Uma Cidade de Poesia e Sarcasmo

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FORTALEZA - CE, QUINTA-FEIRA - 4 DE FEVEREIRO DE 2016

VIDA&ARTE LEU.

HENRIQUE ARAÚJO Uma cidade de poesia henriquearaujo@opovo.com.br

Tá tranquilo Depois de consultar os astros ou o setor de marketing, alguém decidiu que o “azul serenidade” será a cor de 2016 e MC Bin Laden, o seu rosto. Mas tinha que ser uma corzinha tão desenxabida? Diluído entre o celeste e o turquesa, o serenidade é um tipo de azul ensimesmado, meditabundo. Bem-intencionado, sim, mas, como diria Euclides da Cunha, neurastênico para tempos tão cheios de volúpia. Mas tudo bem. Escolher uma cor é mesmo difícil. Uma cor para definir um ano, então, mais ainda. Isso é tarefa para gênios como o funkeiro, que, num refrão pegajoso, sintetizou o zeitgeist de quem está de saco cheio de polarização. Em menos de três minutos de música, Bin Laden, que já se deixou fotografar fazendo hangloose ao lado da estátua de Carlos Drummond de Andrade, pespegou duas frases que a internet transformou em mantra: tá tranquilo, tá favorável. Mesmerizada com o exemplo de otimismo brejeiro, a audiência morre de amores pelo artista minimalista – nos videoclipes, Bin Laden aparece vestindo apenas calção, com as mamas expostas e as axilas à mostra – uma depilada; a outra, não. Essa dupla serenidade – do azul e do Bin Laden – me fez lembrar de Palhano. Na entrada da cidade, que fica no interior do Ceará, leem-se, num arco de ferro e cimento, os dizeres: “Sinta a diferença”. Não sei se vocês conhecem Palhano, mas, logo de cara, é difícil sentir qualquer diferença quando a gente sai da rodovia e vai palmilhando preguiçosamente as ruas do município. Com os sentidos aguçados, no entanto, aceitei o convite, e me esforcei para sentir a diferença. No meio da rua, aspirei o ar exatamente como faço quando sinto cheiro de café na cozinha de casa num domingo de manhã. Para intensificar o transe, fechei os olhos. Um carro buzinou atrás de mim. Palhano tinha trânsito. Palhano tinha locadora. Palhano tinha Coca-Cola. A diferença é que não havia diferença entre Palhano e o restante do mundo? Fui entrando ainda mais no coração abafado do município. Era meio-dia, e o sol da cidade cozinhava. Como não descobrisse nada, parei numa bodega e pedi cajuína. O bodegueiro serviu. Coçando a barriga que escapava da camisa aberta até a metade do peito, disse: é feita aqui. Exclusiva de Palhano. Pedi outra. Era ótima. Era única. Era a impressão digital da cidade. Era a diferença. Durante o Carnaval, os turistas procuram Fortaleza porque a acham tranquila e favorável a um descanso. Compram pacotes de viagem para dormir e acordar sem ouvir um tamborim ou uma cuíca. Hospedados na Praia de Iracema ou na Beira-Mar, surpreendem-se no dia seguinte diante de palcos montados para uma festa que, ano a ano, atrai mais gente, faz mais barulho e arrasta uma multidão. Apenas dois anos atrás, na Copa do Mundo, a capital cearense orgulhava-se de ser a cidade-sede da alegria. É difícil escolher entre dois estados de espírito. Foi mais ou menos assim que me senti em Palhano: pendulando entre a expectativa e a realidade. É assim que me sinto em 2016. Procurando a diferença. Exercitando a serenidade. E apostando nos ensinamentos do jovem Bin Laden: foca, mas não sufoca. Mentalmente, eu paro, faço um hangloose e digo a mim mesmo: tá tranquilo, tá favorável.

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BREVES SELEÇÃO.

NOBEL.

Estarão abertas, nos dias 11, 12 e 15 de fevereiro, inscrições para seleção de professor substituto do Instituto de Cultura e Arte (ICA) da UFC, no setor de estudo “Interpretação e Prática Teatral”. Os candidatos devem possuir mestrado. O regime de trabalho é de 40 horas semanais, e a remuneração é de R$ 3.799,70. Informações sobre o Edital no site http://goo.gl/HMw7cS

A UBE - União Brasileira de Escritores - enviou para a Academia Sueca a indicação da escritora Lygia Fagundes Telles para o Prêmio Nobel de Literatura deste ano. A premiada autora tem obras traduzidas para o alemão, espanhol, francês, inglês, italiano, polonês, sueco, tcheco, além de adaptações de suas obras para o cinema, teatro e televisão.Lygia foi fundadora da UBE e faz parte também do Conselho Diretor da instituição.

e sarcasmo

Breves Estórias de Vera Cruz das Almas, primeiro livro de ficção de Domício Proença Filho, é relançado após 25 anos da publicação DIVULGAÇÃO

Jáder Santana jader.santana@opovo.com.br

Macondo de Gabriel García Márquez, a Antares de Érico Veríssimo e o Arraial dos Tucanos de Monteiro Lobato ganharam, no início dos anos 1990, outro nome para o rol das ilustres cidades ficcionais da literatura. Vera Cruz das Almas, o lugarejo imaginado por Domício Proença Filho, em nada deve à realidade: suas ruas estão cheias de histórias de amor e sexo, religião e pecado, solidão e arte. Breves Estórias de Vera Cruz das Almas, publicado originalmente em 1991 e relançado agora pela Global Editora, marcou a estreia de Domício na literatura de ficção. Chegou e chamou atenção. Premiado e consagrado pela crítica, venceu o XXI Concurso Literário da Secretaria de Educação e da Fundação Cultural de Brasília, em 1990, recebendo ainda menção especial por ter se destacado no juízo de todos os avaliadores. Em dezembro do ano passado, Domício foi eleito presidente da Academia Brasileira de Letras para o exercício de 2016. O livro traz minicontos, poema curtos e prosas poéticas que ilustram a capacidade sintética do autor. Domício vai direto ao ponto, escreve sem floreios e, inclusive, zomba das gorduras e excessos literários praticados por alguns contemporâneos. Mas se engana quem pensa que sua literatura peca pela aridez: a prosa de Do-

A

Aos 80 anos, Domício Proença Filho foi eleito, por unanimidade, presidente da Academia Brasileira de Letras (ABL) para o exercício de 2016. O autor tem 65 livros publicados ao longo da carreira mício é pontuada por um lirismo que comove e dá cor às ruas estreitas de Vera Cruz das Almas. Em um dos primeiros textos da obra, Ambiência, o autor consolida o espaço físico do lugarejo. Traça seus limites, enumera suas ruas (“quatro paralelas, um sem número de transversais”), desenha sua paisagem e estabelece pontos de vivência e atuação - hotel, escola, igreja, padaria, e as casas das donas Neném e Mercês. Quando chegamos aos personagens, já conhecemos e projetamos suas rotas e trajetos. Como qualquer outra cidade de interior, Vera Cruz é povoada por uma gama de figuras anedóticas: a divorciada, a avó religiosa, o escritor

pomposo, o padre espanhol e o deflorador glorificado. Homens e mulheres movidos por tristezas, alegrias, manias, anseios e vaidades que criam um panorama particular e ao mesmo tempo universal da condição humana. Em seu mergulho na rotina e nos causos do lugarejo, Domício ainda encontra espaço para ironizar o papel da imprensa e da crítica de arte. Sarcástico, põe em cheque os conceitos de “boa arte” e alfineta a erudição e o hermetismo do meio acadêmico e literário. Do sexo à política, da religião à arte, do doméstico ao público, Domício desenha sua cidade fantástica e nos faz sentir integrantes de seu núcleo.

Breves Estórias de Vera Cruz das Almas, de Domício Proença Filho 144 páginas Preço: R$ 39 Global Editora


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