Uma Negra "Tinhosa"

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SÁBADO FORTALEZA - CE, - 12 DE NOVEMBRO DE 2016 WWW.OPOVO.COM.BR

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gas (doLuiz de Barros e do José Medeiros) na Embrafilme, acreditamos que seria tranquilo viabilizar o meu primeiro longa. Ledo engano. Foi negado porque a Embrafilme, sendo vinculada a um órgão federal, não financiaria jamais um tema tão caótico. Mas sou uma negra tinhosa. Não é qualquer atitude grotesca que me faz desistir do que acredito. Falar do amor de duas mulheres, para mim, era comungar com a vida.

Jáder Santana jader.santana@opovo.com.br

oi um filme russo, Ivan, o Terrível, de Serguei Eisenstein, que abriu os olhos de Adélia Sampaio para as possibilidades do cinema, ainda aos 13 anos. Voltou para casa deslumbrada. A trajetória que a levou até o lançamento de Amor Maldito, em 1984, considerado pela crítica especializada o primeiro filme lésbico do cinema nacional, também renderia uma ficção. Nessa trajetória, ela perdeu um filho vítima de violência policial, viu o marido ser preso e torturado pela ditadura militar, enfrentou preconceitos e, apesar deles, cresceu no ofício que escolheu: de telefonista em uma empresa de cinema, passou a continuísta, maquiadora, diretora de produção e assistente de direção. Dirigiu quatro curtas antes de filmar Amor Maldito, a história de uma mulher que se vê acossada pelo suicídio de sua parceira. Considerada culpada pela morte, é levada aos tribunais e massacrada pela justiça. Pela temática lésbica, o longa teve seu financiamento cancelado pela Embrafilme e precisou ser travestido de filme pornô para ser lançado. Adélia está em Fortaleza como uma das homenageadas do 10º For Rainbow. Amor Maldito será exibido hoje, às 16 horas, no cinema do Dragão do Mar. Na entrevista a seguir, a cineasta fala do que lhe foi negado por ser negra e mulher, e comenta altos e baixos de sua carreira.

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O POVO - O que te fez começar essa viagem pelo cinema nos anos 1970? Quais eram teus propósitos e sonhos? Adélia Sampaio - Aos 13 anos, entrando pela primeira vez em um cinema, o Metro Passeio, no Rio, para a estreia do filme russo Ivan, o Terrível, me encantei com a janela da tela e percebi que seria nessa janela que um dia eu me debruçaria. Encantos de uma adolescente chegada de uma cidadezinha de Minas Gerais. O sonho era me debruçar ou penetrar aquela janela. Pensei: vou fazer cinema. OP - Até aqui, foram quatro curtas, um longa e dois documentários. Olhando para essa produção, a senhora identifica algum traço agregador. Existe um tema universal na sua obra? Adélia - Sim. O tema dos meus filmes está diretamente ligado aos afetos e emoções do ser humano. Somos seres humanos, portanto somos universais. E por falar em humanidade, nada me angustia mais que os gestos negativos desses seres: violência, homofobia, preconceito, maldade. OP - Seu longa teve financiamento negado pela Embrafilme. Por que, mesmo assim, a senhora decidiu continuar com aquele projeto? Adélia - Como minha pequena empresa já tinha conseguido financiamento de dois lon-

OP - E como conseguiram realizar o filme? Adélia - Amor Maldito é o primeiro longa metragem realizado em sistema de cooperativa entre os técnicos e os atores. Para conseguir lançar, tivemos que travesti-lo de filme pornô. Um crítico da Folha de São Paulo chegou a lamentar que um filme tão sério tenha se travestido assim, mas era essa a saída na época. Depois, o filme entrou em outras praças, mas eu, como preta abusada, mantive o mesmo cartaz. OP - A senhora foi vítima da ditadura militar. Teve o marido preso e também sofreu na mão dos militares. É possível aprender algo desse trauma? Ressignificar a experiência e torná-la, de alguma forma, positiva? Adélia - Sim. Em 1956 perdi meu primeiro filho ao levar uma cacetada de um policial na Cinelândia. Tinha 17 anos e sofri muito. Meu marido foi preso em 1968, foi torturado e perdeu a audição. Na vida, tudo surge para um aprendizado. Escolhi a trincheira do cinema, e ela me possibilita deixar expressas mensagens para os jovens de hoje.

Responsável pelo primeiro filme lésbico do cinema nacional, Adélia Sampaio é uma das homenageadas do For Rainbow

UMA NEGRA “TINHOSA” Adélia sampaio Primeira negra a dirigir um longa-metragem no Brasil, Adélia Sampaio está em Fortaleza para participar do 10º For Rainbow e exibir Amor Maldito, primeiro filme lésbico do cinema nacional

OP - O cinema é, majoritariamente, um espaço de homens brancos e heterossexuais. O que a senhora deixou de fazer por ser negra e mulher? O que lhe foi negado? Adélia - Quase tudo. Muito me foi negado. Afinal, uma preta pobre tentar ser cineasta foge a compreensão de pessoas que se bitolam diante da vida. Cinema é uma arte elitista, eu sempre soube, mas fui à luta e me considero feliz, porque depois de tantos “nãos”, de tantos deboches, eu consegui chegar. OP - Em contrapartida, o que a senhora fez por ser negra e mulher? O que esta condição específica lhe trouxe e lhe propiciou? Adélia - Como não acreditavam nos meus objetivos de avançar, tive pista livre. Quando se deram conta, eu já estava lá.

Exibição de Amor Maldito, no 10º For Rainbow Quando: hoje, às 16 horas Onde: cinema do Dragão do Mar (rua Dragão do Mar, 81 - Praia de Iracema) Entrada gratuita Outras informações www.forrainbow.com.br/


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