Crianças no Porão

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SEGUNDA-FEIRA FORTALEZA - CE, - 11 DE ABRIL DE 2016 WWW.OPOVO.COM.BR

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Jáder Santana jadersantana@opovo.com.br

ma criança nascida no cárcere, filha de militantes de esquerda capturados por agentes da repressão, é a protagonista de Depois da Rua Tutoia, livro de estreia do escritor e jornalista paulista Eduardo Reina, lançado recentemente pela Editora 11. Entregue a um poderoso empresário que financiava movimentos de repressão em São Paulo, a menina cresce enfrentando uma série de conflitos até que decide buscar sua verdadeira origem. Atento às consequências de um ato que deixa marcas perenes - para a mãe e para a filha - Reina constrói um delicado romance que visita e opõe temas como idealismo e corrupção, amor e tortura, justiça e traição. Na entrevista a seguir, o autor questiona a ausência de dados confiáveis sobre o sequestro de bebês no Brasil - amparado pela abundância de estatísticas em países vizinhos - e reflete sobre a relevância de sua obra em tempos de conflitos políticos no País.

U

O POVO - O que te atraiu nesse tema? Eduardo Reina - A leitura de muitos livros, teses e notícias sobre sequestro de bebês na Argentina, Uruguai e outros países da América Latina. Não é passível de se aceitar que sequestros de bebês não tenham ocorrido no Brasil num período tão conturbado da nossa história. Isso porque as ditaduras militares nos países vizinhos sempre agiram de forma conjunta na repressão à oposição. Não tem explicação plausível para isso não ter ocorrido aqui também. Na repressão, os agentes trabalharam em conjunto - na tortura, no desaparecimento de pessoas, na prisão - e só isso não teria acontecido aqui? Creio que não. O assunto é encoberto, assim como só aqui não conseguimos também prender e punir os responsáveis pelos crimes cometidos naquela época. OP - Quanto de realidade há no teu livro? Há alguma história real em particular que te tocou e você a usou como inspiração? Eduardo - Posso dizer que são duas histórias básicas que eu costurei e as tornei apenas uma. Mas no meio há relatos sobre as torturas sofridas por mulheres no DOI-Codi, na Rua Tutoia, outras histórias de pessoas que eu conheço e que serviram para entrelaçar a trama do livro. A primeira história verídica teve como base a ação de Herbert de Souza, o Betinho, no Jardim Zaira, na cidade de Mauá (na região do ABC paulista). Ele era da Ação Popular (AP) e desenvolvia um amplo trabalho de conscientização da população mais carente, trabalhou numa fábrica de porcelana nessa

LIVRO. DITADURA MILITAR

CRIANÇAS NO PORÃO

Em seu primeiro romance, Depois da Rua Tutoia, Eduardo Reina resgata histórias de sequestros de bebês durante a ditadura militar cidade. Foi perseguido e preso. Mesma trajetória dos personagens que são os país biológicos da bebê sequestrada no meu livro. A outra ponta – a outra história – faz chegar o texto até os dias de hoje. Uma amiga contou a história de uma mulher que virou freira, mas era apaixonada por um homem. Tempos depois, eles se reencontram. Esse homem, apaixonado, foi em busca dela, que estava trabalhando na Igreja Católica em Roma. Ele a convence a largar a vida religiosa para casarem. Ela topa. Essa parte da história também é muito importante para o livro, porque a Verônica (a bebê sequestrada) vive uma vida muito atormentada, em busca de seu verdadeiro eu. Está sempre em busca da verdade. Ela cruza com a mãe biológica em vários momentos da história no livro (isso não aconteceu com a personagem real, é criação minha). E o final é bastante surpreendente, envolvendo as duas. Importante dizer que eu quero tornar público e ampliar esse assunto polêmico do sequestro de bebês na ditadura no Brasil. Como pôde haver tantos sequestros de recém-nascidos na Argentina (cerca de 500, com 149 já reconhecidos

e identificados), no Uruguai, Chile, Paraguai, Bolívia, e aqui nada? Apenas um caso real identificado (graças à própria vítima, que foi atrás de sua história, fez DNA etc.) OP - Personagens reais e fictícios interagem em tua história. Como funciona essa interação? Eduardo - Um dos personagens reais é o delegado Sérgio Paranhos Fleury, homem forte da repressão em São Paulo. Ele comanda o aparelho repressor montado na Rua Tutoia, dentro do DOI-Codi. Ele interage com o empresário que financia a repressão e recebe o bebê sequestrado, por encomenda. Esse empresário eu criei, espelhado na ação de empresários, banqueiros e outras pessoas que financiavam a repressão em São Paulo e no resto do Brasil. OP - Como você chegou ao caso da Lia Cecília? Você teve a oportunidade de conversar com ela? Como ela encara toda essa situação? Eduardo - O caso da Lia Cecília da Silva Martins, uma empresária que mora hoje no Rio de Janeiro, eu só fui descobrir depois que

havia entregado os originais para a editora. O caso dela está relatado no livro Infância roubada - crianças atingidas pela ditadura militar no Brasil, elaborado pela Comissão da Verdade do Estado de São Paulo, cujo presidente, Adriano Diogo, escreveu o prefácio do meu livro. Mas há outros oito casos de guerrilheiros do Araguaia que tramitam na Justiça. Creio que pode haver muito mais. É preciso ter acesso à documentação e, principalmente, que pessoas comecem a contar as histórias que conhecem. As informações constantes no meu livro são de fatos que ouvi dizer ou parte de casos de pessoas presas e torturadas já existentes em literatura no Brasil cruzados com dados de Comissões da Verdade Nacional e de estados, além de livros escritos e editados pelos próprios militares, como o Projeto Orvil. OP - Em tempos de crise política no Brasil, com tantos grupos pedindo por intervenção militar e pela volta da ditadura, teu livro pode ser visto como instrumento de reflexão? Eduardo - Pode ser usado para refletir sobre o assunto sim. Conheço muita gente que não tem a mínima noção do que foi a repressão militar no Brasil. Desconhecem o sequestro de pessoas, as torturas, as mortes. Acho que mais do que reflexão sobre esse tempo, a importância é discutir o tema. É relatar a história do Brasil. Nem tudo está escrito. É preciso pesquisar muito, ouvir muita gente que teve participação direta e indireta nesse período e contar a história recente do Brasil. Isso é cidadania. OP - Como alguém que pesquisou o assunto, como você avalia a postura desses grupos? Eduardo - Há muita gente que reproduz o que os grupos contrários ao governo federal falam. Há inocentes úteis. Agem por protesto puro e simples, sem base histórica ou apenas porque acreditam que tirando alguém da presidência da República todos os problemas do país estarão resolvidos. Mas há aqueles que agem de forma pensada. Sem querer dividir o Brasil em direita e esquerda, mas partindo desse pressuposto, há muita gente que estava quieta e aproveita o momento para aparecer. Hoje vivemos no Brasil uma onda de ódio, muito ruim para nossa democracia, tão nova. Vejo que a política é o novo racismo.

Depois da Rua Tutoia, de Eduardo Reina Preço: R$ 59 240 páginas Editora 11


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