Redenção Tardia para um Árabe Assassinado

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FORTALEZA - CE, SÁBADO - 29 DE OUTUBRO DE 2016

V&A LEU. ‘O CASO MEURSAULT’

PEDRO SALGUEIRO Redenção tardia para um árabe assassinado Inimigo pedrosalgueiro@opovo.com.br

Mas chama sobre chama, abismo sobre abismo, Trono sobre trono no meio do sono. W. B. Yeats

Vencedor do Prêmio Goncourt, romance revive os eventos narrados em O Estrangeiro, clássico de Albert Camus

DIVULGAÇÃO

Ele certamente não sabe por que o escolhi. Sequer desconfia, mas talvez chegue a imaginar depois de um certo tempo. Ou nem suponha que o maior motivo é não haver motivo — se houvesse, ele teria alguém em mente, um suspeito... ou vários, que nunca se imagina a quantidade de inimigos que um indivíduo semeia ao longo da vida. Sei apenas que o escolhi, já conhecendo bem suas reações: um sujeito inteligente, discreto, nem tão comportado nem tão rebelde. Abordei-o de madrugada, que é a hora em que estamos mais vulneráveis, totalmente alheios ao mundo aqui fora. Peguei em suas mãos com o devido cuidado para que não acordasse. Seguimos direto para o limite da cidade, apressando o passo com medo da claridade do dia... confiante de que faria tudo antes de o sol nascer. Não reagiu, mas por medida de segurança lhe amarrei pernas e braços, que não me arriscaria a dominá-lo sozinho. A venda nos olhos o deixou mais perdido, quando o coloquei no chão para que fosse adiante com seus próprios pés. Não titubeou, seguindo morro acima, passadas firmes, talvez desconfiado de que eu o observava atento. Intencionava não me dar pistas... e nem mesmo se esforçava para me ver; mantinha-se calmo, respiração regrada, tentando farejar meu cheiro. Nessa oportunidade não usei perfume e procurava ficar sempre a favor do vento, pois não podia também lhe dar pista alguma. Tudo teria que se resolver naquelas apressadas horas da madrugada. Segui-o pelos lados, um pouco atrás (movimentando-me bastante, para que imaginasse eu ser muitos) — até que ele parou à beira do barranco, como eu tinha planejado. Qualquer um menos esperto sequer teria vencido essa primeira etapa: com o tempo bem calculado, passei à sua frente, a poucos centímetros do abismo... à mostra em meu calcanhar a corda que certamente ele pensou ser a mesma que lhe atava as pernas e os braços.

ESTE COLUNISTA REVEZA ESTE ESPAÇO COM TARCÍSIO MATOS

RAYMUNDO NETTO

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Jáder Santana jader.santana@opovo.com.br

a narrativa de O Estrangeiro, obraprima do escritor franco-argelino Albert Camus publicada em 1942, o protagonista culpa o sol pelo assassinato que acabara de cometer. Meursault disparou cinco vezes contra um árabe uma para matá-lo, as outras quatro porque fazia calor, porque o brilho do sol o cegava. No romance de Camus, o árabe é reduzido à indigência. Jamais nomeado, desimportante para narrador e personagem, marca ponto de inflexão no pensamento existencialista do autor. Kamel Daoud, escritor argelino, “jornalista do ano” na França, se propôs a contar o outro lado dessa história. Em seu O Caso Meursault, publicado originalmente em 2013 e lançado agora no Brasil pela Biblioteca Azul, o árabe assassinado recebe nome e passado, em um exercício de imaginação que resgata e homenageia a escrita de Camus na mesma medida em que aprofunda as reflexões sobre as heranças pós-coloniais no continente africano. A história de Moussa - assim se chamava o árabe - é contada por seu irmão mais novo em um bar de Orã, com uma narrativa em forma de monólogo que emula o que foi feito por Camus em seu A Queda, de 1956. O personagem não esconde sua admiração pelo autor - “Ele parece usar toda a arte da poesia apenas para falar de um tiro” - e abundam os elogios ao seu estilo. Mas o narrador de Daoud tampouco camufla suas mágoas - “Meu irmão não teve direito a

N

Cena do filme O Estrangeiro, de 1967, baseado na obra de Albert Camus uma única palavra nessa história” - o que acaba por transformar O Caso Meursault em uma resposta, mais que uma releitura, ao livro do qual derivou. De personalidade explosiva e com reputação de sujeito irascível, a figura de Moussa é construída pelas lembranças do irmão em uma série de elucidações que se acumulam e culminam no crime narrado em O Estrangeiro. Esclarecido o passado, aparecem as consequências daquele ato: o luto que parece aderir aos dias da mãe, determinando sua velhice e marcando a imposição de um dever de reencarnação ao outro filho. “O meu corpo se transformou, então, no rastro do morto”, confessa. Mas o grande mérito de Daoud é permitir que a reconstrução do personagem flua enquanto serve de substrato para a contextualização dos anos que antecederam e sucederam - o período de luta pela independência arge-

lina, entre 1954 e 1962. Moussa foi assassinado em um dia de verão da década de 1940, quando o País ainda estava sob o domínio francês, mas a narração de seu irmão avança pelos anos, relembrando fatos e situando-os sempre “antes ou depois da independência”. “Sete anos de Guerra de Libertação tinham transformado a praia do seu Meursault em um campo de batalha”, afirma o narrador após esmiuçar seu passado colonial e reconhecer o sentimento de incerteza que guardava para o presente e futuro. Ele e sua mãe se apropriam de uma casa, abandonada às pressas por colonos, e é nesse cenário de saques e pilhagens que sobrevivem ao luto, em uma matemática que ora o alimenta e ora o rejeita. Em outro momento, o narrador coloca: “é por isso que farei o que se faz neste país depois da sua independência: pegar uma a uma as pedras das velhas casas dos colonos

e erguer com elas uma casa minha, uma língua minha”. É curioso que o autor, escrevendo em francês, tenha escolhido a língua do colonizador para si. Em seu romance de estreia, Daoud faz mais que um resgate, vai além da alforria ao clássico. O Caso Meursault mostra que a história sempre pode - e deve - ser revisada.

O Caso Meursault, de Kamel Daoud 168 páginas Preço: R$ 39 Biblioteca Azul


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