder e submissão são potências que estabelecem um tipo de equilíbrio dinâmico nas relações, provocando ações, movimentos e mudanças no estado dos corpos, dos objetos e da percepção. Ibsen, em Casa de Bonecas, mostra a relação afetiva através da díade poder e submissão, em que as relações de gênero ainda estão claramente definidas pela capacidade do homem de mandar e da mulher de saber obedecer. Nessa obra, o casamento burguês celebra os valores morais impregnados pela relação de poder masculino e submissão feminina. Se libertar para a mulher (a personagem Nora) significa a perda de qualquer identidade possível.

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interferência gráfica em frame de Volátil

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Ainda que mais perceptíveis nas relações de gênero, poder e submissão estão presentes seja nas relações afetivas, econômicas, políticas ou sociais, seja nas formas sutis de dominação, num inconsciente sentido de obediência e mando ou na crença da legitimidade do poder. Essas duas forças são intercambiáveis, tornando os corpos voláteis, aspirantes ora à ascensão do poder, ora à força da submissão. Corpos que lutam na tensão entre obedecer e ordenar, sucumbir ou ditar as regras pelas quais se joga o jogo das relações. A assimetria social provocada pela díade poder e submissão cria tensões que modelam, estabelecem parâmetros e delimitam as formas de se relacionar, de agir e reagir, sentir e perceber o mundo. O objetivo deste trabalho é explorar essas tensões na organização do corpo; os efeitos provocados pela dinâmica cambiante entre essas potências relacionais. Nessa dinâmica, o sujeito torna-se o objeto para o outro, os papéis podem mudar mas a pressão que essas forças geram não cessa enquanto potencial dinâmico de organizar ações, ideias, pensamentos, crenças, fisicalidades. Como metodologia de trabalho, serão realizados laboratórios de pesquisa baseados em improvisação, dois ensaios abertos com datas a serem definidas e pesquisa bibliográfica sobre o tema durante todo o processo. Blog: http://rumoscontrol.wordpress.com Pesquisa, criação, performance: Renata Ferreira Trilha sonora: O Grivo Trechos do texto: Casa de Bonecas, de Ibsen Duração: 35 min Em 1998, com o Clube UR=H0r, Renata Ferreira (MG) colaborou com a criação de Magazin. Participou do programa Rumos Itaú Cultural Dança 2000 com Corpo Emprestado, da Cia. VIS de Dança. Realiza trabalhos-solo e em parceria com outros coreógrafos. Criou Gráfico, com Gabriela Christófaro. A versão Gráfico.1 foi apresentada no Springdance/Preview. O solo Estudo sobre o Tempo foi comissionado pelo Fórum Internacional de Dança. Recebeu a bolsa Apartes/ Capes para estudar na Movement Research, em Nova York. Com Thembi Rosa, fez Regra de Dois, pelo Prêmio Funarte. Participou do Colaboratório realizado pelo Panorama Festival, criando com Fauller a instalação coreográfica Produto de 1.


Francisco Rider (AM) BLOCORPO 29/10/2009

Construção do processo Reconhecer o corpo nas suas possibilidades internas e externas utilizando para isso o estudo estrutural do corpo. Após esse reconhecimento, a relação com os blocos estruturais acontecerá através de possíveis explorações das potencialidades e configurações dessa relação. Esse estudo estrutural utiliza os seguintes princípios: peso (corpo/ready-made), gravidade, articulação e movimento. Blog: http://blocorpo.wordpress.com Concepção e direção: Francisco Rider Criação: Agnaldo Martins, Damares D’arc e Francisco Rider Apoio técnico e cênico: Nelson Magli Duração: 60 min Francisco Rider (AM) apresentou-se em: Movimentos de Dança do Sesc-SP; A Sul – V Festival Internacional de Dança (Portugal); Festival Nueva Danza (Peru); American Dance Festival, Dixon Place, Judson Church, PS122, Saint Mark’s Church e The Kitchen (Estados Unidos). Foi intérprete-criador em Low, de Donna Uchizono (ganhador do NY Dance and Performance Bessie Award 2002). Recebeu Bolsa Vitae e Capes e o Prêmio Klauss Vianna.

interferência gráfica em frame de Blocorpo

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Rosa Almeida (AM)

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interferĂŞncia grĂĄfica em frame de Parte de mim


PARTE DE MIM Linguagens vivenciadas – subsidiando uma escrita coreográfica Todo este relato fez parte da primeira fase do processo, que teve como foco a criação de experimentos pautados em referenciais, esses referentes à minha trajetória pessoal, re/ conhecendo as diversas linguagens vivenciadas que transitam em meu corpo. Corpo, torções, pano, formas, parede, linhas, chão, contração, cadeira, possibilidades, plasticidade, interno, externo, partes do corpo, partes do todo, desenhos, contraste de tempo, movimentos, detalhes, vivência, dor, medo, força, visceral... Assim foi a primeira fase do processo, termino com uma série de rascunhos/experimentos.

4/3/2010

Experimentação de múltiplas possibilidades – 2ª fase No dia 1º de dezembro foi o término da 1ª fase e o início da 2ª fase do processo. O objetivo dessa fase é pesquisar movimentos a partir da compilação dos referenciais re/conhecidos da 1ª fase e descobrir a motivação para criação Essa fase que se iniciou já foi diferente, até então estava trabalhando sozinha e a partir desse dia entraram no processo dois coreógrafos colaboradores, o Valdemir de Oliveira e o Odacy de Oliveira. Muitos podem se perguntar o porquê dos dois, já que a pesquisa é a busca de uma singularidade coreográfica. A vinda deles visa à troca de papéis: enquanto um cria, os outros dois tornam-se intérpretes. Os três passaram por esse processo de criar e interpretar. A relevância dessa troca é perceber a linguagem que se cruza, a influência dos coreógrafos, e saber diferenciar meu discurso, porque só poderia perceber algumas coisas através dessa troca. Por vezes sendo intérprete sentia meu corpo estranho, vazio, descoordenado, era como se não soubesse dançar... Blog: http://rosalmeida.wordpress.com Concepção e criação: Rosa Almeida Performance: Rosa Almeida, Odacy de Oliveira e Valdemir de Oliveira Colaboração na pesquisa: Valdemir de Oliveira e Odacy de Oliveira Trilha sonora: Marcos Tubarão Fotografia: Rosemar Almeida Agradecimentos: Lia Sampaio e Escola Superior de Artes e Turismo (UEA) Duração: 50 min Rosa Almeida (AM) é bacharel e licenciada em dança pela UEA. Foi intérprete-criadora do Grupo de Performances Artísticas, projeto de extensão da UEA. Atualmente é arte-educadora e colabora nas criações do Corpo de Arte Contemporânea.

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Andréa Sales (CE) CASA 22/11/2009

Coisas do corpo – observando meu pai Tenho observado meu pai, cotidianamente e sem neuras. Não gostaria de ficar seguindo ele, somente estar perto quando necessário. Às vezes estou em casa fazendo alguma coisa e, de repente, ele está lá na posição de cócoras. Nesses momentos de observação, um aconteceu no dia 24 de setembro último. Como não tinha câmera, corri e peguei o celular para filmar. A imagem do vídeo não tem tanta qualidade, só o suficiente para perceber a movimentação dele, como seu corpo se transforma para ficar e sair desse estar agachado. Estou gostando de fazer assim. Isso me mantém atenta à organização corporal nessa posição. É impressionante! O meu olho já vai direto para uma situação em que ela está presente no corpo de alguém, quer seja em casa ou fora dela. Entendo também esse nível de atenção como uma forma de testar minha percepção em meio ao ambiente caótico em que vivo, minha casa familiar.

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Como falei, comecei a escrever este texto em setembro. Decidi retomar sua escrita, porque ainda me mobiliza ideias, traz questões importantes sobre os chamados estados corporais. Daí desenvolvi um pouco mais no que diz respeito ao cotidiano do meu pai. Instiga-me pensar em como ele, meu pai, organiza-se para ficar de pé e de cócoras. Noutro dia ele estava consertando meu carro. Percebi sua movimentação dentro do automóvel, que estava sem o banco do passageiro. A maneira como ele se apoiava para não cair me impressionou. Em nenhum momento ele se desequilibrou. As pernas estavam firmes e seu corpo bem familiarizado ao percorrer os caminhos para sair da postura agachada dentro e fora do carro. A impressão que tenho é que ele não pensa, no sentido de racionalizar a ação, pois o corpo responde logo. Ao assistir o vídeo que gravei, ao vê-lo de novo, uma imagem formou-se na minha mente, a de um macaco. Seu tronco estava à frente, com a cabeça para baixo, e suas mãos apoiavam-se no chão do carro. Essa constatação me fez pensar sobre o conceito de memória corporal, que tem a ver com a ancestralidade humana, possivelmente.


3/12/2009

Estranhar entranhar-se Parte I Tenho investigado a posição de cócoras e percebo que a investigação está se configurando num procedimento que explora o peso do corpo e o toque em algumas partes dele. A cabeça, principalmente. Ela se mantém em contato direto e imediato com joelhos, braços e mãos. Sinto uma parte “puxando” as outras como um tipo de magnetismo sensorial. E, então, elas se acomodam, repousam umas nas outras para novamente serem tensionadas quando realizo outra ação física. As formas que construo no meu corpo estão estranhas. Às vezes, parecem-me assustadoras e, por conta disso, acredito que possam assustar quem estiver a observá-las. O desenho do corpo, embora não possa ser visto por mim, transmite algo de “entranhamento”. As pausas, o tempo dado a cada movimento, tudo isso tem também certa função de reconhecimento dessas imagens-formas na minha mente. É como se eu quisesse entrar em mim mesma. A coluna curva-se e quase abraça as pernas como uma concha.

17/2/2010

Praça José de Alencar – outro ambiente No mês de janeiro último, fui para o centro da cidade, aqui em Fortaleza. O local escolhido foi a Praça José de Alencar. Já há algum tempo, eu tinha o desejo de experimentar algo fora de casa, até então o lugar habitual das minhas investigações. No começo, eu fiquei um pouco nervosa. Já sentia, de algum modo, que as pessoas iriam estranhar minha presença lá de cócoras. Primeiro, porque essa posição, como já escrevi aqui, é considerada por muitos como um comportamento pouco civilizado. Segundo, porque as pessoas, em geral, não reconhecem esse tipo de intervenção na cidade (e o que estou pesquisando) como dança. Não é uma leitura fácil para elas, penso eu. Estão mais acostumadas com uma dança que faz movimentos mais amplos, como se vê em muitos espetáculos de palco. Esperam ver uma dança cheia de ritmo, tal como é bastante reproduzida nos programas de televisão. Talvez uma dança que aproxime as pessoas e não que as assuste como a minha nessa circunstância. Para me ambientar, comecei sentada no banco e, depois, fui me acocorando bem devagar. Veio-me também certo receio de ser agredida de alguma maneira. Não estava tão habituada a colocar meu corpo nessa situação, estava muito exposta. Logo no inicio, ouvi dois senhores comentando algo relacionado ao diabo, compadecidos por eu estar “daquele jeito”. Confesso que tive muita vontade de rir e quase levantei para finalizar tudo por ali mesmo. Mas pensei: devo insistir! E insisti.

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interferĂŞncia grĂĄfica em frame de Casa


Em seguida, uma criança aproximou-se e, logo depois, saiu. Lembro também que uma mulher perguntou para outra que estava próxima sobre o que estava acontecendo. Ela respondeu que era uma mulher que estava se entortando. David da Paz, videomaker responsável pelo registro, estava um pouco afastado e isso fazia com que eu me sentisse ainda mais desprotegida. Às vezes, ele se aproximava, o que fazia com que eu me sentisse mais segura. De qualquer forma, era algo bom, uma forma de sinalizar para quem por ali passava que aquilo que estava fazendo é arte, é dança! Não se tratava de uma possessão. Na verdade, meu corpo estava se “ambientando”. O Sol tocava o meu corpo e provocava as sombras no chão. Sombras estas que surgiram também quando trabalhei com o refletor em casa. Durante a realização, foi difícil rememorar, com exatidão, o que havia acontecido lá em casa, quando observava meu pai e quando eu investigava sozinha. Tanto que, ao trabalhar o foco, demorei mais que o habitual, mas finalmente consegui “chorar”. O tremor das mãos também funcionou. Sentia apenas que tudo que venho experimentando no meu corpo estava lá, reorganizando-se e se atualizando, circunstancialmente. Tudo isso numa intervenção que durou quase meia hora ininterrupta.

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Blog: http://outracasa.wordpress.com Intérprete-criadora: Andréa Sales Colaboração artística: Joubert Arrais Acompanhante da pesquisa indígena: Juliana Muniz (comunidade indígena Pitaguary, CE) Registro externo: David da Paz Agradecimentos: Manoel Alves (pai), Angela Sousa, Ernesto Gadelha, Raimundo Lima e Raimundo Severo Duração: 30 min Andréa Sales (CE) é intérprete-criadora e faixa roxa de caratê-do. Formou-se pelo Colégio de Dança do Ceará. Por sete anos, foi membro da Cia. da Arte Andanças (CE). Concebeu os solos Impressões, 17 Pontos I, 17 Pontos II, Silêncio da Intimidade e Varal. Desenvolve pesquisa na linguagem audiovisual. Atua como diretora, coreógrafa e bailarina. Foi contemplada com o Prêmio Funarte de Dança Klauss Vianna pelos projetos O Caminho das Mãos Vazias e A Carne Não É Fraca.




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Ficha TĂŠcnica


Cartografia Rumos Itaú Cultural Dança 2009-2010 Organização Christine Greiner Cristina Espírito Santo Sonia Sobral Coordenação-Geral Núcleo de Artes Cênicas Projeto Gráfico Estevan Pelli Direção de Arte Jader Rosa Tradução “O que as coisas são e o que parecem ser” – Carla Nejm “Videodança na América Latina: um testemunho” – Carmen Carballal Revisão Kiel Pimenta Produção Editorial Jahitza Balaniuk

Vídeo Direção-geral Osmar Zampieri Direção de fotografia das entrevistas Fernanda Faya Operação de câmera Osmar Zampieri, Mariana Sucupira, Kauê Zilli e Fernanda Faya Operação de áudio Aguinaldo Bueno Edição de vídeo e autoração Osmar Zampieri Colorização Eduardo Kito Apoio Núcleo de Audiovisual

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Centro de Documentação e Referência Itaú Cultural Cartografia Rumos Itaú Cultural Dança: criações e conexões / organização Cristine Greiner, Cristina Espirito Santo e Sonia Sobral. - São Paulo: Itaú Cultural, 2010. 120p. ISBN 978-85-7979-011-9 1. Artes cênicas. 2. Dança contemporânea. 3. Processos de criação. 4. Rumos Itaú Cultural Dança. I. Título. CDD 792.8



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