Todos os Gêneros 2017

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TODOS OS GÊNEROS MOSTRA DE ARTE E DIVERSIDADE 13 – 25 JUN 2017


CENTRO DE MEMÓRIA, DOCUMENTAÇÃO E REFERÊNCIA - ITAÚ CULTURAL TODOS OS GÊNEROS: MOSTRA DE ARTE E DIVERSIDADE / ORGANIZAÇÃO ITAÚ CULTURAL . - 4. ED. – SÃO PAULO : ITAÚ CULTURAL, 2017. 68 P. : IL. ISBN 978-85-7979-096-6 1. GÊNERO. 2. SEXUALIDADE. 3. IDENTIDADE. 4. ARTES CÊNICAS. 5. AUDIOVISUAL. 6. EXPOSIÇÃO DE ARTE – CATÁLOGO. I. INSTITUTO ITAÚ CULTURAL. II. TÍTULO. CDD 306.76


TODOS OS GÊNEROS MOSTRA DE ARTE E DIVERSIDADE 4ª EDIÇÃO

SÃO PAULO | 2017

REALIZAÇÃO


COORDENAÇÃO EDITORIAL

PRODUÇÃO GRÁFICA

Carlos Costa

Lilia Góes (terceirizada)

EDIÇÃO

SUPERVISÃO DE REVISÃO

Thiago Rosenberg

Polyana Lima

Victória Pimentel REVISÃO CONSELHO EDITORIAL

Ciça Corrêa (terceirizada)

Ana de Fátima Sousa

Karina Hambra (terceirizada)

Carlos Gomes Galiana Brasil

COLABORARAM NESTA PUBLICAÇÃO

SUPERVISÃO DE PROJETO GRÁFICO

Alex Bencke

Jader Rosa

Fabiana Moraes

Liane Iwahashi

Ika Eloah Jota Mombaça

PROJETO GRÁFICO

Lam Augusto de Matos

Estúdio Claraboia (terceirizado)

Linn da Quebrada Patrícia Borges da Silva

PRODUÇÃO EDITORIAL

Richner Allan

Bruna Guerreiro

Teodoro Albuquerque


EDITORIAL

A cultura fascina porque é diversa. A arte instiga porque contesta o que é dado, vendido ou imposto como padrão. É nesses campos nos quais a liberdade é a regra que Todos os Gêneros: Mostra de Arte e Diversidade convida o público para pensar sobre questões de identidade de gênero, sexualidade, corpo e afetividade. Em sua quarta edição, que ocorre entre os dias 13 e 25 de junho de 2017, o evento traz espetáculos de teatro, dança e música, performances, sessões de filmes e debates, entre outras atividades, todas gratuitas. A agenda completa pode ser conferida no final desta publicação – que apresenta ensaio fotográfico e artigos focados em alguns dos temas abordados na programação, como o universo da intersexualidade e o da transgeneridade. Compõe ainda as páginas a seguir uma seleção de poemas que integram a Antologia Trans. Recém-publicada, a obra reúne o trabalho de alunos das oficinas de poesia promovidas pelo Cursinho Popular Transformação, espaço de educação localizado na capital paulista e voltado para pessoas trans, travestis e não binárias. Itaú Cultural


ENSAIO Lam Augusto de Matos FOTOS Richner Allan


Para Lam Augusto de Matos, coordenador nacional do Instituto Brasileiro de Transmasculinidade (Ibrat), os homens trans representam uma das parcelas mais invisíveis do já invisibilizado universo LGBTQIA. “Sabe-se, por exemplo, que mais de 40 travestis e mulheres transexuais foram executadas no Brasil entre janeiro e abril de 2017”, diz ele, referindose a dados divulgados pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), “mas nada se fala sobre a morte de homens trans”.


“Nossa identidade de gênero é o nosso reflexo mais verdadeiro”, continua Lam. “No entanto, assim que apresentamos um documento ainda com o nome de registro, essa nossa identidade cai por terra, nossa vida desaparece. Quando sabem da nossa transexualidade, imediatamente somos tratados no feminino, pensam que nossa genitália dita quem realmente somos.”


“Uma das grandes funções do homem trans – e de toda a população de travestis e transexuais – é mostrar que podemos, sim, sair daquelas caixinhas que insistem em definir o que e quem somos. A ressignificação dos corpos é algo revolucionário para a nossa sociedade. Eu sou um homem – sem falo, mas com um corpo completo de dores e prazeres. Isso faz de mim a minha própria revolução, uma reinvenção do que é ser homem.”




ENTRE OS SEXOS E DIANTE DAS CÂMERAS

Alex Bencke, pessoa transmasculina e intersexo, é militante independente pelos direitos das populações trans e intersexo.


A intersexualidade encontra no campo das artes uma forma de deixar de ser um assunto pouco discutido na sociedade contemporânea

Diferentemente das demais condições representadas na sigla LGBTQIA (lésbicas, gays, bissexuais, transexuais/transgêneros, queer, intersexos e assexuais), a intersexualidade é determinada exclusivamente por fatores biológicos. Não é uma questão de identidade de gênero, de práticas sexuais ou afetivas: a pessoa intersexo é aquela que possui características sexuais e/ou reprodutivas que não podem ser categorizadas no padrão binário – segundo o qual os corpos são diádicos, classificados como femininos ou masculinos, fêmeos ou machos, mulheres ou homens. Assim como transexualidade, intersexualidade é um termo guarda-chuva – refere-se a pessoas que, embora apresentem características em comum, podem ser muito diversas entre si. São mais de 40 estados intersexo conhecidos atualmente, e esses vários corpos possíveis se diferenciam do padrão binário em decorrência de diferentes combinações cromossômicas. Há, por exemplo, casos de indivíduos que, designados como homens ao nascer, desenvolvem seios na puberdade, ou de pessoas que foram socializadas como mulheres e apresentam barba na adolescência. Também pode acontecer, entre muitas outras situações, de a pessoa não possuir nenhuma glândula sexual – nem ovários nem testículos.


Tradicionalmente, o aspecto que é de fato levado em conta para determinar se uma criança será criada como mulher ou como homem é a sua genitália. Porém, em casos como a síndrome de insensibilidade androgênica, o recém-nascido pode apresentar, externamente, algumas características ditas femininas, embora possua a composição genética de um corpo considerado masculino. Muitos desses indivíduos acabam sendo socializados como mulheres e são submetidos a procedimentos cirúrgicos antes de terem idade para consenti-los.

O DIÁLOGO ENTRE AS ARTES E AS QUESTÕES DE GÊNERO, SEXUALIDADE E AFETO É ALGO FUNDAMENTAL PARA QUE AS PRÓXIMAS GERAÇÕES ENCAREM COM NATURALIDADE AQUELES QUE NASCEM, AMAM E VIVEM DE ACORDO COM AS SUAS PRÓPRIAS REGRAS

Nas últimas décadas, têm-se atingido importantes avanços na direção de uma sociedade que não trata os corpos intersexuais como doentes ou anômalos. Em conjunto com entidades como a Organização das Nações Unidas (ONU), iniciativas como a Intersex Society of North America (Isna) pressionam governos e associações médicas para a criação de leis e práticas que protejam a autonomia e a integridade física de crianças e jovens intersexo.

O MOTOR E O FIM

As artes têm papel fundamental na popularização desse debate. O potencial de questionar os padrões sociais está, por exemplo, tanto numa pintura que representa um corpo diverso quanto numa obra produzida pelas mãos de alguém que a


sociedade escolhe não ver. Esse é o caso de Lili Elbe (18821931), artista plástica cuja trajetória é narrada no filme A Garota Dinamarquesa (2015), de Tom Hooper. Durante a primeira década do século passado, Lili atraiu os olhares da Europa em decorrência de seu talento, mas também de sua história individual. Pessoa intersexo com a síndrome de Klinefelter, ela foi socializada para ser um homem e ficou famosa com o nome de Einar Wegener. Apenas após o seu casamento, com a também artista plástica Gerda Gottlieb, Lili iniciou a transição para o gênero feminino, tornando-se a primeira mulher na história a ser submetida ao processo cirúrgico de readequação genital. Apesar de a intersexualidade ser um aspecto central de sua vida, tão importante quanto a sua transgeneridade, o longa-metragem de 2015 omitiu esse fato, perdendo uma grande oportunidade de trazer luz ao tema. Já XXY (2007), de Lucía Puenzo, é um trabalho de ficção que expõe a intersexualidade de forma crua e o preconceito em sua face mais cruel. O filme conta a história de Alex, uma adolescente intersexual que é execrada pela população da pequena cidade uruguaia onde mora e se vê repelida pelo garoto por quem se interessa quando este descobre como é o seu corpo. Apesar da crueldade retratada, XXY é uma obra sensível sobre as descobertas da sexualidade e do corpo e as escolhas que o amadurecimento exige de todos. Histórias como essas trazem o debate sobre a intersexualidade para o cotidiano das pessoas e apontam a necessidade de dar voz a indivíduos frequentemente invisibilizados. Elas nos mostram que o diálogo entre as artes e as questões de gênero, sexualidade e afeto é algo fundamental para que as próximas gerações encarem com naturalidade aqueles que nascem, amam e vivem de acordo com as suas próprias regras, sem que padrões sociais convencionados pela maioria lhes sejam impostos. A autonomia, a liberdade e a dignidade humanas, afinal, devem ser sempre o motor e o fim das artes e do pensamento criativo.


Quem é ela Olha quem é ela, homem ou mulher, todos veem, mas não sabem identificar por causa do corpo e a meio a meio mistura que há nela: homem e mulher, o que ela quiser, foda-se quem não acredita. PATRÍCIA BORGES DA SILVA

Do cu Do cu sai cigarro. O afeto maior do mundo dentro da buceta desprovida de coração. Do cu sai amor sai paixão sai fogo tempestade sai ódio sai bosta sai carinho sai ilusão sai opinião. PATRÍCIA BORGES DA SILVA


Literatura do corpo Picumã, cílios de garota, prótese, eu quero prótese, neca, Pirelli, edi, e unha de boneca. Corpo de pajubá, travestilidade comunica, travestidade comunista. IKA ELOAH


FALAR DE, FALAR POR, FALAR COM Fabiana Moraes é jornalista e professora do curso de comunicação social da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Autora de pesquisas acadêmicas e reportagens voltadas para a questão da hierarquização social com foco na (in)visibilidade de grupos vulneráveis – gays e travestis, negros, mulheres –, recebeu três prêmios Esso, entre outros.


Ao abordar a realidade alheia, deve-se ter em mente que cada pessoa interpreta o mundo – e as intenções dos outros – à sua maneira, de acordo com a sua própria história

Dois mil e onze. Estava desligando o computador, final de um dia de trabalho na redação, quando um colega se aproximou. “Você checou seu Twitter recentemente?” Respondi que não, já intrigada com o tom grave do rapaz. “Bem, acho que você deveria dar uma olhada lá”, disse ele. Voltei para o monitor e acessei a minha conta. As notificações pipocavam, meu nome sendo mencionado várias vezes. Coladas a ele, palavras como homofóbica, escrota, filha da puta, falsa – e um link que me levava a um vídeo postado no YouTube no qual aparecia Luisa Marilac, naquele momento a travesti mais famosa do Brasil. Ela surgia ao lado de um computador em que se via uma página do jornal no qual eu trabalhava. Apontava para a matéria que eu escrevera sobre ela dias antes – “Luisa Marilac e o sonho de ser aceita” – e repetia, enfurecida, os termos que seus seguidores me dirigiam nas redes sociais. Homofóbica. Escrota. Filha da puta. Falsa.


NO QUE EU VI AMOR, ELA VIU MAIS PORRADA. NO QUE EU VI APROXIMAÇÃO, ELA VIU MAIS DISTÂNCIA

A ira tinha um motivo: o termo aceita do título da matéria – palavra que havia sido usada pela própria entrevistada ao me contar sobre um abraço recebido de uma criança que a reconhecera no meio da rua. A garota era uma dos 3 milhões de pessoas que até então haviam visto o despretensioso vídeo que transformara Luisa, do dia para a noite, em uma celebridade da internet – o vídeo dos “bons drinques”. “Eu nunca recebi tanto carinho em minha vida. Você não tem noção de como isso está sendo importante para mim, como é bom ser aceita.” Essa frase de Luisa me tocou fundo: eu ouvira, em nossa breve conversa, ela falar das agressões sofridas durante a sua vida e de episódios de quase morte – ela chegou a levar sete facadas numa ocasião, perdendo parte de um pulmão. Naquele momento, eu já havia escrito duas longas reportagens sobre mulheres trans – a primeira, de 2010, a respeito de travestis do Recife; a segunda, de 2011, sobre uma mulher transexual moradora do agreste de Pernambuco chamada Joicy. Naquele momento, também, uma colega, Patrícia Gomes, mulher trans que eu conhecera fazendo a primeira reportagem, havia morrido. A matéria sobre Luisa foi dedicada justamente a ela. A grande questão é que o título também tocou fundo em Luisa, mas por motivos completamente diferentes dos meus. Sem conseguir ler a íntegra do texto, ela interpretou o aceita dito por ela mesma – mas ali recontextualizado, midiatizado – como mera licença à sua existência, uma condescendência à sua presença no meio social. No que eu vi amor, ela viu mais porrada. No que eu vi aproximação, ela viu mais distância. Era completamente compreensível que Luisa reagisse daquela maneira: para além de todas as possibilidades de interpretação que nascem de um texto, ela, com a


enorme atenção que estava recebendo, já não se encontrava disposta a negociar “ser aceita”. Com Luisa – e com tantas outras pessoas com as quais eu tive contato na condição de repórter ou pesquisadora – aprendi que nossas melhores intenções estão ancoradas, antes de tudo, em um repertório pessoal que pode facilmente não ser compartilhado pelas pessoas com as quais conversamos, as pessoas que analisamos, pesquisamos, representamos.

ÚTIL DESENTENDIMENTO

O desacordo discursivo que surgiu entre mim e Luisa tinha relação com o fato de eu, mulher cisgênera nordestina preta, não caminhar sobre calcanhares similares aos dela, mulher trans sudestina branca? Será que não? Eu deveria nos ler por esses códigos corporificados, geográficos, que nos separam, ou por aquilo que nos une – nossa condição feminina, nossa origem social? De lá para cá, com a popularização desse necessário e urgente debate, o falar do outro foi muitas vezes visto – e de fato praticado – como falar pelo outro, no lugar do outro. Questionar essa enorme diferença de posições já é, de saída, um ganho precioso na seara da produção de representações, estas responsáveis por nossa mudez ou nosso grito. Essa discussão requer atenção contínua de quem fala e de quem é “falado”, com o esforço do primeiro para entender a assimetria historicamente estabelecida entre as duas posições – e nesse esforço deve haver, é claro, a tentativa de diminuir esse distanciamento.

O FALAR DO OUTRO FOI MUITAS VEZES VISTO – E DE FATO PRATICADO – COMO FALAR PELO OUTRO, NO LUGAR DO OUTRO. QUESTIONAR ESSA ENORME DIFERENÇA DE POSIÇÕES JÁ É, DE SAÍDA, UM GANHO PRECIOSO NA SEARA DA PRODUÇÃO DE REPRESENTAÇÕES


A tarefa não é fácil, principalmente quando os representados são pessoas que vivem em condições de pobreza extrema, seja ela material, seja afetiva – geralmente, há prevalência de ambas em um mesmo ambiente. Como eu, carinho e alimentação em dia, devo reagir quando uma jovem mulher, grávida e dependente de crack, explorada sexualmente, me pede dinheiro para cigarro ou conta que vai vender seu bebê? Como eu, carinho e alimentação em dia, devo reagir quando uma mulher trans me classifica como homofóbica, a despeito de minha busca pela promoção do contrário? É óbvio que a resposta não é fácil, mas nesse caminho fica claro que a mudança e a política vão ser produzidas justamente por meio desse desentendimento, como teorizou o filósofo Jacques Rancière.

SER AFETADO POR QUESTÕES QUE NÃO SÃO NECESSARIAMENTE NOSSAS É VITAL PARA O DESMANTELO DE DESIGUALDADES, VITAL PARA A PROMOÇÃO DO HETEROGÊNEO QUE TANTO NOS FALTA

Não é permitido a quem lida com o sensível do mundo ter medo ou horror a ele. Ao mesmo tempo, observar essa objetiva subjetividade não é deixar de perceber minha (sua) própria história e lugar no tabuleiro do cotidiano. Ser afetado por questões que não são necessariamente nossas é vital para o desmantelo de desigualdades, vital para a promoção do heterogêneo que tanto nos falta. Sem isso, construiremos ilhas de fala e continuaremos a manter confortáveis aqueles e aquelas que há tanto tempo determinam como nós – pretas, nordestinas, trans, pobres – devemos ser observados.


Nesse eterno work in progress, corporificar o discurso – “os indígenas que falem pelos indígenas”, “as mulheres negras que falem pelas mulheres negras” etc. – pode ser tão perigoso quanto o silenciamento, assim como assumir uma postura heroica de quem “dá a fala”. Novamente, falar de não pode ser confundido com falar por, e essa diferença, crucial em toda essa discussão, precisa ser entendida integralmente. Nisso se estabelece o exercício fundamental: ao falar de, nós podemos provocar a quebra de imagens/discursos que invariavelmente mantêm as coisas como elas são; ao falar de, podemos criar condições que tornem possível trazer não apenas essas novas imagens/discursos, mas também a chance de dividirmos o espaço no palco com os próprios representados. E aí passamos a falar com.

FALAR DE NÃO PODE SER CONFUNDIDO COM FALAR POR, E ESSA DIFERENÇA, CRUCIAL EM TODA ESSA DISCUSSÃO, PRECISA SER ENTENDIDA INTEGRALMENTE

Aliás, quando eles e elas também falarão sobre nós? E quando nós formos apontados, dissecados? São questões urgentes hoje, num mundo no qual é preciso deslocar as representações da pobreza – e deslocar, caminho sem volta, a pobreza das representações.



ENSAIO Linn da Quebrada FOTOS Richner Allan


Uma identidade não cabe em uma só palavra. Bicha, trans, preta, periférica, cantora, bailarina, performer... Linn da Quebrada usa essas e outras para se definir – e, vendo e ouvindo a artista paulista em suas apresentações e em seus clipes, fica claro que esses são só alguns dos muitos termos possíveis para se referir a ela. “A identidade se forma a partir do encontro”, diz Linn, que lançou em 2017 o seu primeiro álbum, Pajubá. “A partir do corpo. Da dúvida. Da experiência.” Em constante transformação, a artista vê no espelho apenas os limites, os contornos de quem ela realmente é – ou, em suas palavras, daquilo “que se está sendo. A pele, o pelo, a língua, a linguagem”.





Construção

Não, eu não sou um homem de verdade. Definitivamente não sou, nunca serei. Vou te falar o que eu sei sobre homem de verdade. É forma viva da sapiência e erudição que urina fora do vaso, senta de perna muito aberta no busão, te agride se sente que está perdendo o altar em que se fez macho, escarra forte no chão. Tá sempre calculando o nível de esculacho que vai direcionar sem dó para todo e qualquer ser vivo desviante da condição de submissão cis-heteronormativa. E eu juro que não tô gastando palavra bonita, que comigo o verbo é torto mesmo, como eu sempre fui.


Não, homem de verdade eu não sou, não. Eu saí de outra fornada. Eu nasci e fui criado na feminilidade, me ensinaram que a minha genitália foi criada para se invadir. Fecha a perna, garota. Não usa esse short perto de menino, é curto demais. Não adiantou. Eu tô vivendo a consequência da minha invasão desde 1999. Hoje eu tenho 23 anos Cês tão fazendo a conta? Porque homem que é homem de verdade, não faz. Nem da idade nem do consentimento. Palavra que vários deles não conhecem, tipo clitóris, orgasmo, fazer gozar e pode parar, para agora mesmo.


Nesse poema não tem espaço pra problematização nem pra feminista radical sorrir de escárnio pensando em socialização. Eu tô falando de masculinidade. Vamo combinar que é um problema maior que a vulnerabilidade da buceta. Até porque eu conheço homens de buceta que a cada dia que passa estão se esforçando pra ser homens de verdade jogando no vento a carta da criação, justificando incansavelmente a reprodução daquilo que os fez sofrer tanto quanto eu.


Pronto, falei. Saiu direto das minhas tetas indesejadas, da minha ausência de pelo e falo, da minha voz aguda, da baixa estatura, da inconfundível distribuição muscular, dos meus quadris largos, da minha racha. Tá bem aqui o boy que vai humilhar a masculinidade de vocês. E cês pode crer que a minha arma tá pronta e empunhada por mim e pelas minhas irmãs. Quem tá apontando é cada mina cis, trans e travesti, cada transviado, cada bicha, cada uma das pessoas afeminadas que vocês querem destruir.

TEODORO ALBUQUERQUE


O QUE NÃO TEM ESPAÇO ESTÁ EM TODO LUGAR Jota Mombaça é uma bicha trans não binária, nascida e criada no Nordeste do Brasil, que escreve, performa e faz estudos acadêmicos em torno das relações entre monstruosidade e humanidade, estudos kuir, giros descoloniais, interseccionalidade política, justiça anticolonial, redistribuição da violência, ficção visionária e tensões entre ética, estética, arte e política nas produções de conhecimentos do “sul do sul” globalizado.


É possível criar outros mundos, livres da violência do “cistema”, dentro deste mundo hipernormalizado e fundamentalmente transfóbico Para falar sobre os espaços LGBT(QIA+?…), este texto aponta antes o olhar para a questão do mundo – ou, mais precisamente, para o mundo como questão. Não falo de um olhar genérico, pretensamente objetivo. Muito pelo contrário: olhar para o mundo como questão, neste texto, significa olhar a partir de uma posição que põe em questão o próprio mundo; uma posição cujo olhar tem o efeito de repercutir e conjurar uma fratura, uma quebra fundamental na tessitura do mundo. Mas na carne de que criaturas se inscrevem as marcas dessa posicionalidade? Que movimentos de vida e morte precipitam esse olhar que enseja enxergar nas sombras a plenitude quebrada do mundo? As vidas trans – tanto em sua multiplicidade generosa quanto em suas brutais especificidades políticas – têm com este mundo uma relação de despertencimento radical, o que significa dizer, em termos práticos, que, do ponto de vista de todas as estruturas – jurídicas, políticas, estéticas, morais, epistêmicas etc. – que garantem coesão ao mundo social, nossas vidas não importam ou, para ir ao cerne, não existem. Falar da inexistência das vidas trans, contudo, não significa afirmar seu apagamento, mas, sim, confrontar as bases do mundo que o reproduz: afinal, em relação a que mundo nossas vidas inexistem? E, portanto, de que maneiras os modos trans de existir confrontam esse mundo no qual as vidas trans são “cistematicamente” empurradas para a inexistência?


FUGA PARA PLUTÃO

Indianara Siqueira, fundadora e uma das principais agitadoras da Casa Nem – projeto-casa que serve de abrigo, ponto de encontro e espaço de cuidado e estudo para a população trans do Rio de Janeiro –, num vídeo publicado em seu perfil do Facebook em 25 de maio de 2016, brinca: “Acho que a gente tem de se mobilizar agora pra construir uma nave pra fugir pra Plutão, uma fuga para Plutão”. A brincadeira de Indianara enuncia, com efeito, uma forte metáfora, ao mesmo tempo que especula quanto a um possível horizonte político para as vidas trans neste mundo: a mobilização para a fuga. Isto é, a afirmação de uma exterioridade em relação ao mundo e, nesse sentido, também uma negação deste mundo – que é o mundo do fundamentalismo heterossexual e da supremacia cisgênera. A fuga para Plutão metaforiza esse espaço exterior ao espaço hipernormalizado e fundamentalmente transfóbico do mundo, fazendo referência a um possível espaço de sobrevivência e experimentação com os gêneros e com a sexualidade para além da estrita moralidade hétero-cis-normativa. Assim, Plutão passa a ser também um dos nomes que podemos dar a esses espaços nas bordas e nos becos do mundo como nos foi dado a conhecer, desde onde é possível performar e fazer existir modos de vida que são reiteradamente produzidos como inexistentes pela violência sexopolítica e de gênero do “cistema”. Que esse seja também o nome de uma entidade planetária, de um lugar fora da Terra, torna a metáfora ainda mais poderosa: ao escolher falar sobre Plutões em vez de “espaços LGBT(QIA+…?)”, este texto aposta na possibilidade radical de imaginar e construir espaços onde é possível juntar-se àquelas criaturas que sentem não pertencer a este mundo e que, no limite, se recusam a isso por preferir afirmar a possibilidade de um mundo outro, não regulado pelo fundamentalismo cisgênero. A Casa Nem é um desses espaços. Fundada em 2016, como sede permanente do projeto Prepara Nem, cursinho gratuito de formação pré-vestibular para pessoas trans, e de outras tantas iniciativas educacionais – como o Costura Nem, ateliê


AO ESCOLHER FALAR SOBRE PLUTÕES EM VEZ DE “ESPAÇOS LGBT(QIA+…?)”, ESTE TEXTO APOSTA NA POSSIBILIDADE RADICAL DE IMAGINAR E CONSTRUIR ESPAÇOS ONDE É POSSÍVEL JUNTAR-SE ÀQUELAS CRIATURAS QUE SENTEM NÃO PERTENCER A ESTE MUNDO

de corte e costura –, culturais e festivas – como a festa Fuga para Plutão –, assim como abrigo para pessoas transexuais, travestis e transgênero em situação de rua no Rio de Janeiro, a casa se converteu num dos mais potentes espaços de resistência trans no Brasil. Mesmo sendo alvo constante da perseguição dos antigos gestores do espaço, além de outras investidas transfóbicas, a Casa Nem segue resistindo em muitas frentes como um espaço onde é possível imaginar, desejar e performar modos de vida socialmente interditados; como um pedaço de Plutão orbitando o Beco do Rato. Há, espalhados pelo Brasil, outros espaços como esse. Espaços intermitentes, que aparecem e somem e reaparecem em outros lugares, como um movimento descontínuo, mas ainda recorrente de criação de espaços voltados para a luta contra a morte social projetada como destino compulsório da maior parte das vidas trans – especialmente aquelas que se encontram na intersecção do empobrecimento e da racialidade. Na contramão do que a norma produz, esses espaços estão engendrando uma rede que multiplica possibilidades e propulsiona a ocupação de mais espaços; a instalação de outros Plutões no coração da Terra humana como um projeto de retomada e ressignificação da vida, do corpo, do poder, da liberdade e do gênero. É um projeto de mundo que está em disputa, e a importância desses espaços é justamente a de fazer vibrar, neste mundo, as forças, potências e vidas deste outro mundo onde as vidas trans importam.







TODOS OS GÊNEROS: MOSTRA DE ARTE E DIVERSIDADE ITAÚ CULTURAL

NÚCLEO DE ARTES CÊNICAS

NÚCLEO DE PRODUÇÃO DE EVENTOS

Gerência

Gerência

Galiana Brasil

Henrique Idoeta Soares

Coordenação

Coordenação

Carlos Gomes

Januário José Rolo de Santis

Produção

Produção

Jaqueline Vasconcellos

Andrea Martins de Carvalho

Natália Souza

Artur Gobbi (terceirizado)

Regina Medeiros

Érica Pedrosa Isadora Cristina Disero

NÚCLEO DE AUDIOVISUAL

Luan Lima Silva (estagiário)

E LITERATURA

Nadiele Fernanda da Silva Sobral

Gerência

Priscila Tavares de Moraes Mendes

Claudiney Ferreira

Thatiane Almeida (terceirizada)

Coordenação Kety Nassar Produção Jahitza Balaniuk


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