Reencontro de Almas Áridas

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FORTALEZA - CE, TERÇA-FEIRA - 23 DE AGOSTO DE 2016

VIDA&ARTE LEU. ABAIXO DO PARAÍSO

SOCORRO ACIOLI Reencontro de socorroacioli@gmail.com

Borges e a fotografia Por anos, alimentei a certeza absoluta de que, no dia em que eu fosse à feira de antiguidades de San Telmo, em Buenos Aires, teria de comprar uma mala a mais para acomodar minhas inacreditáveis aquisições. Não seria a primeira vez. Tenho coragem e disposição suficientes para voltar com coisas inusitadas e quase absurdas na minha bagagem, sem quebrar nem estragar. Por exemplo, trouxe um aparelho de fazer suco de laranja comprado em Tel Aviv, grande e pesado. De Bogotá, uma tábua dupla de madeira para esmagar patacones, além de uma chapa para arepas. Percebam: eu não tenho mesmo nenhum pudor. Em Beirute, comprei um conjunto de raqwe, as cafeteiras do mundo árabe (eu e minha sogra usamos até hoje). Em Cuba, comprei duas lamparinas de ferro e vidro, para mim e para minha madrinha, porque gosto de dividir as belezas que vejo. De Mumbai, trouxe uma bandeja linda. De Mendoza, uma iogurteira com sete potes de vidro e muito potencial para espatifar na mala – mas chegou muito bem. Das Ilhas Maurício, um carregamento de favas de baunilha comprado direto da fazenda. Diante do currículo apresentado, fica fácil entender porque eu não teria nenhuma dificuldade de encher uma mala a mais em San Telmo. Sonhei em comprar xícaras antigas e brincar de imaginar quem teria sido sua dama anterior. Imaginei que encontraria uma armação de óculos dos anos quarenta e ficaria perfeita no meu rosto. Eu enxergaria a vida com os olhos da antiga dona, um pouco por dia. Quanta literatura se esconde nos objetos antigos dos desconhecidos. O mais inusitado é que voltei de San Telmo com uma pequena sacola e fiz apenas duas compras, graças à companheira de viagem, minha filha Beatriz, então com dez anos. Ela acabara de ler Toda Mafalda, do Quino. A única coisa que a interessava em San Telmo era sentar no banco com sua personagem preferida, fazer fotos, dar um abraço e comprar bugigangas temáticas. Não consegui parar para ver nada, ele estava focada na Mafalda. Da feira de San Telmo, voltei apenas com duas compras: um anel de coração em rodocrosita, que agora é minha pedra da sorte, e o livro Atlas. Atlas foi o último livro publicado em vida por Jorge Luís Borges, com fotografias de sua esposa Maria Kodama. Segundo o autor, são “textos ilustrados por fotografias ou fotografias explicadas por epígrafes”. O que Borges registrou ali é de uma profundidade quase inalcançável. Ele escolheu paisagens, lugares, detalhes e comentou suas impressões, quase sempre a partir de um mito, dos livros lidos, dos autores e antepassados evocados. Borges em um balão. Borges na Irlanda e na Itália. Um brioche francês. Borges olhava cada átomo dos lugares onde passou. Aprendi a fotografar uma viagem lendo o Atlas borgiano. Entendi que devo focar exatamente no nervo do lugar, nas brechas onde está escondido o espírito das coisas. É preciso demorar-se, apreciar. E depois de feitas as fotos, é preciso refletir sobre elas com a seriedade de quem busca desvendar. Não permita Deus que eu morra sem que volte à Argentina, para fotografar as ruas como Borges me ensinou, um homem cego que enxergava com a alma.

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ES T A N T E

almas áridas

Em novo romance, André de Leones escreve sobre fuga e reconciliação em um cenário de corrupção na administração pública ROSELI VAZ/ DIVULGAÇÃO

Jáder Santana jader.santana@opovo.com.br

ristiano, o protagonista de Abaixo do Paraíso, é um tarefeiro a serviço do esquema político local no interior de Goiás. Clandestino, resolve problemas, transporta amantes, garante acordos, cuida de tudo o que não pode ser visto. Assim como os pacotes que leva e traz, que só existem nos quartos abafados de hotéis, em encontros secretos nos bares de subúrbio e apartamentos vazios, Cristiano é um fantasma - está em corpo, mas lhe falta a presença. A linguagem crua de André de Leones - com parágrafos de puro fluxo e ideias que se atropelam - ajuda a construir a presença fantasmagórica do personagem e sua existência sem propósitos. Levado pelos dias, vagando entre cidades e quartos de hotel, é na violência e no sexo que encontra redenção, que estabelece contato com o real. Precisa disso para saber-se vivo. Como um John Fante do centro-oeste brasileiro, o autor desenha figuras marginalizadas sobrevivendo aos seus peque-

C

B R E V E TUNGSTÊNIO. O cineasta Heitor Dhalia (O Cheiro do Ralo) se prepara para lançar Tungstênio, seu novo longa-metragem. Baseado em um quadrinho de Marcello Quintanilha, o filme traz quatro personagens envolvidos numa trama aparentemente banal: um policial movido pelos instintos; sua esposa, que quer a separação; um pequeno traficante; e um exsargento do exército, saudoso pela vida na caserna. Com filmagens marcadas para novembro na Bahia, Tungstênio tem produção da Paranoid e coprodução da Globo Filmes.

POR MARCOS SAMPAIO P marcossampaio@opovo.com.br m

VELHO CHICO Vários

SUICIDE SQUAD Vários

CROSSROADS REVISITED Vários

O segundo volume da trilha da novela global ganha respeito pela mistura de nomes quase sempre esquecidos desse tipo de compilação. Para se ter ideia, tem Tom Zé (com duas faixas) e Zé Miguel Wisnik (com Ná Ozzetti em A Olhos Nus). E ainda Pélico (Não Há Cabeça) e Bárbara Eugênia (Coração).

Se o filme dividiu as opiniões da crítica, a trilha sonora deve agradar mais gente. O time de bandidos que se une para fazer o bem chega embalado por canções de Eminem (Without Me) e Creedence Clearwater Revival (Fortunate Son). Nos créditos, o épico do Queen Bohemian Rhapsody com o Panic! Ate The Disco.

Em 2004, Eric Clapton iniciou um festival dedicado à guitarra. No palco, estrelas das seis cordas em performances explosivas e únicas. Neste lançamento, estão quatro horas de gravações inéditas do evento que trouxe gente do nível de BB.B. King, Robert Cray, Jeff Beck e outros.

Preço médio: R$ 24,90 18 faixas Gravadora: Som Livre

Preço médio: R$ 29,90 14 faixas Gravadora: Warner

Preço médio: R$ 59,90 40 faixas Gravadora: Warner

e mergulhando em um ambiente de reminiscências pessoais e familiares que trazem para o romance um gosto perdido da melhor literatura regionalista. Em meio às rotinas provincianas e à profusão de fofocas, mexericos e histórias contadas em tom de segredo, percebemos o quanto há em Cristiano das tradições e genéticas perpetuadas. É nessa segunda parte do romance - a partir das relações estabelecidas com os personagens peculiares do interior - que conhecemos a “goianidade” do protagonista. Cristiano só se encontra quando volta às suas origens. Em sua obra de espírito árido, André de Leones distribui momentos que parecem insinuar uma suavidade que jamais se concretiza. São esses os pontos altos da narrativa - os encontros com a meia-irmã, os diálogos de resgate com o pai e a conversa com uma tia, que serve de mote para o reconhecimento de angústias e a remição de segredos. Deparado com o cenário de sua infância e juventude, o narrador escreve que “a cidade era uma Jerusalém sem a possibilidade do Messias”. Não há chão de promessas em Abaixo do Paraíso.

Nascido em 1980, em Goiânia, André de Leones já colaborou com publicações como Bravo!, O Globo e Jornal do Brasil nos dramas suburbanos. A eterna fuga de Cristiano e sua tentativa de se situar no mundo - segundo ele, tudo não passa de “uma crisezinha existencial” - ganha nova urgência quando um serviço dá errado e um crime de grandes proporções acontece. Mas é com apatia que o protagonista executa e assiste às consequências imediatas do ato que poderia arruinar sua trajetória. Como o narrador inconsequente de O Estrangeiro, de Camus, Cristi-

ano vive seu delírio momentâneo, e a muda confusão dos minutos que se seguem revela um autor com pleno domínio de seu arco narrativo. As reflexões engatadas pelo protagonista após o crime pouco a pouco se dissolvem. A culpa que em algum momento pareceu sentir dá lugar ao alívio pelo abandono do marasmo. Nessa fuga continuada, acaba chegando à fazenda do pai na zona rural de uma pequena cidade do interior goiano

Abaixo b i d do Paraíso, de André de Leones 256 páginas Preço: R$ 29,50 Editora Rocco


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