CARTOGRAFIA rumos itaú cultural DANÇA 2009-2010
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São Paulo 2010
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Airton Tomazzoni Trânsitos possíveis: conexões e desconex ões da cartografia da dança contemporân ea no Rio Grande do Sul
Angela Souza Os rumos e veredas do sertão: Ceará, Maranhão e Piauí
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Arnaldo Siqueira Dança contemporânea para um tempo presente: Recife (PE), Campina Grande e João Pessoa (PB)
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Implantado em 1997, o programa Rumos tem como objetivo mapear, fomentar e difundir a produção artística no país, além de formar e articular agentes culturais (artistas, produtores, críticos, pesquisadores, curadores). Fomenta, mapeia, produz e comissiona projetos em dez áreas de expressão – arte cibernética, artes visuais, cinema e vídeo, dança, educação cultural, jornalismo cultural, literatura, música, pesquisa em gestão cultural e teatro. Todo o processo se dá por meio de editais públicos e a seleção é feita por comissões autônomas compostas de especialistas. Nestes 13 anos, o programa recebeu mais de 20,3 mil inscrições e apoiou o desenvolvimento de 883 projetos, que atingiram mais de 2,5 milhões de pessoas. Como via de mão dupla, o Rumos faz a integração de artistas das mais diversas regiões, colocando-os em evidência, e leva a cultura de norte a sul por meio de shows, seminários, mostras de vídeo e exposições. Os produtos culturais desenvolvidos a cada edição – como CDs, CD-ROMs, DVDs, livros e catálogos – são distribuídos gratuitamente a uma malha nacional de instituições culturais e educacionais e a organismos de interesse de cada segmento mapeado, a exemplo de TVs e rádios públicas. O site Itaú Cultural apresenta uma ampla plataforma dedicada ao programa, na qual os produtos podem ser visualizados gratuitamente. O caráter nacional do programa é também reforçado pela mobilização de uma rede de especialistas e instituições parceiras e colaboradoras em todas as regiões do país.
Instituto Itaú Cultural
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O quarto mapeamento Rumos Itaú Cultural Dança
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Rumos, desde sua primeira edição, no biênio 2000-2001, é um programa de apoio à pesquisa em dança contemporânea. Seu histórico está registrado no livro Cartografia Rumos Itaú Cultural Dança 2006-2007. A quarta edição, 2009-2010, dez anos após sua criação, aprofunda uma das questões intrínsecas ao desenvolvimento de uma pesquisa de criação contemporânea – o processo. Criação é sempre processo. Com base nisso, o programa buscou privilegiar, mostrar e discutir o que moviam essas pesquisas e como se desenvolviam. Com essa perspectiva, a Comissão de Seleção, formada por Alejandro Ahmed, Christine Greiner, Lia Rodrigues, Marcelo Evelin e Vera Sala, buscou, entre os 506 projetos inscritos, questões com potencial de serem desenvolvidas no campo da pesquisa em dança contemporânea. Dois desafios foram propostos aos artistas: primeiro, manter um blog durante o período do apoio (seis meses) e, segundo, fazer sua apresentação pública na Mostra de Processos Rumos Itaú Cultural Dança, para evidenciar a função de pesquisa. Também como apoio foram oferecidos uma interlocução e um canal aberto de discussão com a Comissão de Seleção aos artistas que desejassem. Tudo isso foi discutido conjuntamente, numa reunião em São Paulo, com os artistas, a Comissão de Seleção e a coordenação do programa Rumos Itaú Cultural Dança. Os blogs foram propostos como lugar de experimentação, como registro do processo, para expor ideias, pensamentos, procedimentos e, finalmente, como espaço para discussão coletiva. Estão disponíveis no site www.itaucultural.org.br.
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Uma avaliação desse objetivo proposto pelo programa, assim como dos blogs, foi feita pela professora Cecilia Almeida Salles e está publicada neste livro. A centralidade no processo não só norteou o conceito da edição como as discussões, as críticas e os elogios. Tornou-se, portanto, uma questão da maior importância para a coordenação do Rumos Itaú Cultural Dança, assim como para os artistas e participantes. Para isso também foi pedida uma avaliação tanto da finalidade quanto das soluções apresentadas ao desafio. A professora Christine Greiner reflete sobre isso em seu ensaio “Indagações sobre o que Pode (Ser) um Processo”. Durante a Mostra de Processos Rumos Itaú Cultural Dança, que aconteceu entre 6 e 14 de março de 2009, realizou-se uma série de encontros com André Lepecki (Planos de Composição), Christophe Wavelet e Cecilia Almeida Salles (Experimentação e Pesquisa nas Produções Processuais), Cibele Rizek e Liliana Segnini (A Arte como Campo Econômico e de Produção Artística) e Peter Pál Pelbart (Indivíduo, Potência). Durante as manhãs, o professor André Lepecki, juntamente com Alejandro Ahmed, Marcelo Evelin, Christine Greiner e Vera Sala, reunia-se com os artistas para conversar sobre os trabalhos apresentados na noite anterior. A conversa versava sobre questões das pesquisas e os modos como foram apresentadas.
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Embora o que mais apareça, o que mais se espere e, logo, o que mais se discuta sejam as apresentações dos artistas, essa é somente uma das partes do programa. O contexto de onde partem esses e muitos outros trabalhos e, para além disso, os perfis regionais menos ou mais transitórios, sempre pautaram o Rumos Itaú Cultural Dança. Uma equipe de pesquisadores de 13 universidades brasileiras foi composta desde a implantação do programa. Nesta edição, convidamos Christine Greiner como consultora do mapeamento contextual e orientadora dos pesquisadores. Antes de partirem para a quarta coleta de dados, participaram de um curso virtual, durante um semestre, coordenado por Greiner. Num processo de reflexão e discussão coletiva, atualizaram-se os objetivos e o papel desta pesquisa, assim como o papel do pesquisador e ainda questões da historiografia da dança e do conceito de contemporaneidade. Com isso, a equipe de pesquisadores recebeu orientação na fase anterior à pesquisa de campo, durante a coleta e na elaboração de seus textos. São 3 mil planilhas de pesquisa que trazem um volume enorme de informação sobre aproximadamente cem cidades brasileiras, que foi organizado e tratado pela equipe de Enciclopédias do Itaú Cultural. O resultado apresenta-se na Base de Dados Rumos Itaú Cultural Dança e nesta publicação na forma de ensaios. A segunda carteira de apoio Rumos Itaú Cultural Dança é para desenvolvimento e produção de videodanças. Nesse segmento, a questão central é também a pesquisa de linguagem. Trata-se de ter o vídeo como ferramenta de exploração das questões da dança. Treze projetos, entre 170 inscritos, foram pré-selecionados e seus autores receberam uma oficina intensiva sobre conceito, linguagem e produção com a diretora inglesa Miranda Pennell. Ao final da oficina, os artistas fizeram uma apresentação verbal de seus projetos e tiveram 20 dias para
apresentar um roteiro. Com base nisso, Tamara Cubas e Nayse Lopes selecionaram cinco projetos que receberam financiamento para seu desenvolvimento e produção. A fase seguinte às duas carteiras de apoio é a difusão dos trabalhos, que acontece nos dois anos subsequentes à sua primeira apresentação. Programadores e curadores de todo o país são convidados para a Mostra de Processos Rumos Itaú Cultural Dança. Eles escolhem de dois a três trabalhos que serão apresentados em seus festivais, mostras, encontros e fóruns, com subsídios do programa. Desse modo, além de apoiar a difusão de artistas e da arte brasileira, o Rumos Itaú Cultural concede um pequeno apoio aos festivais ao subsidiar as passagens aéreas e os cachês de apresentação. Além disso, a difusão objetiva fazer circular trabalhos na maior abrangência regional possível. A terceira edição do programa (2006-2007) patrocinou mais de 40 apresentações em 19 cidades do Brasil, além de Lima (Peru) e Barcelona (Espanha). Nesta edição, já aconteceram apresentações em Porto Alegre, Florianópolis, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Ipatinga (MG), Goiânia, Anápolis (GO), João Pessoa, Recife, Goiana (PE), Fortaleza, Salvador, São Luís e Belém, e estão previstas para 2011 apresentações em Curitiba, Teresina, Manaus e Cuiabá e, internacionalmente, em Portugal, Equador e Uruguai. Paralelamente à difusão, a coordenação do Rumos Itaú Cultural Dança inicia a conceitualização de uma publicação que reflita, na medida do possível, todo esse percurso. A organização da Cartografia Rumos Itaú Cultural Dança 2009-2010 é assinada por Christine Greiner, Cristina Espírito Santo e Sonia Sobral. Composta de três livros e uma série de DVDs com registros das pesquisas coreográficas e das videodanças, traz também um conjunto de entrevistas. Livro 1 – Mapas e Contextos apresenta os textos dos pesquisadores da base contextual e uma reflexão de Christine Greiner sobre o mapeamento. Livro 2 – Criações e Conexões traz ensaios dos autores dos seminários ministrados durante a Mostra de Processos Rumos Itaú Cultural Dança, além de informações sobre os trabalhos de pesquisa e trechos retirados dos blogs dos artistas. Livro 3 – Imagens e Movimentos é dedicado à videodança, com textos de Miranda Pennell, João Luiz Vieira e Silvina Szperling. No evento de lançamento desta publicação, haverá mais uma avaliação em forma de debate coletivo. Debateremos a função que este edital privilegiou, a Mostra de Processos Rumos Itaú Cultural Dança e várias outras discussões que se façam necessárias, tendo em vista o aprimoramento e as mudanças que um sistema aberto permite e exige. Entre os 21 projetos selecionados, quatro receberam mais uma parcela de apoio e também serão apresentados no evento. São eles Clube Ur=H0r/Adriana Banana, Thelma Bonavita, Marta Soares e Wagner Schwartz. Além disso, teremos um encontro importante com os 13 pesquisadores que desenharam um mapa dos contextos da dança contemporânea no país, não em forma de apresentação dos dados encontrados (estes poderão ser acessados no site www.itaucultural.org.br). A oportunidade mais política e mais profunda que se dá nesse encontro é a de pensar nas lógicas de posicionamento “centro-periferia” e “periferia-centro” que agem sobre a produção, a gestão e a circulação e como lidamos com isso. Assim, retorna-se a questões estudadas no curso a distância anterior à pesquisa de campo, ao mesmo tempo em que se as revê após mais de um ano de trabalho.
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Desde que começou a ser reformulado (início de 2008) até esta fase final (dezembro de 2010), muitas questões surgiram e necessitam de reflexão. Qual a diferença entre um programa de espetáculos e um programa de pesquisas? Que ferramentas e compreensões ficam para o público? Que formas de registro e publicação evidenciam a pesquisa e a construção? Como avaliar o papel, a responsabilidade e o limite da instituição, assim como o papel e a responsabilidade dos artistas e de outros profissionais? Como lidar com criadores de maturidades diferentes? É importante ainda discutir a dualidade processo-produto? Que trabalhos receberam mais convites para apresentação e por quê? Como programadores, festivais e instituições influenciam esse campo artístico? Como acompanhar e usufruir das dinâmicas das relações que surgem a partir de um projeto como o programa Itaú Cultural Rumos? Como conciliar as necessidades dinâmicas do Rumos com as estabilidades muitas vezes rígidas que levam mais tempo para se transformar? Que perfis de pesquisa o Rumos Itaú Cultural Dança apoiou nos 72 projetos financiados até agora? Que tipo de avaliação acompanha e reflete algo dinâmico? Certamente é preciso tempo, e essa é uma segurança que o programa Rumos Itaú Cultural Dança oferece. Um caminho para pensar essas questões começa por olhar para as relações e dinâmicas que se estabelecem, para o sentido que está entre as coisas, além de continuar confiando na potência da processualidade. Queremos agradecer a dedicação, a contribuição e o profissionalismo de Osmar Zampieri no registro videográfico e nas entrevistas, assim como a todas as equipes do Itaú Cultural que, com muito entusiasmo, trabalharam no projeto.
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Finalmente, agradecer aos grandes parceiros deste projeto, com quem pudemos contar do início ao fim: Alejandro, Marcelo, Vera e, em especial, Christine Greiner. É importante dizer que só é possível repensar e refazer este programa porque o Rumos Itaú Cultural tem uma história e aposta na continuidade. Sonia Sobral Coordenação Rumos Itaú Cultural Dança Gerência Núcleo de Artes Cênicas
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Christine Greiner
Professora do Departamento de Linguagens do Corpo da PUC-SP, onde coordena o Centro de Estudos Orientais. Dirige a coleção Leituras do Corpo, da Annablume Editora. É autora dos livros O Corpo em Crise (2010) e O Corpo (2005), entre outros livros e artigos publicados no Brasil e no exterior.
A trama política dos dispositivos da dança
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este ano, o programa Rumos Itaú Cultural Dança criou novos espaços para reflexão e experimentação. Um deles foi construído virtualmente alguns meses antes da habitual coleta de dados referente à produção artística e intelectual dos 22 estados do Brasil mapeados pelo programa. Essa reflexão coletiva teve como objetivo principal analisar o perfil do trabalho (a própria função do mapeamento e dos pesquisadores envolvidos) e os modos como ele vem sendo feito, tendo em vista discutir sua função como parte de um sistema mais amplo que, a partir deste ano, inclui uma Enciclopédia Virtual de Dança e bolsas de pesquisa para uma mostra de processos artísticos (e não espetáculos). Partimos de questões como: O que significa coletar esses dados hoje? Os conceitos da primeira edição ainda valem para a quarta? Quais as implicações dessa coleta em termos nacionais? O filósofo italiano Paolo Virno (2003) costuma dizer que a potência é o passado do ato. Ela é uma espécie de antecedente não cronológico dos eventos e das situações e não se confunde com algo que vem antes, imobilizado no passado. É, na verdade, uma trama do que está por vir, por isso pode e deve acionar novas conexões. De certa forma, foi em busca dessa trama invisível e potente que eu e os pesquisadores da equipe começamos a estudar juntos. Na prática, nossa experiência acabou escapando das discussões relativas apenas ao mapeamento e foi se aprofundando como em um grupo de estudos para aprimorar alguns entendimentos relacionados à dança e ao mundo contemporâneo. Tornou-se muito claro que a coleta de dados objetivos implica, necessariamente, escolhas. Não é asséptica como parece à primeira vista, embora trabalhe fundamentalmente com “dados duros”. Há muitas decisões a serem tomadas para incluir ou excluir um dado na rede e essas decisões acabam sendo, inevitavelmente, políticas.
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Do que trata o mapeamento De um ponto de vista geral, o mapeamento tem como função apresentar dados quantitativos. Assim, quem faz a consulta tem a oportunidade de ler esses “dados duros” que apontam para mudanças gerais no campo e na economia da dança, como, por exemplo, variações na quantidade de: 1) espetáculos produzidos, 2) cursos superiores, 3) espaços de apresentação e experimentação, 4) pesquisas acadêmicas, 5) publicações, e assim por diante. Com base nesses dados, como observaram os pesquisadores Airton Tomazzoni e Thembi Rosa durante nossas conversas, é possível responder perguntas do tipo: quem faz (espetáculos, pesquisas, produções), onde faz (no meio acadêmico, em espaços autônomos, na sua cidade ou em circuitos itinerantes) e como faz (com apoio público, privado, sem apoio nenhum, usando novas estratégias de sustentabilidade etc.). Nos textos que os pesquisadores produzem ao fim do processo e que podem ser lidos neste volume, os dados coletados são contextualizados, analisados e comparados aos anos anteriores. Neles são desenhados perfis regionais que não expressam juízos de valor ou opiniões pessoais, mas oferecem aos usuários do mapeamento outro tipo de mapa (conceitual) que, colocado em relação aos dados brutos, pode ativar diferentes dinâmicas de leitura. A rede do mapeamento não tem como objetivo traçar procedências, aprofundar discussões ou elaborar qualquer tipo de perspectiva, como deverá fazer a Enciclopédia, por isso os textos têm um papel diferenciado, representando uma espécie de guia do mapa.
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Para analisar as informações e detectar suas “tramas”, como conceituou Paolo Virno, não se pode tratar o passado dentro de uma moldura estática. É fundamental identificar a reincidência de movimentos (e não movimentos) que tem marcado a história da dança em nosso país na última década. Aí começa o desafio.
A trama como dispositivo O termo “dispositivo” vem sendo definido na obra de Giorgio Agamben (2009: 40) como “qualquer coisa que tenha de algum modo a capacidade de capturar, orientar, determinar, interceptar, modelar, controlar e assegurar os gestos, as condutas, as opiniões e os discursos dos seres viventes”. Assim, para diagnosticar o impacto das tramas invisíveis que acionam a rede de dança no Brasil, proponho partir da ideia de que toda trama é também, de certa forma, um dispositivo. Isso porque, diferentemente do que havia proposto Michel Foucault (1971), ao usar originalmente o dispositivo como desdobramento da noção de “positividade”, Agamben não se restringe à análise de instituições ou acionamentos disciplinares como prisões, manicômios, escolas, fábricas, medidas jurídicas etc. Segundo ele, a caneta, a escritura, a literatura, a filosofia, a agricultura, a navegação, os computadores, os celulares e a própria linguagem também podem ser considerados dispositivos1. 1
Quando afirmo que Agamben não se “restringe” à análise de instituições e acionamentos disciplin-
ares, não pretendo sugerir que a pesquisa de Foucault tenha sido “restrita”, uma vez que, ao estudar as microfísicas do poder, o próprio Foucault reconheceu ações do poder para além do âmbito institucional que havia marcado o início de sua pesquisa. A contribuição de Agamben é bem-vinda no sentido de atualizar e, portanto, redimensionar a discussão.
Com base nessa leitura bastante abrangente, é fácil admitir que não dá para viver sem estar emaranhado em algum tipo de dispositivo. O mundo, explica Agamben, divide-se em seres viventes e dispositivos. E só há uma ação capaz de desafiá-los: a profanação. Ela seria o oposto do sacrifício, ou seja, em vez de transferir algo da esfera cotidiana para a do sagrado, reverteria algo da esfera do sagrado (inacessível, imutável, intransponível) para a do profano. Tudo isso parece distante da dança, mas na verdade há estreitas relações. Muitas danças rituais, por exemplo, podem ser analisadas como dispositivos que praticavam algum tipo de sacrifício, tirando algo ou alguém da esfera do profano e elevando o ser ou coisa para a esfera do sagrado. A dança seria, nesse caso, ela mesma o dispositivo para construir uma espacialidade imaginária de onde seria possível exercer o poder. Na Europa, onde nasceu o balé clássico, os dispositivos começaram a se organizar a partir da noção de coreografia. No livro Orchesographie, de Thoinot Arbeau, escrito em 1596, buscava-se uma escrita (graphie) para a dança (orchesis). Para tanto, explica Lepecki (2006: 29), o advogado Capriol retorna de Paris para Langres e resolve visitar seu antigo mestre matemático Thoinot Arbeau, que era também padre jesuíta e mestre de dança. O advogado implora a Arbeau que lhe ensine a arte da dança para ficar mais “adaptado”à sociedade. Ou seja, enquanto a dança era uma técnica para socializar, a coreografia (ou sua escrita) representava a tecnologia para socializar o espectral – uma espécie de operador para tornar presente o que estava ausente e um modo de ligar a dança à escrita e à construção de leis para regrar uma prática. Nesses modos de “regrar a prática”, estavam presentes as hierarquias sociais, os jogos de poder e as configurações espaciais que colocavam cada um em seu lugar (na corte, no teatro e na sociedade). Por isso, pode-se afirmar, sem muita polêmica, que a discussão sobre os dispositivos sempre fez parte da história da dança, e não apenas no Ocidente, uma vez que nas culturas orientais as danças de corte e os rituais também não se configuravam de outro modo, senão para dar visibilidade às relações de poder2.
Os dispositivos das danças no Brasil Ao fazer a leitura dos últimos mapeamentos realizados pelos pesquisadores do Rumos Itaú Cultural Dança, identifico três classes de dispositivos que parecem significativos para regrar as práticas incluídas no guarda-chuva “dança contemporânea no Brasil”. Eles nem sempre são explícitos, mas insistem em acionar modos de organização que acabam por nortear uma parte significativa dos trabalhos e suas tramas invisíveis. São eles: a descontinuidade, as regras da empregabilidade e a reverência colonial. A descontinuidade refere-se ao tempo das iniciativas e dos aprendizados, e tem se mostrado uma classe de dispositivos bastante poderosa. Um bom exemplo de descontinuidade ou enfraquecimento de uma iniciativa preciosa é o da Casa Hoffman, de Curitiba. Segundo o pesquisador Giancarlo Martins, a Casa Hoffman, que se mostrou um centro acionador de pesquisas e trocas artísticas, auxiliando muitos artistas curitibanos e de outras cidades com a organização de workshops, palestras, cursos, bolsas de estudo etc., mostrou-se, nesta última coleta, praticamente desativada. Outro exem2
Há extensa bibliografia a esse respeito. Uma obra de referência para explicar, por exemplo, a relação
entre representações artístico-midiáticas e o corpo do imperador no Japão é o livro Bodies of Memory, de Yoshikuni Igarashi (2000).
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plo, observado pela pesquisadora Juliana Polo, é o da política pública no Rio de Janeiro que, após o boom da década de 1990, em que a gestão da secretária de Cultura Helena Severo foi considerada exemplar em virtude do amplo espectro de incentivos que engendrou para a dança, tem testemunhado a interrupção da subvenção da prefeitura e o fechamento do Instituto RioArte. Há, infelizmente, outros exemplos espalhados pelo país. A desertificação estrutural que assola Florianópolis, onde não há praticamente mais nenhum lugar para os criadores de dança contemporânea criarem, ensaiarem ou darem aulas, é notável, no entanto, como observa Jussara Xavier, surgem novas estratégias de resistência como os projetos Múltipla Dança e Tubo de Ensaio, entre outros. O problema é que, para garantir o amadurecimento dos novos artistas que começam a despontar nesses eventos, é preciso garantir a continuidade das iniciativas.
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Nesse sentido, é ainda importante notar que a descontinuidade não se refere apenas à extinção de programas, editais e centros culturais. Ela pode ser observada também nos modos de aprendizado e pesquisa que vêm sendo cada vez mais rápidos para acompanhar o ritmo de um mercado que muda o tempo inteiro. Curiosamente, isso parece um contrassenso em relação a tudo que se estuda acerca da natureza da dança contemporânea. Durante as conversas com os pesquisadores, entre várias possibilidades de definição da dança contemporânea, escolhemos a proposta de Jean-Marc Adolphe, retomada por Laurence Louppe (2007), que definiu a dança contemporânea com uma dança apta a criar corpos críticos que não apenas replicam modelos, mas produzem questionamentos com base nas próprias experiências corporais. Nesse viés, para aprender a dançar é preciso articular conexões. Assim, a “crítica” à qual os autores se referem não deve ser entendida como no senso comum (criticar algo ou alguém). O corpo crítico é aquele que elabora corporalmente uma questão e, para tanto, o tempo é fundamental. Em poucos dias ou meses é possível estudar alguma coisa, mas, para desenvolver uma pesquisa (a única forma de construir um pensamento critico), a dinâmica é bastante diferente e exige longos períodos de dedicação. É nesse sentido que o dispositivo da descontinuidade impulsiona os movimentos de dança para uma direção contrária àquela exigida pela criação em dança contemporânea. Fazem parte dessa classe de dispositivos os tempos dos editais, os cursos de curta duração, os workshops eventuais, a pressa para ingressar no mercado de trabalho, a pressa para conseguir um diploma, e assim por diante. Todos esses dispositivos que regram incessantemente o tempo parecem, de certa forma, também relacionados àqueles que organizam as regras da empregabilidade. O comunicólogo colombiano Jesús Martín-Barbero (2003: 10) explica que a empregabilidade tem se mostrado uma novíssima categoria hegemônica que conjuga flexibilidade, adaptabilidade e competitividade. Em termos de ensino fundamental público, tais fatores desmantelaram as escolas, debilitando-as economicamente, desengajando os desenvolvimentos científicos e tecnológicos, além de desvalorizar de forma irreversível a função de professor. Aparentemente, no que se refere à dança, nós no Brasil seguimos na direção contrária. Há no depoimento de quase todos os pesquisadores, especialmente nesta última coleta, o crescimento notável do número de cursos superiores de dança, inclusive com a abertura de inúmeras vagas nas universidades federais. A descentralização também é evidente, uma vez que muitas dessas universidades estão situadas nas regiões Norte, Nordeste e Centro-oeste e não, como de costume, no Sul e no Sudeste. O surgimento de editais em âmbito nacional e local também foi significativo. No entanto, ao observarmos essas mudanças com mais atenção, identificaremos a mesma conjugação de fatores (flexibilidade, adaptabilidade e competitividade) analisada por Martín-Barbero,
norteando uma nova classe de dispositivos bastante específicos. Um bom exemplo é o das concessões, que aparecem em situações diversas: mudar o cenário da obra para que ela circule com mais facilidade, mudar o tema da pesquisa para que ele se adapte aos critérios de um edital, incluir um elemento étnico na coreografia para ser pautada por um curador internacional etc. Como o tempo é sempre curto e as exigências imediatas, surgem também novas formas de aprendizagem e estratégias de apresentação (dos projetos, dos espetáculos, das falas etc.). Em vez de alimentar a pesquisa crítica que, como vimos, precisa ser desenvolvida em um período mais longo de tempo, opta-se pela formação de capacidades, destrezas e competências temporárias que permitam uma rápida inserção no mercado de trabalho. Ao chamar atenção para esses pontos, não pretendo defender as tradições humanistas da educação clássica, que consistiam em transformar os povos em organizações alfabetizadas e domesticadas, tendo como lastro onipotente as universidades e o saber acadêmico. Esse humanismo que subjuga e anestesia deixou de ser bem-vindo. Inspirado por Paulo Freire, Martín-Barbero observa que parece mais fértil para nossa realidade latino-americana buscar como ponto de partida para a educação uma alfabetização em comunicação que reconfigure contextualmente saberes, narrativas e necessidades. Portanto, é importante ficarmos atentos a essas possibilidades, tendo em vista os novos cursos de graduação em dança que vêm pipocando pelo país. Só poderemos analisar a repercussão dessas iniciativas nos diversos contextos da dança brasileira daqui a alguns anos. Por ora, é fundamental trabalhar coletivamente no sentido de transformar as experiências mais recentes em centros de produção crítica, que se afirmem como espaços de resistência, uma vez que os dispositivos do entorno (leia-se, especificamente, “mercado”) estimulam cada vez mais as concessões sucessivas que submetem os jovens artistas às condições de trabalho. Por fim, gostaria de discutir o que considero a terceira classe de dispositivos de poder: a reverência colonial. Um dos autores que estudamos coletivamente foi Boaventura de Souza Santos que, embora não seja um pesquisador da área de dança, tem aprofundado o debate sobre a teoria crítica e a necessidade de propor uma epistemologia do sul e uma ecologia dos saberes. De certa forma, a proposta de ter pesquisadores de diferentes regiões do Brasil já é uma maneira de iniciar uma ecologia de saberes, em que se fale localmente e não com base em categorias dadas a priori. Isso porque a ecologia dos saberes rompe com as hierarquias que submetem o saber regional a categorias dadas por supostos centros de saber/poder. Mas não é nada fácil praticá-la. Há dificuldades ligadas a hábitos cognitivos bem estabilizados que pedem por questionamentos. Assim, o que nomeio de “reverência colonial” surge desde o início da história da nossa dança profissional cênica, uma vez que ela chegou a nosso país, em grande parte, com os imigrantes europeus e/ou com a experiência de brasileiros que estudaram ou trabalharam fora do país. Por isso, embora as nossas experiências de dança contemporânea tenham sido fortalecidas e ampliadas, sobretudo após os anos 1990, o hábito cognitivo de valorizar tudo que é internacional ainda se faz bastante presente em muitos circuitos (mídia, ensino e política). Como não existe tradução literal (toda tradução é criação), os dispositivos locais absorvem e reorganizam os modelos traduzidos, conforme faz sentido para aqueles que conduzem as iniciativas (e não necessariamente para o contexto onde estão inseridas). Um bom exemplo é o projeto megalômano para criar um teatro de dança em São Paulo (ver texto de Maria Claudia Alves
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Guimarães), a despeito das propostas feitas por alguns representantes da própria classe de dança que sugerem alimentar uma rede mais ampla e descentralizada de iniciativas3. Outros exemplos são os das companhias ou grupos que preferem convidar coreógrafos estrangeiros para montar espetáculos, quase sempre com menos de um mês de trabalho, tendo em vista conquistar visibilidade na mídia e entre os pares, em vez de construir, de fato, questionamentos e corpos críticos baseados em seus contextos. Alguns curadores e editores de cadernos culturais padecem da mesma patologia que insiste em privilegiar tudo que vem de fora. A produção local só tem voz quando previamente valorizada em âmbito internacional.
Como profanar Todo dispositivo envolve um processo de subjetivação sem o qual não funciona como dispositivo, mas apenas como exercício de violência. Na fase atual do capitalismo, explica Agamben, os dispositivos agem menos como produtores de sujeitos e mais como acionadores de processos de dessubjetivação que eliminam toda e qualquer singularidade banalizando tudo e todos. A criação de corpos dóceis, que Foucault havia identificado há mais de três décadas, transforma-se cada vez mais na construção de corpos inertes: os cidadãos que executam tudo que mandam, deixando-se controlar em todas as instâncias, dos gestos cotidianos à saúde, aos divertimentos e à alimentação.
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Muitas vezes, tais estratégias de docilização e apatia não são violentas, mas seguem a rota dos desejos. O consumo é um grande exemplo. No caso da dança, não se trata de consumir roupas e artefatos, mas de adquirir certa imagem, certo status, como, por exemplo, fazer uma participação em um evento que tem uma grande visibilidade midiática, mesmo sem ganhar cachê. A questão é como lidar com essas situações. As contas a pagar são sempre um argumento imbatível. O primeiro passo, diz Agamben, é ter consciência dos dispositivos que nos enredam. Nesse sentido, um amplo mapeamento de dados pode e deve contribuir apresentando com clareza os estados transitórios de cada contexto. As articulações dos pesquisadores devem garantir visibilidade e continuidade na dinâmica com os usuários. Quanto mais acessos, mais possibilidades de conexão e compartilhamento. Ao discutir a potência do pensamento, Agamben (2007) obriga-nos a repensar não apenas a relação entre potência e ato, como discutiu Paolo Virno, mas aquela entre o possível e o real, que implica também como olhar de outras maneiras para a estética, para o ato de criação e para a política. Mais do que nunca, é preciso olhar e agir coletivamente. Profanar nada mais é do que tocar no consagrado para libertá-lo (e libertar-se) do sagrado. Para tanto, circulamos o tempo todo entre a sistemática e seu abandono e não podemos temer abandonar de uma vez a visão otimista da história humana, consagrada pela modernidade. Na vida e na dança, tem se tornado cada vez mais evidente que nem tudo se resolve no cumprimento das regras. Às vezes, é preciso ficar com as mãos vazias para nos disponibilizarmos para aquilo que virá. 3
O projeto apresentado pelos artistas Adriana Grechi, Adriana Macul, Ana Teixeira, Cristian Duarte,
Elisa Ohtake, Laura Bruno, Mariana Camargo, Mara Guerreiro, Raul Rachou, Sheila Ribeiro, Sheila Arêas, Vera Sala, Tarina Quelho e Thelma Bonavita, assim como a polêmica gerada, pode ser lido na íntegra no site idanca.net, no endereço http://idanca.net/lang/pt-br/2010/06/16/longe-de-um-acordo/15435.
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Referências bibliográficas AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo? E outros ensaios. Tradução Vinícius Nicastro Honesko. Chapecó: Unichapecó, 2009. _____. Profanações. Tradução Selvino J. Assmann. São Paulo: Boitempo, 2007. FOUCAULT, Michel. Hommage à Hyppolite. Paris: PUF, 1971. GREINER, Christine. O corpo em crise, novas pistas e o curto-circuito das representações. São Paulo: Annablume, 2010. IGARASHI, Yoshikuni. Bodies of memory, narratives of war in postwar japanese culture, 1945-1970. Princeton and Oxford: Princeton University Press, 2000. LEPECKI. Exhausting dance: performance and the politics of movement. New York/London: Routledge, 2006. LOUPPE, Laurence. Poétique de la danse contemporaine, la suíte. Bruxelas: Contredanse, 2007. MARTÍN-BARBERO, Jesús. La educación desde la comunicación. Bogotá: Norma, 2003. SANTOS, Boaventura de Souza. A gramática do tempo. São Paulo: Cortez, 2006. _____. Introdução a uma ciência pós-moderna. Porto: Afrontamento, 2002. _____. A crítica da razão indolente. Contra o desperdício da experiência. São Paulo: Cortez, 2000. VIRNO, Paolo. El recuerdo del presente. Ensayo sobre el tiempo histórico. Tradução Eduardo Sadier. Buenos Aires: Paidós, 2003.
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Cibele Saliba Rizek
Sociรณloga, professora-associada do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da Escola de Engenharia de Sรฃo Carlos/USP e pesquisadora do Centro de Estudos dos Direitos da Cidadania. Desenvolve pesquisas aproximando as รกreas trabalho e cultura.
O artista: trabalhador e cidadão
A
s tensas relações entre arte e sociedade foram objeto de um conjunto de textos, reflexões, questões, dimensões oriundas de vários autores direta ou indiretamente vinculados às ciências sociais. Essas relações entre arte e sociedade dificilmente poderiam ser consideradas com base em consensos entre diferentes autores: se um sociólogo como Pierre Bourdieu1 apontou o caráter necessariamente redutor do olhar sociológico sobre a arte, por outro lado, pode-se recorrer a um Teodor Adorno2, para quem, entre outros apontamentos extraordinariamente densos, a arte poderia revelar dimensões críticas inscritas em sua forma, o que permitiria afirmar que ela se configura como antítese social da sociedade. Assim, pensar o artista como trabalhador é pensar um dos ângulos dessa relação tensa e perigosa entre sociedade e produção estética. Trata-se, então de uma injunção complicada nos tempos que correm: de um lado o que se poderia entender como uma articulação entre autonomia da criação e desautonomia do financiamento e/ou da possibilidade do consumo estético. Por outro lado, graças a um conjunto importante de transformações que ganharam fôlego nos últimos 30 ou 40 anos, as grandes empresas, o Estado, as figurações de um capital mundializado e financeirizado descobriram a cultura e a arte como negócio, como nova fronteira de investimento e como possibilidade de gestão, cálculo e administração em uma escala que talvez se possa considerar como inédita. O ideal moderno da autonomia e sua perda por meio da transformação da arte e da cultura em negócio fazem parte das complicações contemporâneas que permeiam a reflexão sobre a produção artística. Isso quer dizer que estamos diante de outra moldura, de outro formato, muito diverso das relações clássicas entre arte e mecenato, assim como dos ideais modernos de autonomia estética. 1 Ver BOURDIEU, Pierre. As regras da arte. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. 2 Ver ADORNO, Teodor. Teoria estética. Porto: Edições 70, 2008.
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Assim, se foi possível a um autor como Norbert Elias3 identificar a tragédia de Mozart na incompatibilidade entre seu aprisionamento nas relações de mecenato, no fim do século XVIII, e sua consciência de artista autônomo, qual seria a tragédia dos artistas contemporâneos? Quais suas injunções em meio a esse momento de intensa mudança e consolidação de um novo (aliás, nem tão novo assim) modo de financiamento da produção de arte e suas consequências? Como identificar esse desenho e esse novo modo de captura da produção da arte pelos filamentos sofisticados das grandes instituições que, em parceria com o Estado, acabam por viabilizar essa produção em nossos dias? Quais são suas relações com o artista trabalhador e com o artista cidadão? Ou, para dizer de modo muito mais simples e talvez muito redutor, como sobreviver produzindo arte, hoje, no Brasil? Que dimensões e práticas a sobrevivência impõe? Ou, ainda, como se determinam essas condições?
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Essas questões que se colocaram após a construção de um lugar moderno para a questão da produção da arte – a chamada autonomia ou autonomia relativa da arte – foram recentemente moduladas pelas tessituras de uma forma contemporânea dos processos de produção da riqueza e dos novos desdobramentos da acumulação do capital. Trata-se de outro lugar da “cultura” na produção contemporânea, lugar que enreda de modo inédito a reflexão e a arte na produção da vida, minando fortemente as possibilidades de autonomia ou, pelo menos, modulando essa autonomia de outro modo, possivelmente mais complicado ou mesmo mais perverso. Alguns autores, que, aliás, se originam da crítica de arte e de literatura, como Fredric Jameson, não por acaso um autor norte-americano, classificam esse momento presente com a alcunha de A Cultura do Dinheiro4. Esse autor identificaria assim um ponto de inflexão claro a partir do qual não se trata mais de pensar as velhas e clássicas determinações da produção estética, localizadas em um conjunto de mediações que operavam com base em determinações em última instância. As determinações são, hoje, muito mais diretas, mais visíveis, muito menos mediadas, de modo que a esfera da produção da cultura teria sido fortemente incorporada à esfera do capital em seus circuitos financeirizados. Assim, se a situação e a inserção de Mozart podem ser usadas como mote para pensar a realidade e as condições do século XVIII e suas transformações ao longo do século XIX, o mesmo não se pode dizer dos processos que permitem compreender horizontes, lutas e conquistas, como, por exemplo, a luta pelo financiamento público, empreendida por grupos de teatro e artes do espetáculo ao longo dos últimos dez anos. A questão do financiamento público da produção– a lei de fomento, a luta pelo fomento público ou quaisquer outras iniciativas que tenham a questão do financiamento estatal como eixo – é quase sempre lida e compreendida com base na relação Estado/mercado, que, às vezes, pode acabar se constituindo como armadilha, como opacidade mais do que como elucidação. Essa chave de leitura não vai além das fontes de financiamento simplificadamente contrapostas de forma binária, nublando outro leque de perguntas a respeito da associação entre financiamento público e arbitragem pública, pactuada e debatida publicamente em torno de dimensões estéticas. Essas dimensões são importantes porque nem todo financiamento estatal é necessariamente público, já que este requer clareza de critérios, debate, democratização e transparência. Se o financiamento estatal não se conforma necessariamente como público, a questão dos financiamentos privados, para além da denúncia dos mecanismos que ancoram o mecenato, coloca algumas perguntas sobre a possibilidade de arbitragem realmente pública e democrática do que seria ou não financiado, 3 Ver ELIAS, Norbert. Mozart: sociologia de um gênio. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995. 4
JAMESON, F. A cultura do dinheiro. Ensaios sobre a globalização. Petrópolis: Vozes, 2001.
o caráter dos fundos investidos, passíveis de serem vistos como fundos públicos na medida em que são imposto devido, além da questão sobre a necessidade de certa adaptação da criação estética às formas da intervenção apaziguadora em relação à pobreza, prática crescente e passível de ser observada em qualquer “comunidade” pobre das grandes cidades brasileiras. Essas formas de intervenção ou de ação, como contrapartidas do financiamento, se desdobrariam crescentemente em dimensões de criação, observação e operação de dispositivos que operaram para enraizar esses processos em modos de uma presumida “inserção e/ou inclusão social”. Arte e virtude social associaram-se em um novo modo de aceitação das desigualdades, transformadas em públicos-alvo focalizados, adquirindo o manto do política e socialmente correto, das práticas virtuosas, cujas consequências podem se desdobrar em uma adaptação ao mundo tal como ele é, contribuindo para a produção de “cidadãos do bem e da ordem”, sem que se pergunte em nenhum momento que bem, qual virtude e de qual ordem se trata. Amortecimento, empobrecimento, estetização da pobreza e desestatização da produção estética, tudo isso devidamente embalado e enfeitado pelo mecenato/marketing da virtude e da “cidadania” regulada não mais pelo trabalho, mas por formas de controle, acomodação e domesticação da vulnerabilidade. De certo modo, o avesso da autonomia teria assim seu acabamento e seu desdobramento final. A autonomia da arte, como promessa moderna de outro lugar para a criação e a elaboração estéticas, abandonaria definitivamente o lugar a partir do qual seria possível dar origem a outro modo de ver “o real”, possibilitando a conformação dos processos de negação e de crítica do mundo em sua positividade. Cabe ainda notar que, se artistas e criadores estão enredados nesses processos de adaptação e pacificação, nem só de arte e de cultura vivem esses dispositivos. Eles espalham-se e articulam os coletivos de arte com outros polos, vistos também como produtores das virtudes da inclusão e da inserção sociais, tal como a economia solidária e o chamado trabalho associado. O que passa a operar é um entrelaçamento crescente entre produção estética e o chamado “trabalho social”, cuja missão seria “ cidadã” e redentora, fortemente revestido de uma aparência e de uma matriz discursiva que parecem se ancorar nas expectativas e nos discursos da emancipação humana. A chamada economia solidária e suas supostas virtudes foram rapidamente assimiladas às propostas de gestão e funcionalização da pobreza, à focalização das políticas sociais no bojo dos programas de grandes entidades gestoras e reguladoras como o Banco Mundial, desdobrando-se em categorias que se incorporaram ao vocabulário dos programas de financiamento da produção artística e do trabalho social: capital humano, virtudes e potencialidades da pobreza, modos de assimilação e indeterminação entre trabalho associado, trabalho social e exploração pura e simples, as múltiplas faces do empreendedorismo e do empreendedorismo social e, em meio a essas formas, o trabalho artístico e suas contrapartidas sociais. Assim, é possível constatar, por um lado, a produção artística e a arte como negócio, em seus polos com mais recursos, e, no polo das associações com as carências e vulnerabilidades, o vínculo entre trabalho artístico e “ação social de inserção ou inclusão”. As estratégias, o modo de conformação dos financiamentos privados da produção artística, entretanto, não podem ofuscar o fato de que, como aponta a pesquisa de fundamental importância de Liliana Segnini, é o Estado que, no contexto brasileiro, representa a principal fonte de financiamento das atividades das artes, ainda que nos últimos 20 anos se observe uma participação cada vez maior das grandes corporações de capital estatal ou privado no financiamento do trabalho artístico. Assim também não se pode ignorar o papel do Estado no incentivo a essa participação, no desenho e na implementação das políticas culturais.
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Essa dimensão aponta para formas significativas de racionalização expressas nas estratégias das corporações para fazer da arte um grande negócio – o que se constitui como produto de uma convergência de interesses que permitiria essa opção de política cultural como política de “privatização” dos processos de arbitragem de objetos de investimento ou, pelo menos, de crescente participação de formas pertinentes às dimensões privadas na gestão e na escolha de práticas e objetos de financiamento privado. Ganha relevância, então, perceber esse acoplamento entre os interesses dos governos de inspiração neoliberal que propuseram a expansão do livre mercado e os interesses das grandes corporações em aumentar seu raio de ação, açambarcando a produção de arte e cultura, minimizando custos por meio de renúncia fiscal e maximizando lucros por meio dos processos de marketing corporativo. É possível perceber essa tendência de aumento do financiamento privado desde meados dos anos 1980, ainda que, sempre de acordo com Liliana Segnini, a incidência desses financiamentos sobre o trabalho artístico ganhe importância a partir de 1995. Também é possível observar um crescimento vertiginoso do Fundo Nacional de Cultura desde o fim dos anos 1990 até meados da primeira década do século XXI, bem como o crescimento exponencial dos recursos investidos pelo mecenato no mesmo período, por meio da Lei Rouanet5. Esse é o mecanismo que está na base de toda a política de relações entre o Estado e o capital corporativo, inclusive corporações estatais. Trata-se, portanto, de renúncia fiscal, isto é, de investimento de fundo público.
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Parece plausível afirmar que os projetos que recebem mais investimento oriundo do mecenato são os que têm origem em grupos consolidados e/ou com maior expressão e visibilidade midiática. Assim, grandes artistas com percursos consolidados, ou mesmo o consagradíssimo Cirque du Soleil, receberam recursos oriundos desse mecanismo de parceria entre Estado e corporações privadas, o que não impediu a cobrança de caríssimos ingressos em casas de espetáculo localizadas nos grandes eixos urbanos de empresas e negócios nas capitais brasileiras. Entretanto, cabe destacar também a participação significativa de empresas públicas nesse processo de captação, entre elas a Petrobras, que tem um peso relevante nesse universo de ofertas de possibilidades de financiamento da produção cultural e artística. Desse modo, por um lado, em um contexto de políticas que reforçam a importância política do mercado de financiamentos e oportunidades de investimento, o Estado transfere recursos públicos para as grandes corporações e são elas que definem as diretrizes da relação entre arte, mercado e fundos públicos, programas e modos de investimento. Mas é preciso estar atento para o fato de que, se é verdade que as empresas públicas de caráter ainda predominantemente estatal estão entre as maiores financiadoras, então fica claro que a opção é econômica, por certo, mas, sobretudo, é também política. Trata-se de uma política de gestão das artes por meio de decisões cujo núcleo são as grandes corporações. Disso decorre que é a elas que cabe também o núcleo de decisões que determinam e estruturam o “mercado de trabalho” para os produtores de arte e cultura no Brasil. Assim, por um lado ou por outro, há implicações importantes para o trabalho artístico dessa esfera de determinações. Pode-se ainda perguntar sobre a natureza da autonomia relativa da arte e da cultura no âmbito dessa política cultural no Brasil de hoje, ou ainda perguntar se o horizonte de autonomia não desapareceu dessa nova forma de gestão que encolheu brutalmente a relação entre arte e política e que modulou de outro modo as relações entre arte e sociedade. Uma das saídas para o enfrentamento desse novo modo de conformação de práticas, mecanismos e programas de financiamento foi a constituição de coletivos de artistas: grupos de teatro, coletivos de dança, de artes plásticas etc. Esse grupos, assim como o número de profissionais envolvidos com o trabalho artístico, estão em crescimento significativo no 5 Ver www.cultura.gov.br/apoio_a_projetos. Acesso em: set. 2009.
Brasil desde a década de 1990. Liliana Segnini apontou um crescimento de profissionais dos espetáculos e das artes da ordem de 67% entre 1992 e 2006. Entre os que vivem do trabalho artístico, há uma grande predominância do trabalho por conta própria e crescentemente, em função de políticas e programas sociais, alguns coletivos e grupos se transformam em cooperativas, pondo em operação um conjunto de novos e velhos dispositivos do trabalho associado, o que depende, obviamente, do tipo de trabalho artístico que se realiza. Entretanto, pode-se facilmente apontar que a imensa maioria desses profissionais trabalha de maneira informal ou precária, ainda que esses qualificativos queiram dizer muito pouco hoje, quando comparados com o ideal do trabalhador cuja cidadania era regulada pela carteira de trabalho. A menção à formalização das relações de trabalho, distante das expectativas de parte considerável dos profissionais da arte na atualidade, parece apontar que estão em cena novas formas e novos modos de regulação e objetivação que normalizaram a precarização das condições de trabalho e vida, a condição temporária de provimentos oriundos de cachês, leis de incentivo, novas e velhas formas de trabalho cooperativado e, finalmente, como parte considerável dos trabalhadores brasileiros, a “viração”. A flexibilização do trabalho agrega-se às formas de flexibilização de uso da força de trabalho nos últimos 30 anos. Isto é, essa não é uma especificidade dos artistas. Se é verdade que nem todo trabalho flexível é precário, ainda que no Brasil essa aproximação seja bastante plausível, também é interessante notar que a literatura sobre o trabalho e o mercado de trabalho aponta que as formas de contratação e de precariedade do trabalho artístico parecem se constituir em dispositivo e em experimentação revestida de um conjunto de justificativas enobrecedoras e aparentemente emancipadoras: o trabalho voluntário que deixa de ter conteúdo filantrópico para entrar na agenda das práticas empresariais, as dimensões corporativas de uso de um trabalho que se distancia das formas clássicas e aparece como não trabalho, inclusive as práticas de criação artística, o nascimento de dispositivos poderosos de intermediação entre corporações e populações organizadas como “comunidades” carentes a serem ordenadas e integradas ao “bem viver” em sociedade, novas formas de gestão que se desdobram tanto no gerenciamento da precariedade do trabalhador em arte como na administração da vida das populações transformadas em públicos-alvo de práticas, o que passa inclusive, pelo enorme leque de formas organizacionais – institutos, ONGs, organizações sociais, e suas inúmeras formas de financiamento com ou sem as parcerias e terceirizações de serviços públicos. É possível, assim, entrever que os trabalhadores da arte se conformaram com uma espécie de núcleo avançado de flexibilização do trabalho, o que se coadunou de modo bastante importante com financiamentos por editais, com fluxos variáveis de financiamento público e privado, com a condição informal e precária de vida e trabalho elevada à situação de normalidade e normalização6. A gestão da produção e da vida “por projetos”, que, aliás, não se restringe aos profissionais das artes, talvez seja o exemplo mais claro dos desdobramentos dos processos de flexibilização, que acabam por resultar em um trabalho de múltiplas tarefas, pela incorporação crescente dos saberes de gestão, pelo domínio da produção dos projetos de financiamento ou pela contratação de profissionais especializados na elaboração de projetos para pedido de financiamento e seus desdobramentos. A vida e o trabalho pautados por projetos, financiamentos e suas oscilações – o que de resto acompanha os processos de transformação 6
Essa ideia tem como origem a pesquisa da professora doutora Liliana Segnini, do Programa de Pós-
graduação em Sociologia do Trabalho, da Unicamp. A ela devo a menção à obra Retrato do Artista enquanto Trabalhador, de Pierre-Michel Menger, Lisboa, Roma Editora, 2005. Esse autor constrói a ideia de que as artes e o trabalho artístico se constituem como laboratório de flexibilização. Estou aqui utilizando a ideia de dispositivo mais do que a ideia de laboratório. A respeito dessa noção, ver AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo. Chapecó: Argos, 2009.
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de contratação, terceirização e gestão das grandes empresas – resultam da produção de vínculos de trabalho instáveis, temporários, subcontratados, e talvez as artes e sua complexidade, suas virtualidades e possibilidades, suas potencialidades emancipadoras e humanizadoras tenham funcionado como dispositivo e como uma espécie de antecâmara para esse conjunto de inovações organizacionais que capturam, mais do que qualquer discurso ou prática, a elaboração e efetivação do trabalho artístico. Mais do que isso, talvez possamos perceber de que modo o financiamento privado da produção estética na exigência de suas contrapartidas tenha transformado a vida e o trabalho pautado por projetos em modo de gerir não apenas a vida e o trabalho dos produtores e criadores, mas também de seus públicos-alvo acondicionados em programas sociais e culturais.
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Há também uma enorme semelhança entre esse processo de produção de projetos e obtenção de patrocínios públicos e privados e uma onguização de coletivos de arte e de artistas em suas práticas sociais e pedagogizantes. Nessa confluência, pode estar operando um deslizamento importante da produção estética para o trabalho social que, por meio de discursos e práticas ainda ancorados nas dimensões modernas das relações arte/sociedade, acaba por produzir um social como dimensão híbrida, como o avesso da possibilidade da ação, como contraponto à constituição de sujeitos, como criação de objetos de gestão, acomodação e pacificação e da precariedade e da desigualdade. A constituição desse novo modus operandi, dessa nova forma das relações entre Estado, mercado e produção das artes também gerou um conjunto de lutas e conflitos, algumas conquistas em âmbito municipal e, posteriormente, mesmo em âmbito nacional. Assim, é preciso também mencionar que o destino dessas vitórias é significativo, ainda que tenha gerado também novas opacidades e ambiguidades, que passam pela discussão em torno da arbitragem e das decisões, bem como das oscilações pendulares entre obtenção e não obtenção de financiamentos, comprometendo a longevidade e a possibilidade de permanência de grupos e coletivos, de práticas e de dimensões de pesquisa e inovação estéticas. Cabe, sobretudo, perceber que esses mecanismos de financiamento público acabam por compor os complicados espectros pelos quais se garante ou não a continuidade da difícil tarefa de sobreviver com o trabalho artístico nos dias que correm, para além das fronteiras midiáticas e espetacularizadas das grandes empresas eufemisticamente chamadas de empresas “de comunicação”. No âmbito do que foi apontado aqui, o contexto social e econômico contemporâneo vem transformando o trabalho de produção estética em gestão de si e da própria sobrevivência, na e pela ausência de vínculos de assalariamento e seus direitos, consolidando e redefinindo o chamado “trabalho autônomo” que veste crescentemente as roupas do empreendedorismo e do empresariamento. Ainda nesse mesmo âmbito, objetividades (trabalho precário) e subjetividades (a ideia de uma normalização desses processos) são atravessadas por um conjunto de agenciamentos novos. São potencialmente dispositivos que enredam e nos enredam em um horizonte de empresas, o mundo do “Você S.A.” e de um conjunto de “comunidades” reencontradas e simuladas em públicos-alvo. Essas dimensões, vistas como resultados de um conjunto de processos, parecem redesenhar os campos e mecanismos de produção artística e de seus financiamentos. Resta então, por um lado, entender que se trata da constituição de um campo de forças, de um campo de conflitos. De outro, cabe sempre perguntar pelos elementos que constituem os eixos estruturantes dessa conformação tanto em seus novos componentes como em suas redefinições e deslizamentos. Quais as novas tensões e contradições? Em quais fissuras seria ainda possível encontrar caminhos e processos de ação? Como repor as questões colocadas pelo presente identificando e pondo em questão as redefinições, modulações, tensões entre os dispositivos tão mais eficazes quanto
mais invisíveis, e o trabalho e ação artísticos, sobretudo na dimensão das artes da presença que requerem o corpo e que talvez possam problematizar a domesticação, a disciplina, a pacificação da gestão e da administração da vida, encontrando e produzindo, para além da sobrevivência e da normalização, resistências, restituições, possibilidades... Pensar o artista como trabalhador passa assim por entender sua condição de alguém que, pela produção estética, produz e reproduz também um modo de inserção produtiva que se complexifica por essa mistura de encolhimento de direitos, transitoriedades, gestão, trabalho associado e trabalho social. Essas dimensões podem nos conduzir a pensar outro lugar da produção, financiamento e gestão da arte e da cultura no mundo contemporâneo.
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Coreógrafo, jornalista e pesquisador. Doutor em educação pela UFRGS. Mestre em processos midiáticos pela Unisinos. Professor do curso de graduação em dança da Uergs. Diretor do Centro Municipal de Dança da Prefeitura de Porto Alegre. Colunista do site Idança.
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Airton Tomazzoni
Trânsitos possíveis: conexões e desconexões da cartografia da dança contemporânea no Rio Grande do Sul
“Um diagrama é um mapa, ou melhor, uma sobreposição de mapas. E, de um diagrama a outro, novos mapas são traçados. Por isso não existe diagrama que não comporte, ao lado dos pontos que conecta pontos relativamente livres ou desligados, pontos de criatividade, de mutação, de resistência; é deles, talvez, que será preciso partir para se compreender o conjunto.” Foucault, Gilles Deleuze
A
o começar a tentar “ler” a cartografia que se apresenta, creio ser oportuno resgatar a perspectiva de Michel Foucault referente a diagramas e mapas, trazida por Gilles Deleuze. Em minha análise, lidarei com diagramas que se sobrepõem. Frente à complexidade de tal panorama, há de se assumir as contingências históricas e contextuais da produção dessa cartografia, sempre capaz de verdades modestas e provisórias, como já enfatizou Edwald (1993). Dessa maneira, trafegar por esses mapas é vagar por territórios não apenas estéticos, mas coletivos, relacionais, políticos e éticos. Estamos diante de territórios nos quais se desenham relações de forças que dimensionam a experiência no campo da dança contemporânea. Meu intuito foi o de buscar encontrar conexões e desconexões no trânsito possível por essa geografia dançante na produção do Rio Grande do Sul. Começo, então, minha análise pelos protagonistas dessa cartografia, ou seja, os grupos, companhias e profissionais. Um coletivo heterogêneo no qual se pode perceber já de largada dois movimentos distintos: o de permanência e o de renovação. Permanência do trabalho de companhias já tradicionais, como Terpsí Teatro de Dança (criada em 1987), Muovere (criada
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em 1989), Cia. H (criada em 1993) e Ânima Cia. de Dança (criada em 1993), além de outras mais recentes. Ao mesmo tempo, verifica-se o surgimento de novos grupos e companhias, como a Troupe Xipô, de Montenegro; o Tatá Núcleo de Dança-Teatro, de Pelotas; o Grupo de Estudos e Experimentação em Laban; de Caxias do Sul; e, na capital, a Porto Alegre Cia. de Dança, o Grupo Enfim, o Experimento Fluxo, o Cena 21 e Thais Petzhold Cia. de Dança. O levantamento atual identificou 33 grupos e companhias de dança contemporânea no estado, sendo que, do último mapeamento, em 2006-2007, apenas uma companhia encerrou suas atividades: a Provisório Corpo, de Caxias do Sul. No interior do estado, verifica-se um aumento representativo, chegando hoje a 11 grupos e companhias em atuação, ou seja, 1/3 dos grupos e companhias contemporâneas se distribui fora da capital. Um grupo singular que revela os novos formatos de organização e de relações é o Coletivo 209. O Coletivo nasceu dentro do projeto Usina das Artes, da Prefeitura Municipal de Porto Alegre, e vem praticando a gestão compartilhada, na qual grupos e artistas mantêm a programação da Sala 209. Fazem parte do coletivo Eduardo Severino Cia. de Dança, Grupo Tato (Fernanda Leite), Mimese (Luciana Paludo), Andrea Spolaor, Thaís Petzhold, Luciana Hoppe, Luciano Tavares, Tatiana da Rosa, Ânima Cia. de Dança (Eva Shul), Grupo de Risco (Cibele Sastre), Flores Urbanas (Daggi Dornelles) e Purê de Batatas (Dani Boff e Heloisa Gravina).
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Esses grupos, companhias e coletivos, para começarem ou para permanecerem, precisam estabelecer formas de existência no cenário cultural. Apenas três grupos e companhias estão diretamente vinculados a iniciativas públicas municipais. A Cia. Municipal de Dança de Caxias do Sul (criada em 1997), o Grupo Experimental de Dança da Cidade (criado em 2007 em Porto Alegre) e a Cia. Municipal de Dança de São Leopoldo (criada em 2008). Na de Caxias do Sul, os integrantes recebem salário; na de São Leopoldo, ajuda de custo; e, no Grupo Experimental, aulas gratuitas. Ainda que os demais grupos se coloquem como independentes, verifica-se uma íntima dependência de projetos públicos para suas atividades e nenhuma conta com patrocínio que garanta sua manutenção ou sua produção. Aproximadamente 80% dos grupos vêm se beneficiando de projetos ou financiamentos públicos. Têm sido determinantes nesse processo os fundos de financiamento municipais, como o Fumproarte, de Porto Alegre; o Fundoprocultura, de Caxias do Sul; e o Fumprocultura, de Montenegro. Eles vêm garantindo especialmente a produção e a circulação de espetáculos, bem como a remuneração provisória de bailarinos, coreógrafos e diretores. Outra iniciativa pública importante no âmbito federal é o Prêmio Klauss Vianna, da Funarte, ao lado da recente Bolsa Funarte de Estímulo à Criação Artística, formas de fomento de muitas obras produzidas no estado nos últimos três anos. É preciso ressaltar, no entanto, a concentração quase total desses recursos na capital; apenas um grupo do interior do estado recebeu, neste último levantamento, o Prêmio Klauss Vianna. Complementam essas iniciativas o apoio de projetos como o Usina das Artes, do Centro Cultural Usina do Gasômetro, em Porto Alegre, que destina verba mensal, espaço físico e estrutura logística para grupos que passam a se responsabilizar pela programação cultural da popularmente conhecida Sala 209. Além disso, cabe incluir as instituições de ensino superior, como Ufpel, UFRGS e Uergs, que vêm sendo fundamentais para a produção de obras gestadas nos programas de cursos de graduação e pós-graduação em dança e artes cênicas. Enfatizo, aqui, essa consideração, pois
há de se creditar o ensino público como um investimento privilegiado e, portanto, uma valiosa forma de apoio em várias frentes: a formação oferecida, o espaço físico para a experimentação, a orientação especializada e, muitas vezes, também o suporte material. Em contrapartida, as leis de incentivo como Lei Rouanet e a Lei de Incentivo à Cultura (LIC), de âmbito estadual, pouco ou nada têm representado em termos de apoio aos grupos e companhias de dança contemporânea do Rio Grande do Sul, fato que reitera a distorção que essas leis vêm perpetuando no cenário cultural estadual e nacional. A mesma lacuna é percebida na esfera estadual, que há quase dez anos não abre edital para a principal forma de incentivo da Secretaria de Estado da Cultura: o Prêmio de Incentivo às Artes Cênicas. Outra percepção relevante é o aumento significativo do número de profissionais que estão cursando ou cursaram graduação ou pós-graduação em artes cênicas ou dança. Essa configuração vem mudando muito o cenário da dança no Rio Grande do Sul, possibilitando novas articulações de saberes, mais espaços para pesquisa, experimentação, sistematização e difusão do conhecimento. Nesses fluxos profícuos, há artistas que já têm uma trajetória e levam sua experiência para o espaço acadêmico, problematizando e socializando seus saberes; há acadêmicos que se debruçam sobre o trabalho de criação de coreógrafos e grupos tradicionais como tema de suas pesquisas; e há acadêmicos passando a fazer parte de tradicionais grupos e companhias, ou formando seus próprios grupos, ou iniciando carreira individual. Sem querer aqui superdimensionar a dança no espaço universitário, é preciso destacar que ele está promovendo mudanças nas relações, possibilitando ou permitindo aprofundar modos de fazer e refletir que anteriormente pouco ou nunca se efetivavam. De certa maneira, também esse espaço acadêmico vem ajudando a fomentar redes de colaboração, seja por reunir diversos professores/artistas em seu corpo docente, seja por reunir alunos das mais variadas experiências dançantes numa mesma turma. Enfim, garantindo um espaço contínuo para o exercício da alteridade. Isso assim se desenha por uma configuração singular em âmbito nacional. O Rio Grande do Sul conta com cinco cursos de graduação em licenciatura em dança atualmente. Dois deles são privados: o de graduação em dança da Universidade de Cruz Alta (Unicruz), em Cruz Alta, e o da Universidade Luterana do Brasil (Ulbra), em Canoas. Três desses cursos são públicos: o da Universidade Estadual do Rio Grande do Sul (Uergs), em Montenegro, o da Universidade Federal de Pelotas (Ufpel) e recentemente o da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Cabe ressaltar que, no caso das instituições de ensino, não há uma concentração na capital e é evidente certa descentralização geográfica para a formação acadêmica em dança, fato que se reflete nos três cursos de pós-graduação: o do Centro Universitário Univates, de Lajeado; o da Universidade de Caxias do Sul (UCS); e o da Pontifícia Universidade Católica (PUC/RS), de Porto Alegre. Esse tem sido outro fator que torna o território universitário importante para a expansão da dança contemporânea, pois não é casual o fato de a produção bibliográfica e o surgimento de novos grupos, especialmente no interior, estarem vinculados às cidades nas quais há um polo universitário de dança. Da mesma maneira, o espaço universitário vem garantindo o conhecimento com uma crescente produção acadêmica sobre dança contemporânea. Nos últimos anos, foram mais de duas dezenas de teses, dissertações e trabalhos de conclusão produzidos sobre a dança contemporânea, num cenário que conta com cinco doutores atuando no âmbito da dança contemporânea: Sigrid Nora, Monica Dantas, Susi Weber, Airton Tomazzoni e Magda Bellini.
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Contudo, esse movimento não tem se refletido na produção editorial, com tímidas publicações nos últimos anos. Entre elas, estão apenas duas obras lançadas: Ditos e Malditos (editado pelo Terpsí Teatro de Dança) e Hummus (organizado e editado por Sigrid Nora), ambas de acesso limitado, uma vez que, como material de distribuição gratuita, não se encontram em livrarias. Neste levantamento que identificou 45 produções nos últimos anos, há um circuito com um bom número de espaços culturais concentrado na capital, e com alternativas de teatros e auditórios minimamente adequados em várias cidades do interior, como Caxias do Sul, Santa Maria, Montenegro e Pelotas. Novamente os espaços públicos são os que têm absorvido o maior número de espetáculos de dança contemporânea. Além disso, percebe-se que esses espaços contam com pautas reduzidas para a dança. As temporadas, via de regra, são de duas ou três apresentações. Essa realidade tem sua contrapartida em espaços alternativos como o da Sala 209, com programação exclusiva de dança; o Teatro Museu do Trabalho ou mesmo o Studio Stravaganza, que eventualmente recebe temporadas de dança. Eles vêm garantindo temporadas mais prolongadas para as produções, mas não oferecem, muitas vezes, as melhores condições de infraestrutura e localização.
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Em termos de eventos de maior porte, o Rio Grande do Sul perdeu e ganhou, com uma história de eventos que acabam se extinguindo ou não têm uma frequência continuada, como o Dança Porto Alegre, o Conesul Dança, o Conexão Sul e o Usina Dança Brasil Telecom. Mas, nos últimos anos, surgiram dois novos eventos com recorte em dança contemporânea: o Festival Mesa Verde, com foco na dança-teatro, e o Festival Internacional Dança.com, que envolve a produção contemporânea em torno dos eixos corpo, performance e tecnologia. Esses eventos, aliados à programação de dança que aparece inserida no Porto Alegre em Cena, estão constituindo um circuito importante para a difusão da dança contemporânea, trazendo grupos, artistas e pesquisadores do Brasil e do exterior. De menor porte, mas não de menor importância, tem sido a Mostra Movimento e Palavra. Evento realizado na Sala 209, busca reunir mensalmente obras de diferentes artistas, sempre seguido de debate com comentadores/provocadores. A mostra vem garantindo espaço para trabalhos de curta duração e para o encontro e diálogo entre artistas. Em Montenegro, por sua vez, acontece o Encontro Nacional de Pesquisa em Artes, que chegou à sua quinta edição reunindo profissionais de dança, teatro, música e artes visuais. Além desses eventos, o estado conta com inúmeros festivais competitivos e não competitivos, que vêm sendo uma via de difusão da dança contemporânea, especialmente no interior, com a inclusão de espetáculos, cursos e palestras de dança contemporânea. Nessa sobreposição de mapas que busquei percorrer, percebe-se a perspectiva de começar a compreender como está se estabelecendo a produção de dança contemporânea no Rio Grande do Sul, deixando nítida a importância das ações públicas municipais e do contexto universitário. Na Prefeitura Municipal de Porto Alegre, começou a ser implantado efetivamente o Centro Municipal de Dança, em 2005, que a partir de 2009 passou a ganhar autonomia, não pertencendo mais à Coordenação de Artes Cênicas e sendo foco de ações determinantes na cidade. Dessa forma, inúmeras iniciativas vêm sendo realizadas, como a da Escola Livre de Dança, que conta com o Grupo Experimental de Dança da Cidade e com um programa de aulas gratuitas de dança contemporânea. Além disso, é da iniciativa pública municipal a realização do Festival Internacional Dança.com – Corpo, Performance e Tecnologia e a contínua parceria
e colaboração institucional com instâncias como Funarte, Rumos Itaú Cultural Dança, Festival Dança em Foco. É a esfera pública municipal da capital que também tem sido fonte de financiamento público de inúmeras produções pelo Fumproarte e promotora do projeto onde foi gestado o Coletivo 2009. Nesse cenário, Caxias do Sul permanece como segundo centro de produção de dança contemporânea no estado. É o município que tem a única companhia oficial, mantida pela prefeitura, e possui um fundo municipal que tem alavancado muitas iniciativas de dança contemporânea no município. Esse contexto foi favorecido pela sensibilidade do poder público municipal e pela atuação determinante da pesquisadora Sigrid Nora, que esteve à frente da companhia desde sua criação, em 1997, até 2004. Depois de um período de transição, atualmente a companhia vem contando com o empenho da direção cênica de Dagmar Dornelles. Em movimento semelhante, também na gestão de uma prefeitura, nasceu recentemente a Cia. Municipal de Dança de São Leopoldo, sob a direção de Marco Fillipin. É necessário enfatizar que essas iniciativas dependeram da vontade política 2do poder público municipal e de gestores públicos qualificados e com capacidade de escuta e ação. Mais do que buscar dados animadores ou desanimadores, esse percurso pela cartografia se pautou por fazer algumas articulações que permitam começar a perceber as relações implícitas no mapa configurado pela Base de Dados do Rio Grande do Sul. Pontos, intersecções de pontos e trajetos. Pontos que se ligam ou seguem separados. Interseções que revelam mutações ou manutenções. Trajetos que permitem evidenciar que mesmo questões em comum num vasto país como o nosso encontram suas singularidades contextuais na produção de dança contemporânea, perpetuando, criando, reinventando, resistindo e, enfim, afirmando modos de existir.
Referências bibliográficas DAVIDSON, Donald. Ensaios sobre a verdade. São Paulo: Unimarco, 2002. DELEUZE, Gilles. Foucault. Tradução Claudia Sant’Anna Martins. São Paulo: Brasiliense, 1988. EWALD, François. Foucault, a norma e o direito. Lisboa: Vega, 1993. OLIVEIRA, Lúcia M. B. Corpos indisciplinados. Ação cultural em tempos de biopolítica. São Paulo: Beca, 2007. FARINA, Cynthia. Artifícios perros. Cartografia de um dispositivo de formação. Buenos Aires: Revista de Arte y Pensamiento, ano 3, n. 3, p. 47-58, 2002. TOMAZZONI, Airton. Contemporaneidade no extremo sul do Brasil: um percurso. In: Cartografia: Rumos Itaú Cultural Dança 2006-2007. São Paulo: Itaú Cultural, 2007.
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Angela Souza
Artista e pesquisadora da dança, mestranda em dança na UFBA, graduada em ciências sociais pela UFC. De 2000 a 2002, foi aluna-coreógrafa do Colégio de Dança do Ceará. Atualmente cursa especialização no Sistema Laban/Bartenieff na Faculdade Angel Vianna.
Os rumos e veredas do sertão: Ceará, Maranhão e Piauí
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assada uma década do primeiro mapeamento do programa Rumos Itaú Cultural Dança, mudanças relevantes podem ser observadas no contexto das cidades de Fortaleza, São Luís e Teresina. Partindo do recorte proposto para o mapeamento, de articular produção, formação, difusão, modos de organização e políticas públicas, foi possível elencar, circunstancialmente, alguns eixos de ocorrência e sentidos de continuidade na dinâmica do ambiente da dança das cidades supracitadas e seus respectivos estados. Neste artigo, o ambiente da dança1 é entendido como determinado contexto histórico-cultural mais os agentes que fazem a dança de determinado local. A acepção de ambiente tem por base a teoria geral dos sistemas2, na qual é compreendido como um conjunto de condições necessárias para que as relações e conexões aconteçam, codeterminado por diversos agentes, numa rede complexa de informações. O ambiente também é sistema, supersistema ou subsistema. Desse modo, o ambiente da dança não concerne apenas ao local geográfico onde a dança acontece, mas abrange seu contexto cultural, histórico e político, composto dos sistemas de 1
É relevante salientar que o corpo também é entendido como ambiente da dança, como afirma
Fabiana Britto (2008, p. 72), e é nele que ela, a dança, se elabora como pensamento, para que se possa perceber as diversas camadas de interpretação dos conceitos sistêmicos de ambiente e sistema. 2
Compreende-se teoria geral dos sistemas como uma prototeoria, da maneira apresentada por Jorge
Albuquerque Vieira com base nas referências de Mario Bunge.
formação, produção, difusão, modos de organização de “classe” e seus agentes: dançarinos, professores, coreógrafos, diretores, críticos, pesquisadores, entre outros componentes, que podem configurar esse ambiente levando em consideração sua estrutura e complexidade, configurando-se ainda em ambientes local, nacional e internacional. Todo sistema que tenta permanecer precisa, para isso, de autonomia para administrar seus processos de permanência, por meio de suas dinâmicas interacionais. Por conseguinte, essa rede complexa deve ser compreendida por meio dos parâmetros sistêmicos. É igualmente necessário compreender o sentido de historicidade implicado em qualquer organismo ou ambiente, percebendo-o como um estado circunstancial de um processo contínuo no tempo3. Nessa perspectiva sistêmica e complexa, os ambientes da dança e os dados aqui descritos apresentam-se como sínteses transitórias desses estados circunstanciais dos processos contínuos de interação e transformação da dança, seus agentes e ambiente.
Estruturas de formação artística em dança No ambiente da dança de Fortaleza, durante muitos anos o sistema de formação foi composto de academias de balé clássico e modern jazz, um retrato semelhante ao de muitos estados brasileiros4.
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Há mais de uma década, vêm se fazendo presentes nas reivindicações dos artistas da dança diversas solicitações para a implantação de escolas de formação que se estruturem segundo uma perspectiva pedagógica atualizada de ensino da dança e que levem em consideração o texto e o contexto da dança local, juntamente com a articulação entre fazer, fruir e contextualizar. Ao longo desta década, algumas ações formativas foram iniciadas. Todavia, tais conquistas sempre careceram, e ainda carecem, de um compromisso político de continuidade que garanta o repasse regular de verbas e possibilite, assim, coerentes condições de existência e permanência. Atualmente, algumas iniciativas estão em andamento. A Escola Pública de Dança de Fortaleza é uma ação municipal, sediada na Vila das Artes. Iniciou suas atividades em 2007 com o curso de extensão Dança e Pensamento, em parceria com Universidade Federal do Ceará (UFC). Em 2009, seus primeiros concludentes formaram-se, entretanto não foi iniciado ainda o processo de continuação do curso, com a formação de uma nova turma. No mesmo ano, a escola implantou o projeto Dançado na Escola, que propõe a implementação da prática de iniciação em dança em 20 escolas municipais de ensino formal de Fortaleza e da região metropolitana. É uma iniciativa inovadora, que conta com a parceira da Secretaria de Cultura de Fortaleza e da Secretaria Municipal de Educação. 3
Entendendo o tempo, de modo irreversível, a seta do tempo, como descrito e proposto por Prigogine
(2003, p. 55) e a partir do qual Fabiana Britto desenvolveu sua tese de doutorado, publicada como o título Temporalidade em Dança – Parâmetros para uma História Contemporânea. “O tempo é fator de organização, diferenciação e complexificação dos sistemas físicos, biológicos e culturais” (BRITTO, 2008, p. 14). 4
As academias de dança tendem a aplicar um sistema formal preestabelecido de dança, padronizando
o ensino, no sentido de uma homogeneidade do saber, além de não levar em consideração origem e pedagogias de ensino, nem a relação entre o texto da dança e seu contexto sociocultural (MARTINS, 2006).
Observa-se, no processo de engendramento da Escola Pública de Dança de Fortaleza relacionado a sua criação e implementação, a articulação política dos artistas com os gestores públicos culturais, que se caracteriza como uma atuação coercitiva e de diálogo propositivo. Pressupõe-se, ainda, como parte desse processo de consolidação da escola, o fator correlacionado com o compromisso de continuidade que deve estar implicado nas políticas públicas de formação. Nessa perspectiva, a Escola Pública de Dança de Fortaleza ainda trilha seu percurso de consolidação, já que os projetos implementados apresentam ainda alto grau de instabilidade e precárias condições de existência, por causa da recorrente incerteza sobre o repasse de verbas, entre outras dificuldades. No âmbito estadual, o Curso Técnico em Dança (CTD), reconhecido pelo Ministério da Educação, formou recentemente sua segunda turma e iniciou o processo seletivo para a formação da terceira. O curso será realizado por meio de uma parceria entre o Instituto de Arte e Cultura do Ceará (Iacc), a Secretaria da Cultura do Ceará (Secult) e o Serviço Nacional do Comércio (Senac). O processo de criação, implementação e busca de consolidação do Curso Técnico em Dança assemelha-se ao relatado sobre a Escola Pública de Dança de Fortaleza, tiradas as devidas especificidades. Desde sua criação, em 2005, o CTD tem como cofator de permanência a articulação política e a mobilização dos artistas na Secult, no Iacc e no Senac, pois o curso esteve sucessivas vezes na iminência de ter um de seus apoios cortado. A articulação e a mobilização dos artistas são uma força coercitiva que se correlaciona com sua condição de manutenção, que, por sua vez, se correlaciona com sua condição de permanência. Além dessas iniciativas públicas, outros eixos de formação artística vêm se estabilizando, formados por projetos sociais e ações afirmativas voltadas para jovens e adolescentes carentes. Tais ações, em sua maioria, não têm como objetivo principal formar profissionais de arte. No entanto, há iniciativas que vêm gerando afinidades distintas na complexificação do sistema de formação na cidade: o Grupo Bailarinos de Cristo Amor e Doação (BCAD)5, a Escola de Artes e Ofícios Vidança6 e, de modo singular, a Edisca7, que tem iniciado e formado artistas atuantes no cenário da dança contemporânea da cidade. Em relação à formação de nível superior em dança, tivemos um quadro auspicioso nos últimos quatro anos. No país, houve um aumento significativo na oferta de cursos, por exemplo, no Nordeste. Até 2006, essa região contava apenas com a graduação da Escola de Dança da UFBA, em Salvador, porém houve o incremento de quatro cursos nas Universidades Federais de Alagoas, Sergipe, Pernambuco e Rio Grande do Norte. Em 2011, terá início o sexto curso de graduação em dança no Nordeste, com a implantação do curso na Universidade Federal do Ceará. 5
O Grupo Bailarinos de Cristo Amor e Doação é dirigido por Janne Ruth. Disponível em: http://
grupobcad.blogspot.com/. 6
Dirigido por Anália Timbó, a escola tem aulas de balé clássico, dança contemporânea, danças
dramáticas e capoeira. A formação em dança envolve também as artes musicais, em especial a percussão. Os ofícios centram-se no estudo da carpintaria, que lida com a construção de brinquedos populares, a movelaria criativa, a construção de cenários e de instrumentos de percussão. As artes visuais e manuais estendem suas criações de tecelagem, costura e bordado para a teatralidade dos figurinos e adereços dos espetáculos de dança. Disponível em: http://vidanca.org/. 7
A Edisca é uma escola de artes e desenvolvimento humano para crianças e adolescentes, dirigida
por Dora Andrade. Disponível em: http://www.edisca.org.br/.
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Fica, então, evidente uma significativa expansão no campo da formação em dança em Fortaleza, com CTD, Escola Pública de Dança, ONGs, além das academias e da recentíssima criação da graduação pública em âmbito federal. Esses novos elementos agregados ao sistema constituem um cofator relevante para as transformações desse ambiente, cujos efeitos serão percebidos ao longo do tempo. No Maranhão, a estrutura de formação artística em dança em São Luís replica um modelo recorrente em outras cidades brasileiras. Além das academias de balé clássico e jazz, alguns projetos sociais, como o Dança Criança, da Escola de Ballet Olinda Saul, oferecem aulas de balé para crianças da escola pública. Há cursos livres de dança em espaços como o Laborarte ou o Centro de Criatividade Odylo Costa Filho. É necessário explicitar o modelo recorrente de ensino da dança, que se replica nas três cidades por mim mapeadas. Trata-se de um modelo no qual a formação dos profissionais e os processos de ensino e aprendizagem artísticos acontecem de modo informal e assistemático em cursos livres, academias e ONGs. Muitas vezes, tais empreendimentos não possuem um projeto pedagógico de dança estruturado e atualizado e tendem a desenvolver apenas habilidades motoras especializadas, valorizando um modelo de corpo ideal e o virtuosismo da performance, e limitando-se ao aperfeiçoamento técnico, atrelado a uma concepção dicotômica de corpo, com métodos disciplinadores e uniformizadores que não estimulam processos criativos e reflexivos contextualizados.
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Nos últimos anos, vêm emergindo na capital maranhense ações formativas, mesmo que pontuais, que buscam mobilizar maiores trocas informativas em relação ao fazer da dança. São exemplos dessas iniciativas os projetos Usina de Artes (2007) e Fábrica de Movimento (2008), que realizaram diversos cursos de capacitação em dança e foram articulados pela Pulsar Cia. de Dança com a ajuda do Prêmio Klauss Vianna, promovido pela Fundação Nacional de Artes (Funarte/MinC). Em nível superior, a Universidade Federal do Maranhão ofertou durante alguns anos o curso de licenciatura em educação artística, com habilitação em artes cênicas, seguindo as prerrogativas do ensino polivalente de artes estabelecido pelo MEC. Em 1996, com a nova Lei de Diretrizes e Bases, a expressão “educação artística” deixou de ser empregada, dando lugar a “ensino de arte”, na qual estão especificadas as linguagens artes visuais, dança, teatro e música. Nesse movimento de adequação aos novos parâmetros curriculares, desapareceu a habilitação em artes cênicas e implementou-se, em 2004, o curso de licenciatura em teatro. Por conseguinte, esses dois cursos vêm absorvendo ao longo do tempo a demanda por formação dos artistas da dança ludovicense. Mesmo com cursos fora do campo da dança, foi possível identificar várias monografias nessa área, disponíveis para consulta na biblioteca setorial do departamento de Educação Artística da UFMA. Destaca-se, ainda, a dissertação8 de mestrado em ciências sociais da professora do curso de teatro Tânia Cristina Costa Ribeiro, que pesquisa a dança contemporânea de São Luís. Apesar de tímidos, esses indícios apontam para uma produção acadêmica de pesquisas sobre a dança local. 8
RIBEIRO, Tânia Cristina Costa. Nos bastidores da dança contemporânea: estudo sobre corporalidade
e formas de associação. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) – Universidade Federal do Maranhão, São Luís, 2008.
Em relação à criação do curso de graduação em dança na UFMA, existe interesse de artistas da cidade em articular uma mobilização para a criação do curso, contudo, efetivamente, eles pouco têm se movimentado para isso. Em Teresina, existe uma estrutura de espaços físicos organizados, que, contudo, não estão articulados para incrementar sua potência de formação em dança. É possível constatar que a formação dos artistas na cidade é contaminada pelo conhecimento das danças folclóricas locais, que reverbera na produção artística. Essa estrutura é composta, no âmbito municipal, de dois teatros-escola, o Teatro do Boi e o Teatro João Paulo II, e um espaço cultural, a Casa de Cultura, onde funciona a sede do Balé da Cidade de Teresina e que disponibiliza uma sala de ensaio para grupos de dança “independentes”. No âmbito estadual, compõe-se da Escola de Dança Lenir Argento (Escola de Dança do Estado), dirigida por Roberto Freitas, na qual acontecem aulas de balé clássico e dança popular. Existem, ainda, projetos municipais e estaduais que levam a dança para diversas escolas de nível fundamental e médio, além das academias de dança. A Escola de Danças Folclóricas do Teatro do Boi é coordenada pelo dançarino e coreógrafo Valdemar Santos. Nela acontecem aulas de dança clássica, folclórica e contemporânea, acrobacia e teatro. O Teatro do Boi é, historicamente, um importante local de desenvolvimento do ambiente da dança na cidade, já que foi palco da formação de grupos como o Balé da Cidade de Teresina e o Balé Folclórico de Teresina. O Teatro João Paulo II promove espetáculos, oficinas de dança e eventos pontuais de mostras artísticas, e atualmente é dirigido por Maneco Nascimento. No período de 2006 a março de 2009, contudo, esse teatro foi dirigido pelo coreógrafo e dançarino Marcelo Evelin, que engendrou o Núcleo Criativo do Dirceu, que articulava iniciativas diversas de formação, reflexão, produção artística e intercâmbio. Seguia um modelo de fazer artístico e de ensino desierarquizados, no qual os diversos agentes eram corresponsáveis pelos processos e procedimentos de criação e aprendizagem, o que possibilitava a emergência de autonomia criativa e protagonismo. Foi uma proposta singular dentro no universo formativo da dança no Piauí e no país. O Núcleo do Dirceu, como permaneceu nomeado, atualmente tem sede própria e continua articulando ações diversas de produção, colaboração e formação. Atualmente, sua estrutura abrange um Ponto e um Pontão de Cultura e conta com o apoio do estado do Piauí, da Fundação Cultural do Piauí (Fundac) e do Ministério da Cultura. Com relação à formação em nível superior no Piauí, a Universidade Federal ainda não atualizou seus parâmetros do ensino de arte, como propõe a LDB de 1996, e oferece o curso de licenciatura em educação artística, com habilitação em artes, música e desenho. Nessa perspectiva, o curso não atinge nem contempla os profissionais da dança, que, na falta de um curso específico, acabam estudando educação física, pedagogia ou outras áreas afins. Apesar disso, emergem na cidade sinais de um movimento para a criação do curso na área específica de dança, instigado pela coreógrafa Luzia Amélia e pela professora doutora Zozilena de Fátima Fróz, do curso de artes visuais da UFPI.
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Circunstancialmente, observa-se que os sistemas de formação em São Luís e Teresina têm tido um fluxo de trocas informativas e mudanças menos intensas, o que gera a leitura de uma maior estabilidade nesses sistemas de formação. O surgimento e a atuação do Núcleo do Dirceu vêm provocando reverberação mais na produção artística, seu eixo principal, do que na atuação formativa. Já Fortaleza caracteriza-se por um intenso fluxo de mudanças e contaminação, o que produz reverberação perceptível no ambiente da dança cearense.
Mobilização e ações Ao longo desses anos, observa-se que o ambiente da dança brasileira teve uma considerável expansão. Ações e mobilizações reverberaram contaminando de modos diversos os estados mapeados, por força de diferentes experiências empreendidas nas áreas de formação, difusão e de organizações públicas e civis, impulsionando mudanças no ambiente da dança. Em 1999, ano de lançamento da primeira edição do programa Rumos Itaú Cultural Dança, um movimento de mobilização e organização dos artistas da dança já tinha despontado no Ceará. O passo inicial foi a criação da Comissão de Dança do Ceará, em 1997; dois anos depois, ocorreu a implementação do Colégio de Dança do Ceará. No decorrer dos anos, tais ações de representação e de formação foram se reconfigurando, mas permaneceu a mobilização dos artistas como um traço marcante do ambiente da dança cearense.
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Constata-se que essa mobilização dos artistas é um cofator importante e codeterminante na emergência de políticas públicas locais para a dança. A criação de fóruns de diálogo ou de simples encontros possibilita uma espécie de autovisibilidade de “classe”, ou seja, um conhecimento do outro, logo, um conhecimento sobre a demanda do outro, o que traz a potência perceptiva das cumplicidades. Desse modo, a atuação mais articulada impulsionou a criação de editais de manutenção de grupos e artistas, tanto pela prefeitura do município como pelo governo do estado, seguindo com a criação de cursos de formação artística, como o Curso Técnico em Dança, e o estabelecimento da Escola Pública de Dança. Com todas essas ações e reivindicações, evidencia-se que a formação artística na área de dança foi uma constante solicitação dos artistas durante esses anos. Pode-se observar isso nas diversas iniciativas de formação em âmbito público já enumeradas. Todavia, essas conquistas carecem do compromisso político da continuidade, com garantia de repasse de verbas, o que possibilitaria boas condições de existência. Por conseguinte, necessita-se de constante mobilização e coerção para que as ações tenham continuidade. Em 2009, dois fatos marcantes mereceram destaque. O primeiro foi o Movimento contra a Política do Descaso, articulado pelo Fórum de Dança do Ceará, que propunha um boicote ao Edital de Incentivo às Artes da Secult e mobilizou os artistas da dança para uma manifestação em frente à Secretaria de Cultura, no dia 1º de outubro. Diversos fatores foram corresponsáveis por esse movimento, entre eles a dificuldade de estabelecer um diálogo mais direto com o secretário de Cultura, Auto Filho. Os membros do fórum tentaram diversas vezes marcar uma reunião com o secretário, sem sucesso. Outros fatores foram a instabilidade
dos fomentos e apoios concedidos à área de dança no estado, que produz descontinuidades em projetos importantes, e a polêmica gerada em torno do Edital de Incentivo às Artes, por causa da discrepância entre os valores destinados ao teatro e à dança, além de outros itens do edital. O movimento teve êxito em estabelecer um diálogo mais direto com o secretário, e projetos como o Curso Técnico em Dança e o Festival de Dança do Litoral Oeste tiveram continuidade garantida por mais um ano, mas muitas outras reivindicações continuam no papel. O segundo fato marcante de 2009 foi a conquista da graduação em dança, com bacharelado e licenciatura, vinculada ao Instituto de Cultura e Arte da UFC, decorrência da sinergia entre ações do Fórum de Dança do Ceará e do movimento de expansão da Universidade Federal do Ceará. A movimentação observada nas ações de mobilização no Ceará não é observada nos estados do Maranhão e do Piauí. Nas respectivas capitais, São Luís e Teresina, pouco têm reverberado as ações de mobilização da dança nacional ou de estados nordestinos como Ceará, Pernambuco e Bahia. Em São Luís, a Associação Maranhense de Dança, fundada nos anos 1980, está inativa, por causa das dificuldades de articulação dos membros para compor a diretoria, como informado por uma de suas fundadoras e ex-presidente da associação, a professora Waldecy Vale. Em âmbito municipal e estadual, são praticamente inexistentes políticas públicas específicas para a área de dança. A Secretaria de Estado da Cultura promove a Semana Maranhense de Dança e o edital de apoio existente é o Edital + Cultura – Apoio a Microprojetos Culturais no Estado do Maranhão. Trata-se de uma ação do Ministério da Cultura gerenciada pela Secretaria de Estado da Cultura, porém não há verba específica para a dança, uma vez que ela se destina de modo genérico às artes cênicas. Em Teresina, nenhuma associação foi mapeada e, apesar da desarticulação dos artistas da cidade, existem algumas ações municipais e estaduais na área de formação, produção de eventos e alguns apoios por meio de edital9. Mesmo assim, inquieto é como observo o ambiente da dança de Teresina. Diversos índices apontam para essa condição, refletidos nas iniciativas de constituição de novos grupos, como a Só Homens Cia. de Dança, Cia. Pás Classique e Movimento Street, que vêm se engendrando no seio de companhias estabelecidas da cidade; em algumas ações que tentam criar uma mobilização em torno da criação do curso de graduação em dança e em iniciativas como o Coletivo Piauí Dança, que surgiu com o objetivo de fortalecer as relações entre os grupos locais antigos e os jovens, possibilitando a troca de informações na área de produção e assim se organizando para promover mostras das companhias locais em Teresina, no interior e em outros estados. Outro índice dessa inquietude são ações formativas, de produção artística, de reflexão crítica e de intercâmbio promovidas pelo Núcleo do Dirceu. Contraditoriamente, constata-se uma falta de organização e mobilização dos artistas. Os dançarinos mostram certa apatia para participar da discussão de questões políticas para a dança. O estado tem deficientes políticas públicas de fomento à criação em dança e há certo “comodismo” diante das políticas que o município e o estado já oferecem. 9
As iniciativas de apoios dos estados podem ser acessadas na base de dados do mapeamento de
2009 do Rumos Itaú Cultural Dança: http://www.itaucultural.org.br/index.cfm?cd_pagina=2273.
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Pode-se vislumbrar nesses indicadores o agenciamento de modos de organização dos artistas em Teresina, mas apenas futuros nexos de temporalidade poderão anunciar seus desdobramentos.
Eventos Fabiana Britto, em seu texto “Dança e Política: Uma Questão de Tempo”, declara que as ideias precisam circular para sobreviver. Quando se trata de dança contemporânea, os festivais acabam por ser um eficiente espaço para promover o confronto crítico entre ideias diversas e distantes entre si. Em Fortaleza, a Bienal Internacional de Dança do Ceará vem promovendo agenciamentos há 12 anos, não apenas de evocação, mas de afirmação da dança cearense e suas possibilidades de existência no cenário local, nacional e internacional. Um dos critérios de constatação da vocação propulsora de um festival é seu comprometimento com o princípio de continuidade. Nessa perspectiva, trata-se de garantir condições para a expansão das ideias (BRITTO, 2004).
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Nesse sentido, desde sua emergência, no ano de 1997, a bienal cearense articulou-se de modos e graus diversos com o ambiente da dança local. Nesse período, vem expandindo sua atuação com o intuito de reverberar sua factualidade para além do seu condensado espaçotempo, gerando maior espraiamento de suas conexões e articulação. Nessa perspectiva, em 2008 aconteceu a primeira edição da Bienal Internacional de Dança do Ceará/De Par em Par, uma proposta para tornar o evento de dança anual. Antes, a bienal acontecia de dois em dois anos, nos anos ímpares, por isso o complemento “De Par em Par”. Desde 2004, a bienal vinha promovendo alguns projetos formativos nos anos pares, mas foi com a Bienal De Par em Par que se formalizou e consolidou o compromisso do festival com a continuidade de suas ações, contribuindo, desse modo, com a qualificação da dança cearense. A bienal articula-se como um projeto, com programas como o Registro e Memória: DOC Bienal, a OlharCe –Revista de Dança do Ceará e o lançamento de um livro sobre os 15 anos da bienal, que está no prelo, além do Programa de Circulação e o Programa Corpo/Imagem, com o objetivo de investir na formação e na produção local de videodança. Em 2009, a sétima Bienal Internacional de Dança lançou a evocação Poéticas e Políticas, na qual as estratégias éticas, estéticas, políticas e econômicas são problematizadas e contaminadas pelas articulações com o ambiente da dança local e nacional.
David Linhares, diretor-geral da bienal, afirma: Na interface com a política, os profissionais das artes e da cultura travam embates que em muito se assemelham a uma guerra de guerrilhas. Enquanto alguns desdobramentos artísticos significativos traçados pelas artes apontam para uma impossibilidade de retorno, as conquistas políticas parecem nunca estar asseguradas. Em todo o Brasil, casos de retrocesso
político parecem multiplicar-se com facilidade inversamente proporcional à dificuldade com que os avanços foram conquistados. Pode-se argumentar que nada está assegurando e parece que sempre se tem de dar os mesmos passos novamente, percorrendo antigos caminhos. Contudo, em seu percurso a bienal tem sido codeterminada e codeterminadora dos modos de organização da dança cearense, em particular no desenvolvimento do pensamento de dança contemporânea local. O Festival de Dança do Litoral Oeste, que acontece simultaneamente em Paracuru, Itapipoca e Flecheiras, tem tentado se configurar como espaço de atualização de ideias, mobilização da reflexão crítica, desafio aos hábitos de pensamento, com um desejo de criar continuidade e promover a expansão das conexões informativas, numa região que não se estabelece geograficamente como centro de produção cultural do estado. O evento não foi realizado em 2008 e, em 2009, aconteceu com condições precárias de apoio, uma vez que a Secult liberou a verba um dia antes de seu início, o que comprometeu significativamente sua realização. O Festival Nacional de Dança de Fortaleza (Fendafor) completou 10 anos de existência, ao longo dos quais se reconfigurou e expandiu. Voltado ao público das academias e à dança amadora, semiprofissional e profissional, insere-se numa “estética de festivais”10 que vem se disseminando no país. Em 2007, expandiu-se geograficamente e se ramificou por diversas cidades do interior do Ceará, todavia tornou-se competitivo, o que é avaliado por estudiosos da dança como uma característica contraproducente para o desenvolvimento da dança. No entanto, como lembra Britto (2004), um festival, por mas ambíguo e confuso que seja, é sempre um ponto de conexão informativa, atualiza referências e permite a circulação das ideias. O potencial propulsionador de um festival também está relacionado com o distanciamento de sua realização como mera regularidade no calendário de eventos culturais. “Não basta ser vitrine expositiva de produtos renovados anualmente sem um programa de ação contextualizadora que permita esclarecer o campo de referências em que foram gerados e, ao mesmo tempo, delinear uma plataforma de voo para essas ideias” (BRITTO, 2004, p. 75). No Maranhão, no período da pesquisa de campo na capital, dois grandes eventos culturais ocorriam, a Mostra Sesc Guajajara de Artes, em sua quarta edição, e a Mostra Praia Grande das Artes, na primeira edição, organizada pela Secretaria de Estado da Cultura. Em ambos, espetáculos de dança, teatro, música, literatura, artes virtuais, entre outros, eram apresentados nos principais espaços culturais da cidade. Os dois eventos enquadram-se no perfil de mostras que marcam o calendário de eventos culturais da cidade e constituem-se como lugares para a circulação da dança local. A Mostra Sesc Guajajara tem apontado para um engajamento do princípio de continuidade, articulando conexões informativas, contudo seu formato, que contempla todas as linguagens, enfraquece seu potencial propulsor no ambiente da dança. Carece de especificidades em algumas ações. 10
Giancarlo Martins afirma em sua dissertação de mestrado que se engendrou no país uma “estética
de festivais” que se delineia pela “difusão de uma dança de consumo fácil, puro entretenimento, onde a aceitação se dá por meio de enquadramento às filiações estilísticas que se encontram em seus regulamentos e fichas de inscrição” (MARTINS, 2006, p. 62).
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Há, ainda, a Semana Maranhense de Dança, promovida pela Secretaria de Estado da Cultura, que, em sua quarta edição, apresenta um perfil meio ambíguo, pois, apesar de não ter caráter competitivo, aproxima-se do modelo de festivais competitivos, organizandose como espaço para apresentação de academias, grupos amadores e artistas da dança local e nacional, tendendo a se articular mais como vitrine do que como um programa de ações continuadas para a qualificação da dança local. Esse perfil ambíguo também enfraquece o potencial propulsor do festival, mas não o elimina, uma vez que a Semana Maranhense de Dança, mesmo com apoio precário, vem criando demanda, atualizando referências e mobilizando reflexões. Com o desejo de se constituir como um espaço de mobilização da reflexão crítica, desafiando hábitos de pensamento sobre a dança local e apontando para novas perspectivas de investigação, Erivelto Viana idealizou a mostra Conexão. O projeto propõe trocas informativas e reflexões em torno da dança contemporânea e teve como eixo temático em sua primeira edição, em 2008, a dança-teatro11. Erivelto Viana é dançarino, ator e produtor local, membro fundador da Santa Ignorância Cia. de Arte, e vem se articulando de maneira individual, buscando editais de apoio a eventos culturais. Desse modo, a segunda edição, em 2010, foi realizada com o apoio dos editais Klauss Vianna e da Caixa. Abelardo Teles, diretor da Pulsar Cia. de Dança, também vem tentando articular de modo “independente” uma Mostra Maranhense de Dança Contemporânea, que teve sua primeira edição no fim de 2009.
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Essas mostras e festivais têm criado uma demanda de produção e organização dos artistas da cidade. Esperemos o próximo mapeamento para observar como essas conexões vão se espraiar e que complexidade poderão gerar no ambiente da dança local. Em Teresina, o evento mais duradouro da cidade realizou sua décima terceira edição comemorando o credenciamento no Instituto Passo de Arte, um replicador de festivais competitivos. O Festival de Dança de Teresina, realizado pela Fundação Cultural Monsenhor Chaves, “reúne bailarinos, escolas e grupos com o objetivo de premiar os melhores e promover um grande encontro entre todos”12, engajado na “estética de festivais”, vitrine expositiva de produtos renovados de “toda” a dança. Esse perfil de evento surgiu com o objetivo de solucionar as dificuldades enfrentadas pelas academias em relação aos custos de produção e circulação. Assim, vislumbrava-se a criação de um circuito que promovesse um fluxo e a troca de informação, contribuindo com a partilha de experiências entre profissionais e estudantes. Com o passar do tempo, essa cultura dos festivais foi se caracterizando por amarras que limitam o entendimento do fazer artístico da dança, por meio do enquadramento às filiações estéticas de suas fichas de inscrição, valorização do virtuosismo técnico e um fazer de dança descontextualizado, um sistema de exclusão que fixa limites, regras e tenta controlar a produção do discurso (MARTINS, 2006). 11
O projeto foi aprovado no Edital de Apoio a Formação, Produção e Circulação da Secretaria de
Estado da Cultura do Maranhão. 12
Como divulgado no site da Fundação Cultural Monsenhor Chaves. Disponível em: http://www.
fcmc.pi.gov.br/internas.asp?ID=211. Acesso em: 28 out. 2009.
Nessa perspectiva, o Festival de Teresina, que tem conseguido permanecer, não potencializa seu papel de propulsor do ambiente da dança local, limitando-se a criar uma baixa taxa de demanda e fluxos informativos, sem uma reflexão contextualizada sobre a dança. Algumas iniciativas vêm tentando produzir maior fluxo de troca de informações. O Piauí Dança, com o objetivo de mobilizar as companhias “independentes”, enquadra-se em ações que geram demanda, possibilitam a difusão e a troca informativa. Ações como Instantâneo e Mapas do Corpo, promovidas pelo Núcleo do Dirceu, que objetivam desafiar hábitos de pensamento sobre dança, mobilizar reflexões críticas e atualizar referências. Aliás, elas ainda têm permanência incerta, em decorrência da instabilidade nas instâncias que as promovem. Para complementar circunstancialmente esse mapa, sairei dos eixos discursivos propostos até agora para apresentar alguns movimentos importantes que vêm se configurando no interior cearense e elencar alguns agentes dos ambientes de São Luís e Teresina.
Interior cearense Entre Itapipoca e Paracuru, em Trairi vem emergindo uma produção artística interessada em questões contemporâneas de criação e formação em dança. Dois grupos, Flex e Arreios, mantêm contínua atuação na cidade, promovendo uma mostra local e intercâmbios com Itapipoca e Fortaleza. Em Itapipoca, em 2009 a Escola de Dança Cênica Balé Baião iniciou suas atividades numa parceria com a Escola Estadual de Ensino Profissional Rita Aguiar Barbosa (EEEP, Liceu de Itapipoca). A Cia. Balé Baião de Dança Contemporânea também comemorou 15 anos de existência e resistência no interior do Ceará. Além de manter sua produção artística, a companhia, em conjunto com a Associação de Artes Cênicas de Itapipoca (Aarti), fomenta uma movimentação cultural e de formação na cidade, agenciando parcerias para ações formativas e eventos artísticos como a Mostra de Artes Cênicas Intenções, que, apesar das dificuldades de apoio e de espaços cênicos adequados, mobiliza artisticamente a região, produzindo um evento singular, com mostras de artistas locais e da capital, cursos e debates. Em Paracuru, passados seis anos da criação da Escola de Dança de Paracuru e da Cia. de Dança de Paracuru, observa-se a configuração de um terreno profícuo para a emergência de um ambiente de dança. A escola e a companhia são dirigidas por Flávio Sampaio. A Mostra de Dança promovida pela escola e o Festival Dança do Litoral Oeste são espaços de disseminação e fomento da produção artística da região e também de troca de informações com artistas da dança brasileira. Em Juazeiro do Norte, a Alysson Amâncio Cia. de Dança foi criada em 2006, após o retorno de seu fundador, Alysson, depois de passar pelo Colégio de Dança do Ceará e cursar dança na UniverCidade no Rio de Janeiro. A companhia fomentou a criação da Associação Dança Cariri13 e, 13
A Associação Dança Cariri é um grupo de pessoas e profissionais do interior sul do Ceará que vem,
ao longo de quatro anos, fomentando e difundindo a pesquisa e a produção de artes cênicas, sobretudo de dança contemporânea, no cenário cearense.
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além de sua contínua produção artística, vem promovendo várias ações de formação, como o Projeto Capacitando e Dançando na Cena do Cariri, contemplado com o Prêmio Klauss Vianna. Os dados inventariados até aqui permitem presumir que o ambiente da dança contemporânea no Ceará tem se expandido com a emergência desses protoambientes imediatos locais, compostos de ações formativas, de produção artística e de difusão, por meio de mostras e festivais, o que gera uma autonomia e uma permanência do sistema da dança nesses lugares, como também uma ambiência de produção cultural descentralizada da capital.
Teresina A cidade de Teresina tem seu ambiente imediato da dança composto de uma organização estruturada de espaços artísticos, constituída por teatros-escola, como o Teatro do Boi e o João Paulo II, e pela Casa de Cultura, entre outros.
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As ações de fomento municipais são precárias: no edital do Sistema de Incentivo Estadual à Cultura (Siec), as linguagens de teatro, dança, circo, ópera e performance concorrem na mesma categoria – Artes Cênicas. Em âmbito municipal, o edital da Lei A. Tito Filho também não tem premiação específica para dança. Nos últimos anos, em algumas edições, como as de 2006 e 2007, não foi contemplado nenhum projeto da área de dança. Em 2008, apenas dois foram selecionados, entre os 31 contemplados. Pode-se observar esses dados como sintoma de carência de apoio específico para a dança e sua produção artística local, como também de uma carência de articulação e pressão dos artistas piauienses para que os governos estadual e municipais apresentem políticas culturais claras e efetivas para a área de dança. Nos mapeamentos anteriores do Rumos Itaú Cultural Dança, apenas dois grupos foram inventariados: o Balé da Cidade de Teresina e o Balé Folclórico de Teresina. No mapeamento atual, houve significativas reconfigurações, como descreverei a seguir. Em 2006, iniciou-se o trabalho de Marcelo Evelin como diretor do Teatro Escola João Paulo II e à frente do Núcleo do Dirceu. A atuação do Núcleo Criativo do Dirceu tomou corpo e espaço no estado e no país nos últimos anos. Depois de um período de incubação, com cursos, palestras e residências artísticas, o núcleo circulou sua produção em importantes festivais nacionais e internacionais e promoveu diversos eventos de dança no bairro Dirceu, onde se localiza sua sede: Panorama, Coletivo Corpo Anônimo, parcerias com outros coletivos, Instantâneo, Mapas do Corpo, Sensorama etc. Em 2009, depois de retornar do Move Berlim, o Núcleo rompeu de modo conturbado com a prefeitura de Teresina14, seguindo de forma “independente” suas atividades com o Colaboratório 2009, Caixa Mostra Dirceu, Conexões Criativas, Interações e Conectividade, entre outras. 14
Sobre o rompimento do Núcleo do Dirceu com a prefeitura de Teresina, veja artigos no site do
Idança: http://idanca.net/lang/pt-br/2009/03/30/marcelo-evelin-deixa-teatro-municipal-joao-paulo-iitmjp2/10103, http://idanca.net/lang/pt-br/2009/04/07/abaixo-assinado-em-apoio-ao-nucleo-de-criacao-do-dirceu/10214 e http://idanca.net/lang/pt-br/2009/05/13/nucleo-do-dirceu-trabalhos-no-rio-enova-sede-em-teresina/10517.
Fechou o ano com a inauguração do novo espaço, um galpão no bairro Dirceu, com uma mostra sobre os processos do Colaboratório no Panorama 2009 e com a seleção no edital do Pontão de Cultura. O Balé Folclórico de Teresina, dirigido pela coreógrafa Luzia Amélia, desligou-se da Fundação Cultural Monsenhor Chaves, deixando de receber a subvenção da prefeitura. Mesmo assim, Luzia Amélia seguiu com o trabalho do grupo, que passou a ser chamado de Cia. Luzia Amélia, e manteve sua Escola Balé de Teresina, uma ONG que atua em parceria com a Secretaria da Educação e Cultura do Piauí. A companhia participou em 2008 do Projeto Jogo Coreográfico, da carioca Ligia Tourinho, e tem se aproximado da universidade (UFPI) por meio do grupo de pesquisa da professora Zozilena de Fátima Fróz, buscando estabelecer ações e intercâmbios criativos e teóricos. Percebe-se, ainda, em Teresina a emergência de novos grupos, uma maior visibilidade dos antigos e a tentativa de uma atuação colaborativa entre eles. Dos grupos com mais estrada, há a Cia. Equilíbrio de Dança, que comemorou 10 anos e é dirigida por Valdemar Santos. A jovem Só Homens Cia. de Dança reúne dançarinos e ex-dançarinos do Balé da Cidade de Teresina, com uma gerência coletiva. O grupo Dança Eficiente, coordenado por Valdemar dos Santos e Luis Carlos Vale, trabalha com deficientes físicos. Ainda há outros grupos e coreógrafos que estão embrionariamente iniciando sua atuação.
São Luís No mapeamento anterior de São Luís, somente a Pulsar Cia. de Dança, dirigida por Abelardo Teles, foi inventariada. A companhia atua há 11 anos na cidade, tem sede própria com espaço para aulas e ensaio, mantém uma produção artística continuada e promove ações formativas importantes na cidade. O ambiente da dança de São Luís foi marcado pela passagem de Fernando Bicudo, nos anos 1990, pela direção do Teatro Arthur Azevedo e do Balé Ópera do Brasil. Por conseguinte, muitos dos dançarinos e coreógrafos que atuam na cidade passaram pela companhia, que tinha uma repertório voltado para a cultura popular local e nacional. Como em Teresina, a dança popular é um traço marcante no fazer da dança ludovicense, porém pouco ecoa na dança contemporânea local. Novas companhias vêm emergindo nos últimos anos, como a Cia. Circuito Carona de Dança, dirigida por Mano Braga, ou a jovem Móbile Cia. Experimental de Dança, dirigida por Donny dos Santos. Ambos passaram pela Pulsar. O Núcleo Atmosfera de Dança, dirigido por Leônidas Portella, emergiu das experimentações de seu diretor no curso de educação artística da UFMA. Leônidas tem atuado intensamente na cena da dança local. Passou, por exemplo, pela Yin Cia. de Dança, dirigida por Sandra Oka, que foi descomposta. Temos, ainda, a Sacerdotal Cia. de Dança, de Carlos Kenne; o Grupo de Pesquisa Experimental em Dança Codificações, de Antunes Neto; o Grupo Teatrodança, de Júlia Emilia; e o Núcleo Santa Ignorância de Dança, de Erivelto Viana.
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Observa-se mais uma rede extensa de agentes, grupos e artistas atuando nos fluxos interativos de geração do que a configuração de um ambiente de dança nesse local. Um ambiente que parece se compor não apenas numericamente, com a adesão de mais agregados, mas buscando maior conectividade entre eles. Assim, é uma maior variação de tipo e intensidade nas relações estabelecidas nesse ambiente que se presume como cofator de expansão da dança nos anos vindouros.
Breves considerações Este artigo tem por finalidade apresentar a descrição dos fatores conjunturais do ambiente da dança nas cidades de Fortaleza, São Luís e Teresina, com seus possíveis ecos em cidades do interior com base no mapeamento realizado no período de 2007 a 2009. Enfatizo que, na perspectiva do recorte proposto pelo programa Rumos Itaú Cultural Dança, o panorama aqui descrito retrata uma circunstância histórica da dança contemporânea nas cidades supracitadas e não representa “a” realidade de cada local.
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Por fim, concluo não com afirmativas, fechamentos ou resultados, mas levantando questionamentos que os dados detectados suscitam: Que desdobramentos serão produzidos com a criação da licenciatura e do bacharelado em dança na capital cearense? Que ações e percursos impulsionarão a criação do curso superior na área em São Luís e Teresina? Que estratégias os artistas de São Luís e Teresina engendrarão para desenvolver uma articulação política local? Que táticas os artistas cearenses utilizarão para manter o fôlego em seu engajamento político? Como essas cidades continuarão engendrando possibilidades viáveis aos seus contextos para a produção artística da dança?
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Referências bibliográficas BRITTO, Fabiana Dultra (Org.). Cartografia da dança: criadores-intérpetres brasileiro. São Paulo: Itaú Cultural, 2001. BRITTO, Fabiana Dultra. Dança e política: uma questão de tempo. Húmus, Caxias do Sul, v. 1, p. 73-78, 2004. _____. Temporalidade em dança: parâmetros para uma história contemporânea. 1. ed. Belo Horizonte: FID, 2008. GREINER, Christine. O corpo: pistas para estudos indisciplinares. São Paulo: Annablume, 2005. MARTINS, Giancarlo. Uma nova geografia de ideais: diversidade de ações comunicativas para a dança. Dissertação (Mestrado em Comunicação e Semiótica) – PUC/SP, São Paulo, 2006. PRIGOGINE, Ilya. O fim da certeza. In: MENDES, Candido (Org.). Representação e complexidade. Rio de Janeiro: Garamond, 2003. VIEIRA, Jorge Albuquerque. Teoria do conhecimento e arte: formas de conhecimento – arte e ciência uma visão a partir da complexidade. Fortaleza: Expressão Gráfica e Editora, 2006.
Professor do Departamento de Teoria da Arte e Expressão Artística da UFPE, foi coordenador do curso de licenciatura em dança de 2009 a 2010. É pesquisador, gestor de atividades pedagógicas e programador de dança do Centro de Formação e Pesquisa das Artes Cênicas Apolo-Hermilo, além de coordenador-geral do Festival Internacional de Dança do Recife desde 2006. É autor de vários artigos e livros sobre dança.
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Arnaldo Siqueira
Dança contemporânea para um tempo presente: Recife (PE), Campina Grande e João Pessoa (PB)
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N
este início de século XXI, o panorama artístico da dança contemporânea em Campina Grande, João Pessoa e no Recife aparece com aspectos distintos dos traçados até o fim dos anos 1980. Isso porque a década seguinte, de 1990, foi marcante para a transformação nos modos de produção e pensamento da dança, consolidando processos cujos desdobramentos possibilitaram um quadro com indicadores positivos nesse primeiro decênio do novo século. O presente artigo visa dar relevância a eixos de ocorrências, estados transitórios e sentidos de continuidade (BRITTO, 2008) que operam na dinâmica cultural dessas cidades, com base nos dados inventariados nos mapeamentos Rumos Itaú Cultural Dança. Apesar de algumas exceções, até a segunda metade da década de 1980 a formação e a produção artística, bem como boa parte da dinâmica cultural relacionada à dança no Recife, em João Pessoa e Campina Grande, eram configuradas principalmente pela atuação de academias ou de escolas de dança. Não distante do modo como se configurava a dança em outras regiões brasileiras, nessa época a única maneira de fazer dança nessas cidades era ser aluno de uma academia de balé ou jazz, participar dos festivais de fim de ano e, no caso de êxito pessoal, talvez integrar o grupo da própria escola1.
1
Registre-se que as referidas escolas, a despeito de um papel formador, em muitos casos relevante,
eram motivadas por interesses comerciais e trabalhavam (como muitas ainda o fazem) sem qualquer tipo de controle oficial. Além disso, a utilização aqui da nomenclatura “academia” para as escolas particulares de dança tem o propósito de evidenciar a contradição, vigente e corriqueira na época, no uso do termo academia.
Já no fim da década de 1980, inspirados em paradigmas nacionais e estrangeiros, grupos de dança, especialmente do Recife, iniciaram procedimentos de produção e organização diferentes daqueles dos grupos das academias e propiciaram, com isso, o desenvolvimento da dança contemporânea na região. Assim os artistas da dança, cansados da ausência de perspectiva profissional advinda das atuações nas academias, distanciaram-se delas, passando a formar as companhias de dança. Com isso, implementaram mudanças na cadeia produtiva, conquistando espaço, sensibilizando setores governamentais e atraindo a atenção do público para a dança contemporânea. Tais estados transitórios levam a pensar que os processos que posteriormente configuraram a dança contemporânea na década de 1990 e seu notável crescimento nos anos 2000 não estavam apenas no âmbito de simples mudanças, e desconsiderar isso seria talvez um modo de rejeitar qualquer aventura processual da dança contemporânea em nossa história. Nesse contexto, os festivais locais desempenharam papel relevante, pois, em um período de poucos títulos bibliográficos e sem informação digital, no qual o mapa artístico-cultural do Brasil era delineado por polos concentrados no eixo Rio-São Paulo, os festivais locais funcionaram como mídia, reunindo e difundindo informações de dança em suas programações. Foi por meio deles que a dança praticada no Nordeste pôde conhecer e intercambiar sua produção e ainda tomar conhecimento do que se fazia nos centros culturais do país2.
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Esses eventos funcionaram como verdadeiros congressos artísticos, praticamente obrigatórios para os artistas da região, pois visavam minimizar a carência de informações e proporcionar a interação desejada por todos – por meio de oficinas, palestras, debates, troca de experiências e da simples convivência, além de acesso às obras – e acolhiam com hospedagem e alimentação os integrantes dos grupos e companhias durante todo o período de suas edições. Desse modo, tais eventos desempenharam um papel formador de extrema importância que em muito contribuiu para os processos de difusão e configuração da cultura da dança na região. Era tempo de germinação. A partir de então, já nos anos 2000, contextos similares de atualização e compartilhamento de informações começaram a povoar intensamente a cena do Recife, principalmente, mas também a de João Pessoa e Campina Grande, viabilizando projetos diversos de seus artistas por meio de editais nacionais, regionais, estaduais e municipais de incentivo à cultura. Os dados do mapeamento do programa Rumos Itaú Cultural Dança 2007-2009 apontam, nos últimos anos, para o entendimento de que a existência de festivais ainda é um tópico estratégico e de grande interesse para a dança das cidades mapeadas. Portanto, com vistas à renovação e à sobrevivência, verificou-se que alguns deles investiram em mudanças em sua estrutura e/ou na atualização de seus perfis. Dentre as mudanças implantadas nos últimos anos, que variaram de evento para evento, pode-se destacar: investimento na internacionalização e no potencial de ações que estimulam a troca e a interatividade, fazendo eclodir novas percepções; e incremento em ações que possibilitam o encontro de artistas, linguagens e propostas de origens e contextos distintos, programando e fomentando o agenciamento de informações múltiplas e diversas. 2
Para exemplificar, pode-se citar o Festival de Arte de São Cristóvão, em Sergipe; o Festival Nacional
de Arte (Fenart) e a Mostra de Teatro e Dança da Paraíba, ambos em João Pessoa; o Festival de Inverno de Campina Grande; o Ciclo de Dança do Recife e o Festival de Dança do Recife, entre outros.
Além do dinamismo implementado em conhecidos festivais das cidades mapeadas, a criação de novos festivais nos últimos anos, especialmente no Recife, aponta para o destacado papel que esse tipo de evento continua exercendo na região. Apesar do desenvolvimento e da atualização dos festivais, os anseios da dança – que registra, como um todo, um crescimento nunca antes experimentado – parecem não caber mais unicamente no modelo dos festivais. Como demanda gera demanda, ou para dar vazão a aspirações que os festivais não conseguem contemplar, surge uma infinidade de eventos de menor dimensão e duração que são objeto de um número cada vez maior de projetos de dança propostos por uma parcela crescente e variada de artistas. Tais eventos apresentam recortes bem definidos, muitas vezes específicos, a exemplo de um que reuniu no Recife os coletivos de dança da cidade e de outras partes do país. São estratégias de colaboração específicas que escapam à dimensão dos festivais e contribuem para a percepção de que, sendo as manifestações da dança entidades vivas e em constante transformação, podem concorrer para gerar deslocamentos outros, que não sejam regidos pura e simplesmente por leis e lógicas de mercado. A situação atual da dança contemporânea no Recife é de uma febril atividade em todas as suas instâncias. Explodem criações em dança, principalmente por meio de projetos contemplados em editais3 – em menor proporção, tais aspectos também foram registrados em João Pessoa e Campina Grande. O número de companhias e, sobretudo, de artistas independentes aumenta gradativamente, como pode ser verificado comparativamente nos mapeamentos dos anos de 2000, 2003, 2006 e 2009 do programa Rumos Itaú Cultural Dança. A expressividade desses dados não está dissociada da dimensão que novas concepções sobre o corpo passaram a ter na arte contemporânea, a exemplo do corpomídia: É com essa noção de mídia de si mesmo que o corpomídia lida, e não com a ideia de mídia pensada como veículo de transmissão. A mídia à qual o corpomídia se refere diz respeito ao processo evolutivo de selecionar informações que vão constituindo o corpo. A informação se transmite em processo de contaminação. (GREINER, 2005, p. 131)
Em consonância com tais aportes, alguns artistas das cidades mapeadas encontraram na interface da performance com a dança lugar apropriado para investigar outras possibilidades de criação em dança. O desenvolvimento da tecnologia de difusão, multiplicação e propagação das imagens do corpo em todas as direções dos ambientes artificiais da sociedade no irreversível processo de urbanização do planeta também chegou à dança das cidades mapeadas. O envolvimento de artistas da dança com a videodança é crescente e está em desenvolvimento estético. 3
O boom dos editais que permeia todo o país também pode apresentar facetas nem sempre posi-
tivas. “É triste perceber que este fenômeno recente vem acompanhado de outras questões. Palavras como pesquisa, investigação, conceitual, experimental, vão perdendo seu peso e tendo seus sentidos descaracterizados, transformando-se em banalidades, simulacros, superficialidades sem consistência. Palavras como coletivos, história, memória, tornam-se ficções manipulatórias para servir a egos e jogos de poder nas esferas artística, de ensino e de pesquisa. O exercício artístico se dilui e também o exercício da ética” (LACERDA, 2009, p. 41).
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Ele traduz-se não apenas nas cada vez mais comuns ofertas de oficinas para que bailarinos e coreógrafos (em alguns casos até videastas) possam adentrar o universo estético e técnico da videodança, mas, especialmente, no surgimento de um festival de videodança no qual a possibilidade de formar uma plateia interessada em dança é um dos pontos altos. O panorama da dança nas cidades mapeadas não se limita à relação produção/difusão artística com as conhecidas atividades de formação (seminários, workshops, debates, palestras etc.), mas também, no caso do Recife, oferece cursos de média duração (de seis meses a um ano) e dá oportunidade de formação superior para que a sociedade como um todo possa ser beneficiada. O recém-iniciado curso de licenciatura em dança no Recife é um caso, assim como a intenção e as articulações iniciais de João Pessoa de fazer o mesmo. Os numerosos concursos que advêm da implantação de cursos superiores nas universidades federais da região (só para ilustrar, em Pernambuco, Alagoas, Rio Grande do Norte, Sergipe, Ceará...) tornaram o Nordeste atraente tanto para os profissionais locais como para os de outras regiões, que investiram na formação superior, sobretudo na pós-graduação. Essa “atração” tem dois vieses: de um lado reflete a insuficiência de vagas no mercado da Região Sudeste (Rio de Janeiro e São Paulo) para um número crescente de profissionais que concluem seu mestrado e doutorado, e, de outro, aponta para a necessidade de atrair doutores para determinadas universidades, como ocorreu na área de artes cênicas.
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A iniciativa privada, com ações voltadas para dois cursos de pós-graduação lato sensu no Recife, não teve dificuldades em preencher o número de vagas dessas primeiras turmas, e um deles já confirmou a continuidade do empreendimento em parceria com uma companhia de dança contemporânea da cidade. Tal associação é, de um lado, consequência de um quadro grave de carência de espaço no Recife, mas, de outro, um exemplo das muitas estratégias de colaboração que a dança vem fazendo para realizar seus projetos pedagógicos e artísticos. Chama a atenção as parcerias entre criadores, entendendo a impossibilidade de separar, nas práticas contemporâneas, os processos criativos em dança de outras manifestações artísticas. Grande parte dos espetáculos deste ano [2009] apresenta processos colaborativos, colocando em relação som, voz, palavra, música, imagem e movimento de forma não hierárquica, envolvendo músicos, DJs, dançarinos e videastas. O sentido dramatúrgico destas criações se amplia no momento em que o artista da dança acolhe o outro e investiga certos espaços de fronteira. O artista, na atualidade, mais do que um criador, é sempre um intruso em outros campos, um explorador de linguagens, manipulando-as e construindo ligações entre elas. (MEYER; SIQUEIRA, 2009)
Outro importante aspecto da produção das cidades mapeadas é o investimento em investigações artísticas marcadas por conteúdos e procedimentos de encenação das danças populares e que acabaram por reorganizar seus métodos e suas abordagens de construção cênica. É nesse sentido que foram dectados variados estudos e poéticas se transfigurando em obras cujas encenações em muito diferem da simples transposição de vocabulários de passos e movimentos para a cena teatral. Um traço comum tem permeado os resultados mais consequentes, aqueles que se baseiam em estratégias de colaboração entre artistas populares e artistas da dança contemporânea – nesse caso, compreendidas como colaboração aquelas marcadas pela curiosidade mútua,
pelo desejo e interesse pelo outro, pela escuta e interatividade entre os envolvidos, pela horizontalidade nos processos de colaboração, por fluxos de mão dupla nas relações de troca, pela possibilidade de reconfiguração perceptiva e ontológica, pela capacidade de potencializar o desejo de invenção após o encontro com a diferença. Observaram-se, notadamente em Campina Grande e no Recife, ações de difusão, formação e criação de trabalhos artísticos que também se originaram em diálogos e colaborações. Delineiase aí o interesse não somente pelos produtos, mas pelas instâncias e ações que contribuem para que as soluções dos problemas sejam geradas em parceria. Na origem dessa opção, faz-se presente certa maturidade, certo “tomar para si” as possibilidades de fazer e ajudar a configurar na paisagem da dança uma atitude a que a política cultural não tem feito jus. Em decorrência dos investimentos na formação superior, aumentaram consideravelmente o interesse e a qualidade das pesquisas desenvolvidas na região – que em sua maioria circunscrevem objetos da dança local, contribuindo, assim, para a construção de um futuro pensamento da dança na região. Os produtos das pesquisas também têm gerado publicações na área, fazendo com que a reflexão não fique restrita aos que têm acesso à academia, mas possa ser socializada com todos os segmentos interessados. O fortalecimento do campo do conhecimento teórico também potencializa projetos de memória como o Recordança, que iniciou uma nova versão em 2008, com o objetivo de “pesquisar sobre as produções recentes dos grupos de dança já pesquisados pelo Acervo Recordança, cujas produções até o ano de 2000 já haviam sido mapeadas pelo Acervo”4. Nesse panorama da dança nas cidades do Recife, João Pessoa e Campina Grande, como ocorrido em outras regiões do Brasil, as organizações políticas de dança – embora passem pela crise de representação que assola as legendas de mobilização política no país – cumpriram um papel na conquista de ações, verbas públicas e representatividade específica para a área: no Recife, o Movimento Dança Recife, iniciado em 2004, é uma organização com o intuito de ser um canal capaz de buscar políticas públicas para a classe. Indica representantes para comissões da área e, como outras legendas classistas, procura pressionar órgãos públicos para a concessão e ampliação de incentivos e verbas para o segmento no qual atua. Em João Pessoa, o Fórum de Dança de João Pessoa trabalha com propósitos semelhantes de representatividade da classe artística. Realiza reuniões periódicas para as quais convida, além dos profissionais da dança, seus amigos – professores, educadores, coreógrafos, bailarinos e/ ou artistas interessados nesse espaço de discussão sobre a dança no município. Outra articulação de dança realizada na capital da Paraíba é promovida pelo Coletivo Tribo Ethnos, que tem a cultura hip hop como um de seus elementos e vem realizando há sete anos encontros de dança que contemplam trabalhos com cruzamento de linguagens. No Recife, o Sindicato dos Artistas e Técnicos em Espetáculos de Diversões (Sated) tem se configurado como uma entidade de classe legalmente constituída cuja representatividade alcança imbatíveis 3 mil filiados, aproximadamente um quarto deles da área de dança. Atenta 4
Fonte: Relatório do projeto apoiado pelo Funcultura e disponível em http://www.recordanca.com.br.
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e solidária aos pleitos da classe, a entidade, sempre que solicitada, tem atuado em questões vinculadas às políticas públicas para a categoria, assim como em festivais locais, produções internacionais e de grande porte, e comissões de editais e leis de fomento e incentivo. Esse mosaico composto de partes que, aparentemente, pouco têm em comum em seus formatos, consegue, mesmo assim, esboçar percursos de contaminação e existência que apresentam singularidades na configuração da dança contemporânea nas cidades de João Pessoa, Recife e Campina Grande. Como foi dito, nos últimos anos o contexto dessas cidades apresentou particularidades, sem diferir muito do que vinha ocorrendo no Brasil: protagonizou novas plataformas de diálogo e intercâmbio na área de dança – festivais e eventos marcados pela troca de informações entre os participantes, residências de cunho artístico e formativo, coproduções em parceria com grupos e/ou instituições de outros países, conferências, palestras, mesas-redondas, fóruns de discussão, cartografias, acervos, entre outros –, instâncias que proporcionaram de forma bastante intensa a conexão da dança da região com a brasileira e com uma ampla gama de informações oriundas de diferentes contextos de produção do Brasil e do exterior. Um dos resultados desse processo tem sido a fixação do profissional de dança em sua cidade, pois, nos tempos rememorados no início deste artigo, com raras exceções, o caminho para a capacitação e o pleno exercício profissional era o do aeroporto.
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Outro dado da atual conjuntura é o surgimento de interfaces e hibridismos de linguagem até então inexistentes no âmbito da produção local, algumas vezes protagonizados por artistas oriundos do segmento da dança popular tradicional ou urbana, que, em fluxo direto com as atuais informações artísticas, geram cartografias performáticas traçadas com base em visitações (ou revisitações) de experiências (já vividas ou não) na dança. Reexamina a própria dança, abrindo novas possibilidades para ela. Alia destreza e apuro técnico, lança mão deste outro modo de se fazer dança e atordoa os olhos dos espectadores, afoitos pela apreensão dos códigos da obra. (SIQUEIRA; VILELA, 2008, p. 6)
Outras vezes, os experimentos apontam para outro modo de treinamento corporal, um corpo cênico, aprofundado na atuação do artista popular: [...] um processo diferenciado de formação, mergulha verticalmente na “tradição” construindo no corpo uma ponte entre a dança contemporânea e a dança popular. Faz do seu caminho o caminho entre fronteiras, borrando estes campos e colocando a possibilidade de formação pela “tradição”, caminho similar de hibridismos musicais da cena pernambucana. (SIQUEIRA; VILELA, 2008, p. 6)
São possibilidades de dança que contribuíram para constituir um novo quadro, mapeado em 2009; um cenário atual permeado de propostas diversas e singulares, desdobramentos não lineares que parecem virtualizar inúmeros e inéditos percursos possíveis.
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Referências bibliográficas BRITTO, Fabiana Dultra (Org.). Cartografia da dança: criadores-intérpretes brasileiros. São Paulo: Itaú Cultural, 2001. BRITTO, Fabiana Dultra. Temporalidade em dança: parâmetros para uma história contemporânea. Belo Horizonte: Edição do autor, 2008. GREINER, Christine. O corpo: pistas para estudos indisciplinares. São Paulo: Annablume, 2005. GADELHA, Ernesto; SIQUEIRA, Arnaldo. Texto do programa do Festival Internacional de Dança do Recife (FIDR), 2006. LACERDA, Cláudio. Cri-ação em dança: corpos que importam. In: Revista Eita! – Estribeiras! Interfluxo! Tessitura! Alti-tudo!, ano 2, n. 3. Recife: Fundação de Cultura Cidade do Recife, 2009. MEYER, Sandra; SIQUEIRA, Arnaldo. Texto do programa do Festival Internacional de Dança do Recife (FIDR), 2009. SIQUEIRA, Arnaldo. Aspectos da dança contemporânea do Recife (1988-2002). Dissertação de mestrado em artes cênicas. Salvador, UFBA, 2002. SIQUEIRA, Arnaldo; VILELA, Lilian. O caminho do meio. In: Revista Eita! – Experimentos! Ideias! Transformações! Arte!, ano 1, n. 1, ago.-out. Recife: Fundação de Cultura Cidade do Recife, 2008.
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Carolina Naturesa
Artista, pesquisadora e produtora, mestre em dança pelo PPGDAN/UFBA, co-organizadora e correalizadora do Encontro dos Artistas de Dança de Aracaju. Participa de atividades para a promoção de novas ações para a dança aracajuana. Participa do Eixo Memória e Patrimônio do Fórum Unificado de Artes Cênicas de Sergipe. É professora de arte da Secretaria de Estado da Educação de Sergipe.
Novos mapeamentos e novos contextos: a dança nas cidades de Aracaju, Maceió e Natal
E
ste texto trata de questões evidenciadas nos dados coletados no último mapeamento realizado nas cidades de Aracaju, Maceió e Natal. Com base nesse mapeamento, percebe-se que alguns fatos estão criando novas realidades na dança dessas cidades, como a atuação de novas companhias, a continuidade de algumas já existentes, e um aumento no número de produções coreográficas, entre outros aspectos. Além disso, evidenciam-se iniciativas na área de dança, como a abertura de licenciaturas, que vêm desenvolvendo a pesquisa e a prática acadêmica. A realização de novos festivais e mostras, ao lado de encontros para a promoção da dança, demonstra que há novas preocupações com a dança e sua permanência como área artística. Analisar dados é um trabalho duro, já que alguns não entrarão nas análises, não por serem menos importantes, mas porque outros podem estar construindo novos aspectos para a dança dessas três cidades. Por trás dos dados, existem aspectos que precisam ser levados em consideração, já que nem todas as características da dança dessas cidades estão presentes neles. Sabemos também que questões locais são fatores de construção desses mesmos dados, responsáveis pelo aparecimento de mais ou menos aspectos a serem coletados, seja no caso de Maceió, que apresenta uma reduzida produção de dança contemporânea no período mapeado, seja no caso de Aracaju e Natal, que apresentam uma contínua produção coreográfica, mas não necessariamente uma continuidade das atividades de todos os grupos e companhias de dança, e muito menos uma articulação de ações em prol da dança. Essa ausência de dados sobre alguns tópicos presentes na Base de Dados também não significa necessariamente a inexistência da produção em dança, mas pode significar descontinuidades, (ou) processos de mudança, (ou) formação de novas fases para a dança dessas cidades. Por
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causa disso, os aspectos a serem discutidos neste texto estão voltados para a questão da formação acadêmica, de grupos, companhias e coletivos e suas produções, e a realização de eventos de dança nessas cidades, que são aspectos que mostram justamente a formação desses novos contextos. Para iniciarmos este panorama, começamos por um dos aspectos comuns às três cidades, que acaba promovendo a dança nos três estados (Alagoas, Rio Grande do Norte e Sergipe), que é a criação de cursos de graduação em dança, com habilitação em licenciatura. Esse fator vem causando muitas expectativas, já que nem todos os estados brasileiros têm cursos dessa natureza. As licenciaturas vêm sendo vistas com olhares que esperam uma formação institucional em dança, já que antes inexistiam cursos profissionalizantes em Aracaju e Maceió1. Até então, os artistas encontravam (e ainda encontram) suporte em outros espaços, como academias e centro culturais, por exemplo. Somente em Natal existe curso de formação profissionalizante em dança, oferecido pela Fundação Cultural Capitania das Artes, por meio do Núcleo de Dança da Escola Municipal de Ballet Prof. Roosevelt Pimenta, a qual abriga o Balé da Cidade do Natal. Desde 2007, funcionam nessas três cidades os cursos de licenciatura em dança das Universidades Federais de Alagoas, Rio Grande do Norte e Sergipe, que recebem uma diversidade de alunos dançarinos e coreógrafos de diversas áreas da dança, alguns até com cursos de graduação e pós-graduação. Não se pode negar a importância, nos últimos anos, das graduações em dança no país, e que elas trazem novas expectativas para essa área artística e acadêmica, inaugurando um campo relegado a outros cursos e programas de pós-graduação.
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Os três cursos de licenciatura em dança possuem atividades extracurriculares, como grupos de pesquisa e atividades de extensão (cursos, grupos de dança). Ao mesmo tempo, a produção acadêmica desses cursos mostra que essas ações são anteriores ao advento dos cursos, com a produção dos próprios professores e alunos, que já possuíam uma carreira acadêmica e∕ou artística anterior (alguns professores já tinham carreira em outros cursos de graduação nessas universidades). Para citar alguns exemplos, em no máximo quatro anos de existência, a graduação em dança da UFS já possui uma linha de pesquisa, Dança e Diversidade, coordenada pela professora doutora Ana Angélica Freitas Góis, que, além de produzir eventos artísticoacadêmicos, como o Dança na UniverCidade, realizou algumas mostras artísticas e palestras. Aspectos semelhantes apresentam-se na graduação em dança da Ufal, onde é realizado o Universidança, uma mostra acadêmica coordenada pelos professores do curso, entre eles a professora doutora Isabelle Pitta. Além de mostras artísticas, o curso possui três linhas de pesquisa, coordenadas pelo professor doutor Antônio Lopes: História, Memória e Documentação da Dança e do Teatro em Alagoas, e Danças do Brasil, Danças de Alagoas, além da linha de pesquisa Bailarino-Pesquisador-Intérprete2, coordenada pela professora mestre Paula Caruso Teixeira. O curso de dança da Universidade Federal de Alagoas ainda oferece diversas atividades de extensão, como cursos de dança, palestras e oficinas, o que demonstra o início de uma procura pela diversidade de atividades acadêmicas. Além da graduação em dança, o Instituto de Ciências Humanas, Comunicação e Artes da Ufal também oferece especialização em Metodologia do Ensino de Artes, com habilitação nas áreas de Dança, Teatro, Música e Artes Visuais. 1
A Escola Técnica de Artes abriu recentemente (2010) o curso técnico de dança.
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À época da coleta de dados, essa linha de pesquisa encontrava-se em fase de formação.
No entanto, ao lado dessas iniciativas, o choque com a nova realidade do meio acadêmico acaba por provocar críticas a respeito da formação de seus docentes, de suas metodologias de ensino, conteúdos, impossibilidade de cumprimento das expectativas dos alunos em relação à formação, pois muitos ingressam esperando a continuidade das atividades de que participam nos espaços externos à universidade, como academias de dança, por exemplo, onde aprendem e praticam técnicas e estilos de dança. Assim, parece que a graduação em dança tem provocado questionamentos e levado a reflexões no espaço acadêmico. Nesse sentido, percebe-se que ainda são desejados espaços de debates, cursos, palestras (e demais iniciativas) dentro da cidade que possam proporcionar outras formas de prática de dança, de formação, de trocas e novas produções na dança contemporânea de Maceió. Há uma necessidade de diálogo entre os artistas para que possam compartilhar informações, criando, inclusive, novos olhares e novas expectativas sobre o papel dessa licenciatura na sociedade alagoana. Acontece que muitos alunos ingressam no ensino superior inexperientes em dança, o que pode causar mais conflitos em virtude de expectativas não correspondidas. Eles veem o curso como formação e profissionalização de artistas de dança, o que não é o papel das licenciaturas. Como já foi falado acima, as ações realizadas em âmbito acadêmico têm proporcionado outras percepções de corpo, dança e da própria natureza do curso de graduação da Ufal. Fato semelhante ocorre na licenciatura da UFS, pois muitos alunos ingressam com as mesmas expectativas, o que causa uma diversidade de críticas e até um grande abandono do curso, já que não é oferecida formação em técnicas de dança, o que possibilitaria que eles se graduassem como bailarinos profissionais. Ao mesmo tempo, percebe-se que alguns alunos se identificam com as questões acadêmicas da universidade (mas não necessariamente do curso, ou que essas questões já existam nele) e passam a escrever artigos e textos para participar de encontros, palestras, colóquios e demais eventos acadêmicos da UFS e de outras universidades, passando a desenvolver, dessa forma, suas primeiras pesquisas de iniciação científica. O contato com produções e eventos acadêmicos e artísticos da própria UFS e de outras universidades, como as Federais de Alagoas e da Bahia, colabora, portanto, para novas formas de pensar e entender a dança, e, neste caso, a dança contemporânea, já que entre eles se encontram alunos vindos de grupos e companhias de dança contemporânea do estado de Sergipe, principalmente da cidade de Aracaju, como já citado acima. Oriundos de uma diversidade de formas de dança, os alunos deparam com uma série de conflitos sobre a própria identidade do curso. Não sabem que direcionamento dar a suas ações, já que encontram dificuldades de reconhecimento da dança como área profissional. Encontram-se, portanto, com as mesmas dificuldades que tinham antes de entrar no meio acadêmico. Um fato importante dentro do curso é a troca de experiências artísticas e acadêmicas possibilitada pela aproximação de alunos vindos de companhias de dança da cidade de Aracaju e de outras cidades do interior do estado, o que antes não acontecia dentro dos eventos de dança, como mostras e festivais. Não que não houvesse intenção de aproximação, mas a estrutura de pensamento que forma esses bailarinos ainda não proporciona nem incentiva a aproximação entre os artistas de dança da cidade3. 3
Ainda se percebe que, nos espaços de formação em dança, ou que acabam por ser espaços de
formação em dança, como academias, cursos livres, festivais e workshops, entre outros, ainda predominam ações de continuidade de aprendizado de técnicas de dança, e não uma formação com discussões políticas para a área, como o papel do artista de dança no contexto cultural do estado, as dificuldades de produzir dança, além da ausência de espaços institucionalizados para a formação em dança, como
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Esse fato torna mais importante ainda o funcionamento da graduação em dança, já que não se também em âmbito universitário a aproximação entre artistas já experientes e alunos que tiveram pouca ou nenhuma experiência em dança anteriormente. Percebe-se que inicialmente não é objetivo do curso proporcionar esse tipo de relação; contudo, a existência do curso superior de dança tem não só provocado questionamentos, mas, indiretamente, também proporcionado esse tipo de benefício à área da dança. Todavia, tudo ainda é muito novo, e a primeira turma de graduados em dança sai no período de 2010-2012. As formas de atuação como profissionais formados institucionalmente vão começar a ser reconhecidas aos poucos e, com isso, a relação entre a sociedade e a área da dança no estado vai se redesenhando. Quanto à Universidade Federal do Rio Grande do Norte, funcionam no Departamento de Artes os cursos de graduação de licenciatura em dança e de mestrado em artes cênicas, o qual tem duas linhas de pesquisa, a saber, Pedagogias da Cena: Corpo e Processos de Criação e Linguagens da Cena: Imagem, Cultura e Representação. Esses cursos vêm desenvolvendo pesquisas e atividades já iniciados antes de seu surgimento, dando continuidade a projetos tocados por professores que já faziam parte do corpo docente de outros departamentos, a exemplo da professora doutora Karenine Porpino, ex-docente do curso de educação física (que já desenvolvia trabalhos na área de dança na UFRN). Também abarcam grupos já existentes no âmbito universitário, como é o caso do Gira Dança e da Gaya Cia. de Dança, ambos nascidos dentro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, ainda em atividade.
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Numa cidade que possui duas companhias públicas de dança, o Balé da Cidade do Natal, com sua escola de formação em dança, e a Cia. de Dança do Teatro Alberto Maranhão (TAM), o papel da licenciatura em dança pode vir a ser o de formação de novos pesquisadores na área, retroalimentando uma prática que parece estar consolidada em termos de companhias e produção prática, a exemplo das citadas anteriormente, incluindo a Domínio Cia. de Dança que, subsidiada pela academia Studio Corpo de Baile, procura criar trabalhos com proposta de dança contemporânea. Quando se fala do papel das licenciaturas para a área da dança não significa que não ocorram questionamentos nessas produções de espetáculos, pois com certeza existe uma produção artística pautada na relação entre teoria e prática. O que queremos dizer é que a presença da graduação em dança pode trazer outras perspectivas para a área nesses três estados, pois, como foi mencionado por um dos artistas integrantes das companhias mapeadas, a dança agora pode ser reconhecida como profissão, já que está dentro da universidade. Como a sociedade reconhece a universidade como espaço de saber, a dança pode alcançar esse patamar. Com relação às companhias de dança, os dados mostram que, durante o período mapeado, as produções coreográficas em Natal parecem manter uma regularidade, já que todas estão conseguindo realizar ao menos um espetáculo anual e também outros trabalhos, como pequenas coreografias para participação em eventos de dança. Já em Maceió, apenas uma companhia de dança contemporânea esteve em atividade durante esse período: a Cia. Ltda., dirigida por Jorge Schutze, que procura deslocar os entendimentos tradicionais de dança predominantes na cidade de Maceió. Com uma proposta de coletivo de dança, Jorge trabalha com intervenções urbanas e performances, com foco principal no público presente nas ruas da cidade. Outros artistas anteriormente presentes na Base de Dados do programa Rumos ou deixaram a área artística ou estão trabalhando em outros projetos artísticos, mas cursos técnicos ou mesmo uma graduação com bacharelado em dança.
não necessariamente com dança. Alguns, como Nara Sales, estão atuando mais no contexto acadêmico. Outros, como Magnum Ângelo, Telma César e Tiago Sampaio, vêm atuando artisticamente em projetos independentes ou em grupos ou coletivos com propostas não diretamente ligadas à dança. No caso de Aracaju, novas produções de dança estão intimamente ligadas ao surgimento de companhias de dança contemporânea, a exemplo da Espaço Liso Cia. de Dança, da Cubos Cia. de Dança e da Cia. Contempodança. Além dessas propostas coreográficas, uma leva de novos festivais e mostras proporcionou um período diversificado e produtivo para a dança da cidade. A Cubos Cia. de Dança vem produzindo seus espetáculos com uma energia que há muito não se via na cena da dança aracajuana. Surgida em março de 2007, desde então a companhia não para de produzir espetáculos, tendo realizado quatro, numa média de um por ano. Além de seus espetáculos, a Cubos vem participando de festivais de dança em outros estados, conseguindo uma regularidade em suas ações artísticas. Entre seus trabalhos, o projeto de montagem do espetáculo Reverso ganhou o Prêmio Klauss Vianna em 2009 e já foi apresentado diversas vezes, inclusive em temporada em outros estados. Além de procurar desenvolver uma identidade própria por meio da dança contemporânea, a Cubos traz uma proposta pautada numa forma de fazer dança, procurando a profissionalização não somente nos espetáculos, mas em todo o processo de montagem, ensaios e difusão. A Espaço Liso Cia. de Dança também surgiu recentemente, em janeiro de 2007, mas seu coreógrafo, o bailarino e ator Ewertton Nunes, já trabalhava em projetos independentes de dança, teatro e circo, inclusive dando aulas em academias de dança e em projetos sociais como arte-educador. Sua proposta artística traz a poesia e o teatro como linguagens que se comunicam e se aproximam da dança procurando travar diálogos para, com isso, desenvolver uma forma própria de fazer. Assim como outras companhias, com a Contempodança e a Cubos, a Espaço Liso enfrenta dificuldades para a produção e a circulação de suas obras. Isso torna irregulares as atividades realizadas pela companhia, que, além de depender de apoio, tem seus integrantes assumindo outras profissões – um elemento comum a tantas companhias de dança independentes. A Cia. Contempodança, mesmo tendo surgido no contexto da década de 1990 na cidade de Aracaju, vem passando por modificações em sua forma de pensar a dança. Desde o falecimento de seu fundador, Francisco Santana4, a companhia perdeu integrantes e ganhou outros. Atualmente conta com a participação de Leilinha Nascimento, Brenda Katherine e Adriano Matos, que vêm tentando criar espetáculos em que possam expressar a busca por uma linguagem própria partindo do diálogo e das discussões e trocas entre eles. As dificuldades encontradas por Ewertton assemelham-se às da Cubos e da Contempodança, que são no desenvolvimento de uma linguagem autoral em dança contemporânea, com referenciais que não têm sido encontrados dentro das produções da cidade de Aracaju. Outra dificuldade encontrada pelas companhias presentes neste novo mapeamento é a construção de novos referenciais para a dança contemporânea na cidade, em que possam desenvolver suas identidades, ou seja, suas próprias formas de criação em dança.
4
Francisco Santana, conhecido como Chiquinho, faleceu em 2006.
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A Semana Sergipana de Dança5 (além de outros festivais e mostras também de grande contribuição para a dança na cidade) tem sido importante como fator de aproximação dessa produção independente com o público. Desde seu início, em abril de 2007, essa mostra tem levado ao palco a diversidade da dança produzida por grupos da capital e de cidades do interior do estado, procurando dar visibilidade ao que vem sendo (ou tentando ser) produzido. Alguns festivais realizam oficinas e workshops, como o Festival Nacional de Dança de Aracaju, idealizado por Klely Perelo e organizado por ela e Júnior Oliveira (Bahia), e o Workshop Internacional de Dança Contemporânea, organizado por Everaldo Pereira, que proporciona aos artistas locais atualização técnica, novos contatos e intercâmbios artísticos. Além disso, é de suma importância destacar as mudanças realizadas pela Cia. Contempodança no antigo festival Faz Dança, realizado durante a direção de Francisco Santana. Após as mudanças de paradigmas da companhia desde o ocorrido, levantando questões pertinente sobre dança, dança contemporânea e seus modos de produção, entre outras questões, a forma de se perceber e de perceber a dança da cidade proporcionou reflexões que resultaram na concepção de um novo festival, o Galeria da Dança6, dando espaço a escolas, academias e grupos amadores, como também a grupos de dança independentes.
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Embora não tenha iniciado mudanças mais profundas na área artística no estado de Sergipe em termos de políticas culturais, o edital de apoio à circulação de espetáculos foi lançado pela Secretaria de Estado da Cultura em 2009, o Prêmio César Macieira, contemplando 15 espetáculos nas áreas de teatro, dança e circo, como início de reconhecimento de uma produção já existente e carente de patrocínios. Parece que novas perspectivas vêm se formando nos últimos tempos, indicando que as artes estão sendo percebidas com base em suas necessidades de produção. Iniciativas de promoção da dança também têm sido realizadas em Natal, por meio de eventos como o Discutindo Dança em Natal, ocorrido em outubro de 2009, organizado por Jaquelene Linhares, e o Dia Internacional da Dança, por meio da Funcarte e da Escola Municipal de Ballet Prof. Roosevelt Pimenta. O Discutindo Dança em Natal foi uma iniciativa contemplada pelo Edital Areté Cultura Viva, Eventos em Redes, do Ministério da Cultura, tendo apoio do Ponto de Cultura Giratório. A artista e pesquisadora Jaquelene Linhares pensou no encontro como forma de aproximação para a discussão de questões pertinentes à dança na cidade de Natal, como políticas culturais e ações de melhoria, juntamente com artistas que já vêm discutindo essas questões em âmbito local e nacional. 5
A Semana Sergipana de Dança teve sua primeira edição em abril de 2009 na cidade de Aracaju, no
Teatro Tobias Barreto, onde continua a ser realizada desde então com regularidade. Essa mostra teve como idealizador e produtor Lindolfo Alves do Amaral, diretor do teatro desde 2007, que pensou numa mostra de grupos independentes do estado como uma forma de apoio à sua produção e difusão. Lindolfo é ator, produtor e diretor do Grupo de Teatro Imbuaça, e em décadas anteriores presenciou o fim das atividades de vários grupos de dança do estado, por isso investiu nesse projeto por acreditar que assim os novos grupos teriam um incentivo para continuar suas atividades. Atualmente, a mostra tem sido o maior espaço para a apresentação de grupos e companhias de dança e, além disso, tem tomado proporções maiores do que as esperadas, como o surgimento de grupos e o conhecimento deles por parte do público de dança da cidade de Aracaju. 6
O projeto desse novo festival recebeu apoio do Edital de Projetos Culturais do Sesc-SE em 2009.
Nesse evento, foi formulada uma carta dirigida ao poder público para discutir as especificidades da dança com base no documento do Colegiado Setorial de Dança do MinC. Por isso, o Discutindo Dança em Natal contou com a participação de representantes de companhias como o Núcleo de Dança da Funcarte, do Gira Dança, da Domínio Cia. de Dança, além de convidados, como a professora doutora Lúcia Matos e Sérgio Andrade, diretor do Grupo CoMteMpu’s Linguagem do Corpo. Uma ação em favor da dança, o Dia Internacional da Dança, ocorrido em abril de 2009, foi produzido pela Funcarte, realizado pela Escola Municipal de Balé da cidade de Natal, com curadoria de Anízia Marques, que, à época, era diretora do Balé da Cidade do Natal. Com o objetivo de discutir o momento atual da dança potiguar, reuniram-se no auditório da Funcarte diversos artistas e professores da área para debater a situação da dança na cidade. Entre eles, estavam Karenine Porpino, Maurício Mota, Edeilson Matias, Rose Costa e Sávio de Luna. Na programação, constaram apresentações de grupos e companhias de dança de Natal: Roda Viva Cia. de Dança, Grupo de Dança da UFRN, Gira Dança, Balé da Cidade do Natal, Cia. de Dança do Teatro Alberto Maranhão, entre outras. A produção coreográfica das companhias presentes neste mapeamento parece ter uma continuidade, produzindo ao menos um espetáculo anual. O Gira Dança, por exemplo, que tem à frente Anderson Leão, ganhou o Klauss Vianna em 2007. Com uma proposta de dança contemporânea que trabalha com pessoas com e sem deficiência, propõe o corpo como ferramenta de experimentações. Além desses aspectos, o grupo convida coreógrafos para residência artística, como Anízia Marques e Mário Nascimento. Como companhias de dança estáveis e vinculadas ao poder público, a Cia. de Dança do TAM e o Balé da Cidade do Natal vêm produzindo sés espetáculos, além de coreografias para apresentação em mostras locais e nacionais. Uma delas é a mostra mensal do Corpo de Baile da Escola de Ballet e do Balé da Cidade do Natal. A Cia. de Dança do TAM, que tem como diretora e coreógrafa Wanie Rose, também recebe coreógrafos da cidade, de outros estados e países para criação de novas propostas de trabalho. Essa companhia parece conseguir uma regularidade em suas produções coreográficas. Como foi falado inicialmente, dados não dão conta da realidade totalmente, mas podem indicar um pouco do que vem ocorrendo nos últimos dois anos do mapeamento. Pelo que foi mostrado, mudanças significativas estão se iniciando graças à abertura das licenciaturas em dança nos três estados, o que tem provocado questionamentos sobre o papel delas e das universidades na área. Paralelamente a isso, continuam as discussões sobre a situação da dança nessas cidades, os questionamentos por parte dos artistas em busca de maior reconhecimento e visibilidade, de maior apoio por parte do poder público, e a produção da dança contemporânea, que vem se ampliando como proposta cênica das companhias citadas e dos novos artistas que iniciam seus trabalhos. Esperamos, com isso, ter realizado análises pertinentes aos dados coletados no período de mapeamento entre 2007 e 2009, o qual parece ser um período de transição ou mesmo de reorganização de ações, produções e pensamentos para a dança nordestina. Com isso, abremse novas possibilidades de discursos, de diálogos, de novas realizações em prol da dança nas cidades de Aracaju, Maceió e Natal, transformando a prática da dança em um fator de desenvolvimento artístico nessas cidades, reconhecidas como áreas autônomas de produção de conhecimento teórico e prático.
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Intérprete-criadora, pesquisadora e professora de dança. Formada em licenciatura em dança e com especialização em estudos contemporâneos em dança, ambos pela Universidade Federal da Bahia.
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Flor Violeta Liberato Bartilotti
Dança na Bahia: projeções, espaços e articulações
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screvo neste momento de outro lugar que não a capital baiana, onde se encontra quase toda a atividade de dança contemporânea do estado; precisamente do interior da Bahia. Que lugar é esse? Qual o lugar da dança na Bahia? Por que a dança contemporânea não alcançou o interior do estado? É um movimento pertinente aos centros urbanos ou a uma minoria capaz de pensar e perceber os caminhos dessa linguagem? São questões que me levam a pensar no acesso à produção artística, à formação em dança e no quanto realmente estamos trabalhando para o fortalecimento e expansão da arte que produzimos. Esse lugar traz um distanciamento capaz de dar ao texto um interessante aspecto, uma vez que tive de me aproximar de maneira peculiar do momento vivido pela dança na Bahia: inaugurar meu olhar percebendo o olhar do outro, distante das salas de recepção dos teatros, das reuniões e acontecimentos. O caminho que encontrei para tanto foi o diálogo com profissionais que desempenham um papel relevante na área e principalmente as reflexões oriundas do mapeamento realizado em 20091, em constante comunicação com as edições anteriores, traçando um comparativo capaz de nos situar dentro de alguns acontecimentos. Tudo isso sem me desvencilhar de minha história como profissional atuante na dança, como coreógrafa, professora e intérprete. A política da cultura atual trouxe, desde sua implantação em 2007, uma preocupação em atender as demandas do interior do estado. Procurando soluções para as diferenças de estímulo cultural entre a capital e os demais municípios, garantiu uma porcentagem das verbas 1
Mapeamento realizado na capital, Salvador, e em alguns pontos isolados espalhados por outros
municípios, disponível no site www.itaucultural.org.br.
para projetos oriundos do interior, percorreu todas as regiões oferecendo oficinas de elaboração de projeto, divulgando editais e premiações e, principalmente, descentralizou as ações da Secretaria de Cultura do Estado da Bahia, reativando os Centros de Cultura espalhados pelos municípios após sua reforma e criando o cargo de representante de cultura por região. Após três anos de existência, podemos perceber um avanço na quantidade de espetáculos e eventos que circulam pelo território baiano, que contam com teatros e salas de apresentação mais bem equipadas para atender às produções. Junto com a política de descentralização e democratização, foi lançado um programa para a dança pela recém-instituída Diretoria de Dança, o Pró-Dança Bahia2, elaborado em conjunto com a classe, procurando suprir as necessidades de estímulo a produção, pesquisa, criação, formação, difusão, registro e memória da dança. Além dos editais de montagem e circulação, cujos valores de premiação triplicaram em dois anos, novas vertentes foram fomentadas por categorias e editais inéditos, a exemplo do edital Quarta que Dança, que foi reformulado, e do Apoio à Pesquisa e Projetos Artístico-Educativos em Dança. Os editais estimularam também a realização de atividades de acesso e/ou formação relacionadas aos projetos selecionados, atingindo um público total de 5.696 pessoas por meio de palestras, oficinas, workshops e outras ações.
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Na ampliação do leque de opções do Quarta que Dança, edital da Fundação Cultural do Estado da Bahia (Funceb), entraram duas modalidades: a intervenção urbana e o trabalho em processo, que estão cada vez mais presentes em outros editais do país. A intervenção urbana tem o princípio básico de deslocar a arte das salas de apresentação para o ambiente urbano, de levar a arte para o povo, aproveitando esse momento único, espacial e tematicamente, e envolvendo o público em redes de acontecimentos. A apresentação de trabalhos em processo de criação coloca o espectador diante de possibilidades, escolhas e questões vividas pelo artista, oportunidade única de trazer para o palco experiências criativas sem o compromisso com um produto cênico acabado. O programa passou por uma desaceleração, porém, em virtude de um corte de verbas, contingenciamento sofrido no início de 2009, principalmente nos campos que não eram prioritários, como a cultura, restrição que afetou todas as ações que estavam subsidiadas por verbas da Secretaria de Cultura do Estado. Houve continuidade somente das iniciativas que tinham verbas oriundas do Fundo Nacional de Cultura, ou seja, com recurso federal. Tivemos, então, a interrupção do Encontro de Dança Amadora, que parou em duas edições (realizadas nos municípios de Valença, Jequié e nos respectivos entornos), ambas no ano de 2008. Essa mostra tinha uma função preponderante no fomento da dança no interior, pois promovia encontros de dança amadora, de caráter não competitivo, voltados para crianças e jovens, com apresentações gratuitas de grupos da região préselecionados em diferentes estilos e técnicas, além de workshops e palestras. De acordo com a Diretoria de Dança3 da Funceb, essa iniciativa está em fase de reavaliação para que possa retornar com mais força, convergindo ações de formação artística e mobilização política, culminando na mostra. 2
Sobre o qual escrevi no texto “A Dança na Bahia, Movimentos de Renovação”, publicado na Cartogra-
fia Rumos Itaú Cultural Dança 2006-2007. 3
Entrevista com o diretor Alexandre Molina, da Diretoria de Dança da Funceb, concedida em 9 de
julho de 2010.
Contudo, um programa de governo não assegura permanência. Ainda hoje não temos uma lei que estabeleça definitivamente os ganhos conquistados no âmbito da cultura. Assim, a organização e a coesão da classe são essenciais para a continuidade dos trabalhos que vêm sendo desenvolvidos e constantemente discutidos. Com essa visão de gestão participativa, presenciamos um momento em que os profissionais, grupos e coletivos estão se fortalecendo com parcerias que potencializam a capacidade de realização e estabelecem outros patamares de atuação independentes do poder público. Trilhando esse caminho, podemos citar algumas iniciativas: o trabalho do Coletivo Construções Compartilhadas, embora recente, já dá frutos. Em sua parceria com um ponto de cultura, há dois anos vem trabalhando com a comunidade do Engenho Velho de Brotas, dialogando por meio de intervenções urbanas, performances, cursos, aulas abertas, interferindo na rotina das pessoas, tendo em vista a construção de uma realidade cotidiana de acesso e visibilidade para a dança. Pego emprestadas as palavras de Katz, e transcrevo: No Brasil, a dança vive hoje em um ambiente regido pelo consumismo individualista e mercadorizado, pautado pelo desenvolvimento desigual e excludente. Aceita essas condições como se fizessem parte de um destino do qual não tem chance alguma de escapar. Todavia, há quem se insubordine a essa inércia por acomodamento, espécie de moléstia que parece endêmica e que, no momento, se encontra muito distante das práticas associativas que funcionariam como um bom antídoto. É preciso sair do estado de submissão onde nos encontramos para começar a investigar que chances temos para melhorar o nosso presente. (KATZ, 2006)
A colaboração parece ser a melhor maneira de lidarmos com as adversidades, unindo modos de pensar e fazer dança, experimentando conexões e traçando fluxos. Nesse sentido, presenciamos uma mudança na estrutura dos grupos que cada vez mais deixam de lado um formato hierárquico e com profissionais voltados exclusivamente para a produção em dança para buscar uma concepção que dilata a ideia antes concebida de grupo e se aproxima de um coletivo, que abrange muitas coisas e pessoas, ou seja, indivíduos que partilham de uma ideia ou objetivo sem perder suas identidades e diferenças. Esse entendimento de trabalho em conjunto dissipa os contornos a que estamos acostumados e procura outras maneiras de estar no mundo e se expressar esteticamente. Configurações como associação, coletivo, núcleo, em interação com pontos de cultura, teatros, escolas, trazem em sua existência a concepção de parceria, entre profissionais com formações diversas, entre as linguagens da arte e entre as áreas do conhecimento. Podemos observar bons resultados provenientes do movimento que a classe (longe de um coro uníssono, mas caracterizada por agrupamentos de pares) tem feito em busca de resolver a questão da visibilidade da dança contemporânea. Os grupos estão se colocando no lugar de propor e realizar mostras, programas, seminários, encontros, intervenções, saindo da passividade de esperar que alguma instituição ou o poder público o façam. Aproveitando as oportunidades que se apresentam por meio dos editais municipais, estaduais e nacionais de fomento à dança e que tiveram um aumento considerável nos últimos anos, vêm colocando em prática projetos capazes de fazer girar o círculo produção-público-patrocínio. Mais produções alcançam um número maior e mais diversificado de público, trazendo visibilidade, interesse de patrocinadores e verbas públicas que realimentam a roda com mais estímulo ao produto artístico. O mercado fica mais aquecido e os profissionais procuram qualificação.
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Em 2009, aconteceu a primeira edição do Plataforma Internacional de Dança (PID), evento semeado pela Diretoria de Dança da Funceb, que encontrou grande reverberação na classe artística, quando esta foi convocada a participar do processo de construção da mostra. Em sua elaboração, organização e execução estão presentes profissionais, instituições públicas e privadas que buscam criar um espaço de oportunidades de intercâmbio e produção de conhecimentos acerca do que representa todo o labor da dança, além de fomentar um ambiente de conexão entre artistas da dança contemporânea baiana e o mundo. Em 2010, inaugurou outro formato que foge ao convencional, estendeu suas atividades durante todo o ano realizando encontros, capacitações, seminários, além da mostra artística. Com essa estratégia, fortaleceu os propósitos do evento de colaboração e diálogo capazes de gerar confluência de ações e intercâmbio de ideias. Assim trouxe à tona discussões importantes, como economia da dança e curadoria.
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A iniciativa do Núcleo Viladança (grupo que também ampliou sua forma de atuação, tornandose um núcleo capaz de elaborar e produzir projetos e eventos), há alguns anos vem se dedicando à tarefa de formar plateia (inclusive infanto-juvenil), não só na capital, mas percorrendo os municípios maiores e menores, chegando a ser o único espetáculo de dança que algumas populações viram. Uma estratégia interessante é realizar produções e eventos que aglutinem várias vertentes da dança e da arte capazes de cativar públicos específicos, como o infantil, a terceira idade, o jovem, o portador de necessidades especiais. Uma de suas iniciativas é o Festival Vivadança que, em quatro anos de existência, se consolidou como um espaço de convergência, com portas abertas a qualquer produção em dança, popular, contemporânea, hip hop, afro, local, nacional e internacional, possibilitando a construção de um lugar sem fronteiras, sem deixar de lado a mostra de produções coreográficas de qualidade. Essa ação deu início ao movimento de comemorar o mês de abril como o mês da dança, com uma programação ininterrupta. No ano seguinte, 2008, a Funceb abarcou essa ideia com o projeto Agendançabril, expandindo para outros espaços e para o interior o circuito de fruição e formação em dança com mostras, oficinas, palestras, intervenções urbanas etc., uma parceria entre várias instituições, como Fórum de Dança da Bahia, Escola de Dança da UFBA, Funceb, escolas, grupos, teatros e artistas do estado. A Escola de Dança da Universidade Federal da Bahia continua sendo a única instituição de ensino superior no estado, centralizando na capital a formação dos profissionais. Esse talvez seja um dos fatores mais relevantes no lento processo de dilatação da dança no estado: poucos têm a possibilidade de se deslocar para uma formação e menos ainda são os que retornam para sua cidade natal, uma vez que os municípios também não apresentam uma política pública em sua esfera capaz de estimular a produção local e aquecer o mercado de trabalho. Pioneira em sua estratégia de ampliação, a Escola de Dança da Fundação Cultural do Estado da Bahia, instituição formadora no âmbito da educação profissional em dança, a partir de 2008, além do trabalho desenvolvido fora de sua sede no Núcleo do Nordeste de Amaralina (outro bairro popular da cidade de Salvador), elaborou o Curso Básico de Dança – Formação Inicial e Continuada dos Trabalhadores, para atender a uma demanda de capacitação e aperfeiçoamento em dança em outros territórios do estado. Esse curso tem como objetivo atender à classe artística do interior do estado para qualificar e atualizar os profissionais de grupos de dança em seu próprio município. Como fruto desse processo multiplicador, já é possível notar um crescimento do interesse pela formação profissional, uma mobilização artística e política e um aumento da participação de projetos nos editais, construindo assim uma ponte entre a capital e regiões interioranas antes apartadas do acesso à informação4: 4
Entrevista com Bete Rangel, diretora da Escola de Dança da Funceb, concedida no dia 7 de julho
de 2010.
“É importante lembrarmos que cada nova informação modifica o ambiente que por sua vez modifica os corpos que neles se encontram, produzindo um fluxo contínuo entre corpo e ambiente.” (MARTINS, 2007)
Chegar ao público cativando novos “consumidores”, ou, melhor dizendo, processadores dos elementos dispostos na arte, torna-se essencial para a sobrevivência da dança em meio ao mundo que conhecemos, onde a mídia de massa se faz presente com a padronização dos modos de ser e fazer. Na tentativa de superar a escassez de público para a dança foi que a Sua Cia. idealizou uma série para a televisão intitulada Sua Dança, que em 2010 completa três anos de existência e persistência, pois se trata de um projeto ainda “financiado” por seus idealizadores. Atualmente essa companhia – que mais se aproxima de um coletivo, por seu modo horizontalizado, multifuncional e com formações diversas – se firmou como uma associação que trabalha com arte, produção e formação cultural, integrada por artistas interessados em ampliar os horizontes não apenas com a dança, propondo-se a encontrar elos e estabelecer trânsitos entre as linguagens em suas produções artísticas e nos projetos que realiza. O evento Conexões Criativas, iniciado em 2008, é organizado pela Sua Cia. como um espaço de compartilhamento de reflexões e trabalhos de grupos interessados nas diversas linguagens artísticas, métodos e resultados, e do interesse de conectar criativamente os saberes e fazeres5. O Dimenti, criado em 1998, vem desenvolvendo uma tecnologia poética e firmando-se como um grupo que possui uma linguagem em franca sistematização, com um repertório ativo. Para isso, realiza articulações transdisciplinares entre diversas linguagens cênicas e gêneros artísticos, o que remonta à sua origem, com profissionais de áreas diversas (dança, teatro, música, letras, comunicação, psicologia), o que torna cada vez mais difícil categorizar suas produções, sejam elas cênicas, audiovisuais ou para web. Desde 2006, realiza o Interação e Conectividade, que, em sua quarta edição, acumula um repertório de investigação teórico-prático promovendo reflexões, residências, intervenções, lançamento de livros, DVDs, entre outras ações que nos colocam no lugar privilegiado de pensar, ver e produzir dança contemporânea. Abrindo espaço também para os que se iniciam no processo artístico coreográfico, um evento como o Painel Performático da Escola de Dança da UFBA desde 2003 se propõe a apresentar semestralmente a produção dos alunos de graduação e pós-graduação. Também dessa instituição é o Projeto Nós e os de Casa, que acontece pelo segundo ano consecutivo e visa à apresentação e ao fomento de grupos de dança independentes criados dentro da escola e grupos de organizações populares de Salvador. E o Redanças, projeto de extensão da UFBA idealizado por Lúcia Matos, visa promover discussões acerca das redes colaborativas em dança e das políticas públicas para a dança, gerando encontros regulares entre artistas e grupos na Bahia e em outras capitais do Nordeste. Ainda em 2009, ressurgiu o Palco Alternativo de Dança, projeto da Escola Contemporânea de Ballet, que durante muitos anos esteve presente no cenário local, atendendo a uma necessidade dos profissionais de dança e das vocações emergentes de ter onde e como mostrar, testando publicamente seus trabalhos. O Sexta em Movimento e o Tabuleiro da Dança, ambos apoiados pela Funceb, também proporcionam aos artistas da dança 5
Entrevista com Clara Trigo, integrante da Sua Cia. e membro da equipe PID 2010, concedida no dia
7 de julho de 2010.
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baiana espaço para a divulgação de seus trabalhos em mostra coreográfica e fomento à formação de plateia com valores de ingresso populares. Com base no intercâmbio entre as companhias de dança contemporânea Grupo X de Improvisação em Dança (Brasil) e Cia. Artmacadan (França), acontece o Projeto Euphorico a Céu Aberto, realizado desde 2005 alternando, anualmente, realizações no Brasil e na França, respondendo aos territórios contemporâneos da arte e das novas tecnologias com uma proposta criativa, colaborativa, baseada na experiência da improvisação em dança. A céu aberto e itinerante, o projeto busca o aproveitamento da luminosidade do dia e do entardecer e, em paralelo, provoca a curiosidade do espectador/transeunte para que ele emita opiniões sobre o que viu/percebeu, e assim o coloca dentro da cena como um participante colaborativo e deflagra novas composições – pelo olho do espectador, modos diferentes de perceber e criar danças. Distante de Salvador, surgiu em 2008 o Festival de Dança de Itacaré, procurando estabelecer em suas duas edições um diálogo entre as danças populares e a dança contemporânea, valorizando as produções regionais e a troca de experiências com profissionais da Bahia e do Brasil. Realizar um mapeamento de pessoas, movimentos e ações é fazer seu registro em um sistema. No cruzamento desses dados, ideias são concebidas, hipóteses são levantadas, deixando visível o olhar de quem aborda a realidade e, precisamente na reflexão, as informações tomam dimensões capazes de chamar atenção, destacar, apontar e gerar novos olhares. Deixo aqui algumas impressões no intuito de provocar considerações acerca das conquistas, das falhas e do que podemos tecer como artistas, pesquisadores, críticos, professores e cidadãos.
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Referências bibliográficas BARTILOTTI, Flor Violeta Liberato. A dança na Bahia, movimentos de renovação. In: Cartografia Rumos Itaú Cultural Dança 2006-2007. São Paulo: Itaú Cultural, 2007. KATZ, Helena. Apresentação. In: XAVIER, Jussara; MEYER, Sandra; TORRES, Vera (Org.). Tubo de ensaio – Experiências em dança e arte contemporânea. Florianópolis: Ed. do Autor, 2006. MARTINS, Giancarlo. A descentralização da cultura da dança no Brasil pós-anos 80. In: NORA, Sigrid (Org.). Húmus, 2. Caxias do Sul: Lorigraf, 2007.
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Giancarlo Martins
Professor e pesquisador, mestre em comunicação e semiótica (PUC-SP), bacharel em dança (FAP-PR). Professor e coordenador do curso de dança da Faculdade de Artes do Paraná, onde também coordena o Núcleo de Estudos em Dança e organiza a revista eletrônica O Mosaico.
Contexto(s) evolutivo(s) da dança contemporânea no Paraná
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A
o longo dos mapeamentos realizados pelo programa Rumos Itaú Cultural Dança , foi possível constatar que muitas iniciativas empreendidas nas áreas de pesquisa e criação, difusão, ensino e mesmo nas políticas públicas geraram novas ações para o campo da dança, potencializando experiências, principalmente aquelas que testam formatos que diferem dos modelos tradicionais de criação, fazendo com que ganhassem maior visibilidade no cenário artístico tanto local quanto nacional, o que contribuiu para tornar mais heterogênea a imagem da dança no Paraná. 1
A passagem do tempo altera nossa percepção acerca dos objetos observados. Do mesmo modo, os objetos também se modificam – um processo constituído de complexas redes de relações entre os diversos elementos que constituem o tecido biocultural. Na esteira desses acontecimentos, a dança coevolui2, modificando e sendo modificada. Nesse sentido, correlacionar as ocorrências que tiveram lugar ao longo do tempo com o estado de coisas atual e as transformações que vêm sendo operadas torna-se uma preciosa estratégia de reflexão acerca das transformações e dos desafios da dança contemporânea e seus contextos de existência. 1
As informações referentes aos mapeamentos estão disponíveis no site do Instituto Itaú Cultural:
http://www.itaucultural.org.br/index.cfm?cd_pagina=2273. 2
Coevolução refere-se ao desenvolvimento conjunto de diferentes organismos ou entre diferentes
partes do mesmo organismo, num processo inter-relacional de trocas mútuas, uma resposta evolutiva recíproca entre os diversos sistemas que compõem o universo (e.g. DENNETT, 1998; DAWKINS, 2000, 2001).
Contribuições acadêmicas O curso de bacharelado e licenciatura em dança3 da Faculdade de Artes do Paraná (FAP) tem adquirido um importante papel na dança do estado. Buscando sempre abarcar os aspectos éticos, estéticos e políticos da dança, vem alimentando pesquisa, criação, discussão e difusão. No sentido de distender e aprofundar essas discussões, está operando uma mudança pontual em sua estrutura curricular.
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Desde sua criação, a matriz curricular trouxe como eixo norteador o ensino e o desenvolvimento técnico da dança clássica e moderna 4, sendo o domínio de ambas pré-requisito para o ingresso no curso. A nova proposta, que já vem sendo desenhada há algum tempo na práxis de vários docentes e nas demandas de discentes, traz como meta fazer emergir como norteadores modos e práticas de organização que contemplem outro entendimento não só da dança, mas também do corpo e de suas relações com o ambiente. Que, contemplando um fazer-pensar dança, não ignorem e sim levem em conta as transformações que o ambiente promove no sistema e viceversa, abrindo, assim, espaço para a inclusão de outros corpos na dança, além de outro tipo de inserção na esfera cultural, trazendo o reconhecimento do corpo como lugar de pensamento, reflexão e questionamento de si mesmo e de seu lugar na cultura, propondo, assim, relações nada ortodoxas entre teoria e prática, entendendo-as como acionamentos que se revezam5 e que, ao se revezarem, transformam informação em conhecimento, criando um campo de possibilidades para que os envolvidos no processo possam desenvolver competências para intervir de maneira crítica em seu espaço social, baseados em suas experiências corpóreas. O corpo, ao dançar, apresenta ações-movimento que implicam em modos de pensar e onde a organização das ações se dá através das mediações e nas relações entre interior e exterior. O ato de organizar coreograficamente o pensamento no ambiente do corpo traz à cena o sujeito-agente que, num processo de subjetivação, produz subjetividade e significado num fluxo de troca entre o sujeito – entendido como aquele que não prescinde do mundo e, portanto, individualizado – e o mundo. (SETENTA, 2005: 11) 3
O curso de dança foi implantado em 1984 por um convênio firmado entre a Pontifícia Universidade
Católica do Paraná e a então Fundação Teatro Guaíra. Em 1993, com a dissolução do convênio, o curso foi transferido para a Faculdade de Artes do Paraná, sua atual mantenedora. 4
Nos últimos anos, as disciplinas de dança moderna, ao proporem não mais a codificação e o
treinamento de vocabulários e padrões específicos, e sim a experimentação e testagem de técnicas e procedimentos, foram sistematicamente se aproximando dos pensamentos que constituem a dança contemporânea. 5
Foucault (1979) trata desse tema numa conversa com o filósofo Gilles Deleuze. Para eles,
“a prática é um conjunto de revezamentos de uma teoria a outra, e a teoria um revezamento de uma prática a outra” (p. 69-70), ou seja, formada por uma multiplicidade de elementos que se compõem por interação e não de maneira totalizadora, antes multiplicadora e dinâmica: “(...) só existe ação: ação de teoria, ação de práticas em relações de revezamento ou em rede” (p. 70).
Decorre também dessa transformação paradigmática a distensão não só daquilo que venha a ser chamado de dança e seus diversos produtos – textos, obras coreografias, vídeos etc. –, mas também do campo de atuação, antes direcionado à execução e ao ensino em escolas e academias e hoje pensado num leque mais amplo e em permanente construção. Atualmente egressos do curso têm atuado em campos diversos relacionados à criação, como dançarinos, coreógrafos, professores, ensaiadores, produtores, e nas áreas de crítica, curadoria, gestão pública, entre outras. Muitos também têm dado continuidade, em programas de pósgraduação, às pesquisas iniciadas na graduação. Num ambiente escasso de ações que promovam a difusão e o compartilhamento das produções em dança, mesmo sem grande repercussão, têm sido também de grande importância os eventos que têm lugar no calendário anual do curso. Segundo Britto (2004), os eventos de dança são mecanismos eficientes na promoção do confronto crítico entre ideias diversas e que, ao congregar, num espaço de tempo e lugar, produções geograficamente dispersas, “atualiza referências, mobiliza reflexão crítica, desafia hábitos de pensamento. Mas, acima de tudo, cria demanda – aponta novas perspectivas de investigação”. Destacam-se, por sua continuidade, a Mostra de Dança, o Simpósio de Dança e o Seminário Nacional de Dança que, por meio de oficinas, conversas, debates, apresentações artísticas e teóricas, têm proporcionado a aproximação de artistas, pesquisadores, público, além de serem um modo de publicação de pesquisas, por meio dos anais dos eventos. Promovem a expansão das informações para além do conglomerado aglutinador espaço-temporal dos eventos, alimentam o fluxo de troca entre a academia e seu ambiente sociocultural, ampliam seu raio de apreensão, colaboram com a criação de terrenos favoráveis para a informação seguir um fluxo contaminatório, criando “possibilidades de todo o ambiente se reconfigurar, assim como os que dele fazem parte.” (KATZ apud MARTINS, 2006: 5).
Políticas públicas, criação e sobrevivência Assim como certamente ocorre nas demais regiões do país, a produção de dança no Paraná está, quase em sua totalidade, condicionada aos recursos públicos distribuídos via editais públicos – e estes são sempre insuficientes e contemplam majoritariamente o produto, sem levar em conta o processo e a continuidade do trabalho de pesquisa, além de exigirem as contrapartidas sociais que reforçam a canhestra associação entre produção artística e contrapartida social (e.g. Leão, 2004). Com a premissa de fazer as produções artísticas chegarem às populações excluídas do acesso a bens culturais, por meio da nomeada inclusão cultural, o Estado demonstra total desentendimento das implicações das produções artísticas no sistema social, que por si só já se caracteriza como uma ação no ambiente cultural. Carece entender a arte como um bem simbólico que possibilita a expansão das interfaces do homem com seu ambiente, contribuindo para o refino de sua sensibilidade e da capacidade de leitura da realidade com altos ganhos de complexidade. Do montante destinado à dança no estado, quase tudo fica com os corpos estáveis do Centro Cultural Teatro Guaíra – Balé Guaíra, G2 e Escola de Dança – o restante é distribuído no resto do estado6. Vale ressaltar que não há uma lei de incentivo operante na esfera estadual. 6
Segundo dados da direção administrativa do CCTG, essas três estruturas recebem juntas R$ 4,6
milhões, restando uma verba de R$ 75 mil para ser distribuída para a dança em todo o estado. Fonte:
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Importa dizer que muitas das transformações que tiveram lugar no cenário local são devidas aos editais e às iniciativas públicas. Basta lembrar a importância que tiveram a criação da Casa Hoffmann – centro de estudos do movimento para a dança contemporânea local – e a criação de editais específicos para a dança por parte da Fundação Cultural de Curitiba. As criações do coletivo Couve-Flor – minicomunidade artística mundial destacam-se no cenário nacional da dança por serem construídas no limiar fronteiriço entre diferentes linguagens, promovendo novos olhares, deslocando a discussão sobre o que vem a ser a dança. As investigações da PIP Pesquisa em Dança, que atualmente têm se interessado pela conexão dança e tecnologia, fruto de uma pesquisa continuada de mais de oito anos, na qual sempre se buscaram conexões com outras linguagens, como as artes visuais, a música e o teatro, assim como as desenvolvidas por DesCompanhia, Balé de Londrina, Coletivo Brincante, Yesbody Teatro Físico, Juliana Adur, Gladis Tridapalli, Marila Vellozo, Luciana Navarro e Mábile Borsato – só para citar alguns – foram viabilizadas por editais públicos. O mesmo pode-se dizer de artistas iniciantes que tiveram nos editais de residência da Casa Hoffmann a possibilidade de desenvolvimento e acompanhamento de suas questões criativas. No entanto, como aponta Kalil (2009c), a situação não é tão boa como parece, pois cada grupo ou artista poderia, tendo como base os dados de 2009, concorrer em no máximo quatro editais (incluindo aí as esferas municipal, estadual e federal) e, caso fosse contemplado em todos os editais, receberia ao longo do ano cerca de 183 mil reais a partir de 2009. Já o edital de Pesquisa de Linguagem em Dança, que contemplava a pesquisa e não o produto, teve apenas uma edição e editais como o de manutenção de espaços e grupos nunca saíram do papel.
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Quando o olhar é deslocado para o interior do estado, a situação modifica-se bastante. Mesmo com alguns municípios contando com leis de incentivo, as iniciativas artísticas são na sua grande maioria precárias e esparsas, deixando à mostra a fragilidade e a dificuldade de produzir dança fora dos grandes centros. Ainda são exemplos de experiências que ganharam permanência o Ballet de Londrina e a Verve Cia. de Dança. A primeira, hoje com 17 anos de existência, é dirigida por Leonardo Ramos e tem sua gestão vinculada à Fundação Cultura Artística de Londrina (Funcart), uma organização não governamental que, em parceria com o governo municipal, além de gerir a companhia, também é responsável pela Escola Municipal de Dança e diversos projetos sociais, entre eles o Rede Cidadania, pelo qual professores de dança participam da educação municipal formal, e o Faces de Londrina, no qual crianças de baixa renda têm seus primeiros contatos com a dança. Esse modo de gestão tem permitido uma ação continuada, não tendo sua possibilidade de sobrevivência apenas na “vontade política”. Também demonstra que uma prática em rede, com múltiplos fatores agindo ao mesmo tempo, produz ocorrências discretas que se tornam perceptíveis ao longo do tempo. Não à toa o Ballet de Londrina tem conseguido manter uma produção constante e fazê-la circular. Já a Verve, mesmo tendo empreendido um movimento inovador e colaborado com mudanças pontuais no cenário artístico da cidade de Campo Mourão, após transferir-se da capital, atualmente pouco tem produzido e circulado, fato que se deve em parte aos escassos recursos e à dependência financeira de leis e editais públicos. Contudo, vale lembrar, a crise não diz respeito apenas a fatores externos, presentes no ambiente, mas também tem a ver com Gazeta do Povo, 5 dez. 2009.
questões inerentes ao interior do sistema, ou seja, as escolhas e atitudes, o percurso empreendido, que geram a ocorrência de determinados eventos, numa constante e ininterrupta relação entre o que está dentro e o que está fora. A participação política dos profissionais da dança tem se fortalecido. Além do Fórum de Dança de Curitiba, criado em 2006, recentemente foi criado por artistas da dança contemporânea o Mobilização Dança Contemporânea de Curitiba (MDC), com o objetivo de criar mais um espaço de reflexão e representatividade da classe junto aos poderes públicos. Já no interior, a atuação da Associação de Profissionais de Dança de Londrina e Região Norte do Paraná (APD), além da representação de classe, tem colaborado com a realização do Festival de Dança de Londrina – evento não competitivo – para a difusão da dança no interior do estado.
A importância de manter a especificidade Desde sua criação, em 2003, a Casa Hoffmann proporcionou à comunidade artística um ambiente que até então não havia sido proporcionado por instituições públicas no estado. Iniciativas comprometidas com a pesquisa e a experimentação, a propor novas configurações e entendimentos para a dança, tinham lugar apenas em iniciativas extraoficiais, ao passo que as demais instituições oficiais promoviam e propagavam determinado padrão de dança. Seus workshops, debates e apresentações possibilitaram contato com artistas e pesquisadores de diversas partes do Brasil e do mundo, como, por exemplo, Ko Murobushi, Fabiana Britto, La Ribot, Helena Katz, Vera Mantero, Lia Rodrigues, David Zambrano, Alejandro Ahmed, Sarah Michelson, Christine Greiner, Thomas Lehmen, Vera Sala, Deborah Hay e Marta Soares, entre muitos outros. Em seu curto período de existência, a Casa tornou-se um espaço de referência para a pesquisa e a criação nas artes do corpo, principalmente a dança contemporânea, entendendo-a sempre como produção de conhecimento. Ao longo do tempo, as verbas foram minguando, os editais de residência artística e estruturação coreográfica, que eram semestrais, passaram a ser anuais, e os cursos e workshops tornaram-se cada vez mais escassos. São todas mazelas das quais padecem estruturas atreladas ao poder público e aos sabores dos ventos da política cultural instituída.
Pesquisa acontece a partir de objetivos e objetos bem definidos, sobre os quais se tecem hipóteses com instrumentos e metodologias adequadas para a sua investigação [...]. A pesquisa é da natureza da continuidade, e é somente nessa perspectiva que pode ser avaliada, enquanto que para as boas ideias basta a produção de um bom espetáculo. (KATZ, 2007)
Atualmente a Casa conta com uma nova coordenação, o que torna ainda mais importante ratificar o caráter e a especificidade construída ao longo desse tempo, sob pena de sucumbir a ser um “espaço guarda-chuva” a abrigar toda e qualquer manifestação que tenha a denominação pesquisa, sem levar em conta as especificidades e características dos modos de fazerpensar a dança e outras linguagens.
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Últimos apontamentos O mapeamento ocorrido no ano de 2009 demonstra que os contextos evolutivos da dança no Paraná tiveram mudanças discretas, sendo que muitas fragilidades ainda permanecem, ou seja, as práticas artísticas ainda carecem de condições para ter continuidade e se expandir, ganhando permanência e ampliando, assim, a apreensão de seus efeitos. Essas condições passam pela continuidade de ações, programas, práticas e iniciativas que promovam a manutenção e a viabilização de projetos artísticos e a emergência de outros. Essas condições passam também pela criação de estratégias de atuação que criem autonomia frente aos mecanismos de fomento e apoio. Coletivos, companhias e artistas-solo da capital continuam a expor suas criações e alguns novos tentam ganhar expressão pública. Já no interior do estado, a produção continua a acontecer tímida e precariamente à margem dos circuitos tradicionais de produção cultural, o que reforça a necessidade de construção de políticas públicas que contemplem suas demandas de desenvolvimento, levando em conta suas características e estimulando as produções culturais regionais. Chamam atenção o fortalecimento da dança no ensino superior, sua visibilidade no espaço público e a mobilização política dos artistas, muito importante diante da vulnerabilidade dos equipamentos e estruturas institucionais e das políticas públicas para a cultura.
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Nesse cenário de continuidades e transformações, onde nada está pronto e acabado, cabe a contínua reinvenção dos modos e práticas, pois, como nos lembra Suely Rolnik, a especificidade da arte como produção de linguagem e pensamento é a invenção de possíveis, o que faz da ação artística um poderoso meio de contágio e transformação.
Referências bibliográficas BRITTO, Fabiana. Dança e política: uma questão de tempo. In: NORA, Sigrid (Org.). Húmus, 1. Caxias do Sul: Lorigraf, 2004. p. 73-78. DAWKINS, R. Desvendando o arco-íris: ciência, ilusão e encantamento. São Paulo: Cia. das Letras, 2000. _____. O gene egoísta. Belo Horizonte: Itatiaia, 2001. DENNETT. A perigosa ideia de Darwin: a evolução e os significados da vida. Rio de Janeiro: Rocco, 1998. FOUCAULT. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979. GREINER, Christine. O corpo: pistas para estudos indisciplinares. São Paulo: Annablume, 2005. _____. Cinco questões para pensar as danças contemporâneas brasileiras como anticorpos à categoria tradicional de “corpo brasileiro”. In: NORA, Sigrid (Org.). Húmus, 2. Caxias do Sul: Lorigraf, 2007. KALIL, Emanuella. Orçamento da Fundação Cultural encolheu. Disponível em: http://portal. rpc.com.br/gazetadopovo/cadernog/conteudo.phtml?tl=1&id=951561&tit=Orcamentoda-Fundacao-Cultural-encolheu-. Acesso em: 6 dez de 2009a. _____. O que pensam os artistas curitibanos. Disponível em: http://portal.rpc.com.br/gazetadopovo/cadernog/conteudo.phtml?tl=1&id=951560&tit=O-que-pensam-os-artistascuritibanos. Acesso em: 6 dez de 2009b. _____.Teatro Guaíra concentra recursos. Disponível em: http://portal.rpc.com.br/gazetadopovo/cadernog/conteudo.phtml?tl=1&id=951558&tit=Teatro-Guaira-concentra-recursos. Acesso em: 6 dez. 2009c. KATZ, Helena. Programa do Itaú perdeu seu rumo. O Estado de S. Paulo, Caderno2, 20 mar. 2007. LEÃO, Doralice. O papel da mídia impressa no embate marketing cultural x marketing social. Dissertação de mestrado em comunicação e semiótica. São Paulo: PUC-SP, 2004. MARTINS, Giancarlo. Uma nova geografia de ideais: diversidade de ações comunicativas para a dança. Dissertação de mestrado em comunicação e semiótica. São Paulo: PUC-SP, 2006. _____. Ações que se espraiam no tempo. In: Cartografia Rumos Itaú Cultural Dança 2006-2007. São Paulo: Itaú Cultural, 2007. PAIXÃO, Paulo. Política antropofágica do corpo. Disponível em: http://www.idanca. net/2007/10/11/antropofagia-corpo-danca. Acesso em: 12 dez. 2007. ROLNIK, Suely. Geopolítica da cafetinagem. Disponível em: http://www.pucsp.br/nucleodesubjetividade/Textos/SUELY/Geopolitica.pdf Acesso em: 15 set. 2008. SETENTA, Jussara. Da potência ao ato. Da ideia à ação: o corpo estado de definição. Disponível em: http://www.pucsp.br/pos/filosofia/pragmatismo/cognitio_estudos/ cognitio_estudos.htm. Acesso em: 28 maio 2006. VIEIRA, Jorge. Teoria do conhecimento e arte: formas de conhecimento – arte e ciência, uma visão a partir da complexidade. Fortaleza: Expressão Gráfica e Editora, 2006.
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Jornalista formada pela Universidade Federal do Amazonas. Mestre em comunicação e semiótica: artes pela PUC-SP. Foi coordenadora pedagógica do curso de dança e do projeto Arte na Escola, da Universidade do Estado do Amazonas (2001-2007). Atualmente, desenvolve tese de doutorado sobre o tema dança e jornalismo impresso em Manaus (1980-2000).
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Ítala Clay
Ensaio sobre a dança contemporânea em Belém e Manaus
I
nspirada pelas conversas com o grupo de pesquisadores do programa Rumos Itaú Cultural Dança, resolvi abandonar o estilo de texto adotado nas versões anteriores e escrever um ensaio, em vez de um relato que quantifica e ordena um pacote de informações. Essa escolha já designa minha proposta de diálogo com os leitores em potencial, ou seja, apresento algumas questões provenientes da captação dos dados e busco sustentá-las por meio do auxílio de alguns autores na construção de uma abordagem crítica e reflexiva. Podemos começar por uma caracterização geral da produção dos espetáculos. As representações cênicas referentes à dança contemporânea nas cidades de Belém e Manaus não são unânimes nem uniformes em suas proposições estéticas e políticas. O mapeamento elaborado em 2009, abrangendo um recorte temporal de três anos, apresenta um quadro de diferentes caminhos que foram percorridos, tais como a apresentação de temáticas amazônicas, a relação com obras literárias e outros gêneros de enunciação, a expressão de universos psicológicos, a crítica social etc. A apresentação das peculiaridades amazônicas remete a uma possível leitura de resíduos históricos e ideológicos referentes à busca de uma identidade cultural fundamentada em certos arcaísmos conceituais do nacional e do popular. E as indagações de alguns artistas diante do mundo atual, pensadas em termos da construção de subjetividades individuais e coletivas com autonomia de pensamento, levam a exercitar a potencialização simbólica desses posicionamentos artísticos e políticos frente às sociedades nas quais se constituem. Proponho, nesse sentido, o exercício de alguns desdobramentos. Referente às discussões sobre identidade cultural, sabe-se que elas têm sido constantes na América Latina desde o século XIX. No Brasil, de modo mais específico, historicamente há toda uma ensaística, na qual se apresentam diversas posições acerca da construção de uma
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identidade nacional, que percorrem os pensamentos desde a miscigenação de negros e índios com o branco (para melhoramento racial), a posterior mescla de práticas culturais e as alterações operadas na ideia de identidade brasileira por meio do surgimento da indústria cultural no Brasil nos anos 1980 (ORTIZ, 2006; 2001). É possível retomar essas questões para pensar a prática cênica da dança no Brasil, a partir do que Paulo Paixão denomina “poética da brasilidade”: uma operação de articular no corpo o pensamento do nacional, cuja maioria das questões se orienta em traduzir e ser traduzida como um jeito de ser particular aos brasileiros, e que se manifesta desde o início da profissionalização da atividade artística da dança no Brasil, estendendo-se até os dias atuais. Evidenciase nesse tipo de abordagem a utilização do recurso da estilização, um procedimento que vai e vem no tempo. Utilizado pelo romantismo europeu no século XIX, foi incorporado, na década de 1950, à prática dos estrangeiros que foram pioneiros da dança no Brasil e absorvido na prática de professores e artistas locais, como no caso de Eros Volúsia, que propunha uma estilização do popular, fundamentada em aporte etnográfico, com as referências do balé, ainda que minimizadas (PAIXÃO, 2009: 58-60).
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Essa poética da brasilidade se apresenta como uma chave importante para o entendimento de determinada tendência da dança na Região Norte, na medida em que é possível observar que uma parte considerável da produção está comprometida com as temáticas amazônicas, e principalmente com uma forma específica de abordagem cujo objetivo é apresentar a identidade cultural com base em elementos autenticamente regionais, com a preocupação de alguns artistas em representar os contos e as lendas, em ratificar os qualificativos de exuberância das matas e dos rios, em apresentar as cores e os trejeitos da figura do caboclo, em pautar as culturas indígenas e os discursos ecológicos em suas obras. Em suas versões mais recentes, essa poética se apresenta não somente com a incorporação de adereços e gestuais folclóricos, tendo o balé clássico como base coreográfica, mas com o ajuntamento-acoplamento de diversas técnicas de preparação corporal (dança moderna, improvisação etc.) e recursos cênicos mais discretos (por exemplo, grafismos em vez de penas) que buscam se legitimar no designativo cronológico de “contemporâneo”. Em Manaus, mais especificamente em 1998, é possível encontrar método semelhante na versão da Sagração da Primavera1, coreografada pelo búlgaro Ivo Karagueorguiev e, 11 anos depois, em 2009, encontra-se atualizada na coreografia Oré, do amazonense André Duarte2, ambas encenadas pelo Corpo de Dança do Amazonas (CDA). Esse parece ter sido o modo de operação corrente em boa parte dos espetáculos de dança, realizados com o intuito de ser representativos da cultura local e do homem amazônico, reduzindoos à ilustração dos ambientes de fauna e flora, e à inserção de gestualidades estereotipadas copiando as faceirices caboclas ou a dança indígena em círculos. Um discurso que pode se tornar perigoso em termos culturais para as artes, no sentido de que promove a ilusão de colocar no 1
A coreografia foi pauta de várias matérias dos jornais locais e definida como uma montagem que
transportava o ritual primitivo do balé original para a floresta amazônica (A Crítica, 21 nov. 1998) e a recriação da dramaticidade da obra original em transposição para a Amazônia (A Crítica, 15 nov. 1998). 2
Fontes: 1o Festival Amazonas de Dança. Brochura: 74 p. Programa do Festival realizado no Teatro
Amazonas em agosto de 2009. Planilha enviada pelo diretor artístico do CDA, Getúlio Lima, no dia 25 de agosto de 2009. Manaus, Amazonas.
palco uma identidade amazônica homogênea e universal, criando figuras de tal generalidade e vagueza que acabam se esvaindo e se esvaziando em esquematismos ornamentais. Em outras áreas de conhecimento, esse modelo de imagem da região amazônica já vem sendo questionado há algum tempo, e retransmiti-lo é incorrer em anacronismo e na negação das cidades-florestas, em que se tem o maior número de etnias e línguas indígenas com uma visão completamente diferenciada dos modelos hegemônicos de pensar o mundo3, em convivência com diversos imigrantes, no exercício diário de mestiçagens culturais. Nesse sentido, é interessante citar a experiência do antropólogo Stephen Nugent (Universidade de Londres) e do professor Renato Athias (Universidade Federal de Pernambuco), em 2000, na realização de um etnodocumentário sobre as comunidades judaicas na Região do Baixo Amazonas: Ao ser exibido a europeus em um ambiente antropológico/acadêmico, no entanto, ficou evidente que o filme foi percebido como uma obra sobre judeus, e não sobre a Amazônia. De fato, era um filme sobre judeus, mas judeus da e na Amazônia (com exceção de duas pessoas entre as dúzias, todas foram criadas na região, sendo de terceira ou quarta geração). Para a plateia, isso contrariou as expectativas, pois todos sabem que a Amazônia é uma terra de índios, colonizadores predatórios, desmatadores, fazendas de pecuária e degradação ambiental. O fato de a Amazônia incluir judeus, japoneses, libaneses, holandeses, franceses, ingleses, ucranianos, etc. surpreendeu de maneira incômoda, destruindo certezas sobre os clichês que muitos prezavam.” (ADAMS, 2006: 34)
Não se trata de um imperativo supressor de temas regionais. Inegavelmente, a representação de um conteúdo local constitui-se em algo significativo, principalmente quando é possível observar um processo de reconhecimento e revalorização simbólica dos elementos da vida cotidiana. No entanto, se a exposição de assuntos locais, neste corpo que dança, não consegue promover questionamentos e provocar deslocamentos de ideias, em tal exposição ele se comporta apenas como um veículo replicador de pensamentos hegemônicos, distante do que se caracterizaria epistemologicamente como um corpomídia4. Sobre esse específico fazer-dizer, no qual se reduz a comunicação apenas ao seu processo de transmissão, podemos recorrer às palavras de Jussara Setenta (2008: 48): [...] No corpo que age sem interessar-se em inventar, é como se ele se entendesse como uma folha em branco onde fosse possível rabiscar e exibir contornos e formas. São processadas falas onde o dizer enuncia algo que, mesmo quando é inédito, não produz modos de dizer também inéditos, mas organiza materiais já existentes de modo especifico ao seu objetivo. É um dizer que não se inventa. Expõe-se um fazer-dizer que tende a apresentar movimentos já autenticados. Percebe-se que o agir permite a expressão de movimentos produzidos pelo treino-modelo, pelo uso dos materiais da aprendizagem das técnicas de dança, e é isso que fica exposto em primeiro plano na representação. Parece que há uma fronteira clara entre o fazer e o dizer. Porque o dizer está pronto antes do fazer. 3
Vide os estudos do antropólogo Viveiros de Castro (2002) sobre o perspectivismo indígena.
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Termo referente à teoria proposta por Christine Greiner e Helena Katz: “A mídia à qual o corpomídia
se refere diz respeito ao processo evolutivo de selecionar informações que vão constituindo o corpo. A informação se transmite em processo de contaminação” (GREINER, 2005).
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Entretanto, conforme citado no início do texto, não há uniformidade de manifestações e é possível encontrarmos pensamentos-procedimentos que levam alguns coreógrafos a buscar outras leituras da região, bem como outros interesses em seu fazer artístico. Em Belém, pode-se tomar como exemplo o trabalho da Companhia de Investigação Cênica, criada por Danilo Bracchi em 2007, que se propõe a transitar por diferentes linguagens artísticas (dança, teatro, música e performance) e tem buscado uma preparação técnica conforme a solicitação estética do espetáculo em produção. Em Manaus, encontra-se o Pesquisa Cênica Corporal Uma, criado por Francisco Rider em 2006, cujas referências corporais têm base em abordagens somáticas e a proposta investigativa percorre a manipulação de objetos e a interação provocativa com o espectador. Nos espetáculos desses grupos, visualizam-se formulações que se organizam em rede, tecendo opções de escolha, em corpos que se preparam adaptando-se às necessidades que se apresentam no decorrer do processo de produção da dança, prevalecendo a experimentação do fazer naquele momento e a adaptabilidade corporal para a enunciação da fala (SETENTA, 2008: 47). Encontram-se ainda outros caminhos, aqueles que se constroem na convergência das práticas artísticas e universitárias. É possível verificar as experimentações de docentes e discentes das escolas de ensino superior expandindo suas questões investigativas, no processo de conversão de seus trabalhos de conclusão de curso, dissertações de mestrado e projetos de doutorado em materialidade cênica.
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No Amazonas, o espetáculo Rito de Passagem (2008), de Yara Costa, põe em cena o resultado dos estudos referentes à sua dissertação de mestrado sobre as danças indígenas Baniwa, realizado na Faculdade de Motricidade Humana, em Portugal. Rosa Almeida, egressa do curso de dança da Universidade do Estado do Amazonas (UEA), é selecionada pelo programa Rumos Itaú Cultural Dança 2009-2010 com a proposta investigativa Parte de Mim, baseada em seu trabalho de conclusão de curso. No Pará, destacam-se as pesquisas de doutorado de Ana Flávia Mendes e Waldete Brito, realizadas no Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da Universidade Federal da Bahia. Em O Seguinte É Isso... (2007), Waldete Brito propõe a realização de uma obra coreográfica tecida no exato instante em que os intérpretes entram em cena, usando a improvisação e o contato-improvisação. No espetáculo Avesso (2007), Ana Flávia Mendes, utilizando recursos tecnológicos da medicina para propiciar a visualização da anatomia e da fisiologia humana, busca articular as técnicas de contato-improvisação e body mind centering, priorizando no processo de criação o aprimoramento da consciência corporal dos intérpretes-criadores. As instituições universitárias possuem ainda um papel relevante no que tange à difusão da dança em outras instâncias/ações comunicativas. Nesse sentido, a retomada da revista Ensaio Geral5, publicada pelo Instituto de Ciências da Arte, da Universidade Federal do Pará (UFPA), apresenta-se como fato relevante à propagação de pensamentos sobre dança. Já na Universidade do Estado do Amazonas, a revista eletrônica Aboré6 tem sido o veículo de difusão tanto 5
A revista Ensaio Geral fez parte de um projeto iniciado na década de 1980 pelo Serviço de Teatro
Universitário. Após um período de mais de 20 anos de interrupção, a revista foi retomada pela Escola de Teatro e Dança da UFPA, tendo como objetivos principais a divulgação da produção cênica, a reflexão sobre o cenário artístico na, da e para a Amazônia, o diálogo com outras regiões e o incentivo a novos pesquisadores para a produção de conhecimento. A edição de jan.-jun. 2009 traz 18 artigos de professores da área de dança, teatro e cenografia. 6
A última edição data de março de 2007. Disponível em: http://www.revistas.uea.edu.br/old/abore/
Acesso em: 10 jul. 2010.
dos relatos de experiências de ensino-aprendizagem dos professores quanto dos trabalhos de iniciação científica e conclusão de curso elaborados pelos alunos da Escola Superior de Artes e Turismo. Os eventos e intercâmbios interestaduais e internacionais também compõem essas estratégias de difusão, dentro ou fora do ambiente universitário. O projeto Autonomia e Complexidade: Intercâmbio Artístico-Filosófico (2009), realizado na Escola de Teatro e Dança da UFPA, em Belém, congregou artistas brasileiros e de outros países, buscando dar visibilidade ao ensino e à pesquisa, bem como aos espetáculos e à documentação sobre dança contemporânea. Em Manaus, o Laboratório Contemporâneo (2008), realizado no Teatro do Sesc, sob a organização de Ricardo Risuenho, Leilaine Saburi, Yara Costa, Francis Baiardi e Francisco Rider, teve como objetivo a realização de um encontro para aprofundamento e desenvolvimento de pesquisa de linguagem própria na área da dança contemporânea, direcionado para os artistas e companhias de dança independentes. Uma iniciativa até então inusitada nas práticas políticas e estéticas dos artistas. É óbvio que a filiação universitária não garante nem determina a qualidade ou a relevância de produções artísticas. Mas é visível o papel fundamental que exerce no engendramento de um mapa local com diversidades perceptivas. Isso porque existe um compromisso subjacente de assumir uma postura crítica frente à realidade que se impõe e uma possibilidade maior de convivência com outras formas de conhecimento, as quais podem fertilizar os debates, os questionamentos, derrubando preconceitos ou simplesmente na vigília constante do que se produz frente ao perigo do acomodamento. O ambiente universitário torna-se, dessa forma, um local de irrigação de ideias, por meio da realização de trabalhos teórico-práticos em atitude reflexiva e investigativa. Porém, é necessário lembrar que, mesmo nesse ambiente, diversas posições ideológicas encontram-se em confronto – algumas mais conservadoras, outras mais ousadas –, e todas em constante negociação de poder, principalmente nas cidades sob nosso enfoque, visto serem instituições universitárias públicas, nas quais os seus recentes cursos de graduação e especializações disputam espaço e voz nas estruturas hierárquicas federais ou estaduais. Em termos de poder público, nos anos de 1980, no Amazonas, era possível encontrar matérias de jornais que denunciavam constantemente o descaso e a negligência de órgãos oficiais para com os artistas da dança. No fim da década seguinte, a Secretaria de Estado da Cultura, sob a mesma direção até os dias atuais (2010), imprime um nível de organização e planejamento até então desconhecidos pela população, com a revitalização e reforma de espaços e prédios públicos para uso exclusivo de atividades culturais, a criação de corpos estáveis para o Teatro Amazonas, a instituição de um programa de apoio às artes, e um calendário de festivais com forte apelo publicitário, gerando mídia espontânea para a cidade e o estado – fato que provocou o aparecimento de expressões de reconhecimento e apoio às ações do governo por parte de artistas, intelectuais e jornalistas. No entanto, proponho refletirmos um pouco acerca desse poder de nucleação, no sentido de que, ao mesmo tempo em que ofereceu um campo maior de trabalho e infraestrutura (condições até então inexistentes), propiciou a centralização e o dirigismo de atividades. Basta exemplificar que, atualmente, os teatros, em sua maioria, pertencem ao governo do estado e, portanto, seguem sua agenda administrativa e burocrática, com raros espaços para o exercício da criatividade. É fato que a Associação dos Profissionais de Dança do Amazonas (Aprodam) tem ladeado as ações da Secretaria de Estado da Cultura, como no caso do 1o Festival Amazonas de Dança. Contudo, da conversa com alguns grupos pesquisados, pode-se deduzir
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que as ações da entidade têm apresentado pouca força de negociação, mesmo diante das conquistas apontadas no processo de formulação e criação dos conselhos municipal e estadual, pois não se corroborou uma atitude efetiva de tais conselhos, tampouco parecem ter se construído laços de confiança entre os profissionais e seu órgão representativo. Em Manaus, os grupos de dança isentos do suporte do estado e também do município sobrevivem do investimento de recursos pessoais, da prática de troca de serviços entre os próprios artistas e da participação em editais nacionais. Buscam resolver parcialmente o histórico problema de espaço para a realização de aulas, montagens, ensaios e apresentações por meio da negociação com instituições como o Sesc e o Instituto Cultural Brasil-Estados Unidos, mas se queixam da falta de profissionais para a área de produção. Em Belém, vários artistas expuseram seu reconhecimento do trabalho desenvolvido pela Secretaria de Estado da Cultura, por meio do Instituto de Artes do Pará (IAP), que tem Ana Cláudia Costa na condição de gerente técnica de dança. O IAP, por meio de ações diversas, tem se deslocado tanto na direção da história da dança paraense – como, por exemplo, na exposição fotográfica Trilhas da Dança – quanto no fomento a novos trabalhos artísticos. Nesse sentido, pode-se destacar o projeto de concessão de bolsas para pesquisa, experimentação e criação artística, e o prêmio Secult de Artes Cênicas para a área da dança, denominado Prêmio Augusto Rodrigues, cujo objetivo é o apoio à criação de projetos de pesquisa e produção de montagem de espetáculos.
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No que tange à representação de classe, a Associação Paraense de Dança (Apad), criada em 1988, apesar de ter obtido várias conquistas, passou por um período de inatividade e só agora retoma o fôlego – fato que, segundo a presidente, Marilene Melo, é corroborado pela atual representatividade na Câmara Setorial de Dança (hoje Colegiado de Dança), do Conselho Municipal de Cultura, e pelas discussões para a elaboração dos planos estadual, municipal e nacional de cultura. Verifica-se ainda que, em consonância de esforços, foi criado em 2009 o Movimento Rede Dança Pará, com o intuito de promover o fortalecimento da categoria de dança com base em um diálogo permanente. Entretanto, a sobrevivência dos grupos em Belém dá-se em condições semelhantes às de Manaus, na aplicação de projetos em editais nacionais, nas buscas criativas de saneamento das deficiências financeiras e na espera de uma revitalização da força política de suas associações. O que faz lembrar que este é um ano de eleições e a preparação para o exercício da cidadania deve incluir, em um primeiro momento, a reflexão e a crítica para, em seguida, adotar o acompanhamento e a avaliação desses servidores públicos.
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Juliana Polo
Pesquisadora e professora de dança, mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Semiótica da PUC-SP e com especialização em estudos contemporâneos em dança pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Atualmente, coordena o Programa de PósGraduação da Faculdade Angel Vianna.
Articulando o discurso no corpo da dança carioca
C
om base nos dados coletados na quarta edição do Rumos Itaú Cultural Dança e sem perder de vista os dez anos de existência desse programa, o presente texto pretende discorrer sobre a dança contemporânea no Rio de Janeiro. Para entender o momento histórico atual, vamos apontar algumas ações do passado que reverberam ainda hoje e iluminam a situação dessa cidade. Não se trata apenas de uma narrativa ou enumeração de fatos ocorridos. Ao trazermos o passado para o presente, as fronteiras entre os dois são enfraquecidas. As conexões criadas desestabilizam o passado como uma verdade factual e fazem com que ele se atualize com o presente e o futuro. A memória histórica não é apartada do tempo atual, mas está em diálogo com o presente (HUYSSEN, 2003). Na década de 1990, tivemos um grande crescimento da dança contemporânea no Rio de Janeiro. Isso se deve a alguns fatores combinados: formação eficiente de bailarinos e coreógrafos; políticas públicas favoráveis; criação de festivais não competitivos, voltados para esse segmento da dança. Muitas companhias iniciaram suas atividades nessa década, os festivais proliferaram e ganharam visibilidade, curadores de outros países começaram a levar a dança carioca para o mundo. Foi criado o Comitê Carioca de Dança para discutir e propor ações voltadas para atender às necessidades do Rio de Janeiro. O Rio de Janeiro era, no fim dos anos 1990, uma cidade exemplar no que diz respeito a uma política voltada para a dança, com incentivo para pesquisas teóricas e práticas, programa de manutenção de companhias, festivais locais, nacionais e internacionais. Entramos nos anos 2000 com muito boas perspectivas para a dança contemporânea carioca. Os vários festivais criavam um calendário anual para a dança e, consequentemente, aumentavam e formavam
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um público interessado nessa linguagem. Estava sendo discutida a criação do Centro Coreográfico da Cidade do Rio de Janeiro. O Programa de Subvenção à Dança Carioca1 foi ampliado: no começo subvencionou três companhias e, em 2000, passou para 11 grupos, porém com uma verba menor para cada um deles. A graduação em dança da UniverCidade, criada em 1985, teve sua grade curricular reformulada, aumentando o interesse dos dançarinos contemporâneos pelo curso. O curso de graduação em dança da UFRJ, criado em 1994, seguiu atraindo um público de alunos e professores de academias de dança da Zona Norte e Baixada Fluminense. Foi aberta a Faculdade Angel Vianna, em 2001, e um grande número de alunos egressos, inclusive artistas renomados, voltaram às salas de aula para se graduar. A cidade do Rio de Janeiro é hoje a que tem o maior número de graduações em dança do Brasil. O cruzamento de informações dessa arte com outras áreas de conhecimento, o pensar a criação em forma de movimento e de discurso que a define marcam a principal aliança da dança contemporânea com o universo acadêmico. “A responsabilidade hoje do dançarino está em saber usar tais ferramentas, sejam elas teóricas ou da prática da dança, uma vez que cada opção define politicamente seu campo de ação na área. Exige-se um artista autônomo e ciente de suas escolhas, fato que empurra muitas pessoas para a sala de confrontos e questões que é, por excelência, a sala de uma universidade”2. A entrada definitiva da dança no meio acadêmico consolida sua posição como área de conhecimento. Ainda há muitas dificuldades de adequação entre a pesquisa artística e a pesquisa acadêmica. Essa interseção ainda é cheia de tensões e questionamentos.
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Foram editados pela UniverCidade a coleção Lições de Dança, com artigos de autores nacionais e internacionais que pensam dança contemporânea, o corpo e o movimento. Esses textos foram estudados por todo o Brasil. Foi a primeira iniciativa nacional de publicar textos de dança contemporânea. As reverberações das discussões trazidas nesses textos foram percebidas nas criações, nas pesquisas e nos debates sobre dança contemporânea. Mudanças na Secretaria Municipal de Cultura em 2000 inauguraram o desmantelamento das políticas públicas criadas para a dança e as consequentes mudanças da dinâmica cultural na área. Em 2004, foi inaugurado o Centro Coreográfico da Cidade do Rio de Janeiro, um equipamento dedicado ao desenvolvimento da dança do município, com os objetivos de dar suporte para grupos, artistas e companhias emergentes, multiplicar o acesso à arte do movimento para crianças, adultos, idosos e portadores de necessidades especiais e reconstruir conceitos da dança contemporânea em parceria com os centros de pesquisa de dança das universidades públicas e particulares3. Sua construção num bairro da Zona Norte da cidade foi uma estratégia para iniciar a descentralização da dança da Zona Sul. 1
Programa que subvencionava companhias cariocas quanto à manutenção e à produção. Teve iní-
cio subvencionando uma companhia em 1994 e terminou no início de 2005, quando subvencionava 13 companhias. 2
MOLINA, Alexandre. A formação de professores de dança no Brasil. Disponível em: http://idanca.
net/2007/09/10/a-formacao-de-professores-de-danca-no-brasil. Acesso em: 20 jul. 2010. 3
Disponível em: http://noticiascultura.rio.rj.gov.br/principal.cfm?sqncl_publicacao=378&operacao=Con.
Acesso em: 20 jun. 2010.
Em 2006, a cultura na cidade sofreu mais um golpe: o Instituto RioArte foi fechado e todos os assuntos referentes a cultura passaram a ser tratados diretamente pela Secretaria Municipal de Cultura. Foi o fim da parceria do Panorama de Dança com o instituto, o fim do Programa de Bolsas da RioArte, o fim das publicações e o declínio de aparelhos culturais. Com tantas perdas, artistas organizaram-se e criaram o Coletivo Dança Rio de Janeiro para elaborar, discutir e reivindicar ações políticas governamentais. É nesse contexto desfavorável que identificamos uma mudança de dinâmica na produção, circulação, formação e pesquisa na área. Sem nenhum incentivo, fica cada vez mais difícil criar e/ou manter companhias: Trupe do Passo, Alexandre Franco Companhia de Dança, Companhia Aérea de Dança, Dupla de Dança Ikswalsinats e Tanzhaus Cia. de Dança estão entre as que encerraram suas atividades. Em 2007, pouquíssimos novos trabalhos foram estreados por cariocas. Há um aumento no número de artistas que começaram a desenvolver linguagens próprias, transformando-se em artistas criadores, com uma produção basicamente de solos e participando esporadicamente de trabalhos em diferentes grupos. As companhias que já estavam estabelecidas, em sua maioria, estão sobrevivendo com editais nacionais e programações em festivais nacionais e internacionais. Nos últimos três anos, houve apenas um edital estadual que contemplou a produção de dança e nenhum edital municipal no Rio de Janeiro. É difícil manter um elenco de dançarinos com tanta escassez de trabalho. Tem sido uma prática comum reuni-los para ensaios e apresentações de uma obra contemplada num edital e suspender os trabalhos em seguida. Esse processo fica fatalmente comprometido. As companhias que conseguem manter um corpo estável de dançarinos o têm conseguido com a verba de programações de festivais nacionais e/ou do exterior e eventuais editais públicos. As exceções são Companhia Deborah Colker, Intrépida Trupe, Lia Rodrigues Companhia de Danças e Márcia Milhazes Companhia de Dança, que têm patrocínio da Petrobras. Começam a surgir iniciativas no sentido de criar coletivos, inclusive que misturem outras linguagens artísticas, como Coletivo Pague e Leve – Artistas Associados (busca caminhos estéticos diferenciados, apropriando-se de múltiplas linguagens artísticas para construir reflexões acerca das relações de valor e mercado no meio artístico); Coletivo Líquida Ação (investiga as conexões entre diferentes linguagens no campo da performance: artes visuais, dança, cinema, teatro, vídeo, música e moda. O principal eixo de pesquisa é a relação corpo-espaço, mediada pelo elemento água); Coletivo Corpo Reagente (que investiga e performa o corpo contemporâneo atravessado pelas artes visuais e pela dança contemporânea); e Alfinete Amarelo Coletivo de Arte (tem como proposta realizar ações colaborativas de transbordamento, na fronteira entre a dança, a performance, as artes plásticas e visuais e a reflexão sobre o tempo presente). Essa estratégia, além de uma escolha estética, possibilita a inscrição dos trabalhos e pesquisas em maior número de editais, não só os destinados a dança. Houve um crescimento considerável na produção de videodança. Os eventos de dança têm incluído a exibição desses trabalhos em vídeo. Destacamos aqui o Dança em Foco – Festival Internacional de Videodança, que vem crescendo a cada edição e é hoje uma dos maiores festivais de videodança do mundo. É responsável por difundir os trabalhos pelo mundo com suas parcerias internacionais; formar novos profissionais na área com suas oficinas, palestras e residências; e produzir com seus editais que contemplam projetos artísticos. A videodança, com sua linguagem específica, mostra-se bastante eficiente para a difusão da produção coreográfica contemporânea.
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Muitos festivais de dança acabaram durante a década: Dança Brasil (2004), em sua oitava edição, e Dança em Trânsito (2007), em sua sexta edição, estão entre os principais. O Panorama de Dança, que foi criado em 1992 e de 1997 a 2005 esteve vinculado à RioArte, uniu-se aos outros três festivais brasileiros de dança contemporânea criando o Circuito Brasileiro de Festivais Internacionais de Dança, que inclui quatro capitais: Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Recife e Fortaleza. Os quatro festivais têm uma política de ingressos populares e enorme interação com espaços públicos e não convencionais. No Rio de Janeiro, ocupa espaços no Centro, na Baixada Fluminense, Zona Sul e Zona Norte. Fez parcerias com as três faculdades de dança da cidade e realiza a Mostra Universitária. Na cidade, o Panorama funciona como um acontecimento, no sentido foucaultiano, ou seja, algo de relevância histórica, não como progressão e aprimoramento no tempo, mas como momento propício para aprofundamento e transformação. O caldeirão de informações geradas pelas apresentações, residências, palestras e oficinas nas duas semanas em que ele ocorre promove a desestabilização de conceitos éticos, estéticos e políticos e promove novas redes de conexões para os artistas. Essa verticalização da experiência aconteceu com maiores e menores intensidades ao longo de suas edições. Outro evento vital, que vem garantindo a resistência da dança na cidade, são os Solos do Sesc, com suas edições anuais. O projeto vem atuando como estímulo à pluralidade, propondo diferenciais para a dança carioca. Ao longo de suas dez edições, completadas em 2009, já tinham passado pelo evento quase cem artistas de diferentes estilos e gerações, que se encontraram em parcerias inéditas.
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Houve uma única iniciativa de criação de uma mostra no período mapeado (janeiro de 2007 a julho de 2009), que aconteceu em 2008: a I Mostra Carioca de Dança Contemporânea, com patrocínio da Caixa Econômica Federal e produção de Renato Vieira. No entanto, não teve continuidade até agora. Os espaços que sediam companhias de dança são basicamente o Centro Coreográfico da Cidade do Rio de Janeiro, o Sesc Copacabana e a Faculdade Angel Vianna. O Teatro Cacilda Becker teve seu programa interrompido em virtude de obras e atualmente há editais de ocupação, com verba federal, em que companhias fazem a programação do teatro durante um tempo determinado (de uma semana a dois meses). Esse incentivo público tem gerado eventos esporádicos, porém relevantes, de dança contemporânea. O Centro Coreográfico, apesar de passar constantemente por dificuldades de liberação de verba por parte da Prefeitura do Rio de Janeiro, mantém-se como um aparelho público atuante para a dança. Além do Projeto de Residência Artística, abre seu Teatro Angel Vianna para programações de dança; incentiva as companhias sediadas a apresentar seus trabalhos lá e no Teatro Sérgio Porto (Projeto Conexão Rebouças); há cursos de diferentes estilos de dança; abre espaços para seminários e debates; mantém um acervo de Memória da Dança; tem sido sede de reuniões da classe para a elaboração de propostas para a criação dos planos municipal, estadual e nacional de cultura. O Sesc, além de ser o espaço-sede de algumas companhias, mantém programação de dança em seus espaços cênicos. Serviu de sede para alguns eventos importantes, como o Dança e Filosofia, em 2005 e 2006; o 4º Encontro do Corpo na Dança e no Teatro, em 2008; e, desde 2004, é parceiro do Panorama de Dança, festival internacional mais longevo da área no estado.
Outro espaço que vem ganhando importância na cidade é o Oi Futuro, com sua unidade no Flamengo e a recém-inaugurada unidade em Ipanema. É um espaço sintonizado com a contemporaneidade, voltado a levar o público a viver experiências sensoriais nos espaços de visitação, que incluem teatro, galeria de arte, biblioteca e ciber-restaurante. É especialmente para a arte contemporânea que o Oi Futuro abre suas portas. Criado e mantido no Rio de Janeiro com o patrocínio da Petrobras, o site www.idanca.net rapidamente tornou-se uma referência nacional. A rapidez e a qualidade das informações postadas são os pontos altos do site. O Idança.net tornou-se uma poderosa ferramenta de divulgação, discussão e local de pesquisa na área da dança. Ajuda a tirar a dança da invisibilidade criada pela diminuição do espaço destinado a ela nos jornais e revistas impressas, dando livre acesso à informação em território nacional e internacional. Houve um crescimento considerável na procura dos dançarinos pelos cursos de graduação em dança na Faculdade Angel Vianna, na UniverCidade e na UFRJ. O estrangulamento do mercado de trabalho para a dança foi um dos fatores determinantes, pois ter o terceiro grau possibilita a ampliação do mercado para a área da educação. Como desde 2007 é obrigatório o ensino de artes na educação formal (ensino fundamental e médio), o professor de dança está cada vez mais inserido nesse contexto. Fica clara também a debandada de profissionais de dança para as áreas da saúde (formação em técnicas corporais terapêuticas) e do teatro (preparação corporal de atores). A abertura de grande número de graduações em dança em outros estados, principalmente em universidades públicas, tem provocado um “êxodo” de profissionais cariocas para outros centros. Normalmente, os editais exigem profissionais com, no mínimo, graduação, mas principalmente com mestrado ou doutorado para compor seu corpo docente. A estabilidade desse tipo de emprego tem absorvido profissionais que investiram na formação acadêmica. Vivemos atualmente um dilema acadêmico. Os trabalhos de mestrado e doutorado na área da dança não têm aceitação no Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UniRio), que recebe pesquisas em teatro. Há poucas alternativas para a pesquisa acadêmica em dança. Há quem procure o mestrado no Programa de Pós Graduação em Ciência das Artes, na Universidade Federal Fluminense (UFF), ou no Programa de Pós-graduação em Artes da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), criado em 2005. Alguns migram para Salvador, onde há o único mestrado da área na Universidade Federal da Bahia (UFBA), ou procuram na Comunicação e Semiótica da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) acolhida para as pesquisas de mestrado e doutorado. Apesar do pouco incentivo no Rio de Janeiro, o que se observa é que o crescimento da dança em todo o país possibilita a criação de alternativas para a continuidade da produção, da circulação e da formação em dança: Pautar as ações através da concepção de que a gestão cultural deve promover políticas públicas para a formação, produção, criação/pesquisa, circulação e incorporação de bens culturais, buscando democratizar o acesso, descentralizar as ações, construir e revitalizar espaços de manifestação artística, de modo a difundir um conceito de cultura enquanto direito social, é o que deveria estimular ou co-mover gestores e dirigentes culturais. (MOURA, 2010)
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Referências bibliográficas BONITO, Eduardo; BRUM, Leonel; CALDAS, Paulo; LEVY, Regina (Org.). Dança em foco – videodança. Rio de Janeiro: Oi Futuro, 2007. BRITTO, Fabiana (Org.). Cartografia da dança: criadores-intérpretes brasileiros. São Paulo: Itaú Cultural, 2001. CARTOGRAFIA Rumos Itaú Cultural. São Paulo: Itaú Cultural, 2007. FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979. _____. O nascimento da clínica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006. GREINER, Christine. O corpo: pistas para estudos indisciplinares. São Paulo: Annablume, 2005. HUYSSEN, Andreas. Present pasts: urban palimpsests and the politics of memory. Stanford: Stanford University Press, 2003. KATZ, Helena. Um, dois, três. A dança é o pensamento do corpo. Belo Horizonte: FID, 2005. MOLINA, Alexandre. A formação de professores de dança no Brasil. http://idanca. net/2007/09/10/a-formacao-de-professores-de-danca-no-brasil. Acesso em: 20 jul. 2010. MOURA, Gilsamara. Políticas públicas para a dança. Disponível em: http://www.portalabrace. org/vcongresso/textos/dancacorpo. Acesso em: 20 jul. 2010. PAVLOVA, Adriana; PEREIRA, Roberto. Coreografia de uma década: a história do Panorama RioArte de Dança. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2001. PEREIRA, Roberto (Org.). Ao lado da crítica: dez anos de crítica de dança. Rio de Janeiro: Funarte, 2009.
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Jussara Xavier
Doutoranda em teatro pela Udesc, mestre em comunicação e semiótica pela PUC-SP e especialista em dança cênica pela Udesc. Co-organizadora dos livros Tubo de Ensaio: Experiências em Dança e Arte Contemporânea (2006) e Pesquisas em Dança. Coleção Dança Cênica (2008). Curadora dos encontros Múltipla Dança e Tubo de Ensaio, ambos em Santa Catarina.
A organização da dança contemporânea em Santa Catarina
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ara pensar a dança contemporânea catarinense com base nas informações coletadas no ano de 2009 como pesquisadora da Base de Dados do programa Rumos Itaú Cultural Dança, elegi valorizar iniciativas1 orientadas ao compartilhamento, à pesquisa e à troca. A meu ver, o exercício da responsabilidade estética e ética está atrelado a um trabalho pautado na elaboração dialógica do conhecimento, de pensamentos e de práticas. Nesse sentido, meu esforço concentra-se em enunciar possíveis efeitos e mudanças geradas com base em tramas de ações. Tal modo de processamento considera construção histórica como evolução: Não tem começo, dado que é processo – tem eixos de ocorrência. Não tem direção, dado que se processa em rede – tem sentido de continuidade. Não tem etapas, dado que é ininterrupta – tem estados transitórios. Não tem progresso, dado que é um projeto “cego” – tem gradualidade de especialização. (BRITTO, 2008: 17).
Ao mesmo tempo, busco identificar presenças que reconhecem necessidades urgentes e operam transformações, ou seja, elementos que transitam na contemporaneidade, conforme ilumina Agamben: O contemporâneo não é apenas aquele que, percebendo o escuro do presente, nele apreende a resoluta luz; é também aquele que, dividindo e interpolando o tempo, está à altura de transformá-lo e de colocá-lo em relação com os outros 1
Características específicas de pessoas e empreendimentos citados ao longo deste texto poderão ser
acessadas no site da Base de Dados: http://www.itaucultural.org.br.
tempos, de nele ler de modo inédito a história, de “citá-la” segundo uma necessidade que não provém de maneira nenhuma do seu arbítrio, mas de uma exigência à qual ele não pode responder. É como se aquela invisível luz, que é o escuro do presente, projetasse a sua sombra sobre o passado, e este, tocado por esse facho de sombra, adquirisse a capacidade de responder às trevas do agora. (2009: 72)
Favorecer conexões de ideias e encontros pessoais, esse é o mote de projetos como Múltipla Dança, Mostra Contemporânea de Dança, Tubo de Ensaio e Entrando em Contato. Tais espaços revelam-se como raras oportunidades para acessar a produção cênica e teórica de dança, tanto do estado quanto de outras localidades. Trata-se de importantes veículos de formação e educação para artistas, pesquisadores e público observador.
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Para articular e potencializar ações de criação, circulação, divulgação e intercâmbio de pesquisas e obras da dança contemporânea, tais projetos diversificam suas atividades em aulas, palestras, debates, mostras artísticas, jam sessions, performances e lançamento de livros e vídeos. Seus espaços de ocorrência variam de teatros, salas, escolas, universidades, galerias, centros de cultura, até as ruas da cidade e bairros diferentes. Ao multiplicar sua geografia de atuação, potencializam a aproximação de outros públicos. Esse caráter mutável revela a própria constituição da contemporaneidade: movimento incessante mergulhado num devir. Está implícito o entendimento da diferença e da pluralidade que habitam a dança contemporânea. Como promover um único tipo de ação para um modo artístico no qual não há um só formato de corpo, de técnica, de pensamento? Para uma cena que borra as fronteiras entre o real e o ficcional, bem como entre as diferentes manifestações artísticas? O tom dessas perguntas insere-se na organização dos encontros citados, ações nas quais a dança catarinense é atualizada. Há atualização sem questionamento? O diretor e coreógrafo do Grupo Cena 11 Cia. de Dança, Alejandro Ahmed, opina: Dançar pra mim é estar em crise. Sou crítico já aos poucos minutos após ter encontrado algo que parece ser valioso naquele momento. Mas aprendi a perseverar na investigação para encontrar algo de valia no que me proponho. Entendendo que o meu gosto e desejo são fatores a mais e não objetivos nessa busca. A crise tornou-se um constante estado de pergunta no qual as respostas são construídas na prática da dança que está sendo questionada. (COLLAÇO; AHMED, 2006: 106).
O Grupo Cena 11 continua como o mais bem-sucedido representante da dança catarinense e segue contestando seus próprios processos artísticos. Seu atual projeto coreográfico2 propõe um novo modo de interação entre espectadores e artistas que, juntos no palco, têm seus papéis e comportamentos alterados. A companhia lança uma proposta central da arte contemporânea: convocar o público para construir o acontecimento cênico. Oferece a obra como processo e, portanto, a fruição depende da participação do espectador, inclinado ou não para ativar memórias e significados. A dinâmica não é mais aquela de signos transmitidos, mas a de energias covivenciadas. A situação da dança é projetada na esfera da instabilidade, do risco e do imprevisível. Na performance da perceptibilidade proposta pelo Cena 11, a assimilação permanece como potência. 2
Intitulado SIM – Ações Integradas de Consentimento para Ocupação e Resistência.
Nos últimos anos, a professora doutora Fabiana Dultra Britto é responsável pela interlocução teórico-prática nas pesquisas da companhia. Tal escolha parece interessante para fortalecer e incentivar o diálogo entre o mundo artístico e o acadêmico. Esse trânsito também pode ser percebido na pesquisa que Marcos Klann, integrante do Cena 11, desenvolve de modo independente. Formado em artes cênicas pela Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc) com a monografia O Corpo na Obra de Artaud: Metáforas de Dor e Morte, concebeu O que Antecede a Morte, trabalho coreográfico que realimenta e aprofunda as investigações iniciadas no curso de graduação. Seu projeto foi premiado na categoria Pesquisa Coreográfica no programa Rumos Itaú Cultural Dança em 2009. O bailarino, ator e iluminador compartilha suas indagações no blog criado como parte do processo investigativo: Onde a pesquisa se encerra? Pensando desta maneira, me questiono como lidar com a ideia de pesquisa em arte que não tem a possibilidade de seguir uma metodologia científica baseada em resultados, já que os mesmos não são estáveis. Como organizamos o conhecimento gerado por essas experiências, para transformá-los em discurso e qual a necessidade do discurso? Quando vou conseguir responder algumas das minhas perguntas?3
No texto do blog e da cena, o artista propõe uma experiência pessoal para si mesmo (o que faz) e para o outro (o que lê, observa, participa). A dinâmica do processo mostra o real inscrito no corpo e nos gestos do artista. Pisando em ratoeiras, descarregando cargas elétricas em seu corpo, pendurando-se de cabeça para baixo até a exaustão, estourando bombinhas próximo ao rosto, enfim, com ações de risco físico o artista constrói a obra como afirmação de um presente, de um real, de um corpo, de um espaço. Marcos parece seguir a sugestão de Artaud de fazer o espectador refletir sobre sua própria violência ao vivê-la por meio da ação de outro. A ideia de desenvolver processos de investigação como experiência emocional, observada nesses trabalhos do Cena 11 e de Marcos Klann, põe em jogo a realidade física de uma ação, de uma pessoa levada a algum limite, de encontro com o outro. Tais instantes fugazes de desajustes escapam ao previsível e são importantes para discutir os caminhos da dança contemporânea catarinense hoje. Vê-se a pretensão de converter a cena em um acontecimento vivo, investido de sinceridade e desejo de confrontar o outro. Esse modo de organizar a dança exerce uma função política na medida em que se oferece como possibilidade de conexão com o real, de comunicação com o público, de convocação à análise. Interessante pensar na intensificação do diálogo entre teatro e dança no contexto catarinense. Dado que não existem cursos de graduação e pós-graduação de dança no estado, muitos bailarinos frequentam a graduação em artes cênicas, o mestrado e o doutorado em teatro no Centro de Artes (Ceart) da Udesc. A presença na instituição de importantes profissionais da dança, como os professores doutores Sandra Meyer e Milton de Andrade, colabora para reforçar os estudos do corpo e composição, contaminando o teatro com a dança, e vice-versa. Muitos alunos que ingressaram nos cursos do Ceart interessados na formação de ator acabaram por adentrar o universo profissional da dança. Marcos Klann é apenas um dos exemplos. Outros são Volmir Cordeiro (hoje integrante da Lia Rodrigues Companhia de Danças, no Rio de Janeiro) e Monica Siedler. Da união entre alunos ou destes com professores surgiram grupos como Octus Companhia de Atos, Andras Cia. de DançaTeatro e Coletivo Génos Teatro Dança. 3
Disponível em: http://oqueantecedeamorte.wordpress.com/. Acesso em: 26 jun. 2010.
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A diretora e coreógrafa Zilá Muniz traçou novos rumos para o Ronda Grupo de Dança e Teatro após o projeto Mergulho no Corpo. Sua proposta é trabalhar o corpo por meio de aulas de técnica em dança contemporânea, improvisação, contato-improvisação, alongamento e conscientização corporal. Por meio desse projeto, que ocorre no espaço físico do Ceart e se conjuga essencialmente com atores, o grupo Ronda tem desenvolvido pesquisas, montagens e espetáculos. A atual composição dos grupos profissionais de dança contemporânea no estado acolhe, além de atores, pessoas com formações diferenciadas do campo da dança. Aline Blasius e Mariana Romagnani, por exemplo, migraram da ginástica rítmica para o Cena 11. Também não há mais uma preocupação com um físico ideal para dançar, quer dizer, o corpo que dança não precisa ser necessariamente magro, longilíneo, esguio (padrão ideal difundido pela técnica da dança clássica). Cada corpo é tratado como um mundo singular de possibilidades e descobertas e é submetido a um trabalho técnico entendido como possibilidade para desenvolver um fazer e não como adestramento. Nesse terreno, a dança contemporânea caracteriza-se mais como ação e menos como passo de dança. Interessa o corpo que realiza e se manifesta em sua singularidade, sem maneirismos e afetações.
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O corpo parece desencadear energias até então desconhecidas ou secretas. Ele é exposto como sua própria mensagem e ao mesmo tempo como elemento profundamente estranho a si mesmo: o “próprio” é terra incógnita – seja porque na crueldade ritual buscam-se os extremos do suportável, seja porque o elemento inusitado e estranho do corpo é levado à superfície (à flor da pele): gesticulação impulsiva, turbulência e tumulto, convulsões histéricas, desmembramento autístico da forma, perda do equilíbrio, queda e deformação. [...] O que se enfatiza no corpo não é tanto a qualidade tradicional da semiose, a unidade de um Eu dançante, mas sobretudo o potencial das diversas variações gestuais possíveis do mecanismo corporal articulado. (LEHMANN, 2007: 339-340)
Provocações para (re)pensar a dança dissolvem-se nas realizações de ex-integrantes do Cena 11, as bailarinas Elke Siedler, Marcela Reichelt e Karina Barbi. Elke e Karina dirigem e atuam em seus próprios grupos, a Siedler Cia. de Dança e o Kaiowas Grupo de Dança, respectivamente. Marcela investe numa carreira-solo e já concebeu e montou dois espetáculos: Occo (2007) e Como Risco em Papel (2009), sendo este último financiado pelo 13º Festival da Cultura Inglesa de São Paulo e premiado como Melhor Trabalho de Dança dessa edição do festival. Há na produção da dança contemporânea catarinense um crescente interesse em realizações colaborativas. Montagens geralmente viabilizadas por meio de recursos de editais públicos nascem de projetos que articulam distintos profissionais e grupos, da dança ou de outras áreas do conhecimento. Exemplos são encontrados no repertório da Siedler Cia. de Dança, que produziu o espetáculo Perception of the Other (2008) por meio de parceria com a banda de heavy metal Stormental, e propôs um diálogo entre dança, performance, artes plásticas, música e softwares, e relações entre corpo e aparatos tecnológicos digitais na composição de Assinatura (2009). A direção artística desse espetáculo foi dividida entre Elke Siedler, Armando Menicacci (pesquisador e professor da Universidade Paris 8) e Vanclléa Segtowich (então diretora da Octus Companhia de Atos). Por fim, o grupo uniu-se à Arcos Projetos em Arte (Monica Siedler e Roberto Freitas) e à engenheira Carolina Brum para conceber a dança-instalação Territórios Imaginários (2010).
Nesse processo de criação colaborativa, buscou juntar dança, performance, artes visuais, engenharia e música. Já o Ronda Grupo de Dança e Teatro organizou Socorro (2008) para um corpo que se movimenta no trânsito ação-palavra. Inspirado na obra Gritos de Socorro (Hilferufe), do autor austríaco Peter Handke, o espetáculo desenha um encontro entre dança contemporânea e teatro de formas animadas. Em 2007, Alejandro Ahmed trabalhou com os artistas Anderson Gonçalves, Phelipe Janning e Volmir Cordeiro para dar vida à investigação coreográfica Segredos Dançantes contra Brutalidade Surda. O espetáculo foi produzido por Phelipe, que convidou o coreógrafo do Cena 11 para viabilizar seu projeto de montagem. Parágrafo-parênteses: a intensidade de Anderson Gonçalves (1964-2010) como pessoa-artista-bailarino pode ser constatada em sua trajetória4 e na atuação marcante em Segredos Dançantes contra Brutalidade Surda. Se você teve a experiência de sua presença, deve ter percebido a contemporaneidade de sua dança. Em sua memória, uma linha de silêncio.
O interesse por qualificação, criatividade e organização plural que compõe a cena da dança não é acompanhado pelas intervenções de políticas públicas. Permanece o discurso retórico, vulgar e genérico que afirma uma política de incentivo, de fomento, de estímulo à criação e à difusão. A dança ainda espera por planos exclusivos que contemplem um conjunto diverso de ações, objetivos e públicos. Nesse contexto, a destinação de recursos financeiros é insuficiente. As leis de incentivo fiscal à cultura e os editais de apoio que financiam parte dos projetos se mantêm como fundamento das políticas culturais promovidas pelos governos nas três esferas de poder. Alguns editais são eventuais e ocorreram uma única vez, a exemplo do Edital de Artes Cênicas da Fundação Cultural de Florianópolis Franklin Cascaes e do Edital Elisabete Anderle de Estímulo à Cultura do Governo do Estado de Santa Catarina. Assim, os trabalhadores da dança de Santa Catarina continuam em situação de subemprego, pois são mal pagos, não possuem planos de assistência à saúde e não contam com aposentadoria. Situados na fronteira entre persistir e desistir, os profissionais trabalham sob ameaça de extinção. O que aconteceria se houvesse um único formato de dança? Se a dança catarinense fosse mera cópia da produção de outros estados brasileiros? Por que as propostas políticas governamentais para a dança são as mesmas por todo o estado e mesmo nas diferentes regiões do Brasil? O que significa a instituição e reprodução de um único modelo de ação cultural na política pública? Mapeamentos como o realizado para a Base de Dados do Itaú Cultural são importantes fontes de informação para conhecer o ambiente e estabelecer políticas públicas específicas. Entre os problemas enfrentados pelos profissionais e grupos, estão as dificuldades de conseguir espaços para a oferta de cursos e manutenção de pesquisas, aulas e ensaios. Um dos lugares mais utilizados são as salas do Ceart/Udesc. A demanda, porém, é grande e ultrapassa as possi4
Em sua carreira como bailarino, dançou em grupos como Desterro (SC), Cia. Jazz Brasil (SP), Vacilou
Dançou (RJ), Raça Cia. de Dança (SP) e Canvas Cia. de Dança (SP). Foi professor e coreógrafo de diversas escolas e grupos nacionais, atuando principalmente no Ballet Grupo 6 (SP) e no Grupo Cena 11 (SC) na década de 1980. A partir de 1994, integra o Cena 11 como intérprete e figurinista, permanecendo na companhia até 2009.
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bilidades de concessão da instituição. A situação agravou-se com o fechamento para reforma do Centro Integrado de Cultura de Florianópolis. Há mais de um ano, artistas e grupos aguardam para retomar as oficinas de dança e os ensaios que ocorriam no local. É urgente a construção de espaços próprios para fomentar as atividades da dança: salas para aulas, apresentações e outras atividades, teatros adequados que possibilitem a realização de temporadas. Surgiram novas organizações de classe na cidade de Joinville. Se positivamente revelam maior interesse político, por outro lado denotam a divisão da classe por desentendimentos e discórdias. A pergunta que surge nesse contexto e que pode ser discutida em outros é: como opera a representação? Que tipo de poder emerge na figura do dirigente? É possível uma identificação pessoal com a associação, apesar da desavença com a personalidade que a preside?
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A Associação Profissional de Dança de Santa Catarina (Aprodança) revigora-se com a atuação incansável de Lisa Jaworski na presidência e Marta Cesar na vice-presidência. As duas profissionais participam ativamente de conselhos e conferências de cultura no estado e em outras cidades brasileiras. A Aprodança tem realizado campanhas para agregar associados, fazendose presente em eventos e espetáculos de dança. Tradicionalmente, apesar de seu caráter estadual, tinha atuação restrita a Florianópolis (certamente porque a maior parte dos profissionais localiza-se na capital). Lisa mora em Jaraguá do Sul (cidade ao norte do estado) e busca a participação de pessoas de diferentes cidades na associação. Para tanto, já organizou um blog e seminários de dança pelo estado, estabeleceu um sistema de cobrança de taxa em troca de uma carteira de associado, cuja posse rende benefícios como o desconto em espetáculos de dança. Aliando-se ao movimento nacional que busca a implantação do Sistema Nacional de Cultura, a Aprodança busca parceiros para alcançar os propósitos da classe que representa. O espaço e as oportunidades de publicação do conhecimento teórico produzido em Santa Catarina são ínfimos. Os jornais ampliam suas páginas para os assuntos celebridades, horóscopo, coluna social, eventos e televisão. Já a divulgação e a crítica de arte têm maior restrição nos periódicos. Entre os títulos publicados no estado, destaco Pesquisas em Dança – Coleção Dança Cênica Volume 1 (2008), que divulga reflexões de monografias produzidas na pós-graduação Especialização em Dança Cênica do Ceart/Udesc no início dos anos 2000. O livro enaltece a realização pioneira de um curso universitário de dança no estado Seminários de Dança é um programa do Festival de Dança de Joinville que reúne pesquisadores e interessados na discussão de temáticas da dança, definidas anualmente por uma comissão. Profissionais convidados e acadêmicos apresentam seus trabalhos sobre o assunto escolhido. Até o momento, o encontro publicou duas compilações de artigos: História em Movimento – Biografias e Registros em Dança (2008) e O que Quer e o que Pode (ess)a Técnica? (2009). Num local carente de informações como Santa Catarina, todo esforço para colocar o conhecimento em trânsito é louvável e potencial para fecundar novas possibilidades. O desafio é transpor a superfície e alcançar a contemporaneidade. Acessar o não óbvio que escapa porque se transforma, que se firma apenas como um devir, que se modifica para algo talvez irreconhecível e intraduzível. Esses são o mapa e o projeto.
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Referências bibliográficas AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo? E outros ensaios. Chapecó: Argos, 2009. BRITTO, Fabiana Dultra. Temporalidade em dança: parâmetros para uma história contemporânea. Belo Horizonte: Edição do Autor, 2008. COLLAÇO, Gabriel; AHMED, Alejandro. Autoria no corpo involuntário. In: XAVIER, Jussara; MEYER, Sandra; TORRES, Vera. Tubo de Ensaio. Experiências em dança e arte contemporânea. Florianópolis: Edição do Autor, 2006. LEHMANN, Hans-Thies. Teatro pós-dramático. São Paulo: Cosac Naify, 2007.
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Lilian Vilela
Doutora em educação, mestre em educação motora, bacharel e licenciada em dança, todos pela Unicamp (SP). Artista da dança com pesquisa, atuação cênica e docência na área de dança contemporânea.
Por dentro do estado de São Paulo
O
presente texto articula dados coletados na quarta edição do mapeamento do programa Rumos Itaú Cultural Dança, realizada entre 2007 e 2009, aproximadamente três anos de informações sobre a dança contemporânea em algumas cidades do interior do estado de São Paulo. As cidades mapeadas não foram todas escolhidas por seu tamanho populacional, mas, sim, pela visibilidade de sua produção em dança contemporânea no cenário nacional, já estabelecido a priori um recorte de pesquisa: Campinas, Santos, Ribeirão Preto, São José dos Campos, São José do Rio Preto, Araraquara e Sorocaba, e por algumas iniciativas significativas que saltam de outras cidades do interior. Com essas apenas não se está autorizado a falar pelo estado de São Paulo, mas sobre alguns aspectos dele, com as modificações circunstanciais do período analisado, com o intuito de propor um diálogo mais reflexivo e amplificado acerca da temática dança contemporânea brasileira. Depois de dez anos de programa Rumos Itaú Cultural Dança e após quatro versões do mapeamento, é difícil não perceber as relações temporais e não pensar nos dados como processos. Nesta leitura do mapeamento, busco construir um modo de enfocar “as correlações do conjunto” (BRITTO, 2008: 53), tais como o conjunto de artistas, seus modos processuais de criação, espaços de divulgação e formação, bem como d ambientes acolhedores. Busco tratar aqui de um sentido de historicidade redimensionado, no qual se apresentem eixos de ocorrência, sentido de continuidade, estados transitórios e gradualidade de especialização, no lugar de uma estrutura de pensamento delimitada pela noção de etapas, progressiva e de direções regulares (BRITTO, 2008).
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Por isso, apresento apenas alguns aspectos dessa dinâmica artística do interior neste recorte temporal. Propositalmente, não cito extensivamente nomes e referências – atribuição da própria Base de Dados, que deve ser consultada minuciosamente –, para priorizar um exercício de leitura desses dados, do que salta aos olhos, do que motiva a escrita nesse estado transitório contextual. O processo, o ambiente e as trocas entre as produções cênicas têm forças múltiplas de diferentes vetores, o que torna esse exercício reflexivo uma relações entre tensões constantes e dinâmicas na constituição dos dados mapeados. Ao apresentar algumas das informações coletadas, não as apresento como um panorama “fixo” da dança contemporânea nesse ambiente interiorano 1. Os panoramas são instáveis, fluentes, visíveis por muitos ângulos, tal qual uma apresentação de dança, e devem ser situados pelo olhar de quem vê.
Múltiplos interiores Os interiores são múltiplos. Além da unidade estadual posta pelos editais de seleção e incentivo promovidos pelo governo do estado de São Paulo, respectivamente o Edital ProAc e o Programa de Incentivo à Dança Paulista2, as cidades mapeadas têm muito pouco em comum.
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A cidade praiana de Santos, por exemplo, forte polo de formação de dançarinos em décadas anteriores, vem diminuindo seus números de produção e de artistas a cada mapeamento, o que denota um dilaceramento da dança contemporânea local. O fato paradoxal é que esse panorama contrasta com a exuberância do maior festival de dança no interior do estado, a Bienal Sesc de Dança de Santos, um evento de grande porte, que traz convidados internacionais, grupos e companhias nacionais de renome, como o Grupo Corpo (MG), que praticamente não realiza apresentações fora das capitais, comprovando o investimento financeiro destinado ao evento. Em 2009, em duas semanas a bienal recebeu celebridades da dança contemporânea brasileira, para depois mergulhar em certa apatia cultural. Torna-se zona portuária de acolhimento pontual, sem geração própria e continuidade na dança. A cidade parece receber, assim, certa cultura do descontínuo, de aparições meteóricas que são oposição aos trabalhos em contextos mais amplos ligados à perenidade processual, uma cultura de eventos em oposição à cultura de processos, como nos diz Santaella (1996). 1
Para uma melhor compreensão da relação dos dados tratados, sugere-se a leitura dos textos oriun-
dos dos mapeamentos anteriores, publicados pelo programa Rumos Itaú Cultural Dança nos anos de 2001, 2004 e 2007. 2
ProAC é um programa de ação cultural (antigo PAC) que tem duas formas de apoio: com editais/
concursos de seleção pública de projetos, cuja premiação é proveniente de recursos orçamentários da SEC/SP, e com incentivo fiscal (ICMS), por meio do patrocínio de contribuintes habilitados a apoiar projetos previamente aprovados pela SEC/SP. O Programa de Incentivo à Dança Paulista é um programa de apoio para a produção de projetos inéditos de espetáculos de dança para companhias estabelecidas e que tenham projetos registrados na Lei Rouanet. Para mais informações, ver www.cultura.sp.gov.br.
Paralelamente ao evento com convidados internacionais, houve uma iniciativa de residência artística com o projeto Jogo Coreográfico3. Espera-se que essa iniciativa com os jovens artistas da cidade seja acompanhada de suporte contínuo como procedimento de formação, aspecto no qual a extinção do curso universitário de dança4 representa muito e faz-se sentir. A insistência das artistas Rita do Nascimento – presente em apresentações em várias bienais – e Célia Faustino traz a questão dos solos como projeto poético pessoal e também estratégia de resistência-sobrevivência. Essas artistas apresentaram suas produções em dança no último evento5 e, com outras dançarinas solistas, manifestam uma mudança nas relações da dança cênica. Se pertencer a um grupo de dança com remuneração estável, como nas iniciativas municipais das cidades de Taubaté e São José dos Campos – o Balé da Cidade de Taubaté e a Cia. de Dança de São José dos Campos, respectivamente –, pode ser desejo de alguns artistas da dança, outros dançarinos investem em realizações-solo. Mas a rapidez de realização, os menores custos e a facilidade de adaptação a diferentes contextos de apresentação não são suficientes para explicar esse fenômeno. Com questões cada vez mais particulares, artistas se autorrealizam em criações solitárias, talvez como uma forma privilegiada de experimentação e de renovação das formas estéticas. Desde a virada do século6, ampliam-se as versões de dança em solo no Brasil, principalmente pelas artistas mulheres. Espalhadas em composições com singularidades próprias – já que disso tratam os solos –, colhemos representações femininas com diferentes questões e abordagens na dança. Da referência literária e poética de Clarice Lispector no corpo-livro (GIL, 1993) de Rita do Nascimento à referência de linhagens próprias na construção de Andreia Nhur7, de Sorocaba. Nos solos, muitas artistas do interior constroem suas danças. Na cidade de Campinas, Diane Ichimaru (Confraria da Dança), Jussara Muller (Salão do Movimento), Ana Carolina Mundim (República Cênica), Bia Frade, Dani Gatti e Marília Soares apresentam também esses padrões compositivos, nos quais o modo de apresentação solo é a forma de investigação mais próxima da estética de questionamentos conceituais das artistas processadas em seus corpos, criadores e intérpretes de suas criações. Os artistas da dança colocam-se em laboratórios de pesquisa, algumas vezes singulares e únicos, fato que embaralha a criação e a representação da dança – bailarinos como criadores e autores – e também sua organização e resultados estéticos (ROPA, 2002). Em alguns casos, a investigação é tão 3
Concebido e dirigido por Lígia Tourinho (RJ), o Jogo Coreográfico foi realizado como residência
artística com seleção de elenco e apresentado em diversos locais, “confrontando modos de pensar e fazer dança” (Catálogo da Bienal Sesc de Dança de Santos, 2009, p. 12). 4
O curso universitário teve breve existência na cidade no início da década de 1990 (ver textos anteriores).
5
“Faz de conta que ela não estava chorando por dentro...” (Rita do Nascimento) e “Repetição e/ou
transformação – farejando as pistas desse corpo-casa” (Célia Faustino). 6
O primeiro programa Rumos Itaú Cultural Dança tinha esse recorte de seleção de obras artísticas e
na última edição, mesmo sem esse recorte, o número de investigações solo e duo foram significativas. 7
O espetáculo Linhagens (2009) é a continuação do processo iniciado em Swan – Corpo Adaptado
(2007) e O Cisne, Minha Mãe e Eu (2008), e tem também a participação de Janice Vieira, mãe de Andreia..
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especializada e particular que a partilha artística não é facilmente possível, como ocorre com o processo artístico de Ângela Nagai, descendente de japoneses e com formação em teatro nô e narração benshi8. Os solos podem sugerir também uma quebra de padrões tradicionais da arte – o de pertencer aos grupos estatais, por exemplo – e, da parte do dançarino, um desejo de libertação do coreógrafo e do sistema de produção formal em dança. Essa forma investigativa se tornou tão necessária que, mesmo pertencentes a grupos e coletivos, alguns artistas adotaram esse modo compositivo para dar vazão à necessidade criadora, como Ló Guimarães e Elenita Queiroz, artistas pertencentes ao Grupo das Excaravelhas (Campinas). Esse grupo, uma união de dançarinas graduadas pela Unicamp – configuração frequente na cidade de Campinas, pelo número de graduados presentes9 –, é também um representante da persistência, ao comemorar 10 anos de existência em 2009. Comemoração de longevidade dividida com a Cia. Tugudum de Dança e Música Contemporânea. Juntas, promovem o evento Roda de Improvisação e Dança, gerando certo frescor de trocas em uma cidade árida em investidas culturais e sem programação específica de dança contemporânea10. Dividindo também o desejo de ampliar o público para a dança contemporânea, Excaravelhas e Tugudum apresentam-se em ruas, festas e espaços não convencionais, com trabalhos distantes do hermetismo contemporâneo, tratando com ludismo, ironia e bom humor os temas cotidianos. Com a mesma longevidade e busca de trabalhos com formação de público está a Magesto Cia. de Dança, em Jacareí, com trabalhos contemporâneos para os públicos adulto e infantil.
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O estado conta com companhias atuantes bastante longevas, como a Cia. de Dança Ditirambo (Araraquara), o Balé de Rio Preto (São José do Rio Preto), o República Cênica (Campinas) e a atualização do Grupo Pro-Posição Balé-Teatro11 (Sorocaba). Essas iniciativas, acrescidas de outras mais recentes, como a Cia. dos Pés (São José do Rio Preto) e Ribeirão Preto Cia. de Dança (Ribeirão Preto), aquecem o cenário interiorano12. O fato de algumas dessas companhias estarem há tantos anos construindo dança contemporânea também representa uma forma de resistência – palavra comum aos solos, grupos e coletivos. 8
Ângela Nagai foi a representante brasileira dos mestres de teatro nô no I Encontro de Mestres do
Mundo, promovido pela Unesco e pelo MinC (2005). Atua como atriz e musicista (narradora benshi) de filmes mudos japoneses. 9
Grupos como a Cia. Domínio Público, dirigida pela competente professora norte-americana radi-
cada em Campinas Holly Cavrell, têm essa constituição. 10
O Espaço Cultural CPFL desativou o programa de dança contemporânea que acontecia regular-
mente e os teatros municipais não acolhem dança contemporânea por falta de estrutura. Vale ressaltar a iniciativa dos alunos do Instituto de Artes da Unicamp, que promovem o Festival de Artes (Feia) com excelente programação, porém voltado aos próprios alunos graduandos. 11
Grupo iniciado em 1973 por Denilto Gomes e Janice Viera, retomado pela última e por sua filha
Andreia Nhur. 12
A Distrito Cia. de Dança (Ribeirão Preto) desfez-se em 2008, e ainda não sabemos ao certo o rumo
do Grupo Gestus (Araraquara) após a partida de sua fundadora, Gilsamara Moura, para Salvador.
No interior do estado de São Paulo, temos um celeiro dessa forma não usual de organização em dança no Brasil, os coletivos de dança, modo de se agrupar no qual as formas estéticas e ideológicas caminham de mãos dadas. A cidade de Votorantim cedia o coletivo O12, uma dissidência no processo de emancipação do Quadra Pessoas e Ideias, hoje desmembrado e em fase de transição. Votorantim é uma pequena cidade sem atrativos turísticos e culturais, e é uma prova de que a fertilidade na criação de dança contemporânea pode brotar em terreno seco, como o cimento produzido na cidade13. Mostrando que é possível inventar um espaço com outras possibilidades de saberes e sem nenhum indicador antecedente – cursos de formação específicos de dança, incentivos municipais para a área, centro cultural fomentador –, a cidade pôde gestar edições do evento Pública Dança, que desde 2003 reuniu e mobilizou profissionais com reconhecimento nacional para visitas regulares a essa desconhecida cidade interiorana. Após tanta visibilidade no cenário artístico da dança, o evento e o Quadra passam por mudanças. A presença do coletivo O12 no evento Coletivo Corpo Autônomo, promovido pelo Instituto Itaú Cultural em 200814, ajudou a demonstrar que esse coletivo tem configuração distinta da de uma companhia de dança – fato que não ocorre com todos os agrupamentos autointitulados coletivos. Em constantes cooperações mútuas, o coletivo cria estratégias de sobrevivência em uma relação grupal na qual o sentido político dos modos de produção reverbera nos resultados cênicos e estéticos. A flexibilidade de funções, a não explícita hierarquia entre os papéis tradicionais da dança junto à cooperação como base de sustentação trouxe questionamentos tanto fora quanto dentro da cena. Estabelecido fora de uma cidade com circuito de produção e visibilidade na dança, o O12 funciona como uma associação e recebe contribuições financeiras espontâneas – por um sistema de cotas que ajudam na sustentabilidade do coletivo, procedimento nada comum no mundo da dança. Assim, ele mostra que lutar dentro de uma exceção pode ser sinônimo de afirmação de existência em um estado com vasta diversidade e necessidade de se mostrar e se fazer viável (em dança!) em uma ecologia de saberes (SANTOS, 2009). Em 2008, o coletivo recebeu o Prêmio Klauss Vianna e caminha (e dança) na conquista da sonhada autonomia. O Prêmio Klauss Vianna, com sua maior verba destinada ao estado de São Paulo – ao lado do estado do Rio de Janeiro –, mostra a vantagem de morar no “estado rico”, apesar do abismo de oportunidades entre capital e interior. Em relação à educação e à formação em dança, no lugar das academias já se tem registro de experiências em formações públicas de qualidade: as escolas de dança, locais que aliam pesquisa de novas linguagens e estudos sobre procedimentos educacionais em dança contemporânea, tais como Escola Livre de Dança (Santo André), Escola Municipal de Dança Iracema Nogueira (Araraquara), Escola Livre de Dança (Santos), Escola Livre de Artes (ELA, Campinas)15. 13
A cidade Votorantim era um distrito da vizinha Sorocaba que se emancipou. Seu nome é uma
referência à maior fábrica de cimento do país, a Votorantim Cimentos, uma das dez maiores empresas globais de cimento, concreto e argamassa. 14
Em São Paulo, de 7 a 18 de maio de 2008.
15
E as Oscips e os espaços sociais de educação em dança, com iniciativas relevantes como Pés no
Chão (Ilhabela) e Meninos do Barão (Campinas).
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Ainda no setor da educação, a Secretaria da Educação do Estado de São Paulo finalizou em 2008 a elaboração de guias curriculares em cadernos de aplicação para os professores de arte (ensino fundamental II e ensino médio) das escolas públicas estaduais com conteúdos específicos de dança. Sim, cadernos didáticos de dança – iniciativa única no país e ainda pouco comentada no meio da dança, como se educação e arte fossem áreas incomunicáveis e de domínios distintos, sem refletir, analisar e problematizar a questão sobre o ensino de dança, área na qual transita e sobrevive a maioria dos artistas da dança ao desempenharem carreiras paralelas (desejadas ou não) entre a atuação cênica e a docência em dança. Ainda na questão educacional, dos oito livros publicados na região até 2010, quatro são diretamente relacionados à área: dois tratam de abordagens técnicas de dança (Klauss Vianna e Graham-Laban) e os outros dois trazem aspectos estéticos históricos da dança16. De certa forma, essa especificidade na edição mostra que os leitores de dança são de campos ampliados, uma vez que esses títulos já trazem em si a intersecção com a área educacional (leia-se, também, educação física), a área de história e a preparação corporal. Isso, por um lado, não é ruim, pois mostra as interfaces da dança com outros campos do conhecimento, o que é muito benéfico para contemplar um público mais amplo, já que o desejo é sempre de ampliação de plateia. A dança surge como área de interesse para outras pessoas, não só artistas, e está apta a se inserir em um contexto social mais amplo.
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Por outro lado, a escassez de produções específicas da área mostra a fragilidade desse campo reflexivo teórico. Por quanto tempo ainda teremos de ler em línguas estrangeiras as reflexões sobre dança contemporânea? A dança contemporânea e seus temas específicos ainda não seduziram as editoras, os estudiosos e a editora universitária. Com a Unicamp, universidade pública de dança no interior do estado, era de esperar uma mobilização maior por parte da classe dos dançarinos, já que sabemos que não só com pliés se formam corpos dançantes. Infelizmente, algumas iniciativas bem-intencionadas e promotoras de sustentação da dança no interior, como o InterVias17, projeto de intercâmbio artístico e de circulação de obras entre as companhias do interior, não conseguiram se estabelecer na perenidade dos anos. A dança contemporânea dá-se em muitos casos em processos diferenciados, não contemplando a produção em série, massificada e com os valores da cultura de consumo atual – como a visão do corpo como objeto, a comercialização da arte e a espetacularização como resultado estético primordial –, então cabe a nós, artistas e apreciadores dessa vertente, pensarmos em estratégias para a sustentabilidade da área com experiências e intercâmbios em formas cooperativas, associativas ou em outros formatos, nos quais os meios de ação e as relações entre nós sejam ambientados em campos distintos daqueles com os quais deparamos em confronto ideológico. Vamos aguardar boas mudanças, esperando que no próximo mapeamento novas ações inaugurem o texto. 16
Livros sobre dança e educação: Entre a Arte e a Docência: a Formação do Artista da Dança; Dança:
Ensino, Sentido e Possibilidades na Escola; O Ensino das Artes; Dança, Educação, Educação Física: Propostas de Ensino da Dança e o Universo da Educação Física. Sobre técnica: Respiração e Expressividade: Práticas Corporais Fundamentadas em Graham e Laban e A Escuta do Corpo. Sobre estética e história: Corpo, Comunicação e Cultura: a Dança Contemporânea em Cena, e Os “Ballets” na Ópera de Carlos Gomes. Projeto dos grupos Magesto Cia. de Dança (Jacareí), Grupo Gestus (Araraquara) e coletivo Quadra Pessoas e Ideias (Votorantim). 17
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Referências bibliográficas BRITTO, Fabiana Dultra. Temporalidade em dança: parâmetros para uma história contemporânea. Belo Horizonte: FID, 2008. Cartografia: Rumos Itaú Cultural Dança 2006-2007. São Paulo: Itaú Cultural, 2007. GIL, José. O espaço interior. Lisboa: Presença, 1993. ROPA, Eugenia. Le solo au XX siècle: Une proposition idélogique et une stratégie de survie. Apud ROUSIER, Claire (Org.). La danse em solo: Une figure singulière de la modernité. Pantin: Centre National de la Danse, 2002. SANTAELLA, Maria Lucia. Cultura das mídias. São Paulo: Experimento, 1996. SANTOS, Boaventura de S. A crítica da razão indolente. São Paulo: Cortez, 2002. SANTOS, Boaventura de S.; MENESES, Maria Paula (Org..). Epistemologias do sul. Coimbra: Almedina, 2009.
Professora e pesquisadora na área de dança, mestre em artes corporais pela Unicamp e doutora em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP). Dedica-se à historiografia da dança no Brasil. Desde setembro de 2010, é professora-adjunta de história e teoria da dança na UFPE.
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Maria Claudia Alves Guimarães
Dança contemporânea na Pauliceia
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O
lhando para trás, no primeiro mapeamento do programa Rumos Itaú Cultural Dança, Lêda Pereira1 começava seu texto sobre a cidade de São Paulo falando a respeito dos “corpos híbridos” dos dançarinos, que eram formados pelos cursos livres de dança (balé clássico, butô, técnica Klauss Vianna, dança moderna, nova dança, sapateado, flamengo, contatoimprovisação, street dance, danças populares brasileiras etc.), e das diversas técnicas de trabalho corporal, como, por exemplo, lian gong, aikidô, tai chi chuan, eutonia, feldenkrais, pilates, técnica de Alexander, rolfing, capoeira, técnicas circenses, oferecidas pelas academias da capital paulistana. Ainda hoje, em 2010, prevalece uma grande oferta diversificada e renovada de cursos nos estúdios e academias, atualizando as “hibridações”, à medida que novas tendências vão sendo introduzidas (Body-Mind Centering, Le Parkour, Gyrokinesis etc.), atendendo aos interesses pessoais e artísticos de cada um. Contudo, após 11 anos da criação dos cursos superiores de dança da Pontifícia Universidade Católica, da Universidade Anhembi Morumbi e da Faculdade Paulista de Artes, na cidade de São Paulo 2, o que percebemos é que, cada vez mais, a nova geração de intérpretes e cria1
PEREIRA, Lêda. Da São Paulo cosmopolita. In: BRITTO, Fabiana Dultra (Org.). Cartografia da dança:
criadores-intérpretes brasileiros. São Paulo: Itaú Cultural, 2001. 2
Em 1999, foram criados na cidade de São Paulo o curso comunicação e artes do corpo, da Pontifícia
Universidade Católica, o curso superior de dança da Universidade Anhembi Morumbi e o curso de dança da Faculdade Paulista de Artes.
dores de dança é oriunda dessas faculdades3. Também notamos um grande afluxo de profissionais que vêm para São Paulo4 formados pela Unicamp5, graças à proximidade entre Campinas e a capital paulistana. Não obstante, verificamos que muitos profissionais paulistanos já atuantes há bastante tempo e graduados nas mais diversas áreas também se voltaram à universidade, buscando maior reflexão sobre seu trabalho nos cursos de mestrado e doutorado, sobretudo no Departamento de Comunicação e Semiótica da PUC-SP e no Instituto de Artes da Unicamp. Com uma formação mais completa e abrangente, e ao mesmo tempo mais reflexiva, o artista ganhou maturidade. Por outro lado, há quem aponte que a dança em São Paulo, nos últimos dez anos, acabou tomando um rumo mais conceitual e experimental, ficando o artista, muitas vezes, mais preocupado com seu processo de criação do que com o público e o espetáculo em si. Diferentemente do quadro levantado em 2000, verificamos que, ao longo destes dez anos, e mais acentuadamente neste último mapeamento, houve uma renovação no quadro de profissionais. No entanto, a grande maioria dos profissionais mapeados no início da década, que tinha entre 30 e 45 anos, continua atuando ou criando, pois a dança contemporânea continua com um “caráter ‘inclusivo’ e não sendo virtuosística” 6. Por sua vez, o artista hoje, ao contrário do que ocorria há dez anos, já não precisa criar nem pesquisar isoladamente. Graças às conquistas da classe de dança7 em relação às leis de incentivo, hoje o profissional da dança tem condição de trabalhar em grupo, conforme 3
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Entre os profissionais da nova geração, verificamos que Lívia Seixas e Sheila Arêas, integrantes da Cia.
Nova Dança 4, são formadas pela Faculdade Paulista de Artes; Gisele Calazans (Cia. Silenciosas e Nova Dança 4), Maristela Estrêla (Cia. Oito Nova Dança e Balangandança), Aline Bonamin e Julia Abs (Cia. Vitrola Quântica), Anderson Gouvêa (Cia. Marta Soares) e Lívia Freitas (Balangandança) são formados pela Anhembi Morumbi; Marina Massoli (J.Gar.Cia.), Rogério Salatini (Minik Momdó), Lua Tatit (Ambulante Cia. Cênica e Núcleo Artérias), Marina Lopes (Minik Momdó) são formados pela PUC. 4
Entre os profissionais advindos da Unicamp, apontamos: Marina Caron (Cia. Oito Nova Dança), Julia-
na Moraes (Cia. Perdida), Geórgia Lengos (Cia. Oito Nova Dança e Balangandança), Natália Mendonça e Martina Sarantopoulos (J.Gar.Cia), Carolina Callegaro (Marta Soares, Cia. Perdida e Damas em Trânsito e os Bucaneiros ), Robson Ferraz (Cia. Borelli de Dança) e Clara Gouvêa (Damas em Trânsito e os Bucaneiros). 5
O curso de artes corporais da Unicamp foi criado em 1986, em Campinas.
6
PEREIRA , Lêda, op. cit.
7
Cabe ressaltar o empenho e a atuação do Movimento Mobilização Dança como movimento civil, de
organização coletiva e apartidária, fundado em 2002 na cidade de São Paulo com o intuito de exigir apoio de políticas culturais efetivas do poder público. Com suas iniciativas e reivindicações, o Mobilização deu novo impulso à produção e à circulação dos inúmeros grupos e artistas independentes de dança contemporânea. Entre os agentes da criação do fomento, estiveram Sofia Cavalcante, Eliana Cavalcante, Cecília de Arruda, Marcos Moraes, Raul Rachou, José Maria Carvalho, Célia Gouvêa, Solange Borelli, Maura Baiocchi, Mirtes Calheiros, Wolfgang Pannek, Éderson Lopes, Fábio Brazil, Lara Pinheiro Dau, Fabiana Dultra Britto, sendo ainda apoiados pelos seguintes grupos: Uxa Xavier, Wellington Duarte, Omstrab, Key Sawao, Carlos Martins, Vera Sala, Valeria Cano Bravi, Helena Bastos, Eliana Santana, Cristina Duarte, Marcos Sobrinho, Ana Terra, Mayra Spanghero, Lenira Rangel, Dora Leão, Jorge Eugenio Alves, Maria Mommensohn.
ilustra o comentário de Mariana Muniz8 na reportagem do site Conectedance, afirmando que passou a ter “condições de juntar uma equipe e bancar as pessoas” a partir do surgimento do Fomento Municipal. Assim, constatamos um aumento significativo do número de grupos: enquanto no primeiro mapeamento do Rumos Itaú Cultural Dança se contabilizavam apenas 18 grupos (quatro estáveis e 14 independentes), hoje temos cinco companhias estáveis e mais de cem núcleos artísticos pela capital, muitos ainda instáveis, que se multiplicam, se fundem e se dissolvem para desenvolver determinado projeto, conforme podemos ver mais nitidamente nos editais. Com isso, podemos ver que as condições e ofertas de trabalho dos artistas melhoraram bastante, se comparadas com a situação que tínhamos anteriormente, principalmente do último mapeamento para cá. Tal mudança também pode ser observada na ênfase que Lêda Pereira dava há dez anos às alternativas de mercado de trabalho na área de dança, como meio de sobrevivência do artista: ensino, atuação e criação coreográfica em filmes publicitários, em feiras e eventos corporativos, na realização de trabalhos terapêuticos, massagens, na preparação de atores em peças de teatro, no cinema e na televisão etc. Embora seja importante esse leque de opções de trabalho de que o artista dispõe na metrópole paulistana nos dias atuais, verificamos que, quando o artista é fomentado, ele já não precisa recorrer a tantas alternativas para garantir sua sobrevivência, pelo menos durante o período contemplado pelo edital. Em compensação, muitos artistas vivem hoje atentos aos editais, preparando projetos, produzindo e verificando as possibilidades de circulação e divulgação de suas obras a fim de garantir a continuidade de seu trabalho, visto que ele acaba sendo assegurado apenas temporariamente, como veremos mais adiante. Desde a criação da Lei de Fomento à Dança, em 2005, na cidade de São Paulo, já foram realizadas oito edições. O nono edital está aberto para inscrições, contemplando mais uma vez uma verba de 2 milhões de reais, a ser repartida em parcelas de, no máximo, 250 mil reais para cada núcleo contemplado. De acordo com os dados fornecidos pela Secretaria Municipal de Cultura, durante estes cinco anos já foram contemplados 103 projetos9, de 56 núcleos de dança. Não obstante, também foi relevante o empenho da classe de dança no Movimento Mobilização Dança, que buscou o apoio do Sindidança, do antigo Fórum Paulista de Dança, da Cooperativa Paulista de Teatro10 e de mais 23 entidades ligadas às diversas áreas da cultura (como, por exemplo, o Sated, o Movimento Arte contra a Barbárie, a Apetesp, a União Brasileira de Escritores, o Sindicato Nacional dos Artistas Plásticos, o Comitê Nacional Brasileiro da Associação Internacional de Artes Plásticas, a Associação Paulista de Artistas Plásticos, a Abracirco, entre outras) para trabalhar na formulação do Projeto de Lei do Fundo Estadual de Cultura, sendo agente efetivo no processo de aprovação e implementação do projeto. 8
Depoimento de Mariana Muniz. In: FERNANDO, Mauro. Subvenção pública para a dança: avanços
pequenos diante das demandas históricas no Brasil. Disponível em: www.conectedance.com.br. Acesso em 21 dez. 2009. 9 Ver anexo na página 120. 10
Um fato interessante a destacar é que, hoje, a maior parte da produção independente de dança
tem sido feita por meio da Cooperativa Paulista de Teatro.
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Também na esfera estadual, notamos um avanço, sobretudo a partir da segunda metade desta década, em relação ao incentivo à pesquisa, à criação e à produção coreográfica. Em 2006, a Secretaria de Estado da Cultura destinou 340 mil reais à dança por meio do ProAc nº 25, contemplando cinco projetos teóricos, de natureza documental e/ou estética e dez projetos coreográficos, e R$ 750 mil para 15 projetos de difusão e circulação. Em 2007, o Governo do Estado de São Paulo destinou, por meio do ProAc nº 4, 600 mil reais para a dança, divididos em cinco projetos de pesquisa e investigação, dez projetos de produção em dança, criação, montagem e apresentação de espetáculo inédito11, e mais 300 mil reais, por meio do ProAc nº 5, para difusão e circulação12. Em 2008, a Secretaria de Estado disponibilizou 1 milhão de reais para o Programa de Incentivo à Dança Paulista, a fim de atender às companhias estáveis de dança, e mais 800 mil reais para propostas aprovadas pela Comissão do Programa de Ação Cultural13. Em 2009, foi disponibilizado 1,5 milhão de re-
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Foram eles: Inquietude com o Entorno ou o Entorno da inquietude: uma Interpretação da Dança
Contemporânea Paulista, de Marcos Bragato; Alvéolos, de Tatiana Melitello Washiya; Dramaturgia e Espaço: Ressignificação do Lugar Comum, de Nathália Catharina Alves Oliveira; Bichos da Seda Deslocados?, de Mariana Vaz; Memorial do Quarto Escuro, de Edson Calheiros Gomes; Sob Neblina, de Raquel Ornellas; Lucíola – Exercício I, de Patrícia Noronha; Arremesso, de Marina Caron; Wabi Sabi,de Susana Yamauchi; Escavações, de Marta Soares; Cinco, de Patrícia Werneck e Celso Nascimento; Um Artista da Fome, de Sandro Borelli; Duas Mulheres com Sombrinhas Brancas no Lugar da Fábrica de Explosivos, de Mirtes Calheiros; Ponto de Fuga, de Alex Ratton; e Traçado Dentro, de Marize Piva.
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Os espetáculos selecionados foram: De Gelo, da Wooz Arte e Cultura; Brinquedos e Inventos para
Dançar, da Confraria da Dança; Omnibus, de Fernando Lee; Dançando por aí – 2x1, de Fernando Machado; Francisca da Silva Oliveira – Chica da Silva – Um Esboço; Três Olhares sobre a Dança, de Ângela Nolf; Querida Senhoria Ó, de Juliana Moraes; Récita de um Movimento Só; A Ilha do José, da Companhia Oriximina de Dança Afro-Brasileira. 13
Em 2008, foram contemplados os seguintes projetos no ProAc nº 3 (Concurso de Apoio a
Projetos de Pesquisa e Investigação em Dança): Em Busca da Evolução – A Importância Cultural da Dança Bboying, de Eder Mendes Devesa; Estudos Paralelos, de Cristina Sverzuti Fidêncio; Dança Clássica Indiana – Odissi para Iniciantes,de Sonia Maria Novaes Galvão; O “Tal” do Espaço, de Geórgia Paraskevi Lengos; Dança e Improvisação: Por um Método para o Processo de Criação, de Maria Gabriela Carneiro Teixeira Pinto Imparato; Formação de Público, de Marilia Gabriela Gonçalves; Mira, de Maria Eugenia Alves de Almeida. No ProAc nº 4 (Concurso de Apoio a Projetos de Novas Produções de Espetáculos de Dança): Módulo 1: Speranza! Dona Esperança; E das Outras Doçuras de Deus; Vícios e Virtudes; Imensidão Íntima; Tábuas Da Maré – Uma Reflexão para a Vida; Nath Park; Arena (Título Provisório); Vira a Lata do Lixo; Pró-Posição e Temporal. Módulo 2: Urbe-2 Novas Criações da Cia. Artesãos do Corpo para Espaços Públicos e Paisagens Urbanas; Babel; Ares Familiares; Oco; Duas Orelhas e uma Boca, Aquele que Cala e Escuta; Alto Mar de Todas as Coisas; Hidrogênio e Cartas Brasileiras. No ProAc nº 5 (Concurso de Apoio a Projetos de Difusão e Circulação de Espetáculo de Dança): Corpoético; Pares; Complex(C)Idades – Diálogos entre o Corpo e a Cidade; In-Cômodo-Ser-Eu-Só-Tanta-Gente; Área de Risco; Estudo para uma Dança; Fronteiras Móveis; E Eu Disse; Giro – O Tal do Quintal; Tabi; Cantinho de Nóis; Alma Aprisionada; Dança Quixotes do Amanhã; O Homem Continua ou Como Pode Um Homem Pensar que É Dono de um Boi?; Pés na Estrada, Entre Chagas e Borboletas.
ais para os ProAcs 1614 e 1715, respectivamente, para apoio a novas produções e para circulação e difusão. Em 2010, para o ProAc nº 9, de Novas Produções de Espetáculos de Dança, foi prevista uma verba de 1.130.000 reais e, para o ProAc nº 10 , de Difusão e Circulação de Espetáculo de Dança, o montante de 680 mil reais, totalizando 1.810.000 reais. Por outro lado, embora o governo de São Paulo também ofereça uma política de lei de incentivos fiscais, elas acabam não servindo muito, pelo fato de a dança contemporânea não ser atraente para os empresários, em virtude de seu público restrito e do caráter experimental da linguagem da maior parte dos grupos. Assim, essas leis acabam beneficiando apenas os projetos de maior visibilidade e que trazem retorno publicitário, o que acaba não sendo o caso da maior parte dos espetáculos de dança, com exceção de algumas companhias estáveis. Contudo, nestes cinco anos, as políticas públicas nem sempre têm se mostrado contínuas e claras. No âmbito municipal, por exemplo, enquanto a Lei de Incentivo ao Teatro é autorreguladora, determinando o prazo para o edital e possuindo uma verba definida, a Lei de Incentivo à Dança deixa lacunas nesse sentido, abrindo a possibilidade de não publicação dos editais e de diminuição da verba – o que na verdade quase aconteceu no início de 2009, entre o 5º e o 6º edital, quando a Secretaria Municipal atrasou o pagamento dos grupos fomentados pelo 5º edital e anunciou a suspensão do 6º por tempo indeterminado, voltando atrás após o protesto e a mobilização da classe. Também o Governo do Estado de São Paulo surpreendeu os profissionais da dança no início de 2008, ao noticiar a criação da São Paulo Companhia de Dança, destinando inicialmente a ela uma verba anual de 13 milhões de reais, e nos últimos dois anos, de 18 milhões de reais. É importante deixar claro que a perplexidade gerada não foi pela criação da companhia, mas pela adoção de uma política que demonstra uma desproporcionalidade do investimento em relação às outras iniciativas, mesmo considerando o alto custo da estrutura, que, de modo geral, as companhias estáveis e de maior porte possuem16. Tendo em vista que o projeto de criação da São Paulo Companhia de Dança também contempla a construção do Complexo Cultural Teatro da Dança17, no bairro da Luz, orçado inicialmente em 300 milhões de reais (e, atualmente, já em 600 milhões), alguns profissionais 14
Foram estes: Para Compartilhar Mais do que Lágrimas; Verdades Não Acabadas e Vacilantes; Doppio;
Interferências; Influxos; Anjos Negros; Claiarce; Experimentações Cinematográficas ou o que Você Faz Quando Todas as Imagens do Mundo Não Cabem em uma Ideia?; Rútilo Nada; Essa Cor Forte Também é o Sol; Duas Memórias; Pó-Éticos; Diários de Viagem; Público; O Mesmo Lugar de Sempre, J.Gar.Cia. e Fluxo. 15
02 Espelhos; Linhagens; Desosso o Osso e (Flutuo); 5 Dançadeiras por SP; Alumbramentos, De um Lugar
para Outro; O Beijo na Estrada; Torso+Oco; Montestória; Noiva Despedaçada; Coppelias?!; La Vie em Rose??? 15 Anos Companhia de Danças de Diadema; Um Corpo que Não Mais; Devoração. 16
Ana Francisca Ponzio, em artigo publicado na revista Bravo!, de abril de 2008, traçava a seguinte
comparação: aqui no Brasil “o grupo em melhor situação, o Corpo, [...] trabalha com uma verba aproximada de 5 milhões”; o de Deborah Colker, com 1,8 milhão de reais; o Balé da Cidade, com 1,3 milhão; e o Ballet Stagium, com 700 mil reais por ano. 17
Complexo Cultural Teatro da Dança, construção de 95 mil metros quadrados projetada pela Se-
cretaria de Estado da Cultura de São Paulo com o objetivo de ser o principal centro de apresentação de dança, música e ópera da América Latina. O projeto contará com três teatros: um destinado a apresentações de dança e ópera, com 1.750 lugares, outro com 600 lugares, destinado a teatro e recitais, e ainda uma sala experimental, com palco reversível e capacidade para 450 pessoas. Além disso, será a sede da São Paulo Companhia de Dança, criada em 2008 também pelo Governo do Estado de São Paulo.
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paulistas, com o apoio de profissionais de outros estados18, encaminharam uma carta ao secretário de Estado da Cultura, João Sayad, questionando o projeto. Partindo da proposta de que a verba reservada a esse teatro fosse destinada à transformação de galpões ou de antigas fábricas em salas de espetáculos de portes variados, sedes de companhias de dança e de teatro em locais diferentes da cidade, esse grupo desenvolveu ainda um projeto chamado Residências Artísticas para a Dança na Cidade e Estado de São Paulo, que compreenderia a divisão de um galpão em dez estúdios equipados tecnicamente e com arquitetura móvel, nos quais haveria um fluxo de residências artísticas que abrigaria cerca de 200 profissionais da dança por ano, remunerando o artista residente propositor com uma verba de 3 mil reais ao mês e o artista colaborador com 1.800 reais. Além disso, o projeto aprovado para residência também teria direito à “bolsa reserva técnica”, destinada a viabilizar tecnicamente sua realização. Seriam 32 bolsas reserva técnica ao ano, de até 100 mil reais cada ao mês. Independentemente do fato de essas propostas não terem sido atendidas, o que chama a atenção da classe é ainda a falta de diálogo para a implantação da política pública estadual, embora também vejamos a importância da implantação de projetos que atendam a outras vertentes.
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Não obstante, embora seja inegável o avanço que as políticas de fomento representam, sobretudo se compararmos com a situação de quatro anos atrás, continuam sendo imprescindíveis a união e a organização da classe para, de modo sereno, reivindicar a continuidade dos incentivos e a manutenção ou o aumento das verbas, a fim de se garantir contra as oscilações dos interesses políticos, que historicamente têm como tradição a transformação ou inteira interrupção na sucessão de governos. Ao falarmos de políticas públicas, cabe ressaltar que, no cômputo final, persiste uma fragilidade no fomento no que diz respeito à continuidade dos projetos, visto que, em geral, as comissões julgadoras tendem a estabelecer um rodízio para os grupos contemplados, dando oportunidade, de um ano para o outro, aos que ficaram excluídos. Consequentemente, essa variabilidade gera instabilidade, podendo resultar na descontinuidade do trabalho ou até na dissolução dos núcleos. Contudo, hoje, mais do que em qualquer outra época, percebemos uma dependência cada vez maior dos núcleos existentes em relação às políticas públicas, não apenas para produção, mas também para circulação e difusão de seus espetáculos, visto que a maior parte dos espetáculos e mostras tem ocorrido no Centro Cultural São Paulo, na Galeria Olido, no Teatro da Dança, no Teatro Cacilda Becker ou em espaços alternativos (como CEUS, casas de cultura, bibliotecas etc.), e mesmo na rua (como ocorre na Virada Cultural). No que diz respeito às iniciativas privadas, ainda hoje o Sesc desempenha um papel relevante na vida cultural da cidade, programando espetáculos e mostras pontuais. Somadas a isso, temos também iniciativas19 importantes como, por exemplo, o Panorama da Dança Sesi, o 18
Adriana Grecci, Alejandro Ahmed, Cristian Duarte, Elisa Ohtake, Laura Bruno, Lia Rodrigues, Mara
Guerreiro, Marcelo Evelin, Tica Lemos, Raul Rachou, Sheila Áreas, Sheila Ribeiro, Tarina Quelho,Thelma Bonavita e Vera Sala. 19
O Panorama da Dança foi criado em 2001 e já vai para sua décima edição; o Cultura Inglesa Festival
foi criado em1997; e a primeira mostra do Rumos Itaú Cultural Dança ocorreu em 2001.
Cultura Inglesa Festival e as atividades que o Itaú Cultural desenvolve em sua extensa programação cultural durante o ano (além da mostra trienal do Rumos Itaú Cultural Dança), que também possuem caráter de apoio. A mostra Dança em Pauta, do Banco do Brasil, por sua vez, teve as atividades encerradas em 2007, após cinco anos de existência. Também é visível o esforço dos próprios profissionais, que têm procurado se garantir criando seus próprios espaços e ainda promovendo eventos alternativos, como, por exemplo, as mostras do Lugar Nômade Dança, de João Andreazzi, já em sua terceira edição; o Festival Contemporâneo de Dança, ocorrido em 2008 e 2009; o Teorema, já na sexta edição, ambos de Adriana Grecci; a mostra do Kasulo, de Sandro Borelli, que já conta com dois anos de existência; Sem Alaúdes, nem Trombetas, de Sonia Mota; as mostras do Espaço Cariris, de Sofia e Eliana Cavalcante, entre outros. Em relação aos espaços cênicos, verificamos que a maior parte dos espetáculos de dança contemporânea se concentra nos teatros municipais e estaduais, nos teatros do Sesc e nos espaços alternativos pertencentes aos profissionais da área (como, por exemplo, o Kasulo, o Nave, o Cariris, O Lugar, o Coletivo, o Viga e o Crisantempo), em função de custos. Teatros maiores, como o Alfa, o Bradesco e o Municipal, acabam servindo mais às produções estrangeiras ou às companhias de dança estáveis e de maior porte, e as demais casas de espetáculo espalhadas pela cidade, às peças de teatro, musicais e shows, que contam com um público maior. Aqui esbarramos talvez no maior problema da dança contemporânea: a falta de público. Talvez uma das soluções seja o incremento de projetos de dança-educação. Contudo, não caberia também uma mobilização dos profissionais da dança em relação a essa questão? O problema ainda é agravado pelo desinteresse cada vez maior da mídia impressa e do meio televisivo em dar espaço às notícias, críticas, aos artigos ou programas sobre dança. Embora o quadro em relação ao número de veículos não tenha sofrido muitas mudanças, o espaço dedicado à dança tem sido cada vez menor. Consequentemente, os profissionais da área têm buscado caminhos alternativos na internet, por meio de e-mails, newsletters, sites, blogs, Twitter, Facebook, Orkut etc., para envio de convites, flyers, releases de imprensa, bem como para discussão de ideias e mobilização da classe. Nesse sentido, dentro do quadro dos últimos três anos, devemos ressaltar a criação do site Conectedance (http://www.conectedance.com.br), da jornalista Ana Francisca Ponzio, em 2009, para dar sua contribuição como canal de difusão de informação específica sobre dança. Cabe ainda lembrar que a falta de público não se reflete apenas nas salas de espetáculos, na maioria das vezes vazias e com um público específico, mas também está presente na escassez de livros sobre dança nas prateleiras das livrarias, se comparada a qualquer outra área artística, embora tenhamos detectado nos últimos mapeamentos um aumento expressivo de pesquisas e publicações na área nos últimos anos. Com o mapeamento do Rumos Itaú Cultural Dança, é possível perceber quanto a dança paulistana tem dado passos largos em direção ao futuro, apesar das dificuldades. Não obstante, resta-nos galgar um longo caminho pela frente.
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Anexo Os 103 projetos foram os seguintes: 1ª edição: O Homem Continua ou Como um Homem Pode Achar que É Dono de um Boi?, de Key Zetta; Discutindo Relações, de Made In; Por que No Hacemos Cine?, da Cia. Lambe-Lambe e Afins; O Corpo e a Cidade, da Cia. Artesãos do Corpo Dança Teatro; Olhos Invisíveis, do P.U.L.T.S. Teatro Coreográfico; Projeto de Fomento das Atividades da Cia. Nômades, da Cia. Corpos Nômades; Anjo Novo, do Passo Livre; Dança Associada à Cidade, de Célia Gouvêa; Taanteatro + 15 Anos, do Taanteatro; Como Viver Junto, de Marta Soares; Omstrab 10 Anos, de Omstrab; Balangandança 1, 2, 3 e Já!, do Balangandança; O Processo, da Cia. Borelli; e Plysemos, de Minik Mondó. 2ª edição: Kronos, de Pedro Costa; De um Lugar para Outro, da Nau de Ícaros; Passo do Frevo, do Brincante; Parangolés, da Cia. Mariana Muniz; 1,2,3,4,5 Dançadeiras, da Cia. Giz de Cena; The Beatles, das Silenciosas; Era Infinitamente Maio, do Espaço Viver; Sob a Nudez dos Olhos, da Cia. Fragmentos de Dança; A Ilha, de Marcos Sobrinho; Coreológicas, do Caleidos; Q, da Cia. de Danças; Um Conto Idiota, de J.Gar.Cia.; e Núcleo de Improvisação, do Núcleo de Improvisação.
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3ª edição: Núcleo Artérias, do Núcleo Artérias; Lúdico, da Cia. Druw; Índice dos Primeiros Versos, do P.U.L.T.S. Teatro Coreográfico; Pode-se Apostar que o Homem Desaparecerá como um Rosto na Areia no Limite do Mar, de Key Zetta e Cia.; Influência, da Cia. Nova Dança 4; Antes da Queda, da Cia. Perdida do Núcleo Dois Corpos; Plataforma Omstrab, do Núcleo Omstrab; Repentista do Corpo nos 4 Cantos da Cidade, da Cia. Repentista do Corpo; Saiando – A Expressividade Popular no Universo Contemporâneo, do Grupo Babado de Chita; Um Lugar de Sarah ou Qualquer Coisa que a Senhora Quiser, da Cia. Viga de Dança; e Corpo Erótico, de Carmem Gomide. 4ª edição: O Animal Mais Forte do Mundo, de Ângelo Madureira e Ana Catarina Vieira; Pequenos Fragmentos de Mortes Invisíveis, de Vera Sala; Cabeça do Orfeu, de J.Gar.Cia; Intercâmbio Canibal, da Cia. Oito Nova Dança; Show: Volume 2 – Desaba, de Cristian Duarte; Minik Mondó 10 Anos, do Grupo Minik Mondó; Fomento das Atividades da Cia. Corpos Nômades e Sua Sede O Lugar, da Cia. Corpos Nômades; Tabibito Viajante, do Núcleo Fu Bu Myo In; Danças 12 Anos, da Cia. Danças; Francisca da Silva Oliveira, de Eliane Aparecida Santana; Corpo Memória Cidade Cena, do Passo Livre; Cantos Malditos, da Cia. Borelli de Dança; Jogos Casuais, de Marco Moraes, Sapatos Brancos, de Luiz Ferron; e Um Corpo que Não Aguenta Mais, de Marta Soares. 5ª edição: Nucleares, da Cia. Teatro Mariana Muniz; Desvio para o Vermelho, do Núcleo Art. Eu E Tu; Projeto Maurício de Oliveira e Siameses; Projeto Cia. Artesãos do Corpo – 10 Anos de Palco e Rua; Projeto Núcleo de Improvisação – 3º Movimento; Trilogia Poética – Parte II: Primeiros Versos; do P.U.L.T.S.; She’s Lost Control, da Cia. Vitrola Quântica; Balanço – De Trás Pra Frente, da Balangandança Cia.; Sós, da Key Zetta e Cia.; Ensaio, do Núcleo Art. Dr.; Era Infinitamente Maio, do Viver Núcleo de Dança; Astrolab, do Omstrab. e Estudos Dramatúrgicos para Influência da Improvisação, da Cia. Nova Dança 4. 6ª edição: Canal, da Cia. Sansacroma; Corpos Frágeis, da Cia. Fragmento de Dança; Retratos, do Caleidos; Um Oceano Inteiro para Nadar... Dançar, da Stacatto SP Cia. de Dança; Projeto Continuado de Pesquisa e Manutenção da Cia. Perdida, da Cia. Perdida (Núcleo Dois Corpos); Coleta de Vestígios, de Marta Soares Cia. de Dança; Sapatos Brancos: Alargando as Fronteiras da Espetacu-
laridade, do Núcleo Artístico Luis Ferron; Vila Tarsila, da Cia Druw; Linhas Aéreas 10 Anos, da Cia. Linhas Aéreas; Circulação Cabeça de Orfeu e Um Conto Idiota, da J.Gar.Cia.; Crítica Genética, da Cia Danças; Cadeiras de Rosas, do Grupo Musicanoar; Manutenção dos Trabalhos da Cia. Corpos Nômades, da Cia. Corpos Nômades; Duas Memórias, da Cia. Damas em Trânsito e Os Bucaneiros; Glórias de Empréstimo – Cena 2, da Cia. Panapaná. 7ª edição: Descontinuidades, do Núcleo Artístico Vera Sala; Violetas Murchas, da Cia. Viga; Finalização da Trilogia, da Cia. Ângelo Madureira e Ana Catarina Vieira; DAN, do Taanteatro Cia.; Humores Anômicos, de E2 – Wellington Duarte e Eliana de Santana; Sobre o Imprevisível, do Núcleo de Improvisação; Dedicate, do Núcleo Marcos Sobrinho; Trilogia Influência – 3º Movimento, da Cia. Nova Dança 4; Poeta Selvagem Dançarino, do Núcleo Passo Livre; Morte, Manifestação e Reflexão, da Cia. Borelli de Dança; Corpo Underground, da Cia. Vitrola Quântica. 8ª edição: Transborda, do Núcleo Cinematográfico de Dança; Penetráveis, da Cia. Mariana Muniz; Jardim Noturno, do núcleo Maurício de Oliveira e Siameses; DR Crise, do Núcleo DR; Arqueologia do Futuro, da Associação Desaba; Área Reescrita, de J.Gar.Cia.; O Olhar de Dentro, da Insaio Cia. de Arte; Projeto de Pesquisa Continuada Key Zetta e Cia., da Key Zetta e Cia.; Dança Artesanal – Jogos de Dança, do Núcleo Silenciosas e GT’Aime; Pipando... Onde Dormem os Pássaros, do Núcleo Pedro Costa; Urgência ou a Cidade do Avesso, do ...Avoa! Núcleo Artístico; e Poeira, do Grupo Minik Mondó.
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Referências bibliográficas BRITTO, Fabianna Dultra (Org.). Cartografia da dança: criadores-intérpretes brasileiros. São Paulo: Itaú Cultural, 2001. Cartografia: Rumos Itaú Cultural Dança 2006-2007. São Paulo: Itaú Cultural, 2007. DUARTE, Cristian. Carta sobre suspensão da Lei de Fomento à Dança. Disponível em: crisduarte@desaba.org. FERNANDO, Mauro. Subvenção pública para a dança: avanços pequenos diante das demandas históricas no Brasil. Disponível em: www.conectedance.com.br. Acesso em: 21 dez. 2009. GRECCI, Adriana et alii. Abaixo-assinado Cidade e Arte. Disponível em: http://www.abaixoassinado.org/abaixoassinados/5431. IDANÇA. Longe de um acordo. Disponível em: http://www.idanca.net. Acesso em: 16 jun. 2010. KATZ, Helena. Falta à dança o reconhecimento como uma atividade produtiva. O Estado de S. Paulo, 2 out. 2009, Caderno 2, p. D3. _____. O melhor esteve fora do circuito oficial de exibição. O Estado de S. Paulo, 30 dez. 2009, Caderno 2, p. D3. MOTTA, Isabella. Editais de fomento estão suspensos em São Paulo. Disponível em: http://idanca.net/lang/pt-br/2009/02/09/editais-de-fomento-estao-suspensos-em-sao-paulo/9807. PONZIO, Ana Francisca. Osesp da dança. In: Revista Bravo!. São Paulo: Abril, ago. 2008.
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Susi Martinelli
Bacharel e licenciada em dança pela Unicamp, doutora e mestre em psicologia pela Universidade de Brasília (UnB). Atua como professora universitária e pesquisadora, investigando a criatividade no ensino da dança, no movimento, e processos criativos. É membro do Conselho de Cultura do Distrito Federal desde 2008.
Dança quem pode, obedece quem tem juízo
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er uma realidade em movimento pressupõe ir além da tradução de dados, numa tentativa de gerar informações e construir conhecimentos que permitam criar e recriar contextos. Nesse sentido, algumas indagações são essenciais, não como forma de apenas criticar uma localidade, mas fundamentalmente com o intuito de promover reflexões para que possibilidades emancipatórias possam emergir (SANTOS, 2000). Analisando o ambiente da dança contemporânea na Região Centro-Oeste de 2000 a 2010, pode-se mencionar como fato relevante o aumento do número de cursos superiores de dança na região. Enquanto em 2000 foram localizados apenas dois cursos que não conseguiram se manter no tempo1, na atualidade, na cidade de Goiânia foram criadas uma graduação e uma pós-graduação em dança (PUC-GO), em Brasília, uma licenciatura em dança (Instituto Federal de Brasília) e em Campo Grande já há duas especializações em andamento (Universidade Católica e Gama Filho). Esse dado parece promissor, uma vez que abre espaços de atuação para o profissional artista da dança para além da criação artística, mas também como forma de expansão da produção de conhecimento. Acompanhando o crescimento nacional, as graduações em dança trazem novas possibilidades, entre elas a de delimitar espaços, oferecendo, além das aulas, atividades de extensão, nas quais são formados grupos de pesquisa e gerados debates, cursos e palestras. 1
A Faculdade Dulcina de Moraes, em Brasília, que formou apenas uma turma, e o curso de pós-gradu-
ação em educação física com aprofundamento em dança da Universidade Federal de Mato Grosso, cuja produção foram 13 monografias na área.
O que se percebe é que as trocas podem propiciar a emergência de novas formas de produzir dança contemporânea. Em toda a região, é recorrente ouvir artistas afirmarem a necessidade de diálogo para que, por meio do compartilhamento, distintos olhares, percepções de corpo, de dança e ações de solidificação da área possam surgir. Na contramão do sistema de captação de recursos, os grupos e companhias continuam produzindo com auxílio de leis de incentivo e prêmios, por meio de editais (municipais/distritais, estaduais e nacionais), de caráter instável e carente de previsibilidade. Assim... DANÇA QUEM PODE. Ou seja, salvo raras exceções, continua dançando quem tem como se manter com outras fontes de renda que não a produção artística (principalmente ministrando aulas). Assim, ser educador muitas vezes não é uma opção, mas uma necessidade. Também não se ouve falar em décimo terceiro salário, férias, aposentadoria, entre outros benefícios comuns aos trabalhadores brasileiros de outras categorias, fato que suscita a necessidade de refletirmos mais profundamente sobre a profissionalização do artista de dança no Brasil. Ora, ao que parece, o modelo instaurado na monarquia ainda vem sendo perpetuado nas práticas políticas e também no imaginário de um grande número de artistas. Ou seja, espera-se um mecenas (agora convertido em editais e leis de incentivo federais, estaduais e municipais) para eleger os melhores e apadrinhar o artista. Nesse modelo, o profissional continua à mercê de critérios externos, uma vez que, muitas vezes, a classe artística não participa da elaboração de editais e leis.
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Então, se por um lado as graduações têm gerado espaço tanto para a atuação dos profissionais existentes quanto para a formação de novos artistas e educadores, por outro, há ainda enormes desafios para se configurarem como ambientes políticos de questionamento para a expansão da área. Na região, essa lacuna tem sido minimizada por meio de eventos que aglutinam profissionais de grupos e companhias diferentes, além de artistas que têm trabalhado sozinhos. Nesse sentido, por todo o Centro-Oeste há uma dinâmica de fortalecimento de festivais e eventos de dança contemporânea. Na cidade de Brasília, persistem o Festival Internacional da Novadança e a Mostra XYZ. Têm sido realizados em Campo Grande o Dança Campo Grande, o Sesc Encena, a Mostra Terena de Artes e o evento Dança que a Cidade Dança, além de Caminhos da Dança. Em Cuiabá, o Sesc tem assumido fundamental papel de fomento da área, por meio da realização do Panorama Dança Sesc (2009) e do Movimento Dança Sesc Arsenal. Particularmente em Goiânia, profissionais que estavam fora da cidade no início do programa Rumos Itaú Cultural Dança (2000), fazendo mestrado e doutorado em outros estados, retornaram à cidade e estão, cada vez mais, se articulando. Um importante evento que tem se solidificado no cenário goiano é o Festival Diagnóstico da Dança. Propondo-se a favorecer a troca de experiências entre artistas da dança e levar essa ação para a sociedade, o festival busca trazer para Goiânia pesquisas atuais de diversos locais e companhias que fazem a história da dança no Brasil. Além disso, com o intuito de promover o fortalecimento da dança goiana e de seus grupos, o Fórum de Dança de Goiânia vem desenvolvendo o projeto Quinta Tem Dança, com espetáculos, processos e pesquisas de trabalho de quatro grupos de dança contemporânea da cidade: o Grupo Solo de Dança, o Nômades Grupo de Dança, Contato Grupo de Dança e o ¿Por quá?. Com características distintas, o Goiânia em Cena – Festival Internacional de Artes Cênicas tem conseguido se manter ao longo dos anos, reunindo companhias de teatro, dança e circo de todo o Brasil e do exterior. Nesse evento, são escolhidos grupos por sua qualidade artística
ou pesquisa de linguagem, além de buscar a produção de artes cênicas do Centro-Oeste. O projeto Dança em Foco também chegou a Goiânia. Antes restrito ao eixo Rio-São Paulo, vem se expandindo pelo país em edições itinerantes. Configura-se como Festival Internacional de Vídeo & Dança, sendo um evento exclusivamente dedicado à vídeodança e à relação entre a dança e o audiovisual. Uma importante iniciativa realizada na cidade de Brasília tem sido o projeto Mexido. Objetivando fomentar atividades acadêmicas e artísticas de dança na Universidade de Brasília, o evento foi criado com o intuito de fortalecer estratégias de desenvolvimento dessa arte no âmbito da universidade e da região. Sua pretensão estende-se ao “desenvolvimento de bases teóricas e práticas que permitam uma reflexão sobre as condições da dança no país, no mundo e no GDF, favorecendo a discussão de um currículo acadêmico para essa área do conhecimento artístico inserido no contexto universitário”. O projeto pretende a continuação do evento Dança UnB! Ver, Pensar Mover, promovido pelo Centro de Documentação e Pesquisa em Dança (CDPDan) do Departamento de Artes Cênicas da UnB, o qual vem desenvolvendo uma série de cursos, palestras, mostras de vídeo e performances resultantes das investigações realizadas pelos pesquisadores de graduação, iniciação científica, mestrado e doutorado. Apesar de envolver distintos estilos de dança, evento fomentador da dança contemporânea de Cuiabá parece ser o Movimento Dança Sesc Arsenal. É assim divulgado: “direcionado para a apropriação do coletivo, no sentido de conduzir ao processo de movimento de novos fazeres, promovendo a troca de informações com a comunidade e expansão das expressões culturais”. Com uma proposta que quase sugere um processo de “alfabetização à apreciação estética”, são apresentadas dança de salão, dança tradicional mato-grossense, dança de rua, dança do ventre e dança contemporânea, numa tentativa de proporcionar estímulo sobre o olhar ao tradicional e ao contemporâneo. Outra iniciativa do Sesc é o Panorama Dança Sesc, que foi criado com o objetivo de traçar caminhos de fortalecimento e enriquecimento da linguagem da dança, fomentando a produção artística com a apresentação de espetáculos de dentro e de fora do estado. A ideia é contribuir com o movimento criativo e significativo da região. Há ainda a Mostra de Dança de Mato Grosso, evento que conta com a participação de diversos municípios do estado de Mato Grosso, entre eles Cuiabá, Alta Floresta, Sinop, Lucas do Rio Verde, Campo Novo do Parecis, Rondonópolis, Jauru, Cáceres, Indiavaí, Pontes e Lacerda, Sapezal e São José dos Quatro Marcos. Com o objetivo de descentralizar a dança, atingindo diferentes camadas da população, a mostra propõe-se a ocorrer em diferentes espaços da cidade. O evento, que não é exclusivo de dança contemporânea, dedica-se ainda a debater ações e políticas públicas voltadas para o segmento da dança. Para tanto, sua programação inclui um fórum de discussão. Em Campo Grande, artistas da dança aproximam-se, unem forças e criam diversos eventos, mostrando que os esforços individuais se concretizam mais facilmente com a força e o apoio do coletivo. E, com a maturidade de muitos profissionais locais, consegue-se perceber que coletivo não necessariamente é a aproximação de iguais, o que se contrapõe à crença de muitos supostos coletivos da região. A existência do Dança Campo Grande, do Sesc Encena, da Mostra Terena de Artes e dos eventos Dança que a Cidade Dança, além de Caminhos da Dança, explicita possibilidades distintas de realização por meio do respeito à diversidade. Apesar desse tipo de possibilidade, de modo geral, o que se percebe em toda a região é que os desafetos parecem interferir diretamente nas ações. Discórdias, críticas de ideias e posiciona-
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mentos quase sempre são tomados como pessoais. Mas, a despeito das dificuldades relacionais, os coletivos e fóruns de dança têm assumido papel fundamental para o fortalecimento da área, uma vez que os Sindicatos dos Artistas e Técnicos em Espetáculos de Diversões (Sated) quase nunca funcionam como espaços políticos de defesa dos interesses da classe. Desse modo, principalmente com articulações realizadas em coletivos e fóruns é que têm sido viabilizadas ações concretas e propostas de ações de fomento, difusão e formação em dança. Um fato que merece ser enfatizado em relação à região é que, no contexto da cena contemporânea do Centro-Oeste, como nos demais estados brasileiros, a preocupação com o passado histórico da dança tem crescido ao longo dos anos. A memória, para além da lembrança ou da retenção de informações adquiridas, emerge no cenário da dança atual como construção presente em seus desdobramentos e intersecções diversas. Desse modo, resgatar e repensar a história, bem como desenvolver ações que propiciem o conhecimento das produções artísticas e a circulação da informação, começam a ser percebidos como estratégias de sobrevivência e atos de criação do presente. Nessa direção, têm surgido alguns trabalhos que promovem o resgate de documentação e a preservação de registros de dança, acompanhados de ações diversas que contextualizam a dança local no cenário brasileiro (principalmente por meio de publicações, acervos e centros de documentação). Algumas das iniciativas locais atuais estão, mesmo que modestamente, conseguindo fugir dos antigos modelos de resgate e preservação com o foco apenas em documentos pessoais. Ou seja, propõem-se intencionalmente a não conservar somente programas de espetáculos, fotos, vídeos e DVDs próprios e fogem dos modelos de publicação como biografias.
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Assim, determinados projetos de documentação, registro e memória parecem começar a contribuir também com o fomento à produção artística, tanto por criar espaços para que os profissionais da dança sejam reconhecidos em suas singularidades e identidades próprias, como por disponibilizar ao público em geral o acesso à informação mais ampliada sobre a dança local. Partem da crença de que o passado não está lá congelado, mas se configura como um passado vivo nas histórias pessoais e não pode ser apagado, pois insiste em emergir nas construções atuais, sob as mais variadas formas. Nesse sentido, a memória passa a ser vista como construção constante e não apenas como lembrança ou aglutinação de informações, uma vez que continuamente emerge no cenário atual, em seus desdobramentos e intersecções diversas. Desse modo, resgatar e repensar a história começa a significar, para além da junção ou narrativa de fatos, a reconstrução de muitas histórias possíveis. Como nos diz Katz (2003): A cada vez que se conta uma história, se monta uma história. O acontecimento não permanece congelado, intacto, à espera de que alguém venha retirálo do silêncio do passado. Qualquer coisa posta no mundo inicia um percurso próprio, passando imediatamente a se relacionar com o que lhe circunda e lá produzindo a sua própria continuidade. Nesse tipo de contato com o ambiente, as ações se modificam para frente e para trás – daí interferirem no que já foi e no que ainda virá (p. 265).
Apesar dos avanços acima mencionados no que se refere às concepções de alguns projetos, o que se percebe em relação às publicações históricas da Região Centro-Oeste é que aglutinam informações e descrevem fatos, explicitando clara dificuldade de apresentá-los em caráter
crítico, investigativo e reflexivo. Além disso, também pela escassez de publicações, narram apenas “uma história”, o que deve ser repensado, se considerarmos que os processos de seleção, legitimação e reconhecimento de produções e de artistas é um exercício de natureza histórico-cultural e política, não podendo ser visto como mero ato de documentação. Abordando a questão do “perigo de se contar uma única história”, a escritora nigeriana Chimamanda Adichie descreve que começou a ler precocemente e que, morando na Nigéria, somente tinha acesso a livros infantis britânicos e norte-americanos. Assim, quando começou a escrever, aos 7 anos de idade, “escrevia exatamente os tipos de história que lia, com personagens brancos, de olhos azuis, que brincavam na neve, comiam maçãs e falavam sobre como era maravilhoso o fato do sol ter aparecido [...]”. E, apesar de nunca ter visto a neve, não comer maçãs, mas sim mangas, escrevia sobre isso, incluindo personagens que bebiam cerveja de gengibre, sem ter a menor ideia do que era. A autora enfatiza o fato de sermos impressionáveis e vulneráveis frente a uma história e, em sua trajetória pessoal, por ter acesso apenas a livros estrangeiros, convenceu-se de que os livros, “por sua própria natureza, tinham de ter estrangeiros e tinham de ser sobre coisas com as quais não podia se identificar”. Quando tem contato com livros africanos, que não são tão fáceis de encontrar, sua percepção sobre a literatura muda. Em suas palavras: Eu percebi que pessoas como eu, meninas com pele da cor de chocolate, cujos cabelos crespos não poderiam formar rabos-de-cavalo, também podiam existir na literatura. Eu comecei a escrever sobre coisas que eu reconhecia. Bem, eu amava aqueles livros americanos e britânicos que eu lia. Eles mexiam com a minha imaginação, me abriam novos mundos. Mas a consequência inesperada foi que eu não sabia que pessoas como eu podiam existir na literatura. Então, o que a descoberta dos escritores africanos fez por mim foi: salvou-me de ter uma única história [...].
Apropriando-nos de tais considerações, acreditamos que vale a pena refletir se o modo como algumas ações vêm sendo realizadas na região promove possibilidades de reflexão, análise e recriação da história local, contextualizando-a no cenário da dança brasileira. Ou se, no Centro-Oeste, além de DANÇA QUEM PODE, ficaremos na dimensão do OBEDECE QUEM TEM JUÍZO, ora porque se tem acesso apenas a um tipo de informação, ora por não ser possível expressar plenamente ideias, em função de modelos que não podem ser questionados, uma vez que vêm de autoridades historicamente legitimadas. Com tais reflexões, almejamos que a dança na região se configure como uma construção contínua das muitas histórias e danças possíveis. É nesse sentido que, para contribuir com o fomento à produção artística atual, acreditamos que devam ser criadas ações que permitam que as obras construídas ao longo da história possam ser lidas sob perspectivas múltiplas e analisadas sob diversos pontos de vista. Somente assim pode-se contribuir com o acesso à informação e com a construção de muitas memórias, o que, a nosso ver, aumenta a probabilidade de que a dança seja vista não apenas como portadora de uma história, mas com histórias.
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Referências bibliográficas Chimamanda Adichie: o perigo de uma única história. Disponível em: http://www.ted.com/ talks/lang/por_br/chimamanda_adichie_the_danger_of_a_single_story.html. KATZ, H. Past forward – arquiteturas e armadilhas de Anne Teresa de Keersmaeker. Em: CALAZANS, J.; CASTILHO, J.; GOMES, S. (Coord.). Dança e educação em movimento. São Paulo: Cortez, 2003. SANTOS, Boaventura de Sousa. Para um novo senso comum: a ciência, o direito e a política na transição paradigmática. São Paulo: Cortez, 2000.
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Thembi Rosa
Dançarina e coreógrafa, mestre em dança pelo Programa de Pós-Graduação em Dança da UFBA e graduada em letras pela UFMG. Desde 2000, desenvolve projetos-solo de dança com o duo musical O Grivo e com coreógrafos e criadores convidados, como Verdades Inventadas (2008), Confluir (2006), Regra de Dois (2006), Ajuntamento (2003) e Propriocepção (2000).
Dança expandida em Minas Gerais: Belo Horizonte, Nova Lima, Juiz de Fora, Viçosa e Uberlândia
S
e compararmos o mapeamento do Rumos Itaú Cultural Dança 2009-2010 realizado em Minas Gerais com o anterior, de 2006-2007, chama atenção a concretude de certas ações. Tal solidez se faz notar tanto pela construção e inauguração de novas sedes de companhias de dança quanto pela continuidade daquelas ações que se mantêm e se modificam com o tempo. Isso demonstra uma expansão e uma descentralização da dança, uma invenção de novos espaços nos quais novas conectividades podem se estabelecer. Em agosto de 2010, teve início o curso de graduação em dança na Universidade Federal de Minas Gerais. A construção desse novo espaço impulsionará ainda mais a formação, produção e difusão de pensamentos sobre a dança no estado. Desde 2005, a UFMG oferece o curso de extensão em Pedagogia do Movimento e, desde 2002, a Universidade Federal de Viçosa (UFV) implantou a licenciatura e o bacharelado em dança. Todavia, Viçosa e Belo Horizonte estão separadas por 251 quilômetros, um dos fatores que dificultam o intercâmbio entre as duas cidades. Com a segunda edição do Seminário e Mostra Nacional de Dança-Teatro realizada pela UFV em 2010, além de uma série de outros eventos e oficinas, esse trânsito começa a se intensificar. Aliada à emergência das pesquisas acadêmicas em dança que se instauram nas universidades, a produção bibliográfica, quase nula nos mapeamentos anteriores, também está se expandindo. O FID Editorial, iniciativa do Fórum Internacional de Dança (FID), a Secretaria de Estado de Cultura com a Fundação Clóvis Salgado e as Leis de Incentivo à Cultura estão entre os principais mecanismos que viabilizaram as novas publicações mapeadas. Também despontam dissertações e teses com a temática da dança, em especial na Escola de Belas-Artes da UFMG, que abrigará o novo curso de licenciatura em dança em Belo Horizonte.
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A dança para além da Avenida do Contorno: Jardim Canadá, Vale do Sol e Casa Branca Com o crescimento de Belo Horizonte e as enormes áreas verdes que circundam a região, vários profissionais da dança começaram a projetar e instaurar suas sedes fora da cidade. Em Nova Lima, no bairro Jardim Canadá, desde 2002 a Quik Cia. de Dança instalou o Quik Espaço Cultural, que, além de ser a sede da companhia, abriga o projeto social Quik Cidadania e mantém uma programação no local. Também o Grupo de Dança 1º Ato inaugurou, em julho de 2010, o Espaço de Acervo e Criação Compartilhada, um espaço destinado ao acervo do grupo e à realização de oficinas de artes, cenotécnica, iluminação, entre outras atividades voltadas à comunidade e ao público interessado. O bairro Jardim Canadá começou a ser loteado nos anos 1950 e, apesar da proximidade de Belo Horizonte (cerca de 10 quilômetros da zona sul da cidade) e do fácil acesso pela BR-040, era uma região desvalorizada, principalmente por causa da falta de infraestrutura. Na última década, a área comercial do bairro prosperou e, desde 2006, ele vem sendo urbanizado pela prefeitura de Nova Lima e pela Copasa, empresa estatal responsável pela distribuição e pelo saneamento básico no estado. No bairro convivem a população de baixa renda, que migrou primeiramente para a região, e o comércio de luxo estabelecido pela disponibilidade de amplas áreas e pela proximidade de condomínios residenciais. É uma paisagem meio passagem (de um lado, a BR-040, de outro, o Parque Estadual da Serra do Rola-Moça), formada por ruas planas, amplos galpões, casas, casebres, restaurantes, botequins, ateliês, galerias de arte e um resquício das ruas que ainda são de terra e espalham uma poeira vermelha remanescente do minério de ferro.
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O Jardim Canadá, além de ser a entrada para os condomínios em Casa Branca, é um dos acessos para o Centro de Arte Contemporânea Inhotim 1, responsável por colocar essa região no mapa da arte contemporânea mundial. A dança ainda não conquistou o espaço que merece em Inhotim, mas aos poucos começa a estabelecer parcerias que viabilizam apresentações esporádicas nos maravilhosos jardins sugeridos pelo paisagista Burle Marx. O Condomínio Casa Branca foi o local escolhido pela coreógrafa Dudude Herrmann para construir seu ateliê, que prevê também um espaço para a realização de residências artísticas. No início de 2010, o ateliê foi inaugurado com uma sessão de improvisação realizada pelo Small Group, formado por Dudude (BH), Lisa Nelson (EUA), Daniel Lepkoff (EUA), Sakura (Japão), Beth Bastos (SP) e Tom Resende (SP). Parte da programação do ateliê é estendida para o Espaço 104, localizado na Praça da Estação, região central de Belo Horizonte. É uma antiga fábrica de tecidos, que desde 2008 está sendo restaurada e ativada como um novo espaço cultural. Além de um café e um restaurante, tem uma programação que inclui shows, performances, espetáculos, festivais, mostras, feiras etc. Em 2009, o Espaço 104 abrigou parte da programação da segunda edição do Manifestação Internacional de Performance (MIP)2.
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Centro de Arte Contemporânea Inhotim. Disponível em: http://www.inhotim.org.br/.
2
O Manifestação Internacional de Performance foi realizado por Marcos Hill e Marco Paulo Rolla.
Disponível em: http://www.ceia.art.br/mip.
Em direção ao Vale do Sol Ao cruzar a BR-040, em frente ao Jardim Canadá, está o Vale do Sol, onde será construída a nova sede do Grupo Corpo. A primeira parte do projeto consiste na construção da sede da companhia e ainda está prevista a construção de um teatro, uma galeria, salas de cinema e um café. Por ora, o Grupo Corpo continua sediado no prédio construído na década de 1970, na Avenida Bandeirantes, local em que funciona o Corpo Escola de Dança e o Teatro Corpo Escola. Em algumas ocasiões, seus espaços são cedidos para os ensaios do projeto social da ONG Corpo Cidadão e de outros profissionais. Ainda no Vale do Sol, a Cia. Suspensa e o Grupo de Teatro Armatrux estão inaugurando o Espaço C.A.S.A., que, além de ser a sede das companhias, possui um espaço destinado a apresentações. A Cia. Suspensa foi selecionada pelo programa Rumos Itaú Cultural Dança 2009-2010. Sua pesquisa integra dança e técnicas circenses, em especial, a utilização de aparatos aéreos. Em 2007, engrossaram as publicações com o lançamento do livro e DVD Sem os Pés no Chão, composto de textos e fotos relacionadas a seus processos de criação e oficinas. Visando potencializar ainda mais essas ações culturais que emergem na região de Nova Lima e Brumadinho, está em andamento a Associação Caminho das Artes, que visa estabelecer um circuito cultural para a região. Se a cultura se espraia, transbordando por essas áreas, no centro ela também se fortalece.
Circuito Cultural Praça da Liberdade e Palácio das Artes Na Praça da Liberdade, no início de 2010, foram inaugurados os primeiros prédios reformados para abrigar o Circuito Cultural Praça da Liberdade: Espaço TIM UFMG do Conhecimento, Museu das Minas e do Metal EBX. Para 2011, está prevista a inauguração do Centro Cultural Banco do Brasil, entre outros. O Circuito Cultural Praça da Liberdade foi viabilizado pelo projeto de mudança das secretarias de governo para a Cidade Administrativa Presidente Tancredo Neves, projeto que instaurou uma centralização da administração pública estadual, além de incitar o crescimento e o desenvolvimento no vetor norte da capital. A Cidade Administrativa, projetada pelo arquiteto Oscar Niemeyer, foi inaugurada em março de 2010 e está localizada na Linha Verde, acesso ao Aeroporto Internacional de Confins. Embora no Circuito Cultural Praça da Liberdade ainda não esteja planejada a existência de um centro coreográfico ou um espaço específico para dança, as reformas e inaugurações desses centros culturais demonstram o investimento e o fortalecimento da cultura no mapa da cidade. Resta saber e agir para que a manutenção e a vivacidade desses espaços sejam proporcionais aos investimentos empregados, pois a fragilidade, muitas vezes, reside na gestão cultural. Após as inaugurações, corre-se o risco de o poder público e as empresas patrocinadoras absterem-se da responsabilidade de prover o financiamento necessário para viabilizar o planejamento e a continuidade dessas estruturas. Uma ótima análise a esse respeito é realizada pelo crítico Marcello Castilho Avellar e a historiadora Glória Reis no livro sobre a história dos 35 anos do Palácio das Artes3. Nele, os autores demonstram mudanças de paradigmas sociopolítico-econômico-culturais que estiveram im3
AVELLAR, Marcelo Castilho; REIS, Glória. Pátio dos milagres: 35 anos do Palácio das Artes, um retrato.
Belo Horizonte: Secretaria de Estado de Cultura de Minas Gerais/Fundação Clóvis Salgado, 2006.
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plicados na formação dessa instituição. Sua inauguração parcial foi em 1970, primeiramente a Grande Galeria e, em 1971, o Grande Teatro. O Palácio das Artes e a Fundação Clóvis Salgado, integrados pelo Centro de Formação Artística (Cefar) e pelos Corpos Estáveis, sempre estiveram se consolidando e, durante o regime militar, bem como nas décadas seguintes, sofreram com a escassez de recursos para sua manutenção. Foi um longo processo para que seus espaços se tornassem plenamente utilizados e sua imagem se modificasse frente ao poder público e à sociedade. Segundo os autores, o incêndio ocorrido no Grande Teatro em 1997 pode ser identificado como um momento de guinada, de reconhecimento desse espaço como um espaço simbólico para a arte no estado. Naquela ocasião, a classe artística, o empresariado e o governo se mobilizaram para arrecadar fundos e acelerar a reforma e a reinauguração do teatro um ano depois, em 1998, com uma série de apresentações gratuitas. Para os autores, com a iminência da perda, o Palácio das Artes foi definitivamente apropriado pelo segmento artístico, e também pelo empresariado e a população. O livro é recheado com uma série de 36 depoimentos de funcionários da instituição, nos quais podemos perceber que a sustentação desse espaço está diretamente vinculada à dedicação de seus funcionários, subvertendo o clichê do funcionário público como sendo aquele que não trabalha. E mostra, ainda, como a arte é um labor que exige devoção, resignação e, acima de tudo, como sua sobrevivência está diretamente vinculada às atitudes políticas e aos poderes de legitimação.
A fragilidade da continuidade dos programas culturais 142
A nova gestão da Fundação Municipal de Cultura de Belo Horizonte, resultado das eleições municipais em 2008, paralisou as principais ações culturais promovidas pela gestão anterior. O Programa Arena da Cultura, dedicado à educação em arte, e o Laboratório de Arte Expandida, projeto dos teatros municipais que contemplava uma série de outros editais para as artes cênicas, foram cancelados. A programação do Museu de Arte Moderna da Pampulha, que nos últimos anos promovera importantes mostras de artistas contemporâneos, bem como o projeto Bolsa Pampulha, também se estagnou. O Festival Internacional de Teatro (FIT), realizado a cada dois anos pela prefeitura, só não foi adiado porque houve uma grande mobilização da classe artística, incluindo os diretores do festival e os principais funcionários, que se demitiram coletivamente. Com essa pressão da direção do FIT e da sociedade, a 10ª edição do festival foi realizada. Neste instante, com a aproximação das eleições, veremos se vão soprar novos ventos capazes de arejar e implantar uma política cultural municipal. A Lei Municipal, por meio de seus dois mecanismos de incentivo, captação pela dedução de impostos municipais e Fundo Municipal de Cultura, continua em vigor. Em Minas Gerais, o principal mecanismo de apoio continua sendo o modelo da Lei Estadual de Incentivo à Cultura. Os representantes da Secretaria de Estado de Cultura, cientes das questões que giram em torno da preponderância da gestão cultural pelo empresariado e pelos departamentos de marketing das empresas, instauraram em 2006 o Fundo Estadual de Cultura. Também foram criados editais estaduais para as diversas áreas culturais: audiovisual, música e artes cênicas. Ainda não há no governo estadual um edital exclusivo para a área da dança. O Prêmio Estímulo às Artes, da Fundação Clóvis Salgado e do Instituto Sergio Magnani, que premiava um projeto de montagem de dança e outro de teatro, prevendo a realização de uma temporada no Teatro João Ceschiatti, após sua terceira edição desapareceu sem explicações nem rastros. Em 2007, o Edital Cena Minas passou a contemplar as seguintes categorias: manutenção de companhias de teatro e dança; formação de público e difusão
de espetáculos, equipamentos e materiais para circo. No início, apenas as associações sem fins lucrativos podiam pleitear o prêmio, e poucas companhias de dança se encaixam nesse requisito. Além disso, a proporção para a dança, como de praxe, é menor se comparada ao teatro, e as exigências e condições para a realização do prêmio têm sido questionadas pelos grupos. O Edital Cena Minas estabelece uma parceria com a Secretaria de Educação para realizar o programa de difusão. No entanto, um programa de formação de público que apenas viabilize o acesso aos espetáculos sem estabelecer vínculos com os professores, os programas de arte e uma política de continuidade tende ao fracasso. Tem de haver uma dedicação para planejar critérios e estratégias para os diálogos e propiciar a regularidade e a continuidade desses encontros. De outro modo, como será viável estabelecer uma congruência eficaz entre arte e educação?
Encontros, residências, laboratórios: dispositivos de modificações Em Belo Horizonte, o Fórum Internacional de Dança (FID), cuja primeira edição foi realizada em 1996, é uma referência no contexto da dança contemporânea do próprio estado, bem como no contexto da dança nacional e internacional. O FID é um dos quatro integrantes do Circuito Brasileiro de Festivais Internacionais de Dança, estabelecido em 2005. Entre as ações promovidas pelo FID, os laboratórios, oficinas, palestras, seminários e as propostas do Zona Autônoma Temporária (ZAT) são espaços privilegiados para as conversações sobre dança. Além das apresentações, que trazem à baila uma noção de curadoria para a nova dança produzida no mundo, o FID interessa-se pelos modos como as relações se estabelecem. Isso implica, por exemplo, o seguinte questionamento: como coreógrafos e dançarinos de diversas nacionalidades, com ontologias distintas em suas formações, poderão estabelecer relações que não venham impregnadas por uma hierarquia histórica colonizadora? Considerando principalmente a noção eurocêntrica no que se refere à exportação de modelos culturais, que muitas vezes costumam ser aceitos como inquestionáveis. Ou, ainda, a antiga expectativa do estrangeiro em relação ao exotismo, e a decepção quando aquilo que vê não corresponde ao imaginário do clichê de brasilidade. Essas são questões, que ao longo dos anos, com a continuidade e o fortalecimento dos festivais internacionais realizados no Brasil e a recursividade da presença de coreógrafos estrangeiros, têm se tornado centrais nos debates sobre curadoria em dança. Aqui não é o momento de estender essa discussão, mas interessa apontar para uma dessas direções, entre elas a de uma epistemologia sul, termo utilizado por Boaventura de Souza Santos, que foi um dos referenciais para a edição do FID 2008. Ainda em busca de novos modelos de encontros que possam instigar e alimentar nossas interações e configurações, Dudude Herrmann e Izabel Stewart realizaram, em 2009, a segunda edição do Ciclo de Confluências – Ideias de Imagens. Durante quatro dias, no Auditório da Escola Guignard, foram organizadas mesas, conferências, performances e improvisações com convidados de diversas áreas: gastronomia, moda, literatura, psicanálise, música, dança e afins. Não havia um formato previamente estabelecido para as apresentações, eram definidos apenas núcleos temáticos nos quais os convidados responsáveis poderiam propor dinâmicas para as conversas. Além de espaço para degustação das delícias comestíveis da artista Agnes Farkasvölgyi, servidas durante todo o ciclo, foi também ocasião para o lançamento da primeira edição da revista Ciclo de Confluências – Ideias de Frestas, referente ao evento realizado em versão menor em 2008, no extinto Estúdio Dudude Herrmann.
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É notável a expansão dos encontros entre artistas e também do público que tem se interessado pelos processos de criação em dança. Neles, podemos conhecer-reconhecer as indagações, inquietações, semelhanças e diferenças dos diversos contextos da dança. A recursividade das ações que propiciam o compartilhamento de processos de criação, e não apenas do espetáculo pronto para ser consumido, tem se mostrado um antídoto contra a desmobilização política da classe artística, em especial da dança. No entanto, não será apenas essa convivência capaz de perturbar a inércia e fazer com que sejam efetivadas ações capazes de espantar o inconformismo. Segundo o sociólogo português Boaventura de Souza Santos, no livro A Crítica da Razão Indolente: Contra o Desperdício da Experiência, motivos não faltam para a indignação. Mas, segundo o autor, atualmente não está fácil construir uma teoria crítica social, pois a pergunta “de que lado estamos?”, que era o ponto de partida para a teoria crítica, passou a ser um problema. Os campos semânticos misturaram-se e, assim, aqueles ícones anteriormente demarcados passaram a ser indistintos. Então, como identificar onde está e quem é o inimigo? Isso se tornou opaco, não há um princípio único transformador. Situando as dificuldades de construir uma teoria crítica, Boaventura propõe uma “teoria de tradução que torne as diferentes lutas mutuamente inteligíveis e permita aos atores coletivos conversarem sobre as opressões a que resistem e as aspirações que os animam”.
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Trata-se de aproveitarmos nossos encontros para efetivarmos a experiência de epistemologias que nos permita o conhecimento-reconhecimento do outro. Boaventura refere-se a esse procedimento como sendo um princípio de solidariedade, cabal para deixarmos o conhecimento-regulação e agirmos com base no conhecimento-emancipação. Ainda como nos lembra o autor, um dos desafios do conhecimento-emancipação é encontrar alternativa para a “sociedade dominada por aquilo que São Tomás de Aquino designa por habitus principiorum, o hábito de proclamar princípios para não ter de viver segundo eles”. Os exercícios de curadoria, as pesquisas, os processos de criação em dança, a experiência no presente, ser conhecedor daquilo que nos anima ou nos oprime são possibilidades de transitar da ação conformista à ação rebelde. A mola propulsora para a ação rebelde é saber que as estruturas são dinâmicas e que o dissenso é necessário, pois é capaz de estimular a multiplicidade de pensamentos que podem resultar em configurações de dança distintas. Ao olharmos para as pesquisas dos coreógrafos e dançarinos, as configurações de dança urdidas em Minas, os festivais, mostras, encontros, teatros, espaços alternativos e a produção bibliográfica, podemos ver a diversidade das produções de conhecimento propostas. A recursividade dessas ações e o linguajar sobre elas inter-relacionando os vários domínios do conhecimento é a base para fortalecer essa experiência no presente. Isso é possível em dança com a condição básica de constituir os espaços físicos e conceituais que possibilitem a recursividade das interações. É isso que se expande, e também o conhecimento-reconhecimento dessa potência. Aqui não será possível descrever todos os eventos que atuam nessa direção, mas eles estão cadastrados no mapeamento da Base de Dados do Instituto Itaú Cultural, disponível no site da instituição. Para dispor de uma panorâmica, além dos eventos citados, destacam-se também os seguintes: 1,2 na Dança, Fóruns Por que Dança? e Horizontes Urbanos, empreendidos pela produtora Jacqueline de Castro; Projeto Conexões Quik; Solilóquio, desenvolvido pela Zikzira Teatro Físico. Também o Momentum, Improvisões e o Laboratório Intertextual, que integraram o extinto Projeto de Ação dos Teatros Municipais e da Prefeitura de Belo Horizonte.
Descentralização da dança do interior: Ipatinga, Uberlândia, Juiz de Fora, Viçosa Segundo os estudos da Fundação João Pinheiro, órgão de pesquisa estatal que realiza periodicamente análises dos dados da Lei Estadual de Incentivo à Cultura4, a taxa de aprovação e captação de projetos do interior do estado é crescente desde 2005. Nessa época, foi instituída uma maior pontuação para os projetos do interior a fim de promover uma descentralização dos recursos. Também a presença das empresas nos municípios reverte a aplicação das verbas de patrocínio para as ações culturais de suas regiões específicas. Ipatinga, cidade localizada na região do Vale do Aço, é um exemplo da atuação da Usiminas e do Centro Cultural Usiminas. Na área da dança, surgiram novas companhias, com sedes próprias, promovendo uma programação com encontros, residências, oficinas, além da continuidade do Encontro de Artes Cênicas (ENARTCi), realizado pela Hibridus Cia. de Dança desde 2003. A Flux Cia. de Dança realizou, em 2009, a segunda edição do projeto de residência Corpografias. Em Uberlândia, o Festival de Dança do Triângulo realizará em 2010 sua 22ª edição. Por ser um evento promovido pela Secretaria Municipal de Cultura, fica atrelado às propostas para cultura de cada gestão. Nas duas últimas edições, sua programação foi ampliada; além dos trabalhos convidados, foi lançado um edital nacional para inscrições de projetos a serem selecionados por uma curadoria externa. Outra forte referência em Uberlândia é a coreógrafa Fernanda Bevilaqua, diretora da Uai q Dança. Além das produções do grupo, Bevilaqua promoveu a terceira edição do Encontro Olhares sobre o Corpo, com várias parcerias, entre elas com Wagner Schwartz, contemplado na primeira e na quarta edição do Rumos Itaú Cultural Dança. Vanilton Lakka, que também esteve no Rumos em 2007, realizou o Circuladança em 2008, evento de circulação de diversos trabalhos pelo interior do estado. Lakka tem apresentado sua produção em diversos festivais e mostras de dança pelo Brasil e por outros países. Outro grupo local que já conquistou o cenário internacional europeu é o Balé de Rua de Uberlândia. Inicialmente formado por jovens atuantes nas mais diversas profissões, desde 2000 o grupo se profissionalizou e investe em um projeto social de formação para jovens de baixa renda. Em Juiz de Fora, em 2009 foi realizada a primeira edição do Festival de Dança de Juiz de Fora, promovido pela Fundação Cultural Alfredo Ferreira Lage (Funalfa) em parceria com os coreógrafos e dançarinos da cidade. A Cia. Adversa, de Letícia Nabuco, inaugurou sede com espaço para ensaios, apresentações e um café. Em 2010, teve início o curso de especialização promovido pela Faculdade Angel Vianna, uma demanda dos profissionais e educadores que atuam em projetos sociais de arte e educação na cidade. Outras companhias, como a Cia. Inércia Zero, dirigida por Sylvia Renhe, e a Cia. Ormeu, dirigida por Daniela Guimarães, a segunda sediada em Cataguazes, destacam-se pela continuidade de suas pesquisas em dança contemporânea que, ao longo do tempo, têm formado novas gerações na região. Em Viçosa, a Mostra Nacional de Dança-Teatro, realizada na Universidade Federal de Viçosa, também se dedica a realizar um mapeamento da dança-teatro no Brasil e reúne coreógrafos e pesquisadores de vários estados em torno do assunto. Assim, partindo de uma temática estabelece-se um forte ponto de convergência, e, com a abertura de novos cursos de graduação em dança no Brasil, encontros sobre assuntos específicos tendem a aumentar. 4
Análises dos dados da Lei Estadual de Incentivo à Cultura realizadas pela Fundação João Pinheiro
compõem os Cadernos CEHC – Série Cultura e são disponibilizadas em arquivos PDF no site da Secretaria de Estado de Cultura. Disponível em: www.cultura.mg.gov.br.
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Uma análise sobre a descentralização da dança no interior demandaria muito mais tempo e envolvimento de pesquisa. Por isso, proponho com este breve relato apenas apontar que a formação desses novos centros de pesquisa em dança tem gerado e ampliado conectividades possíveis em dança. As referências interligam-se por afinidades, pela necessidade de promover as conversações em uma área que também se especifica e, consequentemente, se torna mais complexa. E será tão ou mais complexa de acordo com a habilidade e a disponibilidade de gerar os espaços indispensáveis: as traduções, ou seja, as conversações com o outro, com as diversas configurações de dança, tendo como perspectiva a produção de conhecimento que emerge com base na continuidade e na congruência de nossas interações.
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Dança contemporânea em Vitória (ES)
Por uma ampliação dos espaços de compartilhamento O mapeamento no Espírito Santo foi realizado nas cidades de Vitória e Vila Velha, com enfoque na produção em dança contemporânea dos profissionais que resistem apesar da pouca visibilidade. Os trabalhos produzidos têm raras chances de circular fora do estado e cada vez mais os coreógrafos e dançarinos estão engajados em atividades educativas. Tal dedicação, muitas vezes, acaba se sobrepondo à possibilidade de levar adiante o trabalho das companhias de dança, seus processos de criação e a difusão das obras produzidas. Quando se trata de uma decisão profissional, não é um problema ou uma questão. No entanto, quando não parece haver outra opção, quando os editais e modos de financiamento se tornam mecanismos que, em vez de estar comprometidos com o trabalho artístico, exigem atividades pedagógicas, temos aí um problema. Isso não é exclusividade do Espírito Santo, mas uma questão nacional que ainda carece ser debatida e guiada de maneira mais eficaz. Paira um entendimento sobre arte e engajamento social, ou melhor seria dizer um mal-entendido, de que a arte deva cumprir uma função que não lhe pertence. A arte já é política por ser uma com-divisão da experiência de existir, uma partilha sem objetos, citando o filósofo italiano Giorgio Agamben (2009). Ainda sobre as relações entre arte e política, o filósofo francês Jacques Rancière (2005, p. 26) esclarece: As artes nunca emprestam às manobras de dominação ou de emancipação mais do que lhe podem emprestar, ou seja, muito simplesmente, o que tem em comum como elas: posições e movimentos dos corpos, funções da palavra, repartições do visível e do invisível.
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A falta de espaços para movimentos de compartilhamento No Espírito Santo, com a interrupção do Vitória Brasil Dança, ainda não surgiu um evento nacional de dança capaz de contribuir para ampliar os espaços de compartilhamento com as danças e dançarinos de outros estados e países. Cada companhia realiza isso por si, entre elas ou com profissionais convidados de outros estados. No entanto, parece ainda ser pouco para estabelecer as conectividades que incitam a autonomia e a expansão dessa produção. Aquilo que não troca padece.
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Apesar da aridez do panorama da dança contemporânea capixaba, a maioria dos profissionais cadastrados em 2000, no primeiro mapeamento Rumos Itaú Cultural Dança, segue adiante. A dificuldade é nítida tanto pela descontinuidade das produções quanto pelos relatos de insatisfação dos coreógrafos e dançarinos. Há uma constante interrupção, tentativas de recomeço e guinadas nos percursos, um heroísmo em manter uma companhia com ensaios regulares e uma continuidade em suas produções. Em geral, como de praxe no contexto da dança, muitos profissionais conciliam suas atividades entre o trabalho com as companhias e a educação. A Fafi Escola de Teatro e Dança, da Prefeitura de Vitória, oferece cursos livres e curso técnico em artes e agrega vários dos profissionais mapeados na dança. Em 2009, a atual direção da Fafi lançou o Grupo de Dança da Fafi, formado por alunos da escola e dirigido por dois professores, um de técnica clássica e outro de contemporânea. O grupo tem como objetivo buscar uma excelência que possa representar a escola nos mais diversos eventos. Que isso não se confunda apenas com virtuosismo e técnica clássica, pois se trata de uma tendência dominante das academias de dança na cidade. Se essa noção se propagar, poderá abafar ainda mais o já sufocado contexto da dança contemporânea em Vitória. Tendo em vista o caráter de formação do Grupo de Dança da Fafi, será crucial que ele fomente também o incentivo ao dançarino criador, a pesquisa e a possibilidade de experimentar técnicas, além da clássica, que possam ser instigantes para a proposição da diversidade das configurações de dança produzidas.
Companhias há duas décadas e há dois anos na cena do Espírito Santo Na invenção e manutenção de condições de continuidade para a dança contemporânea capixaba, citarei os profissionais e companhias que mantêm uma regularidade de produção em dança em Vitória. São elas: Cia. Mitzi Marzutti (1986), Cia. Teatro Urgente (2003), Cia. Einki (2001), Homem Cia. de Dança (1998), Cia. In Pares (2003) e Urucum Dança-Teatro (2007). As produções dessas companhias têm sido viabilizadas pelas edições do Prêmio Klauss Vianna e pelos seguintes incentivos disponíveis no Espírito Santo: Lei Municipal Rubem Braga (Vitória); Editais da Secretaria Estadual de Cultura (Secult), que contemplam projetos de residência artística e de circulação pelo estado; Lei Chico Prego (região da Serra) e Lei Vila Velha (Vila Velha). Em relação ao mapeamento anterior, realizado em 2006, o contexto da dança contemporânea capixaba não teve grandes modificações. Essa avaliação pode ser superficial e resultante do meu distanciamento da dinâmica da produção da dança daquele estado. Apenas de três em três anos, em cada nova edição do Rumos Itaú Cultural Dança, me dedico a realizar entrevistas e a pesquisar esse contexto, para mim tão distante. Sendo assim, não acompanho o dia a dia de desenvolvimento dos trabalhos artísticos, as demandas da área, as mostras e tempo-
radas de dança, enfim, sou uma estrangeira no Espírito Santo. Mas, nestes dez anos de esparsa convivência com alguns coreógrafos e dançarinos de Vitória, foi criado um espaço mínimo de relação no qual podemos trocar as novidades mais contundentes do instante específico do encontro. Por isso as impressões aqui relatadas baseiam-se nessas poucas conversas e nos dados que foram levantados e atualizados para o mapeamento Rumos Itaú Cultural Dança 2009-2010.
Agradecimentos Agradeço a disponibilidade dos coreógrafos: Marcelo Ferreira, Mitzi Marzutti, Bianca Corteletti, Gil Mendes, Deia Carpanedo e Paulo Fernandes. E, também, ao blog Teatro Capixaba5, que foi um importante elo durante a pesquisa para me manter informada sobre as estreias e produções de dança no Espírito Santo.
149 Referências bibliográficas AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo? E outros ensaios. Chapecó: Argos, 2009. AVELLAR, Marcelo Castilho; REIS, Glória. Pátio dos milagres: 35 anos do Palácio das Artes, um retrato. Belo Horizonte: Secretaria de Estado de Cultura de Minas Gerais/Fundação Clóvis Salgado, 2006. CASTRO, Eduardo Viveiros de. Encontros. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2008. RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível: estética e política. São Paulo: Editora 34, 2005. SANTOS, Boaventura de Souza. A crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência. São Paulo: Cortez, 2007.
Referências eletrônicas Estudos sobre a geração de trabalho e renda a partir da utilização dos mecanismos de incentivo à cultura em Minas Gerais. Belo Horizonte: Secretaria de Estado de Cultura/Fundação João Pinheiro/Centro de Estudos de Políticas Públicas, 2009. 102 p. Disponível em: www. cultura.mg.gov.br. Acesso em: 1 jul. 2010. Fórum Internacional de Dança. Disponível em: www.fid.com.br. Blog Teatro Capixaba. Disponível em: http://teatrocapixaba.blogspot.com. 5
Blog Teatro Capixaba. Disponível em: http://teatrocapixaba.blogspot.com.
Inventário, documentação, cartografia, mapeamento. Como é o nome disso?
Dança contemporânea Minas Gerais (2010) 1. Companhias. Grupos. Coletivos. Coreógrafos. Coreógrafas. Dançarinos. Dançarinas. Companhias: 1970-1980: Grupo Corpo – Cia. de Dança Palácio das Artes – 1º Ato – Camaleão – Meia Ponta – G.O.M. – Grupo Oficcina Multimédia Solos e duos: Dudude Herrmann – Paolla Retore – Marcelo Gabriel e Adriana Banana/Cia. de Dança Burra – Ana Virgínia Guimarães – Marcos Paulo Rolla Companhias: 1990-2000: Cia SeráQuê? – Quik – No ar – Cia. MN – Marcenaria Interior de MG: Balé de Rua; Uai q dança (Uberlândia) Coletivo: Clube Ur=Hor Solos e duos: Marcelo Gabriel – Tarcísio Ramos Homem – Margô Assis – Thembi Rosa – Wagner Schwartz Companhias: 2000-2010: Mimulus – Zikzira – Cia. Suspensa – Ideia de Dança – Ballet Jovem – Projeto Dança Jovem – Trama Interior de MG: Hibridus – Flux– Meia (Ipatinga) – Cia. Adversa (Juiz de Fora) – Ormeu (Cataguazes) Coletivos: Movasse – M.E.I.O. – Vagabundagem Dance Uncia Solos: Vanilton Lakka – Tuca Pinheiro – Claúdia Lobo – Renata Ferreira – Jacqueline Gimenes 2. Espetáculos. Performances. Instalações. Projetos. Proposições. Pesquisas. (2007-2009) Ímã – De Esconder pra Lembrar – Dança Precária – Piranhas – Faladores – Disyquilibrio – 22 Segredos – Dolores – Carne Agonizante – Kronosmaterial – E se... – Enterre o Seu Personagem – Eu Vós Liberto – Entre Fábulas do Agora – Geraldas e Avencas – Schubert – Parcours Q’eu Isse – Não Me Fales de Freddy Krueger – Mulher, Mulheres – Sinal de Vento – Quimeras – Quando o Sol Brilha Mais Forte a Sombra É Mais Escura – Interferência Inacabada... – Preste Atenção no Ruído ao Fundo – Vendas Corpo – Lugar-comum – Verdades Inventadas – Curvas de um Quadrado – Continue Reto, Sempre em Linha Reta! E Vai como Deus... – Desenho – Um Abraço para quem Fica – Fito pelo Fino da Finestra – Creuza – Esquiz – 1920 – Desenquadrando Euclides Prop.posição ≠ 2 – Double Face – Tá Passando... 3. Fórum. Festivais. Eventos. Encontros. Conversas. (2007-2009) FID – Ecum – 1,2 na Dança – Horizontes Urbanos – Ciclo de Confluências – Conexões Quik – Observatório – Festival de Inverno da UFMG – ENARTCi – Corpografias – Circuladança – Festival de Dança do Triângulo – Olhares sobre o Corpo – Verão Arte Contemporânea – Improvisões – Fóruns: Por que dança? – Seminário e Mostra Nacional de Dança-Teatro 4. Livros. Catálogos. Textos. Reflexões. Documentação. Memória. (2005-2009) KATZ, Helena. Um, dois, três. A dança é o pensamento do corpo. Belo Horizonte: FID, 2005. BRITTO, Fabiana Dultra. Temporalidade em dança: parâmetros para uma história contemporânea. Belo Horizonte: FID, 2008. BANANA, Adriana (Org.). FID 2009: Etitude. Belo Horizonte: s.n., 2009. BANANA, Adriana; LOBO, Carla; SIMÕES, Mônica (Org.). FID 2008: SULREAL Por uma epistemologia sul. Belo Horizonte: s.n., 2008. LOBO, Carla. Diário de produção. Belo Horizonte: FID, 2009. MEDEIROS, Ione de. Grupo Oficcina Multimédia: 30 anos de integração das artes no teatro. Belo Horizonte: s.n., 2007. MENCARELLI, Fernando Antônio; ALVARENGA, Arnaldo Leite de; MALETTA, Ernani de Castro; ROCHA, Maurílio Andrade. Corpos artísticos do Palácio das Artes: trajetórias e movimentos: companhia de dança; orquestra sinfônica; coral lírico. Belo Horizonte: Secretaria de Estado de Cultura de Minas Gerais/Fundação Clóvis Salgado, 2006.
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Ficha TĂŠcnica
Cartografia Rumos Itaú Cultural Dança 2009-2010 Organização Christine Greiner Cristina Espírito Santo Sonia Sobral Coordenação-Geral Núcleo de Artes Cênicas Projeto Gráfico Estevan Pelli Direção de Arte Jader Rosa Tradução “O que as coisas são e o que parecem ser” – Carla Nejm “Videodança na América Latina: um testemunho” – Carmen Carballal Revisão Kiel Pimenta Produção Editorial Jahitza Balaniuk
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Centro de Documentação e Referência Itaú Cultural Cartografia Rumos Itaú Cultural Dança: mapas e contextos / organização Cristine Greiner, Cristina Espirito Santo e Sonia Sobral. - São Paulo: Itaú Cultural, 2010. 156p. ISBN 978-85-7979-010-2 1. Artes cênicas. 2. Dança contemporânea. 3.Brasil. 4. Rumos Itaú Cultural Dança. I. Título. CDD 792.8