Folclore e Força de Uma Tradição

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FORTALEZA - CE, TERÇA-FEIRA - 29 DE MARÇO DE 2016

V&A LEU. ‘UMA HISTÓRIA SIMPLES’

Folclore e força SOCORRO ACIOLI de uma tradição socorroacioli@gmail.com

O Brasil contado às crianças

Dia desses, decidi sair para tomar um café com amigos. Havia um fluxo incomum de pessoas com camisas amarelas, e algumas entraram no café onde eu estava. Elas voltavam de uma manifestação que ocorrera por perto, munidas de certezas e indignações. Estavam ali usufruindo o direito democrático de protestar, garantido pelo esforço de tantos homens e mulheres ilustres da nossa história. A maioria usava camisas da seleção brasileira, como se fosse uma final de campeonato. Menos uma família. Pai, mãe e um filho de uns dez ou onze anos, talvez. Eles vestiam uma camisa amarela com uma mão desenhada no meio. Uma mão com quatro dedos, perpassada por uma barra preta, como uma placa de trânsito, em sinal de proibição. Fiquei imaginando o que pensaria um estrangeiro que não conhecesse nada sobre a história do Brasil, ao ver aquela camisa. Proibido ter quatro dedos na mão? Seria confuso, talvez engraçado, mas o significado real daquela camiseta é de uma tristeza sufocante. É propagar o ódio em um mundo tão violento. Poucas semanas depois, uma mãe postou um desenho do filho nas redes sociais, com muito orgulho. Era a representação do assassinato de Dilma Rousseff e Luís Inácio Lula da Silva feito com lápis de cera. Sangrando, com uma faca atravessando a barriga de ambos. Logo depois, vi o relato de uma mãe agredida porque seu bebê usava uma roupa vermelha, a cor escolhida pelo Partido dos Trabalhadores como seu símbolo. Soube ainda de relatos de agressão em escolas, também pelo uso de camisa vermelha. Estamos vivendo tempos sombrios. A falta de informação justa e responsável tem espalhado uma onda de ódio que atinge as crianças plantando uma semente difícil de arrancar depois que germina. Ensinar a um filho que é certo andar por aí com uma camiseta que ironiza a deficiência física de uma pessoa é ensinar o preconceito. Todos temos o direito de discordar das ações do político. Mas é obrigação respeitar o ser humano. Isso não é patriotismo, é estímulo ao ódio. Lembrei de imediato do belíssimo trabalho do professor Ricardo Oriá, cujo titulo tomo emprestado para essa crônica: O Brasil contado às crianças. Ricardo é especialista em ensino de História e pesquisou o escritor Viriato Corrêa e seu livro sobre história do Brasil. Seu objeto de estudo é um dos mais importantes na formação de cidadãos que tenham a capacidade, no futuro, de contribuir com o desenvolvimento do Brasil. Um desafio nos dias de hoje. Todos que convivem com crianças brasileiras têm a obrigação de informar, de maneira ética e justa, sobre o que está acontecendo. Mas, sobretudo, é urgente falar de tolerância. É imperativo deixar de insultar as deficiências, a forma física, o estado civil e a orientação sexual dos políticos que são o centro das celeumas do momento atual. De todos os lados. Vamos explicar às crianças qual o posicionamento político de suas famílias, mas sempre lembrando que outras pessoas pensam diferente e que isso é um direito que ninguém pode manchar. Protestar é democrático, mas ofender é criminoso. E não adianta sentir-se santificado por ir à missa depois da passeata. Esse senhor de quatro dedos também é filho de Deus. Esta coluna é publicada às

terças CONFIRA ESTA E OUTRAS COLUNAS EM: www.opovo.com.br/colunas

BREVE AULA MAGNA. O Programa de PósGraduação em Arquitetura e Urbanismo e Design e o Laboratório de Estudos em Habitação, ambos da Universidade Federal do Ceará (UFC), recebem a arquiteta e urbanista Raquel Rolnik para a Aula Magna do Mestrado Acadêmico. O encontro acontece na Faculdade de Direito a partir das 18h30min. Raquel Rolnik é professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo e foi relatora especial do Conselho de Direitos Humanos da ONU para o Direito à Moradia Adequada, de 2008 a 2014. É também autora do livro Guerra dos lugares: a colonização da terra e da moradia na era das finanças (Ed. Boitempo), em que faz uma reflexão sobre o período em que foi relatora da ONU e aborda o processo global de financeirização das cidades e seu impacto sobre as políticas habitacionais. O livro foi considerado pelo marxista britânico

David Harvey, “uma obra fantástica, uma denúncia devastadora”. Raquel Rolnik também é autora dos livros A Cidade e a Lei, O que é Cidade e Folha Explica: São Paulo. O credenciamento para a Aula Magna começa às 17h30min no auditório da Faculdade de Direito (Rua Meton de Alencar s/n Centro). Após solenidade, Raquel Rolnik realiza sessão de autógrafos do livro Guerra dos Lugares.

Elogiado por Mario Vargas Llosa, livro-reportagem de Leila Guerriero acompanha competidores do festival de dança mais exaustivo da Argentina DIVULGAÇÃO

Jáder Santana jader.santana@opovo.com.br

om textos publicados em grandes periódicos de todo o mundo - La Nación, Rolling Stone, El País, Vanity Fair a jornalista argentina Leila Guerriero viajou até um povoado de seis mil habitantes para cobrir um dos eventos mais tradicionais de seu país, o Festival Nacional de Malambo de Laborde. Boquiaberta pela apresentação de um dos competidores, decidiu contar sua história. “Um trabalho vigoroso, investigação exaustiva e um estilo de precisão matemática”, foi como o escritor Mario Vargas Llosa, Nobel de Literatura em 2010, descreveu Uma História Simples. Com o formato de livro-reportagem, a obra de Guerriero se apropria da trajetória de um personagem para dissertar sobre uma modalidade de dança - o malambo - que exige treinamento de dançarino e preparação física e psicológica de um atleta. Durante sua apresentação, o malambista alcança velocidade semelhante a de um corredor de 100 metros rasos, com a diferença de que o corredor precisa mantê-la por nove segundos, enquanto a exibição do dançarino dura até cinco minutos. A cada segundo e meio, o malambista apresenta até oito batidas de pé e flexões de tornozelo. O número, seguido por um acompanhamento musical que cresce em agilidade, não raramente é finalizado, por trás das cortinas, com o dançarino sendo carregado de volta ao camarim, banhado em suor, com mem-

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Rodolfo González foi acompanhado por um ano pela jornalista

Seduzida pela apresentação do competidor Rodolfo González, Guerriero dedica-se durante um ano a acompanhar sua trajetória de treinamentos

bros torcidos, dedos arrebentados e unhas destruídas. Praticante de um jornalismo literário que no Brasil encontra equivalência na figura da gaúcha Eliane Brum, Guerriero usa de sua sensibilidade e poesia para oferecer aos leitores o que geralmente se encontra em obras de ficção: a humanidade e o emocional dos personagens. Seduzida pela apresentação do competidor Rodolfo González, dedica-se durante um ano a acompanhar sua trajetória de treinamentos e a conhecer sua história familiar. Nascido em família humilde - como a maioria dos outros concorrentes - é no malambo que Rodolfo deposita seus sonhos. O vencedor do Festival de Malambo de Laborde é um homem que é aniquilado no momento em que recebe sua coroa. Pelas regras da tradição, o dançarino vitorioso não pode nunca mais se envolver em outra competição do tipo. Com delicadeza e rigor, Guerriero levanta o questionamento: por que elevar-se para sucumbir? Boa escritora que é, sabe que sonhos não se discutem.

Uma História Simples, de Leila Guerriero Leila Guerriero: percepção da humanidade dos personagens

98 páginas Preço: R$ 32,90 Editora Bertrand Brasil


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